A identificação de gênero em narrativas de crianças de rua

May 30, 2017 | Autor: Paula Chiaretti | Categoria: Gênero, Discurso
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A IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO EM NARRATIVAS DE CRIANÇAS DE RUA Beatriz Helena Maranguetti Ferriolli Leda Verdiani Tfouni Carolina Molena*** Paula Chiaretti****

RESUMO: Este trabalho procura focalizar o feminino e o masculino em um corpus discursivo constituído por narrativas orais de ficção produzidas por duas crianças de rua. Tomando por fundamento teórico as perspectivas da Análise do Discurso pêcheutiana e da psicanálise lacaniana, procurou-se verificar como os sujeitos se localizam discursivamente no que tange à identidade sexual. Elegeram-se duas narrativas para a análise, que demonstrou que o lugar circunscrito à figura feminina apontou para uma prevalência de uma função passiva, coincidindo com determinadas formações discursivas dominantes sobre a feminilidade, enquanto que as significações ligadas ao masculino apontaram predominantemente para uma função ativa. Constatou-se, na materialidade linguística, que os sujeitos apresentaram-se, notadamente, marcados por uma exterioridade que desconhecem.

PALAVRAS-CHAVE: crianças de rua; narrativa de ficção; identidade sexual

ABSTRACT: This study aims at studying the feminine and the masculine in fictional oral narratives produced by two street children. Based on the theoretical perspectives of french discourse analysis and lacanian psychoanalysis, we attempted to observe how these street children locate themselves discursively regarding the sexual identity. Two narratives were selected for analysis, which revealed that the place circumscribed to the feminine figure pointed to the prevalence of a passive function, which coincides with certain prevailing discursive formations concerning femininity, while the constructions regarding the masculine position were mainly related to the active function. Therefore, it was verified that, in linguistic materiality, the subjects notably presented themselves as marked by an exteriority that was unknown to them.

KEYWORDS: street children; fictional narrative; sexual identity



Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) – Ribeirão Preto – SP – Brasil. Fonoaudióloga clínica. E-mail: [email protected].  Professora titular sênior na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) – Ribeirão Preto – SP – Brasil. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]. *** Doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) – Ribeirão Preto – SP – Brasil. E-mail: [email protected]. **** Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (FUVS/UNIVAS) - Pouso Alegre – MG - Brasil. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO Este artigo procura focalizar o feminino e o masculino em um corpus discursivo constituído por narrativas orais de ficção produzidas por duas crianças de rua. Vários estudos abordam a questão de crianças que vivem na rua (BARROS et al., 2009), no entanto, é inovadora essa abordagem, pois busca acrescentar ao campo científico reflexões acerca do discurso dessas crianças, sob a perspectiva da Análise do Discurso francesa e da psicanálise lacaniana. A literatura infantil se faz presente no trabalho como matriz significante às narrativas analisadas. Partindo dos pressupostos de Lacan (1979, [1964]), de que o sujeito se encontra imerso no simbólico desde sempre, antes mesmo de operar sobre ele, constituindo-se a partir da linguagem que o circunda, pode-se afirmar que a narrativa abra espaço para que se compreenda o funcionamento do sujeito. Ao tomarmos a linguagem como a possibilidade de se lidar com o real da vida, o discurso narrativo é aquele que permite a significação dos acontecimentos. A narração produz interpretações sobre o passado, o presente e o futuro. Desse modo, a estrutura narrativa privilegia a instalação da subjetividade (TFOUNI; MORAES, 2003), pois possibilita a estruturação dos ditos do sujeito sob a égide de um fio condutor, o fio do discurso narrativo. De acordo com a tipologia estabelecida por Perroni (1992), existem três tipos de narrativas: “estórias”, “relatos” e “casos”. Para a autora o termo “estória” designa as narrativas que se utilizam de uma ordenação temporal/causal dos eventos que se diferencia do relato e caso, pois o relato encontra-se atrelado a uma verdade e o caso refere-se a uma manifestação popular de estórias extraordinárias nas quais não se pode prever enredos ou desfechos. Vale ressaltar que, dentro dos tipos de discurso narrativo, a ficção em especial instala um descomprometimento entre o sujeito que narra e sua produção discursiva, devido ao fato de que o tempo do narrado é um tempo não marcado socialmente (“era uma vez, há muito tempo”), os personagens podem ser animais que falam, monstros, bruxas, etc., e também o lugar onde os fatos narrados se passam é indeterminado (TFOUNI; CARREIRA, 1996) . Por esse motivo, ela serve-nos como enquadre para o discurso dessas crianças de rua. Neste trabalho identificamos as narrativas analisadas como de ficção, pois se trata de uma trama imaginária materializada através dos discursos dos narradores/personagens. Podemos ainda, relacionar a narrativa à produção de um saber que se relaciona à verdade, já que, de acordo com Lacan, “a verdade tem estrutura de ficção”. E a essa ficção não importa um retrato fiel de uma realidade, mas sim a possibilidade de emergência fugaz de um sujeito assentado sobre uma significação sempre provisória.

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Partimos da aposta de que há um imaginário social a respeito do masculino e do feminino no que se refere à identidade sexual, determinante de formações discursivas que se fixam como hegemônicas. Esse coro de vozes que se apresentam como “naturais” afeta o discurso desses sujeitos. Nosso objetivo reside em circunscrever, segundo o paradigma indiciário de Ginzburg (1989); método de análise em que a construção do conhecimento se faz pela observação de indícios considerados reveladores, tais como repetições, interrupções, contradições e hesitações que apontam para o funcionamento inconsciente e da ideologia; como essas crianças de rua se representam em seus discursos nas produções narrativas e articulam o imaginário social que provém do Outro. 1.

A ANÁLISE DO DISCURSO PÊCHEUTIANA

Para a Análise do Discurso proposta por Michel Pêcheux, não há transparência na mensagem, mas sim possibilidade constante de o sentido vir a ser outro (PÊCHEUX; FUCHS, 1993, [1975]). Diferentemente das teorias da linguagem anteriores à análise de discurso francesa, que apostavam na transparência de sentido, como se as palavras tivessem um sentido literal e pré-estabelecido, Pêcheux focalizou o discurso como efeito de sentido entre interlocutores, e considerou a não-transparência da linguagem. Deste modo, a Análise do Discurso francesa distanciou-se das análises linguísticas e da análise de conteúdo, que se caracterizam por situar o sujeito numa posição de autonomia em relação à linguagem, porque postulam a dominância do eu, o que reflete a ilusão da completude. Vale mencionar que, Pêcheux e Fuchs (1993, [1975]) postulam que a Análise do Discurso é atravessada por três regiões do conhecimento: o materialismo histórico, do qual utilizou a teoria das formações sociais e de suas transformações, incluindo a teoria das ideologias; a linguística, como importante teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação e, por último, a teoria do discurso, da qual extraiu a teoria da determinação histórica dos processos semânticos, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica. A partir dessa observação, é possível apontar que a Análise do Discurso tende para um espaço de interlocução entre sua proposta e aquela da psicanálise. Segundo Orlandi (1996) a Análise do Discurso trabalha a contradição presente nas disciplinas que compõem seu quadro epistemológico, na verdade, no seu entremeio. Para essa abordagem, a condição da linguagem e do próprio sujeito é a incompletude, ou seja, nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da falta, quer

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dizer, a incompletude atesta a própria abertura do simbólico, ao possibilitar a significação e abrir caminho para interpretações. Na tentativa de significar o mundo e, portanto, interpretá-lo, o sujeito se encontra envolvido por uma memória discursiva, ou seja, para que suas palavras tenham sentido, é necessário que já tenham feito algum sentido. Trata-se do interdiscurso que se caracteriza como o conjunto de formulações feitas e esquecidas que determinam o que se diz, ou seja, existe um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer. Para Pêcheux (1997, [1975]), os sujeitos são interpelados pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhe são correspondentes. Ao sujeito se identificar com a formação discursiva que o constitui, se apaga a presença do interdiscurso no intradiscurso, dando a ilusão de que o sujeito é autor original do seu dizer. Deste modo, o conjunto de fenômenos que sustentam o fio do discurso, ou seja, o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que direi depois (o intradiscurso), garantem a unicidade imaginária do eu. Nessa medida, o modo como o sujeito ocupa seu lugar no interior da ideologia, enquanto posição, não lhe é acessível, pois ele não tem acesso direto à exterioridade que o constitui. O trabalho ideológico é um trabalho de memória e de esquecimento. Esquecimento entendido não como algo que se perdeu, mas que tenha sabido um dia, e sim como ocultamento da causa do sujeito no próprio interior do seu efeito. O esquecimento de sua determinação permite a ilusão de que seja a fonte do sentido do que diz, trata-se do Esquecimento nº 1, que evidencia o fato de que o sujeito se julga na origem do sentido. Como é de natureza inconsciente, tem relação com o grande Outro lacaniano. O mecanismo patrocinado pela ideologia apaga a história da constituição dos sentidos, e como consequência, o sujeito pensa que o sentido “brota” nele (tem origem ali) no momento em que fala. Os processos discursivos não poderiam ter sua origem no sujeito, entretanto, se realizam necessariamente neste mesmo sujeito. Há ainda o Esquecimento nº 2 que se refere à ilusão da materialidade do pensamento. É de natureza semi-consciente, pois ao dar-se conta de que não formulou o que pensava da melhor maneira o sujeito pode efetuar ajustes na sua fala; relaciona-se com o pequeno outro lacaniano. Faz pensar que aquilo que se diz (formula) é idêntico àquilo que se pensa, e leva a crer que é possível formular mensagens claras, sem ambiguidade. Estes dois esquecimentos produzem a evidência do sentido, ou do sentido já-lá, produto de uma relação direta entre pensamento-linguagem-mundo.

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Nessa perspectiva, o processo ideológico representa um excesso, uma saturação, porque produz o efeito necessário de completude que, por sua vez, acarreta o efeito de evidência, sustentando-se sobre o já-dito, sobre os sentidos institucionalizados, admitidos por todos como “naturais”. Portanto, na ideologia não há ocultação de sentido, mas o apagamento do processo de sua constituição. Na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido e do sujeito. O trabalho do analista implica que, através da análise da superfície linguística, se compreenda os processos de produção de sentidos e de constituição dos sujeitos. A contribuição da Análise do Discurso francesa neste trabalho se faz no sentido de que, através da análise linguística das narrativas produzidas, procuramos apontar marcas linguísticas que indiciem formações discursivas que afetam o discurso desses sujeitos no que tange à identidade sexual. As formações discursivas remetem em última instância a um imaginário social referente ao masculino e ao feminino. Portanto, como esses sujeitos articulam sua particularidade com esse imaginário social que provêm do Outro? 2.

A PSICANÁLISE DE ORIENTAÇÃO LACANIANA

Lacan (1979, [1964]) postula que os significantes homem e mulher são posições construídas e sustentadas a partir do que se coloca no campo do Outro sobre como um homem ou uma mulher devem se comportar, segundo “o roteiro”: “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser macho ou fêmea [...] as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro” (LACAN, 1979, [1964], p. 197).

O Outro, enquanto campo da linguagem antecede o surgimento do sujeito. Antes de ocupar uma posição de falante na comunidade linguística, a criança é falada, principalmente pelo discurso materno. Ao nascer, ela insere-se no registro da interpretação, e é capturada por uma rede de significações pré-existentes referentes aos significantes masculino e feminino. Devido essa anterioridade da linguagem, deduz-se que quem dá o sentido é o Outro, com a permissão do sujeito, que garante sua função. A entrada no simbólico determina que tudo que pode ser dito sobre ser homem e ser mulher materializa-se no campo do Outro, “tesouro dos significantes”.

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“A noção de significante é: um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998, [1960a], p. 833). Cada vez que dizemos algo, nos colocamos em alguma posição no registro simbólico. Esses lugares discursivos mudam, pois o significante está constantemente em deriva, com seu jogo combinatório e deslizamentos. O inconsciente é caracterizado, assim, pelos efeitos desse jogo significante sobre o sujeito. A partir das marcas formais de um discurso produz-se o sujeito, constituído, portanto, de alteridade, uma vez que a linguagem lhe é logicamente exterior. Em relação à exterioridade da linguagem, podemos tentar procurar o emissor da mensagem original. Todavia, sobre essa empreitada, Lacan (1998, [1960a]) nos adverte que a completude é impossível a quem fala, pois não se pode acessar a mensagem que deu origem à mensagem que vem do Outro. Em outras palavras, o Outro falha, nunca consegue significar completamente o sujeito, que é faltante de um sentido completo. Embora, o sujeito procure ser significado pelo Outro, ser reconhecido pelo Outro. Nessa busca para se inscrever nas normas de reconhecimento do Outro (CHARAUDEAU, 2006), o sujeito é capturado por sua mensagem (TFOUNI, F.; TFOUNI, L., 2014), a qual carrega em si uma falta estrutural, que impede que tudo seja dito. No processo de constituição psíquica da criança, a mesma procurará interpretar os efeitos dessa falta estrutural, apreendida da mensagem do adulto; tal qual um enigma, o enigma do desejo. No ensino lacaniano o objeto que causa o desejo humano corresponde ao “objeto a”, conceito criado para representar o objeto que falta, aquele que se situa em outra cena (FREUD, 1996, [1900]). A cena do inconsciente, revelada através das repetições, dispersões, atos falhos, etc., a qual representa a dimensão pulsional que busca a satisfação do desejo. No entanto, sabemos que a condição humana desejante faz dessa busca, infindável, na procura do sujeito em decifrar a mensagem apreendida do campo do Outro. A partir desses princípios teóricos procuramos analisar, nas produções narrativas, como essas crianças de rua se representam e articulam sua particularidade aos significantes feminino e masculino apreendidos do campo do Outro. As narrativas foram produzidas por crianças de ambos os sexos, pertencentes a uma faixa etária de 10 a 12 anos, atendidas em uma instituição em Ribeirão Preto/SP, Brasil. O “corpus” foi produzido em um grupo semanal, com duração de uma hora, com a finalidade de ouvir e contar histórias. As crianças eram convidadas pela pesquisadora a contar suas histórias livremente. Todo o material foi gravado e transcrito literalmente. Conforme a pertinência temática, duas narrativas foram eleitas para a análise.

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ANÁLISE DOS DADOS INDICIÁRIOS

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1- A sereia – retrato da mulher calada e submissa A narrativa analisada foi produzida por uma menina (J.) de 11 anos, intitulada “A sereia”, que parece filiar-se ao enredo do filme “A pequena sereia” da Disney, baseado no conto de Hans Christian Andersen (século XIX). Hipotetizamos que o filme referido alimente o imaginário dessas crianças que estão expostas aos veículos de comunicação, os quais através da apresentação de filmes, tal como “A pequena sereia”, contribuem para compor a memória discursiva do qual esses sujeitos e discursos emergem. A história da Disney fala de uma sereia que tinha uma linda voz e adorava cantar. Um dia ao subir à superfície do oceano apaixona-se pelo príncipe Eric e deseja ser humana para se casar com ele. Há uma vilã na história, a bruxa do mar, que faz um pacto com a sereia que deve lhe dar sua voz em troca de torná-la humana. A sereia aceita e tem sua voz capturada pela bruxa do mar. Abaixo realizamos um recorte: “Era uma vez, [...] era a sereia. Eles era, elas era em três sereia. Uma delas chamava [...] Eu esqueci o nome dela [...] Uma delas chamava não sei o quê.“

Destacamos que o referente é o significante “sereia” e os pronomes “ela/dela” são anafóricos, apontando que o sujeito da narrativa deseja ocupar o lugar/identidade da sereia, mas vê-se interditado, barrado, através da ideologia, que torna impossível que ele seja a sereia: há “um impossível de ser”, mostrado pelas hesitações e pela alternância entre “ele/ela”. O sujeito percebe a contradição, e, como consequência, ocorre, no discurso, o apagamento ou o esquecimento do nome. Podemos entender “o chamava não sei o quê” como um indicador de heterogeneidade discursiva, pois conforme aponta Mazière (2005), a heterogeneidade constitutiva instala a contradição como o próprio do discurso. Não se trata que a narradora não consegue nomear a sereia no momento em que conta a história, e sim um não lembrar-se do nome de uma sereia que existe em uma história que já foi contada; essa locução indica a presença de um outro no seu discurso. Originalmente a história já foi contada, e a criança tenta, nesse momento, reproduzi-la de maneira tão fiel que não ousa dar uma nova nomeação à sereia cujo nome original foi esquecido. Ainda assim, a despeito do uso de uma história já conhecida e já contada, é possível à criança fazer funcionar suas próprias fantasias, na medida em que preenche os espaços deixados pelo esquecimento com construções próprias, num processo de contínua interação entre eu e outro na composição de um fio narrativo. Em seguida a criança narra:

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“Um dia chegô o niversário dela. O pai dela deu um, um colar pra ela.”

Neste enunciado, pode-se reconhecer que determinada região do interdiscurso foi acionada para se instaurar o seguinte sentido: um pai, ao chegar o aniversário de uma filha estimada deve presenteá-la com uma jóia de valor, um “colar”, por exemplo. Esse enunciado coloca em movimento um processo de significação que aloca uma posição discursiva, e proíbe, ou interdita, outras. Essa posição de sujeito é determinada pela ideologia que interpela o sujeito de maneira inconsciente. Esses conteúdos interditados, que ficam no nível do não-dito, retornam em nossa análise; apesar de o sujeito pertencer a uma classe social baixa e, assim, dificilmente ganhar jóias em seus aniversários, vemos que o mesmo se encontra imerso nessa formação discursiva dominante, o que aponta para a contradição, na base da qual a ideologia trabalha, ao privilegiar uma interpretação particular e excluir outras possíveis. Sobre o papel da contradição na ideologia, Maldidier (2003) aponta que a Análise do Discurso francesa é uma abordagem totalmente distinta das demais teorias da linguagem, pois é construída para analisar as dúvidas e desconstruções do discurso, integrando a contradição ao discurso. Ainda nesta mesma sequência podemos pensar que a narradora filia-se a certas formações discursivas dominantes que determinam os objetos que uma mulher deseja consumir, como jóias. O sujeito que narra, capturado pelo interdiscurso, pela memória de outra narrativa (o filme “A pequena sereia”) com a qual se identifica através da personagem da sereia, assume uma posição discursiva idealizada, independentemente do lugar que ocupa na estrutura social, ou de suas reais possibilidades de consumo. Pêcheux (1997, [1975]), nos alerta sobre a questão do apagamento das redes de filiação do discurso, da “origem do dizer”, ao conceituar o “Esquecimento nº 1”, o qual é de caráter inconsciente, e impede o sujeito de reconhecer as determinações do lugar que ocupa, pois ele não é capaz de reconhecer os “outros” discursos que dão sustentação ao seu discurso. Isso tem como consequência o próprio assujeitamento ideológico, o qual observamos no funcionamento discursivo do sujeito narrador. Na Análise do Discurso, como o sujeito não é empírico, mas antes uma posição diante do simbólico, segue-se que não importa a categoria sócio-econômica, nem o poder aquisitivo do sujeito, pois esses critérios sociológicos não ajudam a prever em qual das formações discursivas ele vai se aninhar ao fazer uma formulação, porque a ideologia o interpela de maneira inconsciente, como já mencionado. Esse assujeitamento, que submete os ditos do sujeito à “memória do dizer” (interdiscurso), pode ser observado ainda na sequência seguinte: “Aí, ela começô a nadá e subiu em cima da água. Quando ela subiu, ela viu um, um home. Era um prince.”

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Ao narrar, a criança constrói uma versão do que seria o destino feminino: casar-se, juntamente com uma idealização do homem, em conformidade com o interdiscurso (no filme, o escolhido pela sereia é um príncipe). Marcamos, a partir dessa configuração específica de enunciador, como a narradora relaciona-se com o imaginário e de que maneira está se submetendo ao simbólico, na busca de ser reconhecida pelo Outro. Vemos nesse movimento de identificação e desejo, a presença de um imaginário social advindo de contos de fada, principalmente, que vai determinar uma idealização do destino da mulher: não só casar-se, mas com um príncipe; escolha que recorre à memória discursiva. Desse modo, observamos o silenciamento de outras possibilidades de significação para o destino de uma mulher, como a realização em uma carreira profissional, por exemplo. Abaixo, temos outra cadeia significante da narrativa: “Aí, de repente, um prince, o prince achô ela, pegô ela no colo e levô ela pa cama. Então, como ela tava deitada, ela, ela, ela tava deitada e ela ficô muda também. Aí ela tava deitada e de repente ela acordô. [...] Aí, depois eles casaram, [...] depois eles casaram, [...] depois ela foi [...] morá com ele.”

Nesta, o pronome pessoal feminino, “ela”, é marcado através de onze repetições. Qual seria o sentido dessa repetição? Observa-se que o “ela” desempenha, na primeira frase do enunciado, função de objeto direto. O objeto direto define-se como o complemento que traduz o ser sobre o qual recai a ação expressa por um verbo ativo: “Aí, de repente, um prince, o prince achô ela, pegô ela no colo e levô ela pa cama”, onde “achô”, “pegô” e “levô” são formas verbais que indicam que “ela” foi “achada”, “pega” e “levada” pelo “prince pa cama”, ou seja, em um encontro sexual entre “ela” e “o prince”, “ela” é o objeto passivo das ações de um outro. A mulher passiva faz parte de um imaginário social que se apóia na mulher que sabe renunciar aos seus desejos em prol da “harmonia familiar” ou da “mulher calada” – aquela que não fala besteiras. Vários genéricos circulam pelo imaginário social de nossa cultura para assinalar um lugar de passividade da mulher, e que são aliados à preferência masculina ao escolher uma boa mulher para se casar (as mais quietas, comportadas, que não falam muito e nem contestam). Tfouni (1995) aponta que peças discursivas genéricas procuram estabelecer um sentido único, trabalhando, portanto, na articulação entre as duas ilusões discursivas propostas por Pêcheux, uma vez que não existe apenas uma interpretação possível, mas sim uma multiplicidade de sentidos. Essas significações produzidas parecem associar-se às recomendações feitas pela “bruxa do mar”, através da música cantada para a “pequena sereia”, no filme da Disney, a respeito da: “garota caladinha”, “retraída” e “bem quietinha”; colocando esses ideais

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como o que despertariam o desejo em um homem para casar-se com uma mulher. Vejamos abaixo parte da letra da música: “Terá sua aparência. Seu belo rosto. E não subestime a importância da: linguagem do corpo! O homem abomina tagarelas, Garota caladinha, ele adora Se a mulher ficar falando O dia inteiro fofocando O homem se zanga Diz adeus e vai embora Que os homens fazem tudo pra evitar Sabe quem é mais querida? A garota retraída E só as bem quietinhas vão casar! Não vá querer Jogar conversa fora” (ESTÚDIOS DISNEY, 1989).

Marcamos que a narradora seleciona determinado sentido que circula no simbólico, no campo do Outro, para representá-la em sua narrativa: “muda”, através da frase: “ela ficô muda também”; tal sentido faz, portanto, parte de sua memória discursiva e se materializa por “afinidade” à rede de sentidos ligada aos significantes presentes no filme da Disney: “garota retraída”, que não deve ser “tagarela”, mas sim “bem quietinha”, ou quem sabe, “muda”?. Essa escolha narrativa indicia seu assujeitamento a determinadas formações discursivas e ideológicas, as quais simulam para o sujeito o valor de verdade daquilo que não passa de um efeito de sentido (Pêcheux, 1997, [1975]), mas que surge como aquilo “que é e o que deve ser”, o “sempre-já-lá” (interdiscurso). O interdiscurso é um conceito que pode ser relacionado com a metáfora da “outra cena”, expressão usada por Freud (1996, [1900]) para se referir ao inconsciente. Lacan (1998, [1956-1957]) concebe o inconsciente como o discurso do Outro (“lá onde isso fala”). É do Outro que o sujeito recebe a própria mensagem que emite. Na estrutur(ação) do eu existe um “sempre já”, onde, ao mesmo tempo em que se constitui, fica instaurada a dialética com o Outro, ou seja, a alienação. É a partir desses princípios teóricos que analisamos o discurso da narradora ao falar de sua “cena” com o príncipe. Na cena descrita, o “ela” possui função de sujeito. De acordo com as normas gramaticais, o sujeito define-se como o ser que pratica uma ação, ou sobre o qual se predica alguma coisa: “Então, como ela tava deitada, ela [...] tava deitada e ela ficô muda também. Aí ela tava deitada e de repente ela acordô.” Ao observarmos o funcionamento discursivo, constatamos que, ainda que o pronome “ela” esteja no lugar

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de sujeito gramatical, ele continua indicando um lugar passivo porque se liga às expressões verbais: “tava deitada”, “ficô muda” e “acordô”, que contêm ações passivas, quase involuntárias. A repetição do enunciado “ela tava deitada” (três vezes), pode constituir mais um indício de que aqui um encontro sexual é encenado verbalmente. Após o encontro sexual, a menina narra que: “Aí, depois eles casaram, [...] depois eles casaram, [...] depois ela foi [...] morá com ele”, onde a narradora insiste que: “depois eles casaram, [...] depois eles casaram”, e desloca discursivamente “casar” para “morar”: “depois ela foi [...] morá com ele”. Determinadas formações discursivas legitimadas ideologicamente parecem significar nesse trecho, pelo avesso, através da repetição de “depois”. Elas sinalizam que, para que uma mulher vá “morá” com um homem, eles necessariamente se casam antes, o que pode ser interpretado como a reprodução de um discurso dominante, que procura normatizar o comportamento feminino. Essa normatização está ligada a uma região de sentidos que produz efeitos no discurso da criança: um ideal de união conjugal, o que retoma o imaginário social comentado acima: “eles casaram”. No entanto, as uniões informais caracterizam-se como uma forma frequente de estruturação das famílias de baixa renda como normalmente o são aquelas das quais provêm as crianças que buscam as vias públicas para assegurar a sobrevivência (JUÁREZ, 1996), observa-se assim, um apagamento de determinados sentidos que cedem espaço a uma idealização, na qual cabe a “ela” casar-se e ter filhos. Desse modo, observa-se que o sujeito narrador resolve a contradição presente entre a realidade e o narrado/idealizado. Podemos relacionar a própria origem da mulher representada pela sereia e localizada no mar à clássica ideia da mulher no espaço privado. Nesse modelo, a feminilidade é ligada ao privado e ao casamento. Já aos homens relaciona-se o público (MALUF; MOTT, 1998). Esses estereótipos são transmitidos simbolicamente e funcionam como uma resposta imaginária mais ou menos compartilhada de como agir e ser no mundo da partilha dos sexos, pergunta à qual não há qualquer resposta natural. Esses segmentos: o filme e a música da “bruxa do mar” funcionam como matriz discursiva à narrativa produzida, tal qual um campo semântico que tenta homogeneizar identidades. Embora, sabemos que o sentido pode sempre vir a ser outro, fadado à incidência de uma contingência que o desloque e reformule, de maneira a tentar novamente suturar a falta, nas construções que o sujeito forja para regrar e significar aquilo que deve/pode, ou não, ser feito, buscando suas significações nas normas de reconhecimento do Outro. 2 - O rei – metáfora do ideal capitalista

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Outra narrativa, sem título, produzida por um menino (T.) de 10 anos, gira em torno da negociação de um casamento, de uma relação sexual, e apresenta como desfecho a escolha de um homem por uma mulher. Vejamos o primeiro recorte selecionado: “Uma vez, né? Uma vez, o, o rei mandava um home na casa dele, né? Aí, cada um que ia, ele sabendo onde que a fia dele vivia, ele escolheu um deles pa casá, né.”

Ao iniciar a narrativa, o narrador lança mão do significante “o rei”, que se caracteriza como uma figura masculina poderosa e possuidora de muitos bens. Em realidade, podemos pensar no lugar da figura do “rei” presente em narrativas desde a idade média sendo reocupada pela do capitalista, sujeito efeito da revolução burguesa, período histórico em que a acumulação de capital não tem mais origem divina, passando a estar relacionada ao mérito pessoal e talento. Todos têm direito de acumular capital, de vencer na vida. Sendo assim, as alianças (como a do casamento) passam a se relacionar à especificidade do sucesso pessoal e profissional. É nesse contexto histórico que surge o rei da casa e ao seu lado “a rainha do lar”; a atomização da realeza, mais que democratizar poderes, serve a justificar os novos meios de produção e acumulação de capital. Nesse sentido, se pode falar que a figura do rei, pela sua fortuna ainda encontra ressonâncias na sociedade moderna e contemporânea que valorizam positivamente o acúmulo de capital. Caso a escolha desse personagem inspire uma identificação, a criança narra: “Aí, cada um que ia, ele sabendo onde que a fia dele vivia, ele escolheu um deles pa casá, né”. Essa sequência de enunciados permite duas leituras possíves, a saber: ou “ele (o rei) escolheu um deles (um dos homens) pa casá” com sua filha, ou seja, “o rei” decide sobre o destino de sua “fia”. Ou ainda: “ele (o rei) escolheu um deles (um dos homens) pa casá” com “ele” mesmo e, nessa interpretação, lê-se uma relação homossexual entre “o rei” e “um deles”, o que pode constituir um escape linguístico que se afasta do sentido dominante considerado “natural” socialmente, qual seja, a relação heterossexual. Observa-se que, na busca por uma inscrição sexual, o sujeito da narrativa parece vacilar entre duas posições discursivas, o que pode nos remeter à indiferenciação sexual própria do inconsciente: “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito pudesse situar como ser macho ou fêmea [...] o que se deve fazer (ou desejar) como homem ou como mulher, o ser humano tem que aprender, peça por peça do Outro (da linguagem). (LACAN, 1979, [1964], p. 197).”

Vemos que, no psiquismo, não há nada que determine o posicionamento sexual, pelo contrário, a ascensão a uma posição masculina ou feminina está determinada pelo discurso, pelo encadeamento dos significantes, independente de ser homem ou

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mulher (QUINET, 1995). Do mesmo modo, Freud (1980, [1932]) já apostava que a masculinidade e a feminilidade não se estabelecem pela anatomia. Vejamos outras associações do sujeito na sequência discursiva abaixo: “Aí, aí, aí, o, a última, a última, a última, foi com o cara. Aí, começô segurá assim. Aí, o cara tentando í, não conseguia, né? Aí, depois ele foi. Aí, aí chegaram lá, né. Aí, ele escolheu uma menina lá pa casá com ele. Que, que, porque, ela ajudava o pai dela [...]. A, aí, aí, ele ajudava ela porque ela era muito bonita. Aí, ele casô com ela.”

Nos enunciados: “Aí, aí, aí, o, a última, a última, a última, foi com o cara. Aí, começô segurá assim. Aí, o cara tentando í, não conseguia, né? Aí, depois ele foi. Aí, aí chegaram lá, né.”; observamos uma menção a uma relação sexual de uma forma velada entre “a última” e “o cara”, onde “a última” corresponde a uma personagem feminina referida por “ela” no contexto da narrativa. A partir da perspectiva de Lacan (1998, [1960b]) a respeito da posição masculina, de que ao tomar uma mulher, a qual o homem designa com o seguinte sentido: “você é minha mulher”; ele recebe sua própria mensagem de forma invertida, que corresponde ao significado: “eu sou seu homem”. Tal significação o situa como o homem dessa mulher, garantindo-lhe um posicionamento subjetivo masculino na partilha sexual. Desse modo, pode-se calcular que o sujeito narrador enuncia uma relação sexual entre “a última” e “o cara”, numa tentativa de se assegurar de sua posição masculina, alicerçada no seguinte sentido: um homem deve ter relações sexuais com uma mulher. A frase seguinte é: “Aí, ele escolheu uma menina lá pa casá com ele”. Mas, o que norteia essa escolha? O narrador prossegue: “Ele ajudava ela porque ela era muito bonita. Aí, ele casô com ela.”

É na contiguidade que identificamos o enlace entre três significantes, realizado pelo sujeito da narrativa que utiliza o verbo “ajudava”, a explicativa “porque” e o advérbio “aí” (como consequência). A construção gramatical não é aleatória, mas passa pelo desejo e naturalização de sentidos do sujeito que se encontra mergulhado no Esquecimento n° 2 de Pêcheux (1997, [1975]) – como se o desfecho só pudesse ser este. “Ele” se relaciona com “ela (ajudava ela), porque ela era muito bonita”, e, consequentemente, “ele casô com ela”. Aqui, o sentido de que a beleza é um atributo

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necessário à mulher para adequar-se ao desejo do “outro” pode ser reconhecido; sendo que esse genérico - a mulher deve ser bonita para casar - está muito presente no discurso dominante e na mídia, que o reproduz. Esse menino de rua responde, imaginariamente, como os demais homens inscritos nessa formação discursiva, no sentido de buscar uma mulher bonita para se casar: “Aí, ele casô com ela [...] porque ela era muito bonita”. Vimos, ainda, que em ambas as narrativas analisadas, o casamento é apresentado como ideal de união, sendo que essa significação é contrária às prováveis dificuldades encontradas por essas crianças de rua no dia-a-dia de suas relações familiares. Nas classes populares, os rearranjos familiares são muito frequentes, assim como as famílias chefiadas por mulheres também o são. Inscreve-se, portanto, um silenciamento de possíveis significados mais particulares que cedem lugar a uma idealização “rígida”, significada a priori, que já circula no espaço discursivo. Esse silenciamento materializado nas produções narrativas relaciona-se à memória discursiva e à história da produção de sentidos. Ao resgatarmos nesses discursos sentidos próprios do discurso dominante, observamos que o lugar ocupado na estrutura social por esses sujeitos não determina o encadeamento significante de seus discursos. Suas posições discursivas aparecem marcadas por já-ditos que remetem a uma busca por um ideal amoroso, no qual à mulher cabe o lugar de objeto, sujeito ao “outro” na determinação de seu destino. O que evidencia a interpelação e a captura pela ideologia desses sujeitos, que os aprisiona em uma única interpretação possível, impedindo a deriva de sentidos. Deste modo, a subjetividade dessas crianças de rua aparece submetida ao já-lá, a significados pré-estabelecidos em outros lugares sociais, que não aquele que lhes é próprio, pois os sentidos apresentados não condizem com a situação de pobreza, nem com as estratégias de sobrevivência de suas famílias. Nesse sentido, Maldidier (2003), esclarece que os significados se formam a partir de formas de se lidar com a repetição da memória, o interdiscurso, que se torna efetivo na mobilização de sentidos reconhecidos. Na análise discursiva das narrativas verificamos essa busca por sentidos reconhecidos socialmente, que incluem essas crianças de rua no discurso dominante, que, imaginariamente, oferece uma completude ou saturação do sentido, limitando as significações através dos processos ideológicos. Vale lembrar que, essa limitação serve ao aprisionamento do sentido e, portanto, do próprio sujeito que narra.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi possível identificar, tanto no discurso da menina, como do menino, o determinismo de que o homem é quem escolhe. Isso se concretiza discursivamente por fórmulas genéricas, que reforçam duas injunções, determinadas pela ordem ideológica e cultural: “homem é que escolhe a mulher” e “mulher fica esperando seu príncipe encantado”. Nas tramas narrativas desses sujeitos, as personagens femininas, marcadamente, encontram-se submissas ao desejo de um “outro”, no caso, o homem. A mulher não se apresenta atuante na determinação de seu próprio destino, mas sim, assujeitada ao “outro”, ao qual se submete passivamente. Por um lado, a mulher é discursivizada como alguém que se ilude com coisas superficiais, como uma jóia. Por outro lado, há uma busca por um ideal amoroso (casamento) no qual o homem deve ocupar uma posição ativa e a mulher uma posição passiva, o que demonstra que o processo ideológico cerca determinados sentidos tornando-os prevalentes através da produção de um imaginário que fornece a ilusão de completude, criando o efeito de que o corpo social é estável e funciona harmonicamente. A análise da materialidade linguística apresentada por esses sujeitos permitiu que ficassem evidenciadas determinadas condições de produção enunciativas e históricas, relacionadas à construção de um imaginário social sobre as posições reservadas ao homem e à mulher na sociedade atual.

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