A Ideologia nos Clássicos Brasileiros da Crítica Marxista da Administração

June 6, 2017 | Autor: Elcemir Paço Cunha | Categoria: Marxismo, Ideologia, Estudos Organizacionais, ATPS teorias da Administração
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III Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais 28 a 30 de outubro de 2015 – UFES – Vitória - ES

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A Ideologia nos Clássicos Brasileiros da Crítica Marxista da Administração Elcemir Paço Cunha Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Leandro Theodoro Guedes Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Resumo O propósito do presente artigo é trazer à baila o modo de apreensão do problema da ideologia em Maurício Tragtenberg e Fernando Prestes Motta, tomando tais autores como clássicos no Brasil de uma crítica marxista da administração. Argumenta-se que o modo de apreensão da ideologia interfere diretamente na crítica marxista da administração, de modo que as marcas identificáveis do estruturalismo francês althusseriano consolidam algumas restrições, sobretudo a identidade entre ideologia e falsidade. Na crítica marxista da administração, essa identidade que se afasta de Marx erigiu uma homogeneidade nas teorias da administração tomadas exclusivamente como deformação ou ocultamento da realidade. O artigo sugere que a determinação da ideologia não se dá por sua falsidade ou verdade, mas pela função concretamente desempenhada na vida social e indica, ao final, encaminhamentos para a pesquisa nesses termos. Palavras-chave: Ideologia, Marx, Tragtenberg, Motta, althusserianismo.

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1. Ideologia: de Althusser a Marx Por mais que se tenha afirmado o fim das ideologias, por mais desgastado que esse tema tenha sido durante o século XX em razão das movimentações políticas, o poder da ideologia segue operante na realidade material. Tal poder “não pode ser superestimado. Ele afeta tanto os que negam sua existência quanto os que reconhecem abertamente os interesses e os valores intrínsecos às várias ideologias” (MÉSZÁROS, 2004, p. 64). Tratar do problema, portanto, não é um mero exercício de requentar um velho debate, mas de reafirmar contemporaneamente sua relevância para a compreensão e transformação da realidade social. É nesses termos que encontramos em Maurício Tragtenberg e Fernando Prestes Motta a atenção bastante desenvolvida ao problema em tela, particularmente para uma crítica à teoria da administração enquanto ideologia. Essa crítica traz profusas implicações ao debate sobre trabalho, poder e subjetividade na medida em que implica o controle do processo de trabalho capitalista legitimado, como diriam nossos autores, por tal teoria nas suas diferentes vertentes. Tragtenberg e Motta, como críticos marxistas da administração que suscitaram inúmeros estudos (cf. FARIA, 2003; FARIA, 2011; FARIA; MENEGHETTI, 2011; PAÇO CUNHA, 2010; 2013; 2015; PAES DE PAULA, 2002; 2008), deixaram indeléveis contribuições nessa e noutras direções, contribuições que dispensam maiores justificações. Nossa pretensão maior, da qual a presente exposição constitui parte, é aprofundar historicamente a crítica da administração e ao seu caráter ideológico (numa direção especial) na particularidade brasileira, mas não seria possível sem levar decisivamente em conta a determinação da ideologia na crítica marxista da administração que germinou no Brasil entre os anos de 1970 e 1990. A pesquisa nessa direção é maior e envolve outros autores nacionais direta e indiretamente ligados a essa crítica marxista. Para efeito, no entanto, do presente artigo, o propósito é trazer à baila o modo de apreensão do problema da ideologia em Tragtenberg e Motta exclusivamente. A razão de a ideologia comportar um problema de inquirição nesses termos é que um modo de apreensão de sua determinação real interfere diretamente na crítica marxista da administração. Em detrimento de uma apreensão mais concreta e mais adequadamente aproximada a Marx, é comum haver influências outras, como as provenientes do cientificismo que galgou largos passos com o estruturalismo francês, especificamente o althusseriano, influências que perdem de vista inúmeros elementos relevantes. Althusser foi muito influente nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil e, como veremos, deixou marcas na crítica marxista da administração que se ergueu pelas mãos de Tragtenberg e Motta, além daquelas que designaríamos por marxismo weberiano (cf. SOLANO, PAÇO CUNHA e FERRAZ, 2014; PAÇO CUNHA, 2010). Se, por um lado, Althusser (1974) teve o importante papel em resgatar, por assim dizer, o marxismo do stalinismo, os problemas do estruturalismo e do epistemologismo são largamente registrados nos debates no século XX. Podemos nos restringir à constatação de que “há todo um cientificismo que perpassa a abordagem althusseriana de Marx, pois o ‘materialismo dialético’, a ‘Teoria’, é o fundamento da cientificidade do materialismo histórico, que deve ser preservado de toda a impregnação ideológica que de forma incessante a assedia” (VAISMAN, 2006, p. 254). Centralmente, “Althusser tematiza a 2

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ideologia como um conjunto de relações que ocultam ou representam mal as relações reais” (ibid., p. 255). Mas não só. Ainda é possível rastrear que: /.../ a concepção de ideologia enquanto representação imaginária da realidade tem como consequência, novamente, a oposição entre ciência e ideologia, pois a ideologia expressa a maneira pela qual os indivíduos vivenciam uma situação, não a maneira pela qual eles a conhecem – designativo próprio à prática científica. Tal oposição é confirmada através de uma outra função, atribuída althusserianamente à ideologia: em qualquer sociedade que se manifeste assegura a coesão social de seus membros, regulando o vínculo que os une às respectivas tarefas. A ideologia seria, nesse contexto, uma espécie de cimento da sociedade (VAISMAN, 2006, p. 255) Reter-se-á a oposição entre ciência e ideologia em que essa última, como falsificadora, funciona como força de coesão social. Em suma, a relação do autor francês com os lineamentos marxianos pode ser assim posta: /.../ no intuito de formular uma teoria geral da ideologia superando o pretenso “positivismo-historicista” de Marx, Althusser acaba negando a existência ideal das ideias, afirmando, única e exclusivamente, a sua dimensão material, através de sua inserção nas práticas regidas pelos aparelhos ideológicos de Estado. Com isso perde de vista uma das mais importantes aquisições de Marx que é a relação entre subjetividade e objetividade que se enlaçam na prática. Ou seja, Marx reconhece a existência ideal das ideias, mas não enquanto entificações separadas das condições efetivas a partir das quais elas são produzidas, ou seja, a atividade humana sensível e em função desta. Em outras palavras, Althusser perde de vista que as ideias são o momento ideal da prática humana (VAISMAN, 2006, p. 262). Não teríamos condições e nem é o lugar para uma longa exposição sobre os problemas identificáveis em Althusser e, por isso, nos limitamos a essas constatações essenciais. Nesses mesmos termos, é possível indicar outro elemento perdido de vista por Althusser, além da já indicada relação entre objetividade e subjetividade que instrui as ideias como momento ideal da prática humana. Trata-se de reconhecer as formas ideológicas como mediação da própria tomada de consciência das contradições reais e de sua resolução. Por isso lemos, sem os extravios da vulgata que reduz a ideologia a mero epifenômeno, que: O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. /.../. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes /.../. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transtorna com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir 3

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sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim (MARX, 1974, p. 136). A ideologia, podendo ser falsa ou verdadeira, desempenha também o papel de mediação entre as contradições reais e a subjetivação, isto é, a reprodução dessas contradições pelo pensamento. Algumas ideologias podem ser mais ou menos facilitadoras de uma reprodução autêntica, correta e justa a depender das circunstâncias sociais determinadas, de indivíduos socialmente em condições de apreensão dos nexos concretos. Em suma, ideologia não se limita à falsidade e, nesse sentido, pode servir, por mediação da prática concreta, para a solução das contradições identificadas. Nesse sentido, a ideologia é mais atributo do conflito, do antagonismo estrutural, do que da coesão. Ao passo que procuramos nas linhas que seguem determinar o modo central de apreensão da ideologia nos autores brasileiros, indicamos também as suas restrições dadas as marcas daquele althusserianismo identificáveis na identidade unilateral entre ideologia e falsidade, identidade que quebra o lineamento do próprio Marx sobre o assunto, podendo obstruir a justa apreensão de traços decisivos dos “objetos ideológicos” – no caso, as teorias da administração. Nosso argumento é que, considerada a ideologia não reduzida à falsidade, a uma negação de toda cientificidade possível, abrir-se-ia a exigência de pesquisa histórica da gênese e da função (cf. LUKÁCS, 1972) nos casos concretos bem como o desdobramento de uma “análise imanente” dos “objetos ideológicos” (CHASIN, 1978). Em outras palavras, a chamada teoria da administração, em sua heterogeneidade, apenas se confirmaria como ideologia em particularidades históricas em razão da efetividade da função desempenhada na realidade material e não pura e simplesmente em razão de seus conteúdos, dos seus interesses motivadores etc. Algumas teorias da administração formariam, assim, ideologias; outras, não. Disso resulta ser importante trazer ao primeiro plano o modo de apreensão da ideologia na crítica marxista da administração que surgiu no Brasil nas condições materiais e intelectuais nas quais se encontravam Tragtenberg e Motta. Retomada sem a qual qualquer projeto de avanço nessa crítica marxista para além do althusserianismo ficaria obstruído. 2. Maurício Tragtenberg e o althusserianismo oculto A proposta nesta parte da exposição é, em primeiro lugar, reconhecer as contribuições de Tragtenberg para a crítica da teoria administrativa, sendo esta entendida como ideologia. Evidenciaremos os pontos mais centrais que nos permitem determinar o modo de apreensão dominante do problema da ideologia (ressaltando-se que não é nossa intenção elaborar uma definição geral da ideologia no autor, mas, simplesmente, aproximarmo-nos de sua determinação neste caso particular, uma vez que a discussão

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da ideologia em sua vasta obra não se esgota com as teorias administrativas1). Em segundo lugar, a intenção é apresentar de maneira mais resumida indicações das limitações no seu modo de apreensão da ideologia dadas as influências textuais não inteiramente reveladas. Em meio à amplitude da obra de Tragtenberg, a discussão acerca das teorias administrativas assume protagonismo entre o início da década de 1970 até o final da década de 1980. Podemos delimitar da seguinte maneira o material que nos bastará de fonte para o estudo deste tema: incialmente o artigo A teoria geral da administração é uma ideologia? de 1971, que anos depois comporia, junto a outros elementos, sua tese de doutoramento publicada como o livro Burocracia e Ideologia, de 1974. Em seguida, o autor avança em suas análises no livro Administração, poder e ideologia (1980), especialmente nos primeiros capítulos onde o tema principal é uma crítica às corporações; e no artigo homônimo (originalmente publicado em 1979, na coletânea de artigos A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder). Na discussão de Burocracia e ideologia e Administração, poder e ideologia o autor perpassa pelas teorias administrativas mais ressonantes do início do século XX representadas por Taylor, Fayol e Mayo, onde o primeiro e o último ganham atenção especial no tocante ao problema da ideologia. Tragtenberg desenvolve o tema pautado nas harmonias administrativas iniciadas pelo socialismo utópico e continuadas por Taylor e Mayo. Mostra, sobretudo, como estes autores – ou “ideólogos das grandes corporações”, como preferira – falseiam a realidade em nome do progresso do capital. Especialmente em Administração, poder e ideologia, tanto no livro, quanto no artigo homônimo, veremos lineamentos da apreensão althusseriana na discussão dos “aparelhos ideológicos” e da reprodução de ideologias com o mesmo propósito falsificador. Quanto às fontes para a discussão sobre a ideologia, podemos assim dizer que o autor reconhece o peso da influência da sociologia do conhecimento de Mannheim2 em Burocracia e ideologia, ainda que esta influência se dê mais no plano metodológico. Já nas obras subsequentes, o uso de categorias como “aparelhos ideológicos” pode indicar uma possível influência de Althusser embora Tragtenberg não seja totalmente explícito nessa direção. Igualmente, ao tomar a ideologia pelo prisma da falsidade, pode-se dizer que existe uma inexorável influência de correntes específicas do marxismo, sobretudo do althusserianismo já indicado antes. Como não é nossa proposta esgotar a raiz dessas influências neste momento, delimitaremos nossa investigação na determinação da ideologia por Tragtenberg entre 1971 e 1981, no caso das teorias administrativas.

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Em outras obras como Planificação: Desafio do século XXI e Reflexões sobre o socialismo, o autor realiza uma abrangente discussão acerca do burocratismo estatal, em especial, na União Soviética. Nesse caso, o emprego do termo ideologia é igualmente marcante, merecendo ser tratado em outras ocasiões. 2 Esta influência revela-se em dois momentos implícitos, além de outros mais explícitos (cf. TRAGTENBERG, 2005, p. 53). Num deles, o autor deixa assim indicado no que diz respeito ao estudo da teoria administrativa como ideologia: “Tal análise será desenvolvida em perspectiva estritamente sociológica, no nível de sociologia do conhecimento, isto é, do estudo da causação social das teorias de administração ideológicas (TRAGTENBERG, 2005, p. 20). Em A teoria da administração é uma ideologia? isso se confirma quando apoia-se em Mannheim para matrizar seu estudo do ideário administrativo, pois “A análise da teoria geral da administração como ideologia implica o estudo do ‘fenômeno do pensamento coletivo que se desenvolve conforme interesses e as situações sociais existentes’” (TRAGTENBERG, 1971, p. 11).

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Antes de adentrarmos diretamente no problema das teorias administrativas, e verificarmos o entendimento da ideologia em nosso autor, vamos sinteticamente rastrear a origem das “harmonias administrativas”. Sendo-nos fundamental acompanhar a discussão presente em Burocracia e Ideologia, bastam-nos os capítulos As harmonias administrativas de Saint-Simon a Mayo e Burocracia: da mediação à dominação. No primeiro, Tragtenberg mostra exaustivamente como se deu o processo de desenvolvimento das forças produtivas iniciado pela primeira revolução industrial acompanhado das paupérrimas situações dos trabalhadores nas indústrias da Europa Ocidental àquela época. Tal disparidade provocara a aparição de teóricos como SaintSimon, Fourier, Proudhon e Marx que, nas palavras de Tragtenberg, foram teóricos à “procura de um modelo de sociedade global que seja negação daquela que emergiu com a revolução industrial” (TRAGTENBERG, 2005, p. 76), situando inadvertidamente Marx também como um dogmático ao lado dos demais na busca de um modelo nascido da cabeça. Especialmente os dois primeiros (Saint-Simon e Fourier) enxergavam a possibilidade de que o próprio modo de produção capitalista poderia se ajustar em direção a uma sociedade mais igualitária. Conforme conferimos nas palavras do nosso autor: Tendia Fourier a ver, na marcha da sociedade, o caminho para o estabelecimento de uma harmonia universal, a partir do controle das paixões humanas. /.../. O sistema industrial, para Saint-Simon, funda-se no princípio da igualdade perfeita, repudiando qualquer direito de nascimento e qualquer espécie de privilégios (TRAGTENBERG, 2005, p. 79-81). Embora ambos sejam socialistas, não conseguem vislumbrar nada além da ordem burguesa, acreditando que a simples harmonia entre classes antagônicas pode apaziguar os eminentes conflitos, isto é, veem no capitalismo a potencialidade de promover uma sociedade igualitária. Assim, Tragtenberg traz à baila esse elemento que nomeia “harmonia administrativa” – tão importante no decorrer da obra em tela para o enfrentamento aos teóricos da administração – para criticar os socialistas utópicos. É importante compreender que a “harmonia administrativa” cede lugar à “harmonia participacionista” no tratamento da teoria administrativa como veremos adiante. Não obstante é importante ressaltar que nosso autor verifica que a tentativa de harmonizar os conflitos não é exclusiva dos intelectuais do capital, mas também é uma ideia reverberada nos socialistas utópicos. Na medida em que adentra na crítica da administração, percebe-se que um traço marcante da crítica de Tragtenberg a estas teorias é o seu senso de realidade ao situar inerentemente a efetividade deste conjunto teórico na luta de classes, conforme ele mesmo afirma: “A Teoria da Administração, até hoje, reproduz as condições de opressão do homem pelo homem” (TRAGTENBERG, 2005, p. 267). Se para o socialismo utópico a harmonização era uma opção tática, para os teóricos da administração é uma necessidade fundamental tendo em vista a manutenção da exploração do trabalho pelo capital. A Escola Clássica, na figura do taylorismo, constituiu-se na necessidade de uma construção teórica que fosse capaz de aliar a organização diretiva e o controle da força 6

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de trabalho: “Sua maior preocupação concentra-se no fluxo mecânico dos objetos e na manipulação humana conforme critérios utilitários” (TRAGTENBERG 2005, p. 241). Frisese, ainda, que “Taylor parte do ponto de vista segundo o qual o interesse dos trabalhadores é o da administração” (TRAGTENBERG, 2005, p. 93). Taylor nega a existência de um conflito, tenta escamotear a existência de qualquer antagonismo, imbuído da necessidade de conciliar os interesses através da administração. Vejamos então como Tragtenberg considera o taylorismo como ideologia: Influi na totalidade do social pela incidência sobre a produção e reprodução ampliada do capital e da força de trabalho como mercadoria e principal força produtiva/.../ constitui-se numa ideologia de uma estrutura fabril que, na separação entre planejamento e execução, trabalho manual e intelectual, reproduz a dependência do trabalho ao capital (TRAGTENBERG, 2005, p. 242) Segundo análise do autor, o taylorismo é uma ideologia que visa aumentar a produtividade através da especialização massiva dos trabalhadores, tendo como pano de fundo a continuidade da exploração imposta pela classe dominante, como pressuposto do capitalismo. Constata ainda que este ideário, ao influir diretamente nas relações de trabalho no capitalismo, solidifica-se enquanto ideologia que sustenta a dominação do capital. Portanto, é possível reter que nesta ocasião, a ideologia é entendida como reprodutora das condições de dominação de uma classe sobre a outra. Na sequência da argumentação de Tragtenberg, lemos que “Como ideologia o taylorismo tende a dar autonomia à técnica apresentando o parcelamento do trabalho, a limitação do consumo das massas nos quadros de reprodução simples do trabalho, como categorias ahistóricas, inerentes à natureza humana” (TRAGTENBERG, 2005, p. 243). Ao tomar categorias resultantes da relação do homem com a natureza e como o próprio homem no curso da história como inerentes à natureza humana, Taylor mistifica seus nexos reais. Tragtenberg é exitoso ao captar este procedimento, mas ressaltamos que este processo mistificador, é consequentemente o que Tragtenberg apreende por ideologia. Seguindo a letra do autor brasileiro, podemos compreender que as teorias administrativas “respondem a necessidades específicas do sistema social” (TRAGTENBERG, 2005, p. 108). Nessa esteira, surge então a Escola das Relações Humanas capitaneada por Elton Mayo que logo se apresenta como um arsenal teórico para combater o avanço dos sindicatos. A escola das “Relações Humanas surgiu e se desenvolveu como reação ao sindicalismo operário norte-americano; foi uma das respostas patronais no terreno da ideologia e da técnica de administração” (TRAGTENBERG, 1980, p. 103), pondo-se, enquanto ideologia, a se materializar como instrumento de controle da classe operária e ao mesmo tempo, a oferecer a resposta teórica, que desarticulasse na prática efetiva qualquer movimentação operária não condizente com os auspícios empresariais. A maneira como ela opera na prática é aproximando da empresa a massa de trabalhadores, como nosso autor explicita: A ideologia participacionista inerente à escola se detém aos conflitos. A Escola das Relações Humanas aparece ante o operário com um caráter meramente instrumental e, nesse sentido, falso, não atingindo o vital. Esse participacionismo tende a manter a 7

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velha forma de relação entre capitães de indústria e operários (TRAGTENBERG, 2005, p. 10). Tragtenberg reconhece as influências do sociólogo francês Durkheim em Mayo, uma vez que esse ambiciona a eliminação completa dos conflitos3. Como ideologia, o participacionismo, corporificado no extensivo incentivo à colaboração entre os empregados para que os conflitos sejam eliminados, se dá somente no locus de valorização do capital, qual seja, na empresa, de modo que “A Escola das Relações Humanas só examina as relações homem x grupo na área da empresa, não as ultrapassa” (TRAGTENBERG, 2005, p. 103). Na medida em que este participacionismo é falso, apresenta uma aparente horizontalidade, que não se verifica na prática pois não toca fundamentalmente nos problemas estruturais de classe, “você participa das responsabilidades da direção, mesmo que a realidade não o confirme” (TRAGTENBERG, 1980, p. 20). Temos então, o primeiro momento do texto em que Tragtenberg, identifica a ideologia propriamente à falsidade, confirmando a tendência das teorias administrativa não expressarem a realidade tal qual ela é. Em tom conclusivo, arremata Tragtenberg: “Negativamente, a escola das relações humanas aparece como uma ideologia manipulatória” (TRAGTENBERG, 2005, p. 104). Assume assim um caráter ideológico, pois tem por finalidade manipular a classe explorada, enquanto a classe dirigente mostra-se amigável diante do trabalhador, almeja o significativo aumento da produtividade do trabalho, apoiando-se em um aparato técnico constituído por dinâmicas de grupo e outras ferramentas4, o operário participa de sua própria exploração e a manutenção das relações sociais. Concomitantemente, esta ideologia é erigida como mecanismo de controle para manter afastadas eventuais ameaças materializadas nos sindicatos. Ao objetivar o fim dos conflitos, a escola simplesmente corrobora com a velha relação entre capitães de indústria e operários, qual seja, de exploração do trabalho. Opera, por conseguinte, falsamente. Em suma: “ela procura dissimular a dominação por meio de discursos e práticas participativas, desviando a atenção de seu objetivo central, que é manter a produtividade nas organizações e reduzir as tensões entre capital e trabalho” (PAES DE PAULA, 2008, p. 961). Noutra direção chama a atenção para a internacionalização dessa técnica. “O equivalente na URSS à Escola de Relações Humanas dos EUA chama-se trabalho ideológico, propaganda e agitação. Os dois países tendem aos mesmos objetivos: manipulação da mão-de-obra disponível” (TRAGTENBERG, 2005, p. 105). O caráter mistificador operado pela ideologia é de extrema utilidade para assegurar a continuidade do operariado enquanto classe subalterna presa aos grilhões do capital – seja qual for o modo em que este se organiza monopolisticamente (EUA) ou como “capitalismo de Estado” (URSS) – se assim não o fosse certamente não encontraria terreno para se disseminar. O estudo de Tragtenberg sobre o pensamento administrativo abarca ainda algumas outras escolas e autores. Contudo, para compreender a questão da ideologia, basta-nos cercar nossa inquirição em Taylor, Fayol e Mayo, autores básicos das escolas clássica e 3

“Pressente-se a influência de Durkheim, o grande sociólogo da ordem entendida como anti-anomia em Mayo. Ao conflito, Durkheim contrapõe a coesão social; à oposição de classes, opõe a representação corporativa num estado liberal” (TRAGTENBERG, 1980, p. 24). 4 “Os princípios de dinâmica de grupo, elementos fundadores da escola das relações humanas, são os responsáveis pelo tema da participação, tão ao gosto desta escola” (TRAGTENBERG, 1980, p. 27).

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das relações humanas. Tais autores possuem diferenças no direcionamento de suas técnicas, todavia como Tragtenberg nos apresenta, ambas as escolas guardam similaridades ideológicas. “A ideologia da harmonia participacionista iniciada por Taylor, reafirmada por Fayol, é continuada por Mayo, na sua preocupação em evitar os conflitos e promover o equilíbrio ou um estado de colaboração definido como saúde social” (TRAGTENBERG, 2005, p. 102). Tragtenberg condensa as constatações acerca do conteúdo da ideologia (dominação e falsidade) na chamada harmonia participacionista. Ao anunciar que as teorias da administração mudam com as transformações socioeconômicas, justifica as divergências técnicas entre as escolas, ainda que a forma com que a harmonia se dera tenha sido distinta, isto é, “enquanto a Escola Clássica pregava a harmonia pelo autoritarismo, Mayo procura-a pelo uso da Psicologia” (TRAGTENBERG, 2005, p. 101). Portanto, mostrou ele que, como ideologias, ambas mistificam a realidade, cada uma à sua maneira. Ocultando as relações de exploração, respondendo a demandas que urgiam cada uma à sua época e resguardando os interesses da classe dominante através de seus enunciados. Ressaltamos então que a técnica é o invólucro prático que envolve um núcleo, onde o que prepondera é a ordem do capital, como acompanhamos na reflexão de Paes de Paula (2002, p. 132), uma vez que “estas escolas se estabeleceram como portadoras de teorias e práticas eficientes para viabilizar a produção massificada, mas auxiliaram principalmente na harmonização das relações entre capital e trabalho”. Dessa maneira, enquanto a técnica administrativa somente se propor a resolver demandas da classe dominante, ela se configurará ideologia. Seguindo Tragtenberg, resolver os problemas reais da esfera da produção não é a preocupação primaz da teoria administrativa, tampouco mostrar a verdade. Antes, enquanto ideologia, tal teoria está imbuída em obter da classe explorada o máximo comprometimento com a empresa, mantendo-a o mais próximo possível e predisposta a resolver as questões que surgem à ordem do dia para a valorização e acumulação de capital. Consequentemente, há em Tragtenberg a tendência de considerar a efetivação prática das teorias imediatamente após serem elaboradas, na medida em que são respostas intelectuais às necessidades do capital. Contudo residem nessa tendência algumas ressalvas, muito em função do que Tragtenberg chama de processo de ideologização (do qual trataremos mais adiante), o que suscita a ideia de que essas teorias se tornam ideologias, a partir do momento em que este processo se inicia. Acompanhemos como Tragtenberg tece suas considerações finais nesta obra. Assegura ele que: “As teorias administrativas são dinâmicas, elas mudam com a transição das formações socioeconômicas, representando os interesses de determinados setores da sociedade que possuem o poder econômico-político” (TRAGTENBERG, 2005, p. 109). Dois pontos fundamentais aparecem nesta passagem e são eles decisivos para a discussão da ideologia: por um lado, Tragtenberg demonstra como as teorias administrativas correspondem a uma realidade objetiva, e podem reagir quando as relações materiais mudam; por outro lado, ressalta ele como essas teorias correspondem aos interesses de uma classe dominante. Isto é suficiente para ele tecer a devida crítica, que reafirma o caráter mistificador: A teoria Geral da Administração dissimula a historicidade de suas categorias, que são inteligíveis num modo de produção historicamente delimitado, são como expressão abstrata de 9

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relações sociais concretas, fundadas na apropriação privada dos meios de produção (TRAGTENBERG, 2005, p. 267). A despeito de se apresentarem universais a toda história da humanidade, confirma Tragtenberg que as teorias administrativas nada mais são do que produto de uma especificidade histórica do modo de produção capitalista: “as categorias básicas da teoria geral da administração são históricas, isto é, respondem às necessidades específicas do sistema social” (TRAGTENBERG, 2005, p. 108). O término da argumentação a respeito das teorias administrativas em Burocracia e ideologia, é acompanhado do ensejo ao que se tornaria central no artigo Administração, poder e ideologia: o papel da educação na reprodução da ideologia mostrando que as instituições educacionais são “encarregadas pela divisão do trabalho na produção e reprodução de ideologias” (TRAGTENBERG, 2005, p. 260). Ao adentrarmos mais detidamente no artigo supracitado, podemos ver que Tragtenberg insere na discussão sobre teorias administrativas, a questão de “aparelhos ideológicos” e também podemos acompanhar mais de perto a relação dessas teorias com a educação. Muito embora Tragtenberg não cite a fonte que inspirou essa sua argumentação, é possível especular por aproximação que tenha sido o francês Althusser, sendo este o autor responsável por divulgar aquele conceito no meio acadêmico a partir dos anos de 1960 e 1970, com grande repercussão no Brasil. Sobre a ideologia dominante, diz o autor brasileiro: “O interesse geral nada mais é do que o particular transfigurado; na ideologia, no seu discurso generalizado, o interesse geral vincula-se ao particularismo dos dominantes, é a ideologia dominante” (TRAGTENBERG, 2012, p. 66). Seguindo parcialmente Marx de A ideologia alemã, a ideologia, nos termos do autor brasileiro, opera na medida em que apresenta os interesses particulares da classe à qual corresponde como se fossem interesse de toda a sociedade. Este processo ocorre por mediação de instituições como a escola5, mas por meio de outros aparelhos ideológicos enumerados pelo autor gaúcho, o que aponta para uma sintonia com o não declarado althusserianismo. Não obstante, a ideologia “é produzida, através da divisão intelectual do trabalho, pelos ‘intelectuais’, e reproduzida para consumo popular através da ‘inculcação’ por mediação dos aparelhos ideológicos estatais ou privados: jornais de empresa, manuais escolares ou ideologias administrativas” (TRAGTENBERG, 2012, p. 66). Vemos que a produção de ideologias se dá numa fração do trabalho intelectual, e ganham representatividade através da inculcação mediada pelos aparelhos. O autor dá ensejo ao entendimento de que esta fração intelectual corresponde ao quadro administrativo que “elabora os movimentos do capital, seja ‘pessoal’ ou ‘anônimo’, na grande corporação” (TRAGTENBERG, 2012, p.67). Contudo, restam reticências quanto à origem dessa fração. Não nos mostra se ela é propriamente parte da classe burguesa que elabora suas teorias dominantes, ou se é parte da classe trabalhadora, neste caso, mediando sua própria exploração. Passemos a um outro momento, pois a presente exposição, como anunciado, pretende também expor limites da determinação da ideologia que encontramos em Tragtenberg. 5

Outra instituição que para Tragtenberg, é aparelho ideológico, é a empresa: “Empresa não é só local físico onde o trabalho excedente cresce às expensas do necessário, o palco da oposição de classes, é também o cenário da inculcação ideológica. Nesse sentido, empresa é também aparelho ideológico” (TRAGTENBERG, 1980, p. 28).

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Numa de suas elaborações, Tragtenberg deixa algumas dúvidas em relação à imanência da ideologia nas teorias administrativas: “O processo de ideologização das teorias administrativas está em sua postura como ontologia, despida de historicidade. Ela representa a tradução em linguagem administrativa da práxis econômico-social historicamente definida” (TRAGTENBERG, 2005, p. 259). Embora Tragtenberg confirme sua constatação de que estas teorias não têm compromisso em se mostrar fiéis aos desencadeamentos históricos que as engendraram, deixa claro que isto decorre de um processo. Portanto, cabe questionar se esse teor negativo carregado pela ideologia da administração é intrínseco a ela, ou se este processo de ideologização comporta outros aspectos. Quer dizer, é possível que as teorias da administração se tornem ideologias no processo ao invés de nascerem como tal? Tragtenberg não oferece resposta a esta questão diretamente. Entretanto, mostra como se arma o arcabouço esquemático que engendra este processo: A Teoria Geral da Administração é ideológica, na medida em que traz em si a ambiguidade básica do processo ideológico, que consiste no seguinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica (de trabalho industrial, administrativo, comercial) por mediação do trabalho; e afasta-se dessas determinações sociais reais, compondo-se num universo sistemático organizado, refletindo deformadamente o real, enquanto ideologia (TRAGTENBERG 2005, p. 108). Assegurando que em meio ao processo a ideologia reflete deformadamente o real, Tragtenberg proporciona indicações de que a resposta à pergunta por nós aludida logo acima é negativa. Depreende-se ainda desta passagem que ao mesmo tempo em que se aproxima das determinações reais por meio da prática, a administração se afasta delas enquanto ideologia. Ao mesmo tempo em que se configura na resposta para problemas objetivos através da técnica, por exemplo, não reflete as reais condições sociais que põem esses problemas, pertinentes somente à classe dominante. Noutro momento, Tragtenberg mostra na introdução de Burocracia e ideologia que ao estudar as teorias administrativas, o ponto de partida será tomá-las como ideológicas, como falsa consciência. É possível depreender alguns reflexos deste ponto, como, por exemplo, na discussão acerca do processo ideológico. A despeito disso, é preciso registrar que não se encontra um desenvolvimento mais profundo deste ponto no desenrolar do texto. Realça-se assim, o caráter negativo, primeiro com a falsidade contida no participacionismo, ou na mistificação que permeia as elaborações de Taylor, por exemplo. E depois, ressaltando como a categoria está a serviço da classe dominante, assegurando sua posição em relação à classe dominada, podendo isto decorrer da mesma mistificação, restringindo o horizonte de luta dos trabalhadores com o participacionismo, por exemplo. A razão de haver alguma ambiguidade pode ser explicada pela presença de elementos althusserianos, como “aparelhos ideológicos” e falsidade da ideologia, e outros elementos ainda provenientes da sociologia do conhecimento de Mannheim que reconhecidamente toma “ideologia” exclusivamente como força conservadora em oposição à “utopia”. 11

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Outro ponto significativo é a discussão que envolve a função da educação conjuntamente com os aparelhos ideológicos e seu efeito na ideologia. Há que se dizer que esta é uma tematização central para compreendermos como a teoria administrativa é ideologia. No entanto, Tragtenberg dedica poucas linhas a esta questão, onde são encontradas passagens assaz telegráficas, donde não é possível encontrar precisamente quais foram as fontes que inspiraram a discussão. O que se torna possível é somente indicar que o marxismo de tipo especial exerceu influência sobre o pensamento de Tragtenberg, mas como não aprofunda as categorias, tampouco indica as suas fontes, não podemos aprofundar com maior precisão. Diferentemente de Tragtenberg, Motta é mais explícito quanto às fontes das influências que identificam ideologia e falsidade, como veremos. É possível, não obstante as limitações e a despeito de alguma compreensão sobre a ideologia como processo, isto é, de que algo pode tornar-se ideologia, concluir que a tendência mais marcante é a de identificar toda elaboração ideal promovida pela administração como ideologia. Tendências ainda mais marcantes são as determinações da ideologia como falsidade e instrumento de controle que serve estritamente à classe dominante, tendências encontradas sobretudo no estruturalismo de Althusser. 3. Fernando Prestes Motta e o althusserianismo revelado Nosso objetivo nesta parte da exposição é resgatar as principais contribuições de Motta para a crítica da administração como ideologia. Esse resgate nos permitirá apreender as principais fontes do autor, os enlaces centrais de sua apreensão do problema da ideologia como também apontar superficialmente, num primeiro momento, alguns limites desse desenvolvimento. Para tanto, após a investigação de todos os livros de Motta e de alguns artigos diretamente tangentes à questão da ideologia, optou-se por tratar de Empresários e hegemonia política de 1979, o artigo As empresas e a transmissão da ideologia de 1984 e os livros Organização e poder e Teoria das organizações de 1986 e 2001 respectivamente. Esse material será suficiente para nossos propósitos postos. É importante dizer que não parece haver uma unidade absoluta entre os textos aqui examinados. Na verdade, existe uma mudança considerável no trato do problema da ideologia que é marcado, em 1979, por uma leitura centrada em Althusser e Gramsci e que, em 2001, cede lugar para João Bernardo, não sem passar por Poulantzas no texto de 1986. De toda forma, por mediação de Poulantzas, Althusser permanece uma influência decisiva em Motta. Como estamos menos interessados nessas mudanças e como também não temos qualquer pretensão de esgotar a discussão da leitura de Motta sobre a ideologia, buscaremos indicar mais os pontos que são reforçados ao longo do período 1979-2001 no que dizem respeito à crítica da administração como ideologia. Tais pontos constituem elemento-chave de um padrão mais consistente, a despeito dos elementos que conjugam na direção contrária ou diferente. Nosso autor dispensa maiores apresentações para o público brasileiro familiarizado com as discussões de inclinações sociológicas sobre a burocracia e a administração. Motta 12

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nutriu diferentes interesses pelo marxismo, pelo weberianismo além dos temas específicos como teorias da administração, administração escolar, burocracia, participação e autogestão, cultura e psicanálise, para dar alguns exemplos. Ocupa lugar de destaque por trazer para o primeiro plano já na década de 1970 – não sem influências de Tragtenberg – considerações críticas com relação às teorias da administração, além de apresentar as possibilidades de diálogos com correntes da sociologia francesa que permitiram fazer resistência ao funcionalismo sociológico que marcou fortemente a reflexão no Brasil dos anos 70 e 80 do século passado e que, ainda hoje, é persistente. Motta (1979) desenvolve em Empresários e hegemonia política um trabalho de peso. Toma a discussão muito marcante nos anos de 1970 sobre o papel político do empresariado nacional ao longo do processo de ascensão no capitalismo brasileiro. A despeito de sua tese central – que merecia ser revisitada por argumentar que o empresariado jamais exerceu hegemonia por conta do poder da classe burocrática (o Estado sob domínio militar) –, importa-nos o primeiro capítulo denominado Ideologia e prática política. Esse capítulo é um dos mais extensos tratamentos que Motta dará ao problema da ideologia, embora nesse momento de sua trajetória intelectual não tenha se ocupado especificamente do problema das teorias da administração como ideologia, tema aliás que será depois muito importante. Ainda assim é decisivo tomar este primeiro capítulo uma vez que ele lança bases que cortaram todo itinerário sobre a questão da ideologia, ao menos até Teoria das organizações, de 2001. Motta apresenta um percurso nesse capítulo que perpassa por uma série de autores, inclusive por intelectuais brasileiros ligados à USP nos anos de 1960 e 1970. Mas a linha central acerca da ideologia tem início com a apresentação de alguns poucos elementos de Marx, passando depois pelo problema da consciência de classe inspirado em Lukács e “falsa consciência”, em Vojin. Desloca para Debord antes de, criticamente, reter parcialmente a discussão de “aparelhos ideológicos” do Estado em Althusser, combinando-a com o problema da hegemonia em Gramsci. Esse é o quadro geral do capítulo em questão, além de outras influências, como as de origem uspiana. Os pontos mais decisivos se encontram no diálogo com Marx, Althusser e Gramsci. Devemos nos concentrar nesse aspecto. Motta parte de uma citação parcial ao famoso Prefácio de 1859 no qual Marx faz um esboço telegráfico de seus achados que passaram a nortear a pesquisa. O autor brasileiro se restringe a reproduzir a partir de Tragtenberg a afirmação de que “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se constrói a superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social” (TRAGTENBERG apud MOTTA, 1979, p. 15). Motta não parece retomar o Prefácio por inteiro, retendo apenas essa curta e histórica passagem. É o suficiente para ele escrever em seguida: Nesse sentido, essa consciência social pode ser tomada como sinônimo de ideologia. Todavia, isto só é possível em sentido amplo, já que por ideologia, classicamente, se entende um conjunto sistematizado de ideias ou conceitos, tal como se percebem em teorias sociais, nas religiões, na filosofia etc. O que resta na consciência social, que não é ideologia, em sentido 13

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restrito, são as representações sociais dominantes (MOTTA, 1979, p. 15) Isso é importante pois mostra, por um lado, que Motta apreende de modo mais geral o lugar da ideologia no Prefácio e, por outro, parece reter a identidade entre ideologia e consciência social e aquilo que, segundo ele mesmo, é “classicamente” determinado, isto é, se tratar de um “conjunto sistematizado de ideias ou conceitos”. Essas duas questões são importantes. A identidade acima será importante ao autor paulista para a discussão que seguirá sobre o trajeto do empresariado brasileiro no Brasil do século XX. Já o conjunto é mais significativo para os estudos que Motta fará em outros materiais, que ainda veremos, nos quais toma a crítica da administração como ideologia. A sequência do desenvolvimento de Motta encontra elementos em A ideologia alemã, de Marx e Engels, elementos suficientes, disse nosso autor, para: (...) deduzir que a ideologia preenche a função de mantenedora da coesão social, na medida em que procura ocultar o antagonismo básico de um modo de produção, sujeitando dominados e justificando dominadores. Tal fato, também, pode ser visto na transitoriedade das ideologias. Elas surgem, modificam-se e, eventualmente, desaparecem, face ao movimento das relações. Decorre, daí, que a ruptura não pode partir apenas da ideologia, mas, principalmente, da base material (MOTTA, 1979, p. 17) É importante destacar a posição materialista que Motta sustenta ao apreender a insuficiência da alteração das ideologias para provocar mudanças nas relações sociais. Mais importante ainda é indicar que, para nosso autor, a ideologia promove a coesão social (bem ao sabor do althusserianismo visto antes) não sem promover também a ocultação do antagonismo que dilacera determinado modo de produção. Em se tratando da produção capitalista, seria como considerar que a ideologia oculta a contradição entre capital e trabalho. Essa ocultação como função da ideologia passa a ocupar um lugar de destaque na continuação da análise de Motta ao incorporar a discussão sobre os aparelhos ideológicos. Motta (1979, p. 21) retém de Althusser que “o Estado não se apresenta apenas como um aparelho repressivo”, mas também sob “a forma de aparelhos ideológicos”, de modo que, por necessidade da reprodução do antagonismo básico do modo de produção, a ideologia dominante “consubstancia-se em práticas e tais práticas estão presentes nas escolas, no exército, na igreja, na indústria da comunicação etc.”, todas essas instâncias tomadas como aparelhos ideológicos. Essa retomada de Motta das ideias do estruturalismo francês no corte marxista dos anos 1960 implica o aceite de que “a ideologia é o contrário da ciência” (MOTTA, 1979, p. 22). Isso é importante de deixar marcado em razão do desenvolvimento seguinte, em que aquele caráter de ocultamento que especifica a ideologia é retomado por mediação dos aparelhos ideológicos do Estado: (...) a ideologia é uma representação do real, mas necessariamente falseada, uma vez que é uma representação orientada e tendenciosa, porque sua finalidade não é fornecer aos 14

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homens o conhecimento objetivo do sistema social em que vivem, mas, pelo contrário, fornecer-lhes uma representação mistificada deste sistema social, para mantê-los em seus ‘devidos lugares’ no sistema de exploração de classe. Decorre daí que, na sociedade de classes, a deformação da ideologia é politicamente criada. Assim, ela não é deformante apenas em função da opacidade exercida pela estrutura, mas é deformante pela própria existência da divisão em classes. Ora, a ideologia ajuda a dominação e a sujeição, na medida em que as naturaliza. A ideologia pode ser reconhecida no discurso dos agentes sociais, mas as suas implicações concretas serão melhor percebidas em sua prática (MOTTA, 1979, p. 22) A ideologia, para nosso autor, oculta a contradição pois é, por natureza, uma representação falseada do real, uma representação mistificada. Ela funciona naturalizando a dominação de classes por meio da prática efetiva dos homens nos aparelhos ideológicos do Estado. Como completou mais adiante, “Ocorre que em todas as instituições a ideologia está a serviço de um projeto, e, no nível da sociedade, ela traduz-se numa prática, que se faz sobretudo através e no interior dos ditos aparelhos ideológicos” (MOTTA, 1979, p. 25). Motta traz Gramsci nesse diálogo com Althusser para adicionar o problema da hegemonia e, por decorrência, o papel decisivo de “controlar os aparelhos ideológicos” (MOTTA, 1979, p. 25). Depois de chamar a atenção para o fato de que “Uma classe social que não consegue afirmar-se ideologicamente pode, como já sugerimos, ser dominante, não é todavia uma classe dirigente” (MOTTA, 1979, p. 27), apresenta uma síntese decisiva: Toda concepção dominante tem por tarefa a conservação da unidade ideológica de todo o bloco social. A capacidade de conservar unido um bloco social, que não é homogêneo, através da ideologia, é precisamente a hegemonia. É óbvio que a heterogeneidade do bloco social está fundamentada nas contradições de classe que a ideologia procura negar. Portanto, pode-se afirmar que uma classe é hegemônica, dirigente e dominante, na medida em que, por meio da ação cultural e ideológica que se traduz em ação política, consegue manter as forças conflitantes e heterogêneas de tal modo articuladas, que os antagonismos e os interesses divergentes não culminam numa recusa à ideologia, que coincide com a crise política das forças no poder. A hegemonia pode ser, assim, entendida como o controle ideológico da sociedade, por uma classe, uma fração de classe ou uma aliança de classes ou frações de classe. É evidente que a ideologia da classe dominante corresponde a sua função histórica e aos seus interesses e não à função histórica e aos interesses das classes subalternas; trata-se, portanto, de descer até aos dominados, através dos aparelhos ideológicos, e de toda e qualquer instituição da sociedade onde, por mecanismos diversos, se promove ideologicamente a submissão. Nesse sentido, a própria empresa age como transmissora de ideologia (MOTTA, 1979, p. 28) 15

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A despeito de haver na passagem alguma identidade não necessariamente coerente entre “bloco social” (alianças em dadas condições determinadas) e “sociedade” – algo que um gramsciano poderia apontar –, Motta determina a hegemonia (que nos interessa menos) como “controle ideológico da sociedade”. Em outros termos mais sintéticos, a ideologia é, para nosso autor brasileiro, uma representação falseada da realidade que oculta o antagonismo básico da sociedade dada a atuação das classes dominantes por meio do domínio dos aparelhos ideológicos do Estado. As marcas do althusserianismo se revelam sem obstruções. Num artigo de 1984 aparece uma transição importante para uma crítica mais direta da administração como ideologia. Motta pretende no artigo comentar alguns achados importantes de autores franceses que permitem desvelar uma função pouco compreendida da empresa capitalista, isto é, sua função de produtora e difusora de ideologia. Encontramos no artigo enlaces já desenvolvidos no material de 1979. Por exemplo: “(...) a ideologia é um conjunto de valores e crenças que visa a manutenção de uma determinada ordem social, ocultando os elementos que a ameaçam e lhe são inerentes” (MOTTA, 1984, p. 19). Adicionalmente, à “superestrutura correspondem determinadas formas de consciência social, ou seja, a ideologia” (MOTTA, 1984, p. 20). Ou, de maneira mais precisa, “a função básica da ideologia é a manutenção da coesão social. Preenche essa função, porém, ocultando o antagonismo básico de um modo de produção, ou seja, sujeitando dominados e justificando dominadores” (MOTTA, 1984, p. 21). Por influência dos autores franceses, aceita o esquema dos “níveis” econômico, político, ideológico e psicológico como componentes da empresa capitalista. A tendência do movimento real é a de que “As contradições sociais seriam pouco a pouco convertidas em contradições psicológicas, isto é, em confronto de ameaças e angústia com sedução e prazer” (MOTTA, 1984, p. 22). Mas isso não se dá sem a mediação da ideologia. Tudo indica que Motta toma como certa a posição dos autores franceses de que “A conquista ideológica dos empregados pela empresa parece basear-se no fato de que esta oferece uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais dos indivíduos, fornecendo-lhes uma visão de mundo coerente com as suas aspirações” (MOTTA, 1984, p. 22). A crítica da administração como ideologia aparece mais explícita em Organização e poder de 1986. Esse livro, fruto da tese de livre-docente, apresenta inúmeras outras questões importantes impossíveis de serem tratadas nesse momento. Uma delas, sem dúvida, é a influência que exerce João Bernardo sobre o problema da ideologia, pois, em contraste com o aceite anterior de oposição entre ciência e ideologia, Motta (1986, p. 17-18) procura se posicionar de modo a não opor “verdade” e “ideologia”. Isso talvez enfraquecesse as posições anteriores de considerar a ideologia uma falsa representação do real, uma vez que nosso autor toma a teoria organizacional (ou teorias da administração) como ideologia, mas também como ideologia uma teoria crítica à própria teoria das organizações. Em suas palavras: Dessa forma, entendida a teoria organizacional enquanto ideologia, resta percebe-la enquanto ideologia do poder ou contra o poder; resta ainda desvendar a possibilidade de uma teoria das 16

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organizações como ideologia política repressiva convivendo com outra, certamente menos sistematizada, de conteúdo libertador (MOTTA, 1986, p. 18). Trata-se de um texto que recebeu grande influência da ascensão, nos anos 1980, da busca por uma “teoria crítica das organizações” (MOTTA, 1986, p. 18) que seria melhor compreendida como “teoria das organizações reflexiva”, combinando uma “leitura autonomista” de Marx com elementos de Weber e autores outros “para uma análise da superestrutura necessária à investigação do objeto, e para o que o marxismo não possui ainda, a meu ver, instrumentos suficientemente desenvolvidos” (MOTTA, 1986, p. 143). Nosso autor retoma as posições de Poulantzas, tomando os aparelhos econômicos (empresas) e os aparelhos ideológicos do Estado para indicar a produção e difusão ideológica tanto num quanto noutro tipo. E situa também aí a universidade por ter “efeitos predominantemente ideológicos” (MOTTA, 1986, p. 87). Isso é importante pois parte daquela teoria das organizações é difundida a partir dessas instituições. Mas a despeito dessas questões adicionais e as problemáticas envolvidas num marxismo weberiano, o decisivo a ser retido nesse momento é que aqui explicitamente a teoria das organizações ou da administração é claramente tomada por ideologia. Diferentemente dos materiais que analisamos até agora, Organização e poder não apresenta um tratamento mais extensivo com respeito à ideologia, mas nos pontos nos quais fica mais explícita vemos que apenas relativamente o caráter falso e ocultador da ideologia é abrandado. Por exemplo, podemos ler que “No plano ideológico, na subjetividade massiva, isto é, em valores que se traduzem em formas de pensar e de agir aparentemente múltiplas, mas únicas e dominantes em essência, às quais repugna a singularidade que por todos os meios reprime”. E completou em seguida afirmando que “Essa subjetividade é imposta em bloco à sociedade através de sedutoras imagens do consumo” (MOTTA, 1986, p. 56). De modo ainda mais visível, explicou que “Enquanto ideologia de uma classe social em ascensão, porém, a teoria das organizações convencional oculta o projeto hegemônico dessa classe e nega sua própria condição de classe” (MOTTA, 1986, p 61). Por último, uma passagem modificada do artigo de 1984 em que surge afirmada uma coerência aparente, pois lemos que “A conquista ideológica dos empregados pela empesa parece basear-se no fato de que ela lhes oferece uma interpretação da realidade que parece coerente com as práticas sociais dos indivíduos” (MOTTA, 1986, p. 72, grifos nossos). Logo, ainda que Motta tenha se posicionado de uma maneira mais relativa com relação à falsidade da ideologia na abertura do livro, o desenvolvimento, no entanto, mostra a força da posição estabelecida anos antes (1979-1984). Organização e poder é reflexo dessa última posição sob influência de inúmeros outros autores reflexivos-resignados (como Weber, Morgan...) e críticos-radicais (João Bernardo, Poulantzas). Não obstante, o que se desenha é a compreensão segundo a qual, tomada a teoria da administração como ideologia, apresenta-se uma representação falsa da realidade que oculta as contradições e os interesses de classe dos quais tal teoria é expressão. Encontramos esse desenvolvimento mais acabado no material contido em Teoria das organizações: evolução e crítica. Trata-se de um estudo bastante dedicado à compreensão de que a “teoria organizacional e administrativa” não é outra coisa senão a “ideologia do poder” (MOTTA, 2001a, p. v). Nesse sentido, é o livro que, entre todos os 17

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demais, busca desenvolver mais claramente aquela posição inicial de 1979 e desdobrada em 1984-1986. Para nossos propósitos bastam algumas indicações que situam a administração como ideologia na relação com as relações materiais. Motta procura fazer uma análise que segue de maneira mais ou menos próxima o desenvolvimento e certa divisão do pensamento sobre a administração que encontramos entre os próprios representantes de tal pensamento. Não obstante o fato de guardar considerações específicas, nossa intenção aqui não poderia ser outra senão a de capturar os traços gerais sem entrar em pormenores em cada uma das correntes investigadas por Motta. Em termos gerais, portanto, é possível reter o caráter ocultador da teoria das organizações em sua relação com a produção capitalista: Enquanto a produção da mais-valia absoluta gira exclusivamente em torno da duração diária do trabalho, a produção da mais-valia relativa pressupõe uma revolução nas técnicas de racionalização do trabalho. Estão, assim, demostradas as condições que levam ao antagonismo entre capital e trabalho, diretamente; e ao binômio direção-execução, de forma menos direta, que toda teoria das organizações procura ocultar (MOTTA, 2001a, p. 61-62). O ponto gravitacional da teoria organizacional e administrativa é o antagonismo fundamental que ela própria, como ideologia, procura ocultar. Seguindo as análises de João Bernardo sobre os ciclos da produção capitalista, Motta escreveu que “tais ciclos de mais-valia relativa implicam uma instrumentalização técnica e administrativa” e também “implicam inovação administrativa”. Disso resulta que “as teorias organizacionais, que surgem cada vez mais rapidamente, visam promover a inovação e, ao mesmo tempo, legitimá-la socialmente” (MOTTA, 2001a, p. 109). Essas afirmações ecoam uma determinação anterior segundo a qual “é enquanto lógica da dominação que a teoria das organizações mascara o poder e o substrato econômico das relações de poder. Assim, as ideias oferecem elaboradas justificações das ações, sem referência aos dados da realidade que se propõem informar” (MOTTA, 2001a, p. 103). Conclusivamente, existe uma relação entre o estágio da produção capitalista e o reflexo teórico. Por isso, lemos que: a organização da manufatura difere da organização da indústria, e a organização da mecanização difere da organização da automação. Essas diferenças refletem-se na teoria das organizações sempre no sentido de naturalização do poder tecnoburocrático e de sua forma de organização. Em larga medida, enquanto ideologia do poder, a teoria das organizações não só oculta o próprio poder e as contradições que lhe são inerentes, mas também é a forma pela qual a tecnoburocracia vê a organização, base última de seu poder (MOTTA, 2001a, p. 113). Destacados os momentos mais gerais, ficam plenamente compreensíveis algumas indicações que Motta explicitou ao longo do material em questão. Por exemplo, ao explicar que “o taylorismo corresponde, dessa forma, ao auge da ideologia do progresso” (MOTTA, 2001a, p. 66); que “Mayo é, por definição, o ideólogo da cooperação” (MOTTA, 18

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2001a, p. 77), deixando registrado que “a ‘ciência’ de relações humanas resultante é uma justificação ideológica da estrutura institucional vigente que protege, na medida em que desvia a atenção para os problemas de ajustamento dos indivíduos”. E completou em seguida: “O movimento de relações humanas e as ideias de Elton Mayo, em particular, se inserem assim, totalmente, na ideologia burocrática” (MOTTA, 2001a, p. 78). Outros exemplos são elucidativos, como o de Etzioni e seu estruturalismo. Escreveu Motta que “Etzioni é fundamentalmente um estudioso de métodos políticos, em nível organizacional, da antecipação e da administração do conflito” (MOTTA, 2001a, p. 83). Escreveu também, noutra direção, que “é na corrente do desenvolvimento organizacional que encontramos de forma mais explícita o ‘dirigismo sistêmico’. Aqui, todo o conhecimento organizacional, fundamentalmente de base sociopsicológica, é colocado a serviço do controle social e do produtivismo” (MOTTA, 2001a, p. 92). Um último exemplo é importante, pois mostra um ponto que precisa ser tomado adiante. Explicou Motta, com respeito à chamada abordagem sistêmica que, “em nível ideológico, as duas coisas são ocultadas, isto é, oculta-se a manutenção de um mesmo sistema valorizando-se a mudança, e oculta-se sua reprodução ampliada valorizando-se a estabilidade” (MOTTA, 2001a, p. 85). Ou ainda: “A operação lógica, que preside essa falsificação, está presente, mais clara do que nunca, na noção de homeostase ou equilíbrio dinâmico” e que “é através dessas imagens que a ideologia invade as consciências, modelando-as” (MOTTA, 2001a, p. 85). Conclusivamente, explica Motta que, “na visão sistêmica, a dominação é escamoteada na ideia de integração” (MOTTA, 2001a, p. 88). E o arremate: “A teoria das organizações reflete, talvez mais do que qualquer outra, essa questão da preocupação com a integração numa sociedade diferenciada e os esforços de controle social na ação coletiva” (MOTTA, 2001a, p. 93). Esses exemplos insinuam a relação de reflexo da teoria com relação às relações concretas, mas também a influência dessas mesmas teorias na prática concreta da produção capitalista. A mediação central, retomando os aparelhos ideológicos, parece ser a escola e a universidade. Ambas simultaneamente formam “os espíritos necessários à reprodução do sistema, seja como dominados seja como dominadores” e a própria universidade se confirma como sintetizadora das “ideias legitimadoras da ordem estabelecida”, funcionando como “fábrica de ideologias” (MOTTA, 2001a, p. 104). Com esses elementos abarcamos os pontos decisivos das contribuições da crítica de Motta à administração como ideologia. Numa síntese aproximada, podemos dizer que, para nosso autor, a teoria da administração (tomada de maneira homogênea e não necessariamente como tal) é ideologia na medida em que é uma representação falsa da realidade que oculta o antagonismo básico do modo de produção e os interesses de classe dos quais tal teoria é expressão. Ela busca legitimar socialmente as novas práticas surgidas nos estágios determinados do desenvolvimento do capitalismo, confirmando-se como lógica da dominação que mascara o substrato econômico das relações de poder. E tanto a empresa quanto a universidade são os aparelhos fundamentais da criação e transmissão dessa ideologia burocrática (ou administrativa). É importante registrar os percalços que surgem nesse movimento que Motta desenvolve de 1979 a 2001. Entre os pontos importantes, podemos destacar apenas alguns mais centrais ao nosso propósito. Todos eles podem ser mais ou menos resumidos às insuficiências inerentes da discussão sobre ideologia a partir das influências disponíveis nos anos de 1970 e 1980: o relacionamento mais ou menos automático entre relações 19

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concretas e suas formas ideológicas em que as últimas funcionam unilateralmente como falseamento da realidade. Tratando-se especificamente das teorias da administração – considerada sempre de modo homogeneizado –, o resultado é uma desfiguração relativa do movimento efetivo. Tanto a pesquisa histórica mais apurada quanto a análise imanente dos “objetos ideológicos” podem proporcionar uma reta apreensão do movimento real dessas formas, isto é, de explicitação das contradições naquilo que oculta e de ocultamento, naquilo que explicita, no complexo e desigual desenvolvimento das reciprocidades com as forças de ordem primária. 4. Síntese analítica para novas questões Nossa principal conclusão diz respeito à decisiva fonte de influência que foi possível identificar. O estruturalismo francês, particularmente o tratamento dado por Althusser à ideologia, deixou marcas na crítica marxista da administração. Se em Tragtenberg há um modo não explícito e impreciso dessas marcas em comunhão com elementos da sociologia do conhecimento, em Motta é possível identifica-las ainda que persista alguma variação ao longo de seu itinerário intelectual. A questão que precisa ser colocada em primeiro plano reflete as possíveis insuficiências analíticas da identidade entre ideologia e falsidade desenvolvida de modo homogeneizante com relação às teorias da administração. Disso decorrem algumas questões. A primeira é o fato de que tanto Tragtenberg quanto Motta não terem ido adiante no Prefácio de 1859 em que surgem indicados por Marx mesmo elementos importantes para uma justa apreensão do problema, como vimos na parte introdutória dessa exposição. Isso resultou numa tomada da ideologia apenas como representação falsa e ocultamento, seguindo as influências advindas do estruturalismo francês. Esse aspecto da ideologia, que não se resume ao falseamento, não era um inteiro não sabido particularmente para Motta (2001a, p. 106), mas é curioso que tenha se aproximado da questão – embora não a tenha desenvolvido – por meio de João Bernardo e não de Marx mesmo do Prefácio; seu autêntico ponto de partida em 1979. Terminou ignorando, assim como Tragtenberg, que são “formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim” (MARX, 1974, p. 136), como se lê na continuidade não considerada do Prefácio. Quer dizer, as formas ideais não estão destinadas a fatalmente falsear ou ocultar a realidade, de modo que a resolução das contradições sociais tem, portanto, mediação nas próprias formas ideológicas. Isso significa dizer igualmente que o que determina uma ideologia não é sua falsidade ou verdade, mas a função específica que desempenha, e se desempenha, na materialidade da vida social. O próprio marxismo, por exemplo, é uma ideologia proletária, mas ideologia que se quer científica. Por princípio, não há qualquer impedimento entre interesse e verdade, entre ideologia e ciência. Uma questão que pode ser imediatamente posta é a seguinte: qual é a medida do falseamento promovido pela teoria da administração? Há homogeneidade suficiente para impedir qualquer reflexo autêntico da realidade? É importante explorar essa hipótese futuramente, pois nos parece que Motta não tratou com suficiente detalhe o pensamento administrativo para lançar luz sobre o caráter mais complexo dessas 20

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formações ideais. O mesmo também poderia ser dito de Tragtenberg, pois igualmente não teve condições de evidenciar as possibilidades e os limites do impulso de verdade contido na heterogeneidade das teorias da administração. Algumas formulações históricas da administração, na verdade, incorporaram, em modos complexos de recepção, elementos do próprio marxismo, a despeito das direções, razões e qualidades dessa recepção. Puderam, inclusive, refletir – de modos adversos, no entanto – até mesmo processos alienantes ou o caráter ineliminável do conflito entre capital e trabalho por meio de medidas administrativas (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2014). Essa questão implica outra anterior e ainda mais significativa: todo reflexo ideal é imediatamente ideologia? É preciso distinguir, no conjunto articulado da superestrutura idealista, as formações ideais que funcionam como ideologia das que desempenham papéis outros. Como os autores brasileiros sob análise tendem a tratar como identidade, isto é, toda forma ideal é necessariamente ideologia, terminam por colocar peso demasiado em todas as teorizações que a administração foi capaz de desenvolver no século XX e com frequência atribuem a todas elas efeitos práticos na realidade concreta dos homens. Fazer essa distinção significa dizer que no conjunto das teorias desenvolvidas, algumas funcionam como ideologia em razão de circunstâncias sociais complexas, mas nem todas as expressões ideais dos interesses das classes dominantes operam automaticamente como ideologia. Por isso é preciso considerar que enquanto determinadas teorias, como o taylorismo, tiveram atuação indubitável no conflito social ao dar direção ao menos alegadamente resolutiva pela via salarial, outras, como o debate de Etzioni, não parecem ter deixado o plano dos ideólogos acadêmicos do capital, incorporando sincreticamente as reivindicações trabalhistas na célebre fórmula abstrata de se construir “organizações” com a maior eficiência e com a menor frustração possíveis (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2014). Isso implica um terceiro ponto também importante: a relação entre relações e interesses materiais e as suas formas ideais e ideológicas. O movimento que ambos os autores foram capazes de expressar comporta limites dado que ligaram de modo homogêneo e abstrato as teorizações com momentos mais ou menos determinados do estágio do capitalismo. Apenas de modo muito geral e automático fizeram corresponder tais teorias com os ciclos e momentos determinados da produção capitalista. Os limites também aparecem no movimento oposto, por assim dizer, pois guardaram, em graus diferentes, a universidade como mediação entre as ideologias e a prática efetiva sem desenvolver este aspecto. A tendência muito mais presente nos autores em questão, a despeito das diferenças, foi a de considerar que o desenvolvimento das teorizações coincidia imediatamente com a aplicação no interior da vida produtiva. Consideramos que faltaram mediações históricas nessa reciprocidade. É preciso, nesse sentido, ter claro que o movimento real é mais complexo, pois comporta graus variados de descompasso entre os interesses e relações materiais e as formações ideais derivadas e incidentes, o que garante a possibilidade do sincretismo – da conciliação do inconciliável – e de serem refletidos nessas formas certos traços da realidade mesma que contradizem relativamente os interesses da própria classe dominante. Consideremos, à guisa de exemplo, a afirmação de Fayol segundo a qual “a ideia de fazer os operários participarem dos lucros é muito sedutora. Parece que é daí que surgirá o acordo entre o capital e o trabalho. Mas a fórmula prática desse acordo não foi ainda encontrada. /.../ pode-se concluir, destarte, imediatamente, que o problema é difícil, se não impossível” (Fayol, 1964, p. 43; 1931, p. 41). Há, portanto, abertura para um reflexo correto da realidade e 21

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mesmo para alguma tensão entre os homens práticos e seus ideólogos – ou, como no caso de Fayol, em que o homme des affair é imediatamente ideólogo. Do lado dos efeitos ativos da ideologia sobre a vida prática, parece-nos que os autores da crítica marxista da administração analisados estabeleceram uma identidade entre a aparência imediata da realidade concreta da vida produtiva e os efeitos das ideologias por eles criticadas. Em outras palavras, não encontramos elementos que sustentem os alegados efeitos sobre a vida produtiva de todas as teorias consideradas ideologia. Além do mais, o movimento real só pode ser melhor expressado pela distinção já sugerida entre formas ideais e as formas ideias que são convertidas em ideologia. Por fim, se os clássicos da crítica marxista da administração puderam “desvendar ideologias”, para usar uma expressão de Motta (2001b), é preciso avançar nessas questões tendo por condição a elaboração e também os próprios limites dessa crítica formulada nos anos de 1970 e 1980 sob a influência althusseriana. Recolocar o problema da ideologia a partir de Marx mesmo também é condição para uma apreensão acertada, não só da função efetivamente desempenhada por algumas formas ideais da administração tornadas ideologias, mas também suas conexões com as forças motrizes de ordem primária, inclusive no ordenamento social particular como o Brasil. É preciso trazer a história para a crítica marxista da administração como ideologia. Referências ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Presença, 1974. CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978. FARIA, J.H. de. O poder na obra de Fernando Prestes Motta. Eccos Revista Científica, v. 5, n. 1, jun., 2003. FARIA, J. H. Burocracia, poder e ideologia: a antevisão da empresa contemporânea em Tragtenberg. In: Valverde, Antonio J. R. (Org.). Maurício Tragtenberg: 10 de encantamento. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2011. FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. Burocracia como organização, poder e controle. RAERevista de Administração de Empresas, 51(5), 2011, p. 424-439. FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964. FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931. LUKÁCS, G. El asalto a la razon. 3ª ed. Barcelona: Grijalbo, 1972. MARX, K. Prefácio. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos. São Paulo: Abril, 1974. MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. MOTTA, Fernando C. P. As empresas e a transmissão da ideologia. Rio de Janeiro, Revista de Administração de Empresas, 24(3): 19-24 jul./set. 1984. MOTTA, Fernando C. P. Empresários e hegemonia política. São Paulo: Brasiliense, 1979. MOTTA, Fernando C. P. Teoria das organizações: evolução e crítica. 2ª ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001a. MOTTA, Fernando C. P. Maurício Tragtenberg: Desvendando Ideologias. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 41. n. 3, jul/set, 2001b. MOTTA, Fernando C.P. Organização e poder: Empresa, Estado e Escola. São Paulo: Atlas, 1986.

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