A IDENTIDADE LINGUÍSTICA DOS ESTUDANTES ÍNDIGENAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS -BRASIL

May 26, 2017 | Autor: F. M. de Castro | Categoria: Identity (Culture), Indigenous Peoples
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A IDENTIDADE LINGUÍSTICA DOS ESTUDANTES ÍNDIGENAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS - BRASIL Prof. M.Sc. Franklin Roosevelt Martins de Castro: [email protected] – Universidade do Estado do Amazonas – UEA/ Brasil

Apresentação O Brasil é um país de proporções continentais e com uma enorme diversidade cultural e linguística, embora a língua portuguesa seja a língua oficial e se teorize sobre a mistura dos povos nativos com os povos colonizadores e africanos. A ideia de nacionalidade homogênea e harmoniosa muito se distancia da realidade brasileira. Desde a chegada dos portugueses em 1500 aos dias atuais, as populações indígenas foram desaparecendo enquanto identidade étnica do território brasileiro. Rodrigues (1993) estima que 75% das línguas indígenas foram extintas durante os últimos 500 anos. A região amazônica é onde se concentra o maior percentual de línguas indígenas do país, cerca de 49% (62 línguas); fato que se associa ao contato menos intenso dos nativos com o homem branco, e por ser uma região de locais isolados. A cidade de Parintins se constitui como uma área de fronteira cultural no meio da floresta amazônica, pois em seu entorno estão duas grandes etnias do Baixo- Amazonas, os Sateré-Mawé e os Hixkaryana. As populações destas etnias se deslocam de suas comunidades para os espaços urbanos em busca de serviços de saúde, educação e trabalho. Sobretudo as escolas públicas de ensino básico recebem um contingente considerável de crianças indígenas em seus espaços. A Universidade do Estado do Amazonas desde o ano de 2004 adotou uma política afirmativa de inclusão de jovens indígenas em seus cursos de graduação através de uma reserva de vagas e pela oferta de cursos específicos aos povos indígenas sob uma perspectiva intercultural. No Centro de Estudos Superiores de Parintins, um dos campi da UEA, são disponibilizadas anualmente 2 vagas por curso de graduação, totalizando 16 vagas para as etnias indígenas. Desse modo, a universidade se configura como um espaço de fronteira das diversidades culturais do Baixo-Amazonas. A partir deste contexto sociocultural apresentaremos uma discussão sobre a identidade linguística dos estudantes indígenas do CESP/UEA, mostrando as estratégias e as negociações de reconhecimento e visibilidade destes atores sociais.

Identidades: papéis, discursos e máscaras

Quem são os indígenas do Brasil? O que é ser índio no contexto urbano e globalizado? Estas indagações problematizam a identidade dos povos tradicionais em contato com o homem branco. O índio do século XVI vestido de penas, arco e flecha na mão está sendo ressignificado por uma outra imagem, os índios de celular, calça jeans e conectados às redes sociais. A imagem do índio atual não corresponde ao imaginário do homem branco civilizador que não aceita e não compreende as mudanças ocorridas após o contato intercultural entre estas visões radicais de mundo. A identidade do indígena é pronunciada pela sociedade envolvente, muitas vezes negando ao índio o direito de se reconhecer e de se autoidentificar como tal. As sociedades urbanizadas não permitem que o “bom selvagem” participe da vida das cidades, como se o índio tivesse uma identidade fixa e imutável. A este, só lhe é permitido ser aquilo que a sociedade branca lhe reserva – o exótico. Desse modo, as populações indígenas que estão em áreas de fronteira urbana no Amazonas são vistas como "meio-índios”, uma vez que não correspondem ao imaginário idealista dos brancos. Por fim, estes povos estão sujeitados aos ditames e valores da sociedade ocidental que lhes confere uma identidade cercada por limites de valores, práticas e crenças. Ainda existem populações indígenas no Brasil que nunca tiveram contato com o homem branco, preservando uma imagem do índio do século XVI. Estas posturas comunitárias não foram ao acaso, mas estratégia de pura sobrevivência e autopreservação da etnia, por conta de doenças, escravização e distanciamento da sua cultura. Observamos que quanto maior o distanciamento das comunidades indígenas dos centros urbanos, mais complexa é a sua alteridade cultural, em seu aspecto social, valorativo e imagético. O distanciamento aparece como uma zona de limite e preservação daquilo que não pode ser modificado, tanto pelo olhar do branco, como pelo olhar de determinadas tribos. O isolamento de um certo modo é desejado por ambas as comunidades, a fim de que as identidades sejam preservadas e intocadas. O que se teme no contato com outras culturas? O que o índio teme perder? O que o branco não deseja partilhar com o índio? Há no discurso predominante no Brasil a ideia de que o índio não pode se apropriar dos conhecimentos e práticas ocidentais sob risco de perder sua identidade ao agregar no seu ethos determinadas práticas consideradas exclusivas dos brancos. Então a problemática da identidade indígena é muito mais uma questão da cultura ocidental branca do que propriamente das etnias autóctones. Ao índio é proibido construir e autodefinir sua identidade. Se o “bom selvagem” permanece

isolado em sua aldeia, vivendo segundo o esperado e o planejado nos discursos cerceadores, as identidades estão resguardadas e preservadas pelo território. No entanto, quando alguém rompe as fronteiras espaciais da tribo para viver entre os brancos, ou em territórios que estão em áreas de fronteira, daí podem surgir os conflitos que movimentarão e questionarão as identidades até agora essencializadas. É nesta zona de contato que podem surgir novas identidades fomentadas pelo questionamento e pela dúvida, pelo estranhamento ou reconhecimento de complementariedades. Sobre este aspecto é que se encontra a Universidade do Estado do Amazonas em Parintins – Brasil, uma zona de fronteira cultural onde as identidades são postas em debate e o lugar do indígena é ressignificado por ele e pelo outro – o não índio. [...] O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossa identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Hall ( 2006:12) Está posta a questão de uma identidade em devir contextualizada em uma época de globalização e fronteiras culturais em maiores proporções. A perspectiva de Hall nos impulsiona a pensar a identidade em seu múltiplo, sobretudo quando se trata de indivíduos em situação de contatos culturais. Os estudantes indígenas se interessam em estar presentes em espaços que não são os da sua comunidade original. Deslocam-se de suas aldeias para um espaço que é controlado pelo branco. Neste locus são compelidos a desenvolver estratégias para a sua autopreservação, conservando a ligação com a sua comunidade de origem. Ao mesmo tempo agregam novas práticas e ressignificam suas tradições. É possível continuar sendo índio no espaço acadêmico universitário? Há tolerância para a diferença? Se novos valores e características foram agregadas à identidade original, está permanece a mesma, ou é uma nova identidade? Estas questões nos apontam para a superação dos estereótipos e rotulações, uma vez que não mais discorremos sobre a identidade como algo imutável e unificado. Não cabe a definição em ser ou não ser índio. Mas de uma identidade em devir, ou como argumenta Hall (2006:13) “[...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente [...]”. É possível que

em determinados momentos o indivíduo se reconheça apenas como estudante universitário, em outro momento tão somente como indígena, ou ainda todas as características em uma identidade múltipla, dependendo das relações e das formas que o rodeiam. Ele pode sofrer do esquecimento e usar da máscara ou simplesmente do silenciamento como omissão. Estes pontos foram constatados na realização da pesquisa etnográfica e nos diálogos com os alunos entrevistados. Embora haja uma política de admissão de indígenas na universidade, e o reconhecimento de sua presença no espaço acadêmico, estes rostos, vozes e corpos são invisíveis no cotidiano da instituição. Estes indivíduos se invisibilizam e são invisibilizados. Seus traços fenótipos são semelhantes aos de outros estudantes, suas atitudes são discretas e comedidas. Buscam não chamar olhares e não querem se expor. Durante a escritura deste artigo foram entrevistados dezessete estudantes indígenas, alguns deles alunos meus que nunca se apresentaram como índios. Daí podemos pressupor que as peculiaridades da identidade só se apresentam em situações especiais, quando de fato são questionados ou compelidos a manifestarem suas origens, valores e crenças. Neste instante revelam a sua identidade cultural. Só pude reconhecer os indígenas da universidade quando eles se autodenominaram, afirmando que vieram de suas comunidades, narrando sua trajetória de vida, reconhecendo sua ancestralidade tribal; e em dois casos pelo modo como falavam a língua portuguesa com muita dificuldade. Não foi o olhar e a fala do outro que identificaram os indígenas na universidade; mas os próprios indígenas que se permitiram reconhecer. Ao meu primeiro contato de afirmação da sua identidade indígena, houve um estranhamento sobre um conhecimento que até certo momento era como um segredo. Uma identidade que parecia ser secreta e oculta ao público, sob risco de algum dano ou mal que lhe causaria. Todavia, o fato de agora eu saber quem eram os indígenas na academia, só lhes restava confiar em minha pessoa e selar um pacto sutil de cumplicidade na preservação desta identidade secreta. Enquanto homem branco, eu havia ultrapassado as fronteiras do público e adentrado na esfera do íntimo e particular. Um círculo de confiança e familiaridade, pois agora eu sabia quem eles eram. De certo ponto, à minha identidade fora agregado um valor desse grupo.

O silenciamento da identidade indígena foi apontado como uma estratégia de evitar o preconceito por parte dos brancos, que rotulam o índio como ignorante, feio, violento e sem modos de higiene. Em uma região de colonização e disputa pelos recursos e riquezas naturais, os índios foram vencidos sob o poder das armas de fogo, doenças e escravização. Tomaram-lhes a terra e os expulsaram para áreas cada vez mais distantes. Aos povos nativos resguardaram as inferiorizações, demonizações e perigo à civilização ocidental. É deste discurso reacionário que os estudantes indígenas se ocultam, porque sabem que seus ancestrais já sofreram o preconceito dos que se julgam superiores. De tal modo, há no imaginário de índios e brancos um resquício das disputas e conflitos travados ao longo de quinhentos anos de Conquista do Brasil. Há uma certa hostilidade que se perpetua nos olhares desconfiados e no silêncio das palavras. Brancos e indígenas ainda se veem como ameaças? Ao que parece, há resíduos na mentalidade e nas formas de relações sociais de uma região fortemente marcada pela tomada da terra. Portanto, afirmar ser indígena é também assumir toda a história de um povo que se construiu a partir de uma alteridade em relação à cultura branca. Aqui temos uma identidade cultural que se faz histórica e social. [...] A construção de identidades vale-se de matéria-prima fornecida pela história, geologia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. Castells (1996: 23) Neste horizonte, as identidades também se configuram nas relações de poder. E embora isto não apareça explicitamente, há lutas de poder simbólico no espaço universitário. Os estudantes brancos, conforme relatos dos indígenas se sentem roubados pelos índios que entram na universidade por um outro sistema de seleção; como se os brancos estivessem perdendo espaço para os indígenas. É dada esta ocorrência que os estudantes não se afirmam como índios, pois sabem que sofrerão no mínimo uma espécie de preconceito. Logo, o ocultamento da identidade é uma forma de autopreservação. Em todos os relatos dos alunos há uma forte afirmação das raízes indígenas, no sentido da ancestralidade e retorno à origem. Estas falas não aparecem na esfera do público. Não é algo que se diz para toda a comunidade acadêmica. Mas é uma verbalização que foi confiada a alguém digno de confiança. Constatei que em todos os estudantes há um

forte desejo de regaste ao que foi perdido e retorno a uma fonte original – a aldeia/família. Sobretudo os avós que ficaram na aldeia são a representação da autenticidade indígena porque eles são guardiões da tradição, costumes, valores e cultura. A família se apresenta como núcleo original de onde emanam as histórias pessoais e coletivas, um lugar onde se retorna para se auto afirmar e jamais esquecer. O retorno e a preservação da ancestralidade está mais ligado aos indígenas que nasceram na cidade. Seus pais deixaram as aldeias para buscarem outras possibilidades de vida nos centros urbanos, confiantes de que a cidade poderia oferecer melhores condições de vida para seus filhos. Estes indígenas nascidos fora da aldeia por vezes nem são reconhecidos pela etnia, precisam de um documento oficial que lhes confiram uma identidade institucional de índio. Para o governo brasileiro, sob o órgão da FUNAI1, os filhos de índios nascidos na cidade nem são considerados propriamente indígenas por estarem foram das áreas demarcadas como reservas. Da mesma maneira, que um índio que deixa de morar na reserva, perderá também seu status social de indígena. Novamente aparece o problema das fronteiras de contato cultural. Oficialmente só é índio aquele que nasce e vive em um território restrito que é a aldeia. Os que dela ultrapassam os limites ou os que são gerados em outros espaços são considerados “meio-índios”. A identidade cultural retorna a um paradigma de unificação e estabilidade, deixando de fora todos os outros que não se configuram nesta definição; mas que todavia se reconhecem e se afirmam indígenas. Aos indígenas urbanos é que cabe pensar a proposta de Barthes (1976), pois uma vez na fronteira entre a etnia indígena e a cultura branca, os índios urbanos integram os dois espaços culturais. Ao qual deles pertencem? Qual a sua peculiaridade? Estes sujeitos estão conectados a uma rede e ultrapassam os limites étnicos, transitam através de suas histórias pessoais nas fronteiras dos contatos interétnicos. Estes podem ser categorizados como “grupo étnico” em relação aos seus limites. [...] El hecho de que un grupo conserve su identidad, aunque sus membros interactúem com otros, nos oferece normas para determinar la pertenencia al grupo y los medios empleados para indicar afiliación o exclusión. Los grupos étnicos no están basados simple o necessariamente em la ocupación de territórios exclusivos; necessitamos analizar los diferentes medios por los cuales logran 1

FUNAI – FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO.

conservarse, pues, no es sólo mediante un reclutamiento definitivo, sino em virtud de una expresión y uma ratificación continuas. Barthes (1976: 14) Ao que parece os indígenas urbanos no espaço universitário realizam uma negociação de identidades. Quando entram em contato com outros indígenas assumem integralmente os valores da etnia de origem, fala-se a língua da tribo, troca-se saudações e gestos exclusivos da comunidade. O indivíduo não se sente sozinho ou isolado, mas pertencente ao seu grupo étnico. Sabe que ao mesmo tempo faz parte da cultura branca, mas se reconhece na ancestralidade indígena. São indivíduos que se posicionam em uma zona de fronteira e limite cultural. Precisam articular estratégias que preservem a sua identidade em devir, uma vez que é múltipla e fragmentada. Ao pertencerem a vários locais e mundos, podem também sentir que não pertencem a nenhum, ou que todas as diferenças fazem parte de uma mesma unidade múltipla. Um encontro com a língua(gem) original “A nossa língua não vai servir na cidade”, esta fala expressa a nosso ver o reconhecimento de que não há espaço para a cultura indígena no mundo dos brancos. Esta afirmativa também constata que há diferenças culturais e sociais explícitas entre as sociedades e os povos que constituem o Estado brasileiro. Os dados do governo de 2007 apontaram mais de 220 povos indígenas no Brasil. No Estado do Amazonas há 56 povos indígenas, dentre estes alguns em processo de desaparecimento da língua e da cultura. No Centro de Estudos Superiores de Parintins – UEA encontramos predominantemente alunos de origem Sateré-Mawé2, alguns de origem Baré3 e Hixkaryana4 que adentraram na universidade pelo sistema de reserva que oferta duas vagas anuais para os candidatos que comprovem sua identidade indígena através de documentação. Os cursos mais procurados foram de Biologia, Letras, História, Geografia e Pedagogia. Constatamos que alguns alunos selecionados desistiram do curso e outros nem se matricularam.

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O grupo Sateré-Mawé tem suas origens históricas de abrangência nas regiões dos rios Tapajós, Madeira, Arapiuns, Andirá, Maué-Açú, Matuauará e nas proximidades do rio Guamá próximo à cidade de Belém. Atualmente estão localizados nos municípios de Parintins, Barreirinha, Nova Olinda do Norte e Maués. Sua população é de aproximadamente 10.000 indígenas falantes da língua Mawué da família linguística Tupi. 3 Vivem ao longo do rio Xié e Negro, nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Atualmente falam apenas a língua Nhengatu e somam aproximadamente 2.170 indígenas. 4 Estão localizados no Alto Rio Nhamundá, entre região nordeste fronteiriça do Amazonas com o Estado do Pará. São aproximadamente 819 indígenas distribuídos em sete aldeias e autodenominam-se “Wabu”. Falam a língua Hixcaryana que pertence ao troco Karib.

Embora haja uma política diferenciada para o acesso desses estudantes, não há um programa ou ação de integração à nova realidade que é a universidade. Todos os alunos estão sob a mesma condição de estudos. Neste sentido, observamos que os universitários que saíram de sua comunidade indígena sofrem grande dificuldade de adaptação, sobretudo com a língua portuguesa. Não há até o momento nenhuma atividade de reforço ou fortalecimento do uso instrumental da língua portuguesa para os indígenas que a usam como segunda língua. Este fato aparece nas verbalizações dos professores que reclamam do pouco conhecimento que os indígenas possuem da língua oficial. Esta limitação linguística afeta diretamente no desempenho acadêmico destes estudantes. Em relação à língua indígena ponderamos três aspectos fundamentais que se desdobram em um contínuo: I. Conhecimento e uso da língua indígena como língua materna; II. Pouco conhecimento e uso da língua indígena que aparece como segunda língua, e III. Nenhum conhecimento da língua indígena. No primeiro grupo estão os que nasceram na área indígena e vieram para a cidade estudar. No segundo e terceiro grupos estão os que nasceram na cidade e tiveram pouco ou nenhum contato com a língua indígena da sua etnia, no entanto sentem o desejo de aprendê-la e usá-la em determinados contextos. Todos os grupos enfatizam a importância e a necessidade de falar a língua de sua etnia como uma marca da sua identidade indígena. Os que não a sabem, expressam sentimento de vergonha por lhe atribuir um caráter essencial à cultura da sua etnia de origem. Portanto, conhecer e saber falar a língua da etnia é um status social dentro da comunidade indígena, uma vez que demonstra respeito às tradições e reconhecimento do valor da cultura. Ele sempre fez de tudo para nós tentarmos não nos esquecermos de nossas raízes. E a nossa mãe não é tanto de falar na língua, mas quando é no interior ela não perdeu esse costume [...]. E pra que ensinar nossa língua na cidade se o que a gente fala é o português. Agora tem esse choque. Como nos comunicarmos com os nossos avós se eles não sabem algumas palavras. Mas quando nós estamos lá, nós nos sentimos de lá. É voltar pra casa mesmo. E quando nós estamos aqui, nós nos adequamos aqui. Então nós nos adaptamos ao meio em que estamos para tentar nos comunicar melhor forma possível. (entrevista 01)5 Nesta verbalização se retoma a diferença entre a aldeia indígena e a cidade que se concretiza no uso da língua oficial. A aldeia, referida como interior é um espaço onde 5

Os alunos entrevistados solicitaram que seus nomes não fossem citados no texto a fim de resguardarem suas identidades indígenas.

estão as origens, é um “lá” que está para além dos limites da cultura branca. Dentro dos limites da civilização branca não se permite usar a língua indígena. A língua, pois se correlaciona a demarcações de territórios, pois uma vez na comunidade nativa, os indivíduos também devem tomar outras atitudes discursivas. Daí quando se retorna para visitar os avós na reserva, não cabe mais usar a língua portuguesa, mas a língua de uso local. Aqueles que não conhecem a língua da sua etnia manifestam um sentimento de perda e lacuna em sua identidade cultural, uma ausência que necessita ser preenchida para que se sintam inteiros em relação ao seu povo. Este desconhecimento também gera uma vergonha frente aos mais velhos da família e aos parentes que moram na tribo. A língua passa a ser negociada como um passaporte entre as duas culturas. De todas as características culturais a única que não pode ser esquecida é a língua da etnia. Conhecê-la possibilita retornar à tribo com valor e reconhecimento, mesmo que certos costumes tenham sido negligenciados. Conhecer a língua é essencial para a identidade pois ela se constitui como uma ponte quando as distancias territoriais aumentam. Portanto, somos levados a supor que para ser reconhecido como indígena na cidade, tem-se como condição mínima saber a língua da etnia. Caso contrário, este indivíduo encontra-se em total processo de distanciamento e negação da sua identidade histórica e cultural. Um outro objetivo que eu tenho é de quando me formar voltar lá pra área, lá pra dentro pra que eu possa aprender a falar de novo [...] porque é muito importante a gente reavivar a cultura dentro da gente, reconhecer nossa cultura. Porque se a gente não reconhece nossa cultura é com se a gente vivesse uma mentira?! Quer dizer eu sou indígena e não sei falar a língua. Eu não sei fazer o artesanato. É como se eu fosse uma índia sem cultura. [...] então pra mim seria importante voltar a aprender a falar. É uma coisa fundamental. (entrevista 08) O problema apontado pelos indígenas urbanos não é estar na cidade e se mascarar ou executar papéis desempenhados pelos brancos, mas esquecer suas origens e a história da sua família. Esquecer ou não saber a língua do seu povo é então uma perda do sentimento de pertencimento; como se vivesse fora de lugar ou uma mentira. A identidade dos indígenas urbanos não está associada ao território geográfico, mas no compartilhamento e reconhecimento de determinadas práticas socioculturais, dentre estas, a língua é mais fundamental. Portanto, continua-se sendo indígena fora da aldeia ou mesmo tendo nascido fora da área, uma vez que este indivíduo reconheça suas

origens e pratique as atividades culturais de sua etnia – o conhecimento e o uso da língua é o mais importante. Aos que nunca tiveram acesso à língua de seus pais e avós indígenas, cabe-lhes um processo de retorno às origens através do aprendizado da língua de seu povo. Através da aprendizagem da língua, os indivíduos parecem se sentir reconectados com a sua identidade histórica, sem precisar retornar a viver na aldeia e adotar um comportamento considerado exótico na cidade. O conhecimento da língua da etnia se apresenta sob um determinado ângulo como uma porta de reentrada ou reiniciação ao seio da comunidade. Para ser um índio, é preciso saber se comunicar com os outros parentes. Todos os parentes são cúmplices e compartilham de um mesmo bem e valor que só pode ser vivenciado na língua. Os parentes falam uma mesma língua. Se há alguém que não a fala, este não pode ser considerado um parente. Logo, não pertence à aldeia. Os laços da aldeia ultrapassam os limites territoriais e étnicos. Papai queria matrícula pra cá, se transferir pra cidade, só que eu não quis, porque eu não sabia falar português. Ai o papai diz, você vai, você vai aprender tudo lá. Eu pensei. Tá bom eu vou lá então. Ai aqui eu aprendi um pouco. Vou fazer cinco ano estudando na cidade. (entrevista 04) Por fim, há uma compreensão de que as culturas não estão imunes aos processos de contato e mútuas interferências. Na fala acima, a jovem relata a importância do indígena se locomover para a cidade a fim de aprender certos valores e conhecimentos da sociedade envolvente que venham a ser úteis para a aldeia. Não se vislumbra o isolamento, mas novas relações de mútua colaboração. As famílias indígenas reconhecem a importância da formação escolar para seus filhos, e apoiam sua permanecia no espaço universitário. As hostilidades são amenizadas em uma atitude de reconhecimento das diferenças e autoreconhecimento das identidades culturais em devir. A universidade se configura como um novo espaço de fronteira e encontro cultural das etnias. Os povos indígenas da Amazônia agora também reivindicam o seu direito à educação superior, e neste processo tanto índios e não-índios são impelidos a repensarem e a inaugurarem novas identidades, uma vez que o movimento da história não para e outras formas de relações se instituem.

Bibliografia Baines, S. G. (2001). “As chamadas "aldeias urbanas" ou índios na cidade”. Revista Brasil Indígena, Brasília, DF, v.1, n.7, nov./dez., 2001. http://www.funai.gov.br/ultimas/artigos/revista_7.htm. Balandier, G. (1969). Antropologia Política. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. Barthes, F. (1976). Los grupos étnicos e sus fronteras. La organización social de las diferencias culturales. FEC, México D.F. Bhabha, H. (2013). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG. Castro, E. V. C.; Cunha, M. (1993). AMAZÔNIA – Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP. Castells, M. (1999). O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra. Pastoral Indigenista de Manaus (2000). Entre a Aldeia e a Cidade. Manaus: Arquidiocese de Manaus. Pereira, R. (2001). O Universo Social dos Indígenas no Espaço Urbano: Identidade Étnica na Cidade de Manaus. Rio Grande do Sul: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Faculdade de Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rndón Monzón. Juan José. (2003). La comunalidad. Modo de vida en los pueblos índios. Tomo 1. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes. Sahlins, M. (1968). Sociedades tribais. Rio de Janeiro: Zahar Editores. SILVA, M. F. Antropologia e Movimento Indígena na Amazônia Brasileira, Comunicacao apresentada no IX Congresso de Antropologia, Barcelona: Federacion de Asociaciones de Antropologia de Estado Espanol, 2002.

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