A HUMANIDADE ESQUECIDA: A CIÊNCIA NA ESTEIRA DA \" METAFÍSICA DA MODERNIDADE \" [THE FORGOTTEN HUMANITY: SCIENCE ON THE TRACK OF \" METAPHYSICS OF MODERNITY \"

May 22, 2017 | Autor: J. Cardoso de Castro | Categoria: Metaphysics, Philosophy of Science, Martin Heidegger, Heidegger, Metafísica
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A HUMANIDADE ESQUECIDA: A CIÊNCIA NA ESTEIRA DA “METAFÍSICA DA MODERNIDADE” [THE FORGOTTEN HUMANITY: SCIENCE ON THE TRACK OF “METAPHYSICS OF MODERNITY”]

João Cardoso de Castro

Professor de Filosofia no Centro de Ciências Humanas e Sociais do Centro Universitário Serra dos Órgãos Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro

DOI: http://dx.doi.org/10.21680/1983-2109.2016v23n42ID9046

Natal, v. 23, n. 42 Set.-Dez. 2016, p. 125-150

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A humanidade esquecida

Resumo: O presente trabalho elabora uma reflexão sobre a insuficiência no modus operandi da ciência. A partir da meditação de Heidegger sobre a “metafísica da modernidade” e as maneiras de determinar o ente estabelecidas ao longo da história, esta investigação discorre sobre a fundamentação do “sujeito” moderno, lançado no universo infinito pela implosão da esfera cósmica e suas subesferas, que outrora lhe concediam morada, guarda e, sobretudo, sentido. A contribuição aportada por esta análise, não tem por objetivo o abandono da ciência, mas tão-somente lançar uma luz sobre a aridez da cientificidade frente à necessidade humana de se situar perante o real, contribuindo assim, para que torne a “honrar” inteligência humana, o ser humano, em contraposição a um humanismo depreciante, desde o Renascimento. Palavras-chave: Heidegger.

Ciência;

Episteme;

Metafísica;

Representação;

Abstract: The present study develops an investigation on the insufficiency of science’s modus operandi. From Heidegger's meditation on the “Metaphysics of Modernity” and the ways to determine the being, established throughout history, this research discusses the foundations of the modern “subject”, projected in the infinite universe by the implosion of the cosmic sphere and its sub-spheres, which once granted him home, guard and above all, meaning. The contribution brought by this analysis does not intend to abandon science, but only shed light on the aridity of the scientificity regarding the human need to situate himself in the reality, contributing, as said, to “honor” human intelligence once again, the being-human, as opposed to a downgrading humanism since the Renaissance. Keywords: Science; Episteme; Metaphysics; Representation; Heidegger.

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Uma referência à “humanidade” é sempre arrogante e presunçosa. Mais do que um coletivo, estamos nos referindo a nossa natureza (physis1), ao ser do “sendo humano”. Não há como alcançar uma Visão a partir de lugar nenhum, como se intitula o brilhante livro de Thomas Nagel (1986). Não há como ter o distanciamento necessário para esta referência, quanto mais para qualquer apreciação. Entretanto, como título, vale a provocação. De fato, mesmo na impossibilidade de um justo ponto de vista, é notório que a humanidade se diferenciou ao longo de sua história, mesmo reduzindo esta história ao período da escrita e das civilizações. Entretanto só podemos, ainda assim, expôr alguma diferença, se levarmos em consideração documentos históricos, escritos e monumentos, estes certamente pensados e concebidos por uma parte diminuta da humanidade. Com efeito, é a estes notáveis “humanos” que devemos aquilo que sabemos do passado, do pensamento antigo. Portanto, é deles, ou melhor desta natureza humana, que nos referimos sempre neste artigo se usamos a palavra “humanidade”. Isso porque eles encarnam o que há de mais sublime no ser humano, sua verdadeira humanidade, na medida que consideramos sua produção intelectual e artística. É claro que nos defrontamos com inúmeras dificuldades de compreensão deste legado, não só pela linguagem mas principalmente pelo pano de fundo no qual seu pensar e seu criar se deram. No entanto, assim é que, como desde essa época longínqua, alguns poucos “humanos” se apresentaram como guardiões de uma tradição, que preservou o que veio a se denominar “philosophia perennis”2, através dos tempos. “A episteme physike grega pensa o ente na totalidade e, com isso, também o ente em sua unidade comum (im All-gemeinen), isto é, na perspectiva do que é comum a todo e cada ente à medida que é, pode ser e deve ser, ou que não é todos os demais. O que é comum, próprio e o mais próprio em todos os entes é ‘o ser’. ‘O ser’ – a palavra mais vazia, na qual nós, ao que parece nunca pensamos de imediato. O ser – a palavra, porém, a partir da qual tudo pensamos, experimentamos e somos.” (Heidegger, 1998, p. 217) 2 Com o nominalismo dos séculos XIV e XV, o pensamento se fez decididamente lógico, e a intenção “metafísica” da filosofia primeira foi posta de lado 1

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Os discursos desses “humanos” são como “dedos apontando à lua”, indicando o reflexo da luz do passado na mente humana. Muitos se perderam, ao cercarem estes “humanos”, empobrecendo essa “busca pela salvação” (Ferry, 2010, p. 19), ao discutir o dedo, o braço, a lua, a posição etc, ou seja, deixaram a busca da humanidade em prol de uma discussão do método. Esqueceram o sentido da “philo-sophia”, do apreço ao “ser” humano, lembrando somente da importância do discurso e não de sua necessária hermenêutica3, para que “re-vele” seu sentido. Neste esquecimento é que a episteme (a ciência, no pensamento grego) veio a se tornar uma “epistemologia”, onde o que importa é apenas o “discurso sobre a episteme”, uma forma de “representação”, de substituto; a theoria (contemplação) da verdade, veio a ser a teoria de cada disciplina da ciência moderna. Não é exagero dizer que toda trajetória humana no mundo é marcada por uma tentativa de compreender e se situar face à natureza, o “ser-mundo”, do grego physis, em seu sentido originário de “crescer”, “desabrochar” e “abrir”. Segundo Sousa (2004, p. 28): “A uma forma do ser humano, a uma forma do ser homem, ou do ser do homem, a qualquer de formas tais, corresponde uma forma em favor de seu aspecto “ontológico”. Nesse contexto foi criado o conceito de philosophia perennis. Recebeu suas credenciais do livro Philosophia perennis, publicado por A. Steuco em Lyon (1540). Pretendia exprimir uma comunidade teórica entre as diversas Escolas filosóficas, que se sucederam na história. A ontologia escolástica esforçou-se por articular essa sucessão propondolhe um termo lógico definitivo. G. Leibniz também se apoderou da expressão Philosophia perennis, porém matizando seus acentos combativos e suas vontades de encerrar a busca da verdade. Numa carta de 26 de agosto de 1714 a N. Remond, ampliava seu campo para toda verdade “que é mais difusa do que se pensa” e que é possível encontrar em toda sua pureza, com a condição de eliminar suas sobrecargas inúteis. A philosophia perennis aparecia, assim, mais como uma tarefa do que como um fato adquirido. (Gilbert, 2004, p. 12) 3 “A fenomenologia do Dasein é hermenêutica na significação originária da palavra, que designa a tarefa da interpretação” (Heidegger, 2012, p. 127). Podemos entender nesta afirmação o Dasein, o Ser-aí, como o ser humano, ou a humanidade a que nos referimos aqui. Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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do ser mundano, uma forma de ser mundo, uma forma de ser do mundo. Homem e mundo são inseparáveis parceiros do mesmo jogo”. Grandes “sistemas” de pensamento se desenvolveram afim de tornar nossa existência menos angustiante diante desse mistério da physis e para em seu seio viver e nele inscrever nossas ações, o que, evidentemente, faz necessário, antes de mais nada, ter ciência dele, conhecê-lo ou, pelo menos, tentar “des-vendá-lo”, “re-velálo”. A episteme grega foi esta tentativa, e aí contrasta com a scientia medieval e com a ciência moderna (Heidegger, 1962, p. 101). Assim, entre ser-humano e ser-mundo (homem e mundo considerados ontologicamente), no decurso da história, uma dialética se estabelece em forma de comunicação, comunhão, como uma interface, um mediador, o logos entre estas duas aparentes instâncias, de uma unidade “ser-em-o-mundo”4. Segundo Heidegger (1962, p. 99), cada momento da história ocidental se caracteriza por uma forma muito específica de comportar-se em relação ao ente, ou seja, uma Metafísica, cuja natureza é decisiva para o modo de vida daquele tempo. Desde os mitos nas sociedades primitivas, a filosofia na antiguidade clássica, a teologia na Idade Média até a ciência na Modernidade, o que se percebe, são as diferentes formas “discursivas” que os homens desenvolvem para lidar com tudo aquilo que o cerca. Ainda na esteira da reflexão heideggariana, e somente com o intuito de ilustrar aquilo que pretendemos ainda dizer, na grande unidade histórica que denominamos cultura grega, por exemplo, 4

“O ‘mundo’, considerado ontologicamente (ser-mundo), não é uma determinação do ente não-humano, mas um caráter do Dasein (ser humano) ele mesmo” (Heidegger, 2012, p. 64; termos entre parênteses são nossas interpretações). Segundo Biemel (1987, p. 10), a problemática do mundo é intimamente ligada àquela do Dasein, haja vista a definição que Heidegger dá do Dasein, como “ser-em-o-mundo” e o que diz da “existência” e do “meu-próprio”: as duas características do Dasein “devem ser vistas e compreendidas a priori com base nesta modalidade de ser que denominamos ser-em-o-mundo”. Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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predominou um certo tipo de Metafísica, em que vigem as noções de poiesis, praxis, episteme, phronesis etc. O que nos interessa, no entanto, não é somente uma pura arqueologia de noções com esta, enquanto formas de representação e relação do homem com as coisas, mas de que forma a Modernidade, sobretudo no movimento da Ilustração, apreendeu e deu novo sentido, distorcendo radicalmente, concepções que outrora serviam de base para a paidéia, ou seja, para formação do homem grego. Neste sentido, as linhas que se seguem têm por objetivo reconstituir essas diferentes configurações de homem, em sua relação com o ente, confrontando especificamente duas destas Metafísicas, a saber: a grega e a da modernidade, isto é, da época da episteme e da época da ciência, que ora permeia nossa existência, como língua franca, e podemos afirmar que teve seu início no ato arquefundador (Henry, 2012) de Galileu e na ruptura, sujeito/objeto, cartesiana. E, dizemos “cartesiana”, pois é ainda polêmica a interpretação das obras do próprio Descartes, Meditações Metafísicas e Discurso do Método, no tocante a esta ruptura (Henry, 2009, p. 51 et seq.). Isso posto, o objetivo deste ensaio é, tendo como “antolhos” o pensamento de Heidegger, lançar novamente um olhar em direção à ciência moderna, ao que deixou para trás em sua constituição e instituição. Antolhos bloqueiam um olhar lateral e dispersivo, e concentram o olhar na direção que se quer visar. Retoma-se novamente uma questão por tantos e tantas vezes respondida. O ensaio é, portanto, “filosófico” por refazer um caminho de questionar, aquele de Heidegger, e por buscar à justa inclinação ao saber que responde, e não que descreve ou explica. A direção garantida pelos “antolhos” escolhidos assegura um olhar para o passado, pondo-se à escuta de termos que ainda nos tem muito a dizer, como theoria, techne e praxis. Assegura também o olhar crítico para o “moderno”, no que se equivocou e eventualmente esqueceu, a “humanidade” imprescindível a qualquer atividade “humana”, como, por exemplo, a ciência. Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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Da theoria à teoria Para Domingues (1991, p. 15-16), se deixarmos de lado os modelos discursivos primitivos, podemos dizer que existem “quatro idades” na arqueologia das ciências humanas: (1) a idade cosmológica; (2) a idade teológica; (3) a idade mecânica; (4) a idade da história. Parafraseando sua classificação de “idades”, porém de olho na civilização ocidental, podemos dizer que o mesmo pode ser dito em termos de uma arqueologia das camadas de contemplação/ ação humanas, desde a Antiguidade grega. A idade cosmológica abre-se quando a razão, o logos, enceta um discurso mais fisiológico que aquele oferecido pelo mito5. O mito (gr. mythos; da raiz my, fazer silêncio) não ousava formular, mas apenas pronunciar, contar uma estória6. Os pré-socráticos aventuram afirmações sobre a physis (a natureza), o arche (o princípio), o on (o ser) e o me on (o não-ser), o bios (a vida vivida), a zoe (a força vital) etc. Neste sentido, é premente considerar que o desabrochar da filosofia no seio da cultura mitológica grega tem, como precursor fundamental, a ideia de um mito já secularizado, conforme nos indicia M. Eliade (2000, p.130): Em nenhuma outra parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar nao so a poesia épica, a tragedia e a comédia, mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o mito a 5

Em momento algum, a filosofia grega nos aparece como abstração do mito helênico ou pré-helênico, como transposição pura e simples da mitologia em logomitia. Mas entre elas alguma relação tem de existir, pois seria inverosímil que o mesmo povo mentalmente vivesse em dois mundos diferentes, estranhos e incomunicáveis. Supondo, todavia, que o mito e o logos são efetivamente incomunicáveis e estranhos um ao outro, ainda podemos pensar que, apesar da incomunicabilidade e estranheza, alguma relação entre elas subsiste (daí a exigência da complementaridade que não é senão uma das formas que pode assumir o nosso anseio de unidade). (Sousa, 2002, p. 181-182) 6 “O mito é o modo de se falar do homem e do mundo” (Sousa, 2004, p. 45). Ao contar uma estória sobre homem, mundo e deus, cria-se algo a contemplar, mirar, em silêncio. “Mirar significa adentrar o silêncio” (Heidegger, 2003, p. 35). Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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A humanidade esquecida uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente “desmitizado”. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia “clássica”, tal qual e expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas europeias a palavra “mito” denota “ficcão”, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos.

A idade teológica, por sua vez, converge e reduz o múltiplo desabrochar do logos original, em seu desdobramento por todas as dimensões da existência grega, a um único centro pois, no princípio: “o Logos estava com Deus, o Logos era Deus” (Jo 1, 1). Aos poucos se elabora o que Heidegger denomina a “onto-teologia”7 que atravessando toda Idade Média, perde sua sedução na Renascença, em seu pretenso retorno à Grécia Antiga, e desprezo da teologia medieval que cede lugar ao “humanismo” renascentista. No entanto, ainda subjaz a estrutura onto-teológica da metafísica, enquanto surgência do reino impensado da diferença ontológica, onde o sentido do ser é sempre reconduzido a algum ente que teria preeminência, nem tratado como um simples conceito. A idade mecânica, terceiro “momento” desta nossa breve genealogia, decorre da redescoberta da exuberância do pensamento da antiguidade clássica, que justifica um Renascimento que busca no resgate da tradição intelectual grega e latina, e no concomitante desenvolvimento das técnicas artísticas e arquiteturais (Thuillier, 1988, p. 91-191). Este movimento culmina na valorização e prestí7

Se, entretanto, voltamos mais uma vez à história do pensamento ocidentaleuropeu, constatamos: enquanto pergunta pelo ser do ente, a questão do ser possui duas formas. Ela pergunta primeiro: Que é o ente em geral enquanto ente? As considerações no domínio desta questão se perfilam, no decorrer da história da filosofia, sob o título: ontologia. Mas a pergunta: “Que é o ente?” questiona, ao mesmo tempo: Qual é o ente no sentido do ente supremo e como é ele? É a questão relativa ao divino e a Deus. O domínio desta questão se chama teologia. O elemento biforme da questão do ser do ente pode ser reunido sob a expressão: onto-teo-logia. A questão ambivalente: Que é o ente? se enuncia, de um lado, assim: Que é (em geral) o ente? E de outro lado: Que (qual) é o (absolutamente) ente? (Heidegger, 1973, p. 435) Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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gio que vem assumir o “ingenium”, a qualidade inata ou natural, o caráter. Termo do qual vai derivar o “gênio”, figura importante da Renascença, o “engenheiro”, figura também relevante na mesma época, e o “engenho”, invenção que replica operações da natureza, como se dotado de um “ingenium” (Grassi, 1978, p. 197-211). A idade da história se apresenta por conta de um desvio na passagem da Renascença ao início da Modernidade. A engenhosidade que caracterizou a Renascença vai, por sua intensa atividade, agora produzir novas gestões territoriais, novas formas de governança, novo estatuto econômico, e alimentar a confiança crescente no poder da razão na condução da práxis. A práxis e seus resultados visíveis alimentam a relevância da historiografia como registro afirmativo do “progresso” em todos os campos da atividade humana, especialmente na ciência (Rossi, 1996, p. 67-103). Sob a conduta da razão e a esperança no progresso, a aurora da Ilustração era o prenúncio do deslocamento de uma vita contemplativa predominante desde a idade cosmológica, para uma vita activa8 doravante dominante e produtiva do meio técnico, científico e cultural, ou seja, um “projeto” que se espraia por todas as dimensões da existência humana (Arendt, 2007, p. 15-30). A vita contemplativa, a theoria, do grego to theion ou ta theia orao, que significa “eu vejo (orao) o divino (theion)”, desde a idade cosmológica, e até principalmente antes, se caracterizava como um eixo vertical ao redor do qual se estendia desdobrando horizontalmente a vita activa. A verticalidade do ser humano, enquanto “consideração respeitosa da re-velação do vigente em sua vigência”, “visão protetora da verdade” (Heidegger, 2002, p. 46), desde a qual se configuram e se conformam, a partir do cruzamento com o plano horizontal da vita activa, atos e fatos imbuídos 8

Segundo Koyré (1986, p. 13): “Enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da natureza e do ser, o moderno deseja a dominação e a subjugação”.

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de significado. Através das “idades” assinaladas, esta “cruz” simbólica do “ser” humano foi girando, a vita contemplativa perdia seu status ontogênico único, tornando-se a vita activa conducente principal da vida humana. Uma “inversão copernicana” estabelecia agora a supremacia vertical da vita activa, determinava-se o individualismo e sua ação ao longo deste eixo vertical, a partir do qual eventualmente se desdobrava horizontalmente uma vita contemplativa, reduzida a estimular e decorrer raciocínios, segundo uma mathesis universalis, evidenciada pelos próprios atuar e fazer da vita activa (Arendt, 2007, p. 302-317). Mathesis significa aprender; mathemata, o que se pode aprender, em consequência, o que se pode ensinar (Heidegger, 1992, p. 75-82). Assim, a chamada “matematização da ciência”, se dá pela abstração do que se pode aprender e ensinar da experiência da vida humana, em seu atuar e seu fazer. Os métodos lógicos, matemáticos e geométricos se oferecem nesta mathesis universalis, como arremedos de uma vita contemplativa que agora visa, muito mais, fazer do que compreender ou “contemplar o que é divino no real que nos cerca”. (Ferry, 2010, p. 31). Aí a nova tarefa da ciência moderna, qual seja, uma “guinada” da contemplação de uma harmonia dada para uma elaboração ativa do homem em um mundo agora desencantado. O que leva Heidegger (2002, p. 48) a afirmar: Como teoria, no sentido de tratar, a ciência é uma elaboração do real terrivelmente intervencionista. Precisamente com este tipo de elaboração, a ciência corresponde a um traço básico do próprio real. O real é o vigente que se ex-põe e des-taca em sua vigência. Este destaque se mostra, entretanto, na Idade Moderna, de tal maneira que estabelece e consolida a sua vigência, transformando-a em objetidade. A ciência põe o real. E o dis-põe a pro-por-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa sequência de causas aduzidas que se podem prever. Desta maneira, o real pode ser previsível e tornar-se perseguido em suas consequências. É como se assegura do real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento científico pode, então, processar à vontade. A representação processadora, que assegura e Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental da representação com que a ciência moderna corresponde ao real. O trabalho, que tudo decide e que a representação realiza em cada ciência, constitui a elaboração que processa o real e o ex-põe numa objetidade. Com isto, todo real se transforma, já de antemão, numa variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas.

O fazer (poiein, donde poiesis = produção) e o atuar (prattein, donde praxis = atuação), como as duas únicas possibilidades da vita activa (Taminiaux, 1995, p. 149-189), eram vistos enquanto arestas na base de um triângulo representativo do “ser” humano, que o pensamento grego formulava colocando no topo a theoria. A poiesis seria regida pela arte (techne), e a praxis pela prudência9 (phronesis). A theoria ditaria as diretivas, segundo a semelhança do Bem (agathon) e as possibilidades do caráter (êthos), de qualquer atuar ou fazer, ou seja, “triangula” ou posiciona, confere lugar ao “ser” humano a partir do topo sobre esta base da vita activa, regulada em seu fazer pela techne e em seu atuar pela phronesis. A inversão de ponta cabeça, deste triângulo, como se dá na Modernidade, significa que a vita activa (o fazer e o atuar), deve agora servir em seu experienciamento para a formulação de teorias, ou na construção de leis, que permitam dar ao mundo, agora “desencantado” (Berman, 1984, p. 57-126), um sentido. Estas “hipóteses”, como simples pensamentos, atravessam a mentalidade moderna “cientificamente” incipiente e a teoria agora é o que se aprende e se ensina da vita activa. A mathesis universalis que doravante rege o fazer e o atuar, segundo um materialismo dialético, onde o que é produzido, vai por sua vez produzir esta produção. Um lado apenas da vita activa, o fazer, sob o paradigma do fazimento (techne), do saber-fazer, da habilidade, vai doravante servir de método não só para toda a vita activa, não só para o fazer como 9

“[...] logo a prudência não é uma ciência. A prudência seria então uma arte? Não, pois a prudência visa à ação, praxis, e a arte à produção, poiesis: a prudência não é, portanto, uma arte.” (Aubenque, 1997, p. 34) Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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para o atuar embora originalmente, como já dissemos, no pensamento grego, o fazimento (poiesis) fosse regulado pela techne e a atuação (praxis) fosse dirigida pela phronesis. A ciência moderna: a metafísica da representação O que Alexandre Koyré (1973, p. 9-15) denominou, como prolegômeno da ciência moderna, a passagem “do mundo fechado ao universo infinito”, caracteriza de fato o desmoronamento de uma visão do lugar e finitude do ser humano, em sua morada corporal na Terra, situada no centro de sucessivas esferas, sob o Empíreo. Esta “nova” condição humana no mundo é diametralmente oposta ao modelo celeste grego, conforme nos sugere Sloterdjik (2010, p. 365): A história triunfal do modelo celeste [esférico] em filosofia e em cosmologia mostra muito claramente que as questões de custos cognitivos tinham pouco peso face ao valor de uso morfológico notável da construção eminente. Para a opinião pública profana, que não tinha que se ocupar da salvação dos fenômenos, a ideia de um cosmos composto de diversas esferas embutidas sob forma concêntrica umas nas outras, a Terra no centro, era justamente de uma plausabilidade irresistível, mas apresentava também, dentro de certos limites, um atrativo psicológico. Ela permitia aos homens, entre a Antiguidade clássica tardia e o início dos tempos modernos, alcançar a medida indispensável de hábito e de morada em um universo cujas dimensões pareciam já mesmo estendidas até o máximo do inquietante e do gigantesco. Durante dois mil anos, ela fez suas provas sob a forma da técnica de domesticação do mundo da cultura europeia. Ela interpretava o cosmos como a cidade entre os muros invulneráveis da qual os mortais conduziam sua existência. Eles reconheciam nele o mais extremo que se podia alcançar quando da transferência uterotécnica urbana para o universo.

Essa situação de finitude, sob um abrigo cósmico, assegura a participação do homem na “grande cadeia do ser”, como denomina Lovejoy (1964, p. 24-98), ao mesmo tempo que garante propósito e significado muito além da duração finita de seu corpo. Para Sloterdjik (2010, p. 106): “Quando o indivíduo pode encontrar sua Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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felicidade na participação no Todo, se relembrar o centro da esfera se torna em si, imediatamente, um exercício terapêutico e mesmo salvador”. Na tradição grega, se tem a ideia de um cosmos finito, organizado e animado10, na physis os entes se arrematam em uma comunhão sublime, como numa sinfonia ou um grande animal do qual cada elemento – cada órgão – seria admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o todo. Cauquelin (1995, p. 72-73), ao analisar a posição de Aristóteles sobre essa ordem, deixa claro aquilo que é dito: Ele vê a natureza como um organismo que se autorreproduz repara-se a si mesmo, jogando com a analogia para adaptar-se, tendendo sempre para a economia. No fundo, a natureza é gramática lógica. Mulher e mãe, avó, seu trabalho é a arrumação: ela guarda aqui, as coisas que combinam; ela guarda os homens na gaveta “animais”, com algumas especificações, assim como arruma seus potes de geleia e suas preciosidades em armários cuidadosamente organizados. O chifre com o chifre, os membros com os membros cada órgão com sua função. As asas dos pássaros são nadadeiras nos peixes, com as quais eles se deslocam no elemento aquoso. Não semelhantes mas análogos. Cumprindo a mesma função. O que o ar é para o pássaro, o mar é para o peixe. [...] Em todos os casos, esses movimentos se compõem entre si, em um maquinismo complexo, que a natureza instalou e que ela governa, como exibidor de marionetes segura os fios invisíveis das suas criaturas dançantes, mas deixando-lhes a sua autonomia.

O universo infinito que desde Copérnico11, Bruno e Galileu vai ser imposto por uma ciência tateante, segundo uma Razão Moderna insinuante, confrontando a condição de finitude com sentido, 10

“[...] devemos fazer uma ressalva ao pensamento de Epicuro, segundo o qual o mundo não é um cosmos, uma ordem, mas ao contrário, um caos.” (Ferry, 2010, p. 33) 11 “A virada copernicana da cosmologia teve, considerada globalmente, um efeito de aceleração sobre a consciência de si dos europeus em seu conjunto [...]. O copernicismo emancipou a Terra para dela fazer uma estrela entre as estrelas.” (Sloterdijk , 2010, p. 67) Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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por participação, que o ser humano compreendia sua existência, com uma totalidade ilimitada, indefinida, in-com-preensível, onde a finitude humana é sentida, agora, como um “nada em um todo”. Um nada tão nada, até o limite de infinitésima participação em um todo cada vez mais amplo com o avanço das tecnologias que perscrutam o espaço12. Diante deste imenso desafio só resta, doravante, buscar valor e sentido em nossa vida infinitamente diminuta, diante deste todo incomensurável, impossível de reconhecer-nos como parte ou qualquer participação. A ciência e a técnica que “re-velaram”, ou seja, tiraram o véu que cobria esta realidade física na qual nossos corpos se situam, mas como diz o verbo “re-velar”, voltaram a cobri-la pela própria ingenuidade e engenhosidade de suas explicações e descrições. A saída, ainda assim entende a Razão Moderna, se encontra nesta mesma razão científica que destruiu a concepção de um mundo fechado, em prol de um universo infinito. No “progresso” desta ciência, no constante aperfeiçoamento da representação, que exerce sobre tudo que dirige o olhar, e que fez do ser humano um nada em um todo, está a promessa que faremos de nossas vidas, um todo em um nada, um indivíduo, um super-homem diria Nietzsche, em um universo que quanto mais desvendado mais sem sentido se mostra. Que fizemos ao desencadear esta terra de seu sol? Para onde ela gira agora? Para o que nos leva seu movimento? Longe de todos os sóis? Não somos precipitados em uma queda contínua? E isso, para trás, de lado, adiante, para todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como através de um nada infinito? Não sentimos o sopro do vazio? Não faz mais frio? Não faz noite sem cessar e mais e mais noite? (Nietzsche, 1957, §125, p. 209)

12

Pascal, 1970, §201, p. 95: “O silêncio eterno dos espaços infinitos me produz espanto”. Ver também §199 (p. 88-95), sobre a “desproporção do homem”, nada em um todo. Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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Para esta relevância da representação na busca de sentido de um ser humano, que se vê nada em um todo, Heidegger (1962, p. 99) oferece uma reflexão ímpar ao caracterizá-la como a própria Metafísica da Modernidade13, como ele bem afirma no início de seu ensaio: No curso da Metafísica se cumpre uma meditação sobre a essência do ente, ao mesmo tempo que se decide de maneira determinante o modo de acontecimento da verdade. A metafísica funda assim uma era, lhe fornecendo, por uma interpretação determinada do ente e uma acepção determinada da verdade, o princípio de sua configuração essencial. Este princípio rege fundamentalmente todos os fenômenos característicos desta era. Assim, uma meditação suficientemente exaustiva destes fenômenos deve poder, inversamente, fazer entrever através deles este princípio.

É justamente essa meditação que seu ensaio pretende, focalizando um fenômeno maior dos Tempos Modernos, qual seja, a ciência moderna. E, através deste fenômeno, evidenciando como ali se demonstra “uma interpretação determinada do ente” e “uma acepção determinada da verdade”. Antes de mais nada é preciso ter em mente que a Metafísica da Modernidade, que vai se caracterizar pela “representação”, na qual a ciência moderna vai se banhar e alimentar, é algo essencialmente diferente da doctrina e da scientia da Idade Média, assim como da episteme grega. “A ciência grega jamais foi uma ciência exata, e isso pela razão que em sua essência não podia ser exata e não tinha necessidade de sêlo. Razão pela qual é insensato dizer que a ciência moderna é mais exata que aquela da Antiguidade.” (Heidegger, 1962, p. 101) É preciso, antes de acompanhar a meditação de Heidegger, lembrar que, embora se fale de ciência em todas estas metafísicas, antiga, medieval e moderna, não se trata da mesma coisa. Além do 13

Segundo Ladrière (1994, p.17), “Heidegger toma o termo metafísica num sentido bastante peculiar e determinado [...]. Em termos bastante simplificados, a metafísica é, para ele, uma certa maneira de determinar o ente”. Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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mais, não se nega que todas estas ciências, e as Metafísicas que as fundamentam enquanto uma interpretação do ente e uma acepção da verdade, as enquadram e concebem em uma representação. Porém, somente na Metafísica da Modernidade a representação virá a se constituir e assim servir a partir de uma “engenhosidade”, de um fazer (poiein), de um agir, empenhado em assegurar e cercar o homem de um meio técnico, científico e cultural, que lhe proporcione sentido e significado, nesta situação dramática de um nada em um todo. Na ciência moderna, segundo a Metafísica da Modernidade, a representação já se prenuncia pelo conhecimento que se instala ele mesmo enquanto investigação, pesquisa, em um domínio do ente, um setor, um recorte: seja a natureza ou a história. Investigação, pesquisa, não é apenas método, procedimento de abordagem de um domínio, mas se dá na própria abertura do domínio, pela projeção de uma representação, de um plano determinado dos fenômenos neste domínio. Este projeto de pesquisa demarca os avanços dentro do domínio investigativo, assegurando objetivos e objetos da pesquisa, de antemão. A matematização presente ou insinuante no ciência em curso em diferentes domínios, embora mais evidente no domínio das ciências ditas da natureza, reflete o sentido mais profundo desta representação em exercício, posto que já para os gregos mathemata significava o que o ser humano conhece de antemão quando considera o ente e quando entra em relação com as coisas. Deste pré-conhecido, ou pré-concebido, ou representado, ou seja, deste “matemático” fazem parte ainda os números. Como afirma Heidegger (1962, p. 103), “só é porque os números são o que se impõe de algum modo com maior irrefutabilidade como sempre-jáconhecido, e constituem, por assim dizer, o mais reconhecível na matemática, que logo o nome de matemática foi reservado ao que tem associação aos números”. Reduzindo a representação ao mensurável temos a matematização que já se imiscuía na representação que a tornou possível. A Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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ciência moderna, que assegura sua “leitura” do mundo no rigor “matemático”, ou seja, na própria representação que a constitui e institui, vai se desenvolver e desdobrar por conta do método científico. O método científico concede identidade aos fatos em estudo ao mesmo tempo em que se confirma enquanto ferramenta para compreensão do mundo, em uma relação “dialética” sobre tudo o que se debruça. Segundo Heidegger (1962, p. 105-106), Para que alcance uma objetividade, o setor projetado deve ser conduzido a fazer face em toda a multiplicidade de seus níveis e entrelaçamentos. Eis porque a investigação deve ter vista livre sobre a variabilidade do que ela encontra. Somente sob o horizonte da incessante novidade da mudança é que aparece a plenitude do detalhe e dos fatos. Ora, é preciso que os fatos se tornem objetivos. [...] Assim a pesquisa pelos fatos, no domínio da natureza, é nela mesma afirmação e confirmação de regras e de leis. O procedimento segundo o qual um setor de objetividade alcança à representação se caracteriza pela clarificação a partir disto que é claro, quer dizer pelo pôr às claras que é a explicação. Toda explicação apresenta duas faces. Ela funda o desconhecido pelo conhecido, confirmando o conhecido pelo desconhecido. A explicação se cumpre no exame dos fatos – o qual é assumido, nas ciências da natureza – segundo o campo do exame e a meta da explicação – pela experimentação. Não é no entanto pela experimentação que as ciências da natureza se tornam essencialmente pesquisa; ao contrário, a experiência só se torna possível aí onde o conhecimento da natureza como tal é transformado em pesquisa. É somente porque a física moderna é matemática em sua essência que ela pode ser experimental.

Esta complexa passagem de Heidegger nos impõe um exercício de pensamento sobre seus principais conceitos. A investigação científica é, na verdade, uma aproximação pré-determinada não somente pelo modelo matemático, fundante de seu “espirito”, mas pela “agenda”14 do pesquisador. Não somente a representação, co14

Segundo Kant (1994, p. 18): “A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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mo traço fundamental da Metafísica do Modernidade, implica numa interpretação do ente como a que esclarecemos pelo pensamento de Heidegger, mas a acepção da verdade também responde a esta mesma Metafísica da Modernidade, a representação. Segundo Stengers (1990, p. 84-85): Galileu tenta ter os planos inclinados mais lisos possível, as bolas mais redondas. Ele cria condições de pureza máxima para que sua experiência corresponda o mais fielmente possível à sua hipótese [...]. Nas ciências experimentais o trabalho de criar uma testemunha, de fazer falar um fato, é sempre um trabalho de purificação e de controle. [...] controlar e purificar é tentar eliminar tudo o que pudesse turvar o sentido do testemunho, tudo o que pudesse permitir outras leituras de tal testemunho.

A objetividade do modelo científico também merece destaque. Como demonstra Michel Henry (2012, p. 71), o saber científico é objetivo por princípio. No entanto, este objetivo significa duas COIsas: (1) que o saber da ciência é racional e, supostamente, universal; (2) e que, deste modo, ele é um saber pretensamente verdadeiro, em oposição às opiniões variáveis dos indivíduos, aos pontos de vistas particulares, a tudo que pode ser qualificado de subjetivo. Com efeito, o mundo se dá a nós em aparicoes sensiveis, variáveis e contingentes que compõem uma espécie de fluxo heraclítico, onde nada subsiste, onde não se encontram pontos de apoio fixos para um conhecimento sólido. A ciencia moderna da natureza vai romper com esta aporia, fazendo justamente abstração das qualidades sensíveis, e de uma maneira geral, de tudo que é tributário à subjetividade, para reter apenas as formas abstratas do universo espaco-temporal. Deste modo, se propõe, em lugar das impressões individuais e das opiniões variáveis que elas suscitam, um conhecimento unívoco do mundo.

qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta.” Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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Por outro lado, como afirma Henry (2012, p. 72), estas apreensões, enquanto idealidades, supõem a operacao subjetiva que as produz e sem a qual elas nao se constituiriam. Pois não há na natureza, como imaginava Galileu15, nem número, nem cálculo, nem adição, nem subtração, nem reta, nem curva: estas são de fato significações ideais que encontram sua origem absoluta na consciência que as cria, no sentido estrito da palavra. Neste sentido, podemos dizer que a ciência repousa sobre um princípio original, que se manifesta através da corporalidade humana: a vida. É esta, portanto, que a ciência elimina e, com ela, tudo o que de alguma maneira dela derive e remeta a ela. As qualidades sensíveis que a teoria física simula levar em conta são, aos olhos da maior parte dos fenomenólogos, qualidades transcendentes pertencentes ao mundo e a seus objetos, a eles ligados com à sua propriedade. É a superfície que é colorida, a muralha que é ameaçadora, a encruzilhada deserta e mergulhada na sombra que se torna suspeita. A ilusão consiste então em tomar essas propriedades por determinações mundanas, de confiá-las à exterioridade como se pudessem aí encontrar seu verdadeira lugar e sua essência, nela crescer e dela se alimentar, ser, enfim, enquanto exterioridades. Como se pudesse haver “cor”, “ameaça” ou “suspeita” sem que essa cor fosse sentida ou essa ameaça experimentada, e como se a superfície, a encruzilhada ou a muralha pudessem sentir ou experimentar o que quer que seja. (Henry, 2012, p. 72-73)

Essa vida subjetiva não cria apenas as idealidades e as abstrações da ciência (como de todo pensamento conceitual), ela também dá forma a este mundo onde se desenvolve nossa existência Il Saggiatore. Eis o trecho que contém a ideia referida (que se encontra no volume VI, página 232, da Edizione Nazionale delle Opere di Galileo Galilei): “A filosofia está escrita nesse grandíssimo livro que continuamente se encontra aberto diante de nossos olhos (refiro-me ao universo), o qual não se pode entender se primeiro não se entende a língua e se conhecem os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, meios sem os quais não é possível humanamente entender as palavras, sem as quais se move em vão em um labirinto escuro.” 15

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concreta. Uma coisa tão simples quanto um cubo ou uma casa não é algo que exista fora de nós e sem nós, em termos do substrato de suas qualidades. São coisas gracas à atividade complexa de nossa percepção que lhes dá sentido, além da sucessão de dados sensíveis que temos destas coisas. Assim sendo, o sujeito (e, consequentemente, a subjetividade) não é somente o “aplicador” da objetividade científica, mas a condição de todo e qualquer objeto, ou seja, a partir dele as coisas se tornam objetos para nós, se mostram para nós, de modo que possamos conhecê-las. A abstração de que procede a ciência é, portanto, destrutiva, ou melhor, autodestrutiva. O desenrolar do saber científico só guarda sua legitimidade se reconhecer seus limites originais, pois, ao desmerecer as qualidades sensíveis, desmereceu também a vida que as anima e, consequentemente, o ser humano que manifesta a vida. Esta é, sem dúvida, a abstracao mais perigosa que a ciência perfaz: a abstração da vida, ou seja, do que nos importa realmente. Assim, a essência da ciência, em sua relação dupla, positiva a respeito da objetividade, e negativa a respeito da vida, é de difícil apreensão, pois se nega a si mesma. A tentativa de Henry (2012, p. 76) de revalorizar a subjetividade, em seu sentido grego de hypokeimenon, recuperando-a da desvirtuação da noção de subjectum e sujeito, se justifica enquanto contraponto à Metafísica da Modernidade, articulada em uma representação de mundo que se funda na busca de sentido do humano, ora projetado como um nada em um todo. Hypokeimenon designa, segundo Heidegger (1962, p. 115): “o que está estendido-diante, que, enquanto fundo, reúne tudo sobre si. Esta significação metafísica da noção de sujeito não tem primitivamente nenhuma relação especial com o homem e ainda menos com o ‘eu’”. A noção antiga e medieval de sujeito, hypokeimenon e subjectum respectivamente, ainda guardavam a impessoalidade que concedia ao “ser” humano a condição de participante em um todo, em um “mundo fechado”, uma “cadeia do ser” significante. O entendimento antigo e medieval de sujeito garantia e valorizava este “aí” Princípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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do ser, que fazia do humano um Dasein em modo autêntico. Na modernidade, o ser humano se vê como indivíduo em um universo infinito, partícula totalmente desprezível em um todo incomensurável, atribuindo uma pseudovalorização de si mesmo, como indivíduo, ente, agora convertido ele mesmo em espectador, uma “pura função de olhar” (Ladrière, 1994, p. 19). Segundo Heidegger (1962, p. 115), “isso significa então que o ente sobre o qual doravante todo ente como tal se fundamenta quanto a sua maneira de ser e quanto a sua verdade, será o homem”, ele e somente ele. A interpretação do ente e a acepção da verdade ditada nesta representação do ser humano e na decorrente representação de mundanidade e de entidade, dá outro sentido forte ao caráter de representação, conforme entendido nos Tempos Modernos, segundo a força original de nominação desta palavra, repræsentatio: [...] fazer vir diante de si, enquanto ob-stante isto que é-aí-diante, relacioná-lo a si, que o representa, e refleti-lo nesta relação a si enquanto região donde advém toda medida. [...] Por aí, o ente chega a uma constância enquanto objeto, e recebe assim somente o selo do ser. Que o mundo se torne imagem concebida não faz senão um com o evento que faz do homem uma subjectum no meio do ente. (Heidegger, 1962, p. 119-120)

O ser-humano, agora “sujeito”, então se lança em relações dominadas segundo uma díade sujeito-objeto, que se instaura, aportando problemas diversos conforme as relações Eu-Tu e Eu-Isso tão bem examinadas por Martin Buber (2009). O individualismo é exacerbado, assim como toda a problemática da intersubjetividade de tão difícil abordagem pela fenomenologia de Husserl. Outra decorrência é o surgimento de uma ciência doravante dedicada exclusivamente ao estudo do ente humano, enquanto sujeito de um mundo, de uma cultura, de uma sociedade, a antropologia. Segundo Heidegger, é nesta emergência do homem como “sujeito”, e de seu estudo pela antropologia, que se fala pela primeira vez de

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Weltanschauung (visão de mundo), como posição fundamental do homem diante do ente em sua totalidade. Em Contribuições à Filosofia, Heidegger (2014, p. 53), avançando sobre a “questão acerca do ‘ser’ do homem”, abre um questionamento maior: “O que acontece com o si mesmo no ser si mesmo que é exigido?”. Si mesmo – isto não significa que nós nos colocamos na mobilização do ser, ou seja, que temos de antemão a “nós mesmos” em vista e sob controle, não significa que estamos juntos a nós mesmos? Por meio do que e como o homem se acha seguro daquilo que ele é junto a si e não apenas junto a uma aparência e a uma dimensão superficial de sua essência? Nós conhecemos a nós – mesmos? Como é que devemos ser nós mesmos, se não somos nós mesmos? E como é que podemos ser nós mesmos, sem sabermos quem somos nós, para que estejamos certos de sermos aqueles que somos?

Conclusão Como foi dito, é possível também reconhecer o modelo em esferas da Antiguidade como uma representação, especialmente de um ponto de vista situado, como estamos, sob a Metafísica da Modernidade. Entretanto não se trata de uma representação como aquela que fundamenta o olhar moderno, especificamente da ciência. O ser humano gozava da participação em um cosmo, uma ordem unificada, a qual servia e era servido, não somente de sentido e valor, mas de cuidado e proteção. A destruição da noção de esferas e a decorrente abstração das qualidades sensíveis, ou seja, da “vida”, mais do que lançar o homem em um universo infinito, e afirmar sua diminuição crescente à medida que se expandem mais e mais os dados e as medidas deste universo, é a “desonra” da intuição intelectual, da inteligência humana iluminada por esta intuição. A ciência moderna é desonra do noûs, do que os gregos consideravam a parte divina da psyche, a inteligência, e a afirmação retumbante que ressoa pelo Ilustração e pela Modernidade do poPrincípios:Revista de Filosofia, Natal, v. 23, n. 42, set.-dez. 2016.ISSN1983-2109

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der da dianoia, como os gregos denominavam o raciocínio, a razão discursiva. Pela razão “esclarecida” pode agora o homem, libertado de um mundo fechado, constituir e instituir seu próprio mundo, por uma representação, uma imagem do mundo, racional, porém totalmente artificial, no sentido literal de “arte-fato” mental, no sentido de produto de uma “teoria” completamente desconectada da “informação” da inteligência e de uma experientia (empeiria). Este empírico que tão bem entendeu Aristóteles como “a observação das coisas elas mesmas, de suas qualidades e modificações sob condições cambiantes, e por aí, o conhecimento das modalidades pelas quais as coisas se comportam dentro da regra” (Heidegger, 1962, p. 106). Este ensaio elaborou um breve exame que se empreendeu pela meditação de Heidegger sobre esta forma de metafísica, da ciência moderna, a partir dos pressupostos da fundamentação do “sujeito” moderno, reduzido a si mesmo, clivado em sua relação com o mundo, lançado no universo infinito pela implosão da esfera cósmica e suas subesferas, que lhe concediam morada, guarda e sentido. É imprescindível salientar, no entanto, que o conjunto de reflexões aportado por esta cosmografia não advoga, de forma alguma, qualquer abandono da ciência, ou uma recuperação integral das metafísicas antiga e medieval, mas tão somente um alerta, a saber: que volte a “honrar” inteligência humana, o ser humano, em contraposição a um humanismo depreciante, desde o Renascimento.

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Artigo recebido em 26/04/2016, aprovado em 16/06/2016

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