A IDEOLOGIA DO ESTADO ISLÂMICO

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FOLHA DE S.PAULO Um jornal a serviço do Brasil 14/07/2015

MATEUS SOARES DE AZEVEDO

A ideologia do Estado Islâmico Entre os fatores que explicam o grande interesse do público ocidental pelo Islã, podemos citar sua crescente presença em países europeus, as conversões de ocidentais e as tentativas de muçulmanos de reafirmar sua identidade em face do domínio econômico, cultural e, em alguns casos, militar do Ocidente sobre Dar al Islam ("a morada do Islã"). Destaque entre esses fatores para as ações espetaculosamente violentas de organizações que, como o "Estado Islâmico" (EI), recorrem ao terror em nome de sua visão distorcida da religião. Certamente que nem toda entidade que usa o nome e os símbolos do Islã tem caráter genuinamente muçulmano. Pelo contrário, alguns, como o EI, opõem-se em letra e espírito à tradição como entendida e praticada pela maioria dos muçulmanos ao longo dos 14 séculos de existência de sua civilização. Para que o leitor tenha clara a diferença que há entre tais organizações, de um lado, e o Islã tradicional, de outro, basta lembrar que elas não hesitam em destruir símbolos da própria tradição que reivindicam defender. Em 2014, o EI demoliu, sob a acusação de "idolatria", os santuários do profeta Jonas (reverenciado igualmente por muçulmanos, cristãos e judeus) e do profeta Jerjis (São Jorge) em Mossul, Iraque. Quanto aos atentados contra civis, eles são contrários ao que o Corão e a lei islâmica advogam, o que mostra sua total insensibilidade aos aspectos intelectuais, espirituais e morais do próprio Islã. Ademais, numa época em que uma aliança entre as religiões é algo urgentemente necessário para conter as crescentes tendências destrutivas do mundo contemporâneo, o EI defende um exclusivismo que aliena totalmente as demais fés. Esta é outra diferença marcante com o Islã tradicional, que encara as grandes civilizações, como a cristã, e mesmo a hindu - após muitos anos de convivência na Índia - como originárias de revelações tão autênticas com a corânica. Mas então, qual é a ideologia que alimenta grupos como o EI? Antes de tudo, é preciso considerar a importância e a abrangência do conceito de jihad, pois é ele que leva os extremistas a agir. Na língua árabe, jihad é um substantivo que significa esforço, empenho ou resistência; teologicamente, significa dedicação em prol da verdade, de Deus e da religião. Trata-se de um conceito muito difundido, aparecendo 164 vezes no Corão e 199 vezes nos ahadith (ditos do profeta).

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Há duas categorias envolvidas, atribuídas ao próprio fundador da religião e da civilização do Islã, o profeta Maomé. Um autor medieval, Khatib al-Baghdadi, relata que, ao retornar vitorioso de uma batalha crucial para a sobrevivência do Islã nascente, Maomé disse: Voltamos vitoriosos da pequena jihad, a militar; combatamos também a grande jihad. Perguntado por um discípulo em que esta última consistia, o profeta respondeu: É a luta contra nós mesmos. De acordo com ensinamentos tradicionais, a "jihad da espada" (militar) não deve ser dissociada da "jihad da alma" (espiritual), e é secundária em face desta última. Mas o que caracteriza grupos como o EI é justamente esta clivagem. Em todas as religiões, há orações em que os fieis pedem a Deus para livrá-los "de todo mal". Tais males incluem também os interiores, aqueles que vêm de nossos próprios defeitos. Ora, os jihadistas se recusam a admitir que possa haver males que derivem deles mesmos. Sua luta é exclusivamente exterior, sem incluir um esforço pela virtude e a purificação pessoal. Deste modo, falta aos fanáticos do EI a "jihad da alma". Outra característica relevante da jihad é que ela é vista, no Islã tradicional, como puramente defensiva, nunca ofensiva. É por conta da unilateralidade e cegueira intelectual e moral desses grupos extremistas, focados nas dimensões mais superficiais da realidade, que eles desprezam dimensões mais complexas e profundas de seu próprio patrimônio, como a falsafah (filosofia), a arte e a mística islâmicas (Sufismo). O EI não é, e nunca foi, desde sua criação, em 1999, uma organização islâmica tradicional. Ele é, de fato, profundamente estranho ao espírito do Islã, constituindo uma mescla heterogênea de elementos autóctones e alóctones. É um sincretismo que adiciona abordagens literalistas e superficiais da religião a ideologias revolucionárias de origem ocidental e moderna. Um fenômeno ambíguo, em suma, feito de reação cega ao secularismo ocidental e simultaneamente incorporando certas características deste último, como o fanatismo ideológico revolucionário ou, no polo oposto do espectro político, o jargão de tipo hitlerista. A fúria anti-tradicional e a compreensão distorcida da natureza da jihad, conjugadas a um ressentimento anti-ocidental generalizado, que nada poupa e nunca distingue a crítica legítima do colonialismo do passado e da ocupação militar do presente, por um lado, dos aspectos positivos do patrimônio intelectual e espiritual do Ocidente, aspectos estes que convergem com o legado islâmico, por outro lado, não constituem outra coisa que uma caricatura do Islã tradicional e espiritual.

MATEUS SOARES DE AZEVEDO é mestre em História das Religiões pela USP e pós-graduado em Relações Internacionais pela Universidade George Washington (EUA). É autor "Homens de um livro só: o fundamentalismo no Islã, no Cristianismo e no pensamento moderno" (Ed. Best Seller) e "A Inteligência da Fé: Cristianismo, Islã, Judaísmo" (Ed. Record), entre outros livros.

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