A ideologia real no tempo das pirâmides: o planalto de Guiza e a sua concepção religiosa

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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

A ideologia real no tempo das pirâmides: o planalto de Guiza e a sua concepção religiosa

Eugénio José Castro Giesta

Trabalho de Projecto Seminário de História Comparada das Religiões pré-Clássicas Mestrado em História Antiga 2015

Conteúdo Introdução................................................................................................................................... 1 1) A realeza: o homem e o divino ........................................................................................... 3 2) A casa real da eternidade: Guiza ......................................................................................... 6 Khufu ...................................................................................................................................... 6 Khafré ..................................................................................................................................... 9 Menkauré .............................................................................................................................. 10 Conclusão ................................................................................................................................. 13 Banco de imagens..................................................................................................................... 15 Bibliografia............................................................................................................................... 20 Obras ..................................................................................................................................... 20 Imagens ................................................................................................................................. 20

Introdução O Império Antigo é conhecido como a época das pirâmides, mas este epíteto é, por si só, bastante redutor. É aqui que se consumam ideologias que vêm de tempos recuados, nomeadamente a ideologia real e o carácter divino da monarquia egípcia. Porém, se em pleno século XXI campos como a monarquia e a religião se afiguram díspares entre si, à época entrelaçavam-se e conjugavam-se para demonstrar a força e a divinização de um rei, bem como os recursos, materiais e humanos, de que dispunha. Como nos diz Richard Wilkinson: «nowhere in the ancient world was the ideology of kingship more highly developed than in Egypt; and perhaps nowhere in human history was it more deeply intertwined with religious beliefs».1 Para além disso, há a questão premente da morte. Há, hoje em dia, a ideia préconcebida de que os egípcios eram obcecados com a morte, concepção baseada nos vestígios arqueológicos existentes. Para desconstruir esta ideia há que ter a noção de que os edifícios relacionados com a morte (como túmulos, templos, pirâmides ou hipogeus) foram construídos em pedra, duradoura, contrariamente aos edifícios, diga-se, “da vida”, feitos em adobe, perecíveis. Os egípcios sabiam que a arquitectura funerária teria de ser eterna, de forma a manter o defunto vivo no Além e assim o fizeram. Para o Império Antigo, essa época dourada das construções piramidais, que na sua essência são túmulos, as ideologias reais e religiosas são evidenciadas no tipo de construção funerária, quando estes começam a evoluir para estruturas cada vez mais complexas e mais decoradas, começando a evidenciar, em primeiro lugar para tempos mais recuados, uma complexificação social e elitista, e, em segundo lugar, o crescente poder real que atingirá o seu zénite na IV dinastia. A justificação da monarquia divina acabará por culminar em construções funerárias em altura, uma tentativa de aproximação ao sol, ao deus solar e é inegável o contributo de faraós como Djoser e Seneferu. Porém, o planalto de Guiza e a sua necrópole reúnem em si uma série de atributos que fazem dela única e paradigmática na monumentalidade do Egipto faraónico. Para além do papel do próprio complexo funerário é necessário ter em consideração o próprio papel da pirâmide que mais que um túmulo «era uma emanação do faraó, que assinalava, a uma escala cósmica, a sua transformação numa entidade que assegurava a ligação entre o mundo terreno e a Duat». 2

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Vide Richard H. Wilkinson, The complete temples of Ancient Egypt, p. 86. Vide Rogério Sousa, Em busca da imortalidade no Antigo Egipto, p. 113.

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Pretende-se com o presente estudo perceber o tipo de ideologia veiculada na época das pirâmides e perceber de que forma ela contribuiu para a construção da necrópole em Guiza. A divisão é essencialmente feita em duas partes: uma primeira relativa à monarquia e às suas características divinas/religiosas e uma segunda parte dedicada à necrópole em Guiza, tendo em conta os seus aspectos formais de construção (uma descrição do complexo por assim dizer) e as suas características religiosas. Uma vez que o objectivo é estudar a relação da arquitectura funerária de Guiza com as concepções da monarquia e da religião, não serão referidas ideias, monarcas ou túmulos posteriores a não ser que necessário, sem entrar em detalhes desviantes do assunto principal. Por essa mesma razão textos importantes como os Textos das Pirâmides ficarão à margem. As medidas utilizadas são baseadas nos autores que as apresentam e, por isso, serão sempre referenciadas para as obras de onde serão vistas. Analogamente, quaisquer datas ou cronologias serão sempre reportadas aos autores e obras que as apresentam.

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1) A realeza: o homem e o divino «For a modern mind, especially one that no longer knows profound religious experience and deep faith, it is not easy to understand the reasons for such huge and seemingly wasteful projects as the building of pyramids». 3 As pirâmides do Império Antigo reflectem uma época, uma sociedade e um poder real bastante específico. Como Alan Lloyd coloca a questão, o Império Antigo foi um tempo quando um forte poder monárquico, paternalista e divino na sua essência, reinou sobre um território cujos recursos eram canalizados para a manutenção do palácio real, para o desenvolvimento da administração e para a execução de projectos arquitectónicos ambiciosos.4 O monarca era visto como um rei divino, um deus que servia de intermediário entre os deuses egípcios e os homens, «which is demonstrated by the (...) royal titulary, the phraseology used for the king and the iconographic programme of royal funerary complexes». 5 A titulatura reflecte-se no seu nome de Hórus, identificando-se assim o rei egípcio com o deus falcão, ao qual se associa o epíteto de “grande deus” a partir da IV dinastia. A partir da III dinastia aparecem expressões artísticas onde o monarca é colocado ao lado do deus Hórus em posições de intimidade, similares às representações de casais, irmãos ou de pais e filhos. Daqui em diante a monarquia é “abençoada” pelo deus falcão, o monarca é visto como a incarnação do filho de Osíris6 e o rei egípcio, «identificado como Hórus, actualizava continuamente o velho mito da criação e justificava a sua acção política no quadro da reposição da ordem cósmica, a maet, a noção egípcia que evocava a pureza da ordem cósmica no momento inaugural da origem do mundo».7 Como Wilkinson coloca a questão, «as a veritable son of god the Egyptian pharaoh functioned as a bridge between perceived and believed reality – positioned between gods and mortals, he acted on behalf of the gods to his people and on behalf of the people to the gods themselves». 8 O rei tem o papel de fazer cumprir a maet no país, impedindo que a isefet, conceito antagónico da maet, se instalasse. Apesar do afastamento da isefet ser um exercício social conjunto, era o rei quem estava à cabeça, era ele o intermediário entre o divino e o humano. A manutenção da maet «garantia a conservação de um elo entre os três planos da mundividência egípcia: o céu, onde habitavam

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Vide Ian Shaw, The Oxford history of Ancient Egypt, p. 92. Vide Alan B. Lloyd, A companion to Ancient Egypt, p. 63. 5 Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 63-4. 6 Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 64. 7 Vide, Rogério Sousa, op. cit., p. 26. 8 Vide Richard H. Wilkinson, The complete temples…, p. 86. 4

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os deuses celestes; a terra, onde se desenrolava a vida humana; e o mundo inferior, o domínio de Osíris, dos defuntos e das divindades ctónicas».9 A titulatura real reflecte-se, também, no seu nome nebty, relacionando-o com as suas deusas tutelares. A partir de Khafré, um dos nomes reais era introduzido por “filho de Ré”, aproximando ainda mais a realeza à divindade solar e à cosmogonia heliopolitana10, pois se «os egípcios viam no percurso solar a imagem do mundo em perpétua renovação»11 e se o rei era filho de Ré, este era imbuído da responsabilidade do deus sol: fazer o astro solar ser bem sucedido na sua jornada nocturna para se erguer, de manhã, nas Duas Terras, permitindo a vida e a perpetuação da maet. Mais ainda, a personificação do conceito maetiano, a deusa Maet era filha de Ré, criando-se assim uma relação familiar entre ela e o rei, vincando ainda mais a necessidade do rei de fazer cumprir o conceito que representava a sua irmã divina. 12 Uma representação que é mais tardia mas cujo conceito poderá remontar ao Império Antigo é o monarca a oferecer a Maet aos deuses egípcios. Esta oferta poderá ser entendida como a oferta suprema na qual todas as outras estão subsumidas. O epíteto da deusa Maet como “o alimento dos deuses” parece veicular a ideia de oferta: o rei oferece a Maet aos deuses da mesma forma que os seus súbditos lhe farão ofertas no âmbito do culto funerário. Wilkinson deixa claro que «The ritual presentation of Maat therefore highlights the king’s role in the service of the gods. Not only did the king’s offerins supply the needs of the gods, but also from the Egyptian perspective through the offering of Maat he also renewed and strenghtened the underlying fabric of the universe itself».13 Desta forma, «o faraó incarnava um modelo ético e espiritual que constituía o horizonte supremo de perfeição humana»14, o que levará a que no Império Médio se associe o monarca egípcio com a figura do bom pastor, aquele que vela pelo seu rebanho e luta pelo seu bem-estar. Como escreve Shaw: «for the people of Egypt, their king was a guarantor of the continued orderly running of their world: the regular change of the seasons, the return of the annual inundation of the Nile, and the predictable movements of the heavenly bodies, but also safety from the threatening forces of nature as well as enemies outside Egypt’s borders. The king’s efficacy in fulfilling these

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Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 31. Vide Ian Shaw, op. cit., p. 92. 11 Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 27. 12 Vide Richard H. Wilkinson, The complete temples…, p. 88. 13 Vide ibidem, p. 89. 14 Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 35. 10

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responsibilities was therefore of paramount importance for the well-being of every Egyptian».15 A ideologia real do Império Antigo estava intrinsecamente ligada ao mito Osírico e ao ciclo solar, completando-se de certa forma. O mito da morte de Osíris às mãos do irmão e a subsequente mumificação e ressurreição deu aos egípcios a esperança de que poderiam fazer o mesmo. As viagens de Ísis e Hórus e a protecção destemida de uma mãe para com o filho forneceu um modelo para a protecção do Egipto pelo próprio rei. A natureza cíclica do mundo e a constante ameaça do caos estava presente no mito solar: «his journey in the day to provide light and air to all people, his setting in the west during the night where he would wage battle with chaos, and his regular reappearance once again in the morning».16 Além disso, no ponto crucial da noite, Ré, envelhecido, fundia-se com Osíris, «a syncretism that sparked the rebirth of the sun-god in a rejuvenated youthful state».17 Porém, o papel de um rei egípcio não terminava aquando da sua morte já que se em vida era Hórus, na morte tornava-se Osíris uma vez que «the role of kingship fitted the Osiride mythology particularly well». 18 Metaforicamente, ao tornar-se Osíris, o rei tornava-se governante da Duat, trocando de domínio, passando de governar os vivos para governar os mortos, o perpetuar de uma monarquia que, no imaginário egípcio, se tornaria imortal. Neste ponto da história do Antigo Egipto, a melhor forma de demonstrar a validade dos conceitos e ideologias reais ligadas ao sagrado e ao divino era através da monumentalidade e, coincidentalmente, o Egipto atravessava uma fase próspera e propícia a isso, com uma economia forte, disponibilidade de recursos naturais e humanos e uma máquina administrativa capaz, permitindo aos monarcas do Império Antigo a construção de monumentos colossais em pedra, do qual as pirâmides são um símbolo, de forma a tornaremse a sua última morada, o local onde iriam repousar para a eternidade.19

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Vide Ian Shaw, op. cit., p. 92. Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 508. 17 Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 525. 18 Vide Richard H. Wilkinson, The complete gods and goddesses of Ancient Egypt, p. 62. 19 Vide Ian Shaw, op. cit., p. 92-3. 16

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2) A casa real da eternidade: Guiza As concepções religiosas e funerárias do Império Antigo levaram à complexificação da arquitectura funerária, crescendo em altura e em colossalidade. Desde os túmulos prédinásticos que se observa um crescendo, passando pelas mastabas das primeiras dinastias até à pirâmide escalonada de Djoser. A partir daqui os egípcios irão aperfeiçoar as técnicas de construção, dando-se um grande salto no reinado de Seneferu, que mandou erigir três pirâmides. Na verdade, no sentido geométrico, apenas uma, em Dahchur, se pode considerar uma pirâmide, tendo as outras servido como esboço, um prelúdio do que aí viria. É o sucessor deste rei quem irá consumar e levar ao extremo a construção piramidal e durante três gerações o complexo de Guiza acabará por ser construído, tornando-se o símbolo por excelência das Duas Terras. O planalto de Guiza transformar-se-à não apenas numa necrópole, mas num pólo religioso. «Não nos podemos esquecer que a pirâmide, que deriva do simbolismo da colina primordial (...) apresenta um simbolismo simultaneamente ctónico e solar, uma vez que do mesmo modo como imita um raio de luz que desce do céu para a terra, a pirâmide constitui também uma elevação da terra para o céu». 20 Seria aqui, na sua última morada que o faraó como Osíris, velaria pela sua terra e seria também aqui que se elevaria para o céu de forma a tornar-se num ser cósmico luminoso, um duplo destino que poderá ser visto na posição da entrada da pirâmide: sempre a norte, de forma a direccionar o rei para as estrelas Imperecíveis. Rogério Sousa reforça esta ideia, afirmando que a pirâmide «constituía, ela própria, o novo corpo de eternidade do próprio faraó e manifestava-o num plano que já não era humano mas inteiramente cósmico»21, afirmando mesmo que a pirâmide passava a estar inserida na paisagem egípcia como «uma entidade viva».

Khufu «Quando o filho de Seneferu [Khufu] (...) subiu ao trono e ordenou desde logo a construção da sua casa da eternidade, tinha ao seu dispor um numeroso e bem adestrado corpo de trabalhadores da pedra, de capatazes e, sobretudo, de experimentados arquitectos. O nome do monarca ficou famoso (...) tendo no seu longo reinado sido traduzido liticamente no planalto de Guiza o corolário de todos os conhecimentos adquiridos e acumulados no domínio da construção piramidal».22 É de facto notório como foi possível em apenas uma geração passar de tentativas e erros para um sucesso estrondoso. É certo que Seneferu construíu a primeira pirâmide “verdadeira”, a pirâmide vermelha, mas é também certo que o seu 20

Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 112-3. Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 113. 22 Vide Luís Manuel de Araújo, As pirâmides do Império Antigo, p. 81. 21

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pyramidion foi feito num ângulo ligeiramente diferente do resto da pirâmide, o que a torna, desta forma, quase perfeita. Como coloca Mark Lehner «At Giza the pyramid reached its apogee and the standard features of the Old Kingdom pyramid complex – the mortuary and the valley temple – were expanded and formalized». 23 É também em Guiza que as expressões religiosas são levadas ao extremo, notório na planificação cuidada do complexo funerário. «A sua pirâmide [de Khufu] (...) é notável não apenas pelas suas medidas impressionantes (originalmente ela quase atingia os 147 metros) e o rigor “astronómico” da sua implantação (as quatro faces estão orientadas para os quatro pontos cardeais com uma precisão que é quase perfeita), mas também pela sua original estrutura interna e a distribuição dos espaços que aí se detecta».24 O facto de os túneis de ventilação estarem alinhados com as estrelas de Oríon (a sul) e as estrelas Imperecíveis (a norte) favorecia «o renascimento cíclico do faraó através da sua associação ao poder regenerador da cheia bem como a sua manifestação perena como uma estrela imortal».25 Os lados oeste das pirâmides de Khufu e Khafré estão quase alinhados com o frontspício dos respectivos templos; o lado sul da pirâmide de Khafré alinha-se com o lado sul do templo associado à esfinge; como demonstra Lehner, uma linha recta pode ser traçada ao unir-se os vértices sul de cada uma das três pirâmides reais, evidenciando o seu alinhamento e o planeamento prévio e cuidado feito por cada monarca. Como afirmado por Rogério Sousa, também se observa um pendor no culto solar, «acentuado através do alinhamento dos elementos do complexo funerário real através de um eixo este-oeste. (...) O posicionamento da pirâmide no extremo ocidental do eixo solar conferia-lhe uma identificação mais óbvia com o percurso do deus Sol. O que este alinhamento pressupunha era também a importância crescente que o culto solar desempenhava no âmbito do culto funerário real e a transformação na própria forma de conceber a imortalidade do faraó que desse modo se confundia com a noção cíclica do percurso solar». 26 Por oposição ao complexo de Djoser, que continha uma configuração estática, a estrutura de Guiza apresenta uma mais dinâmica, «formulada como um percurso».27 Os templos do complexo de Guiza foram aumentados comparativamente aos templos dos complexos de Seneferu, sendo maiores, melhor construídos e com maior uso de pedra,

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Vide Mark Lehner, The complete pyramids, p. 107. Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 81. 25 Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 113. 26 Vide ibidem, p. 109. 27 Vide ibidem, p. 109. 24

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pilares e estátuas. Os passadiços que vão desde as pirâmides até aos templos são consideravelmente maiores, estendendo-se quase um quilómetro para este, sendo o maior o de Khufu. Este passadiço não tem apenas uma função prática, estando imbuído de um grande simbolismo, já que era através dele que «o faraó procedia a uma “ascensão” que rumava literalmente ao Ocidente, num percurso que procurava integrar o faraó no circuito solar, levando-o do mundo dos vivos ao mundo dos mortos e, dessa forma, ao reino de Osíris»28 «Tão impressionante como a própria pirâmide seria o templo funerário anexo e a grande calçada lajeada que levava até ao templo de acolhimento situado junto ao início da zona desértica, onde então existia um pequeno porto ligado a um canal». 29 Este templo, também conhecido como templo do vale, era o local onde se realizavam uma parte das cerimónias relacionadas com o culto real. O porto a que estava ligado tinha uma função de ancoradouro das barcas precessionais, parecendo «perpetuar a função das “fortalezas dos deuses” tinitas, proporcionando um espaço para a reunião do faraó com os deuses do Egipto que aí chegavam nas suas barcas para se associarem aos festivais reais». 30 Os cemitérios de mastabas a este e a oeste da Grande pirâmide estão organizados ortogonalmente, como uma verdadeira cidade dos mortos, com as suas casas de eternidade dispostas em ruas e avenidas. «Over the course of three generations builders continued to position major architectural elements at Giza».31 A este da pirâmide Khufu mandou fazer valas em formato de barco, dando uma aparência de «a royal port authority or docking place on the journey from this world to the Netherworld».32 A sul, há mais duas valas, desta vez com partes de barcos desmontados verdadeiros. Estes barcos parecem estar ligados à última viagem terrena de Khufu: para a sua pirâmide.33 A pirâmide de Khufu representa um novo passo em frente, devido ao seu tamanho, «the technical accomplishment of its construction, the great concern for cardinality and the organization it represents».34 Contém cerca de 2 300 000 blocos de pedra e o complexo a si associado, que envolve a pirâmide, as pirâmides das rainhas, as pirâmides satélites, templos e mastabas compreende cerca de 2 700 000 m³ de pedra. Como deixa claro Lehner, se é verdade que Khufu não ultrapassou o pai em termos de volumetria de pedra utilizada, esteve bastante 28

Vide ibidem, p. 110-1. Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 82. 30 Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 109. 31 Vide Mark Lehner, op. cit., p. 107. 32 Vide ibidem, p. 118. 33 Vide ibidem, p. 119. 34 Vide ibidem, p. 108. 29

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perto. Para além do tamanho colossal do monumento central, quase 147 metros, a construção impressiona pela precisão e isso é notório, a título de exemplo. na base da pirâmide, que é um quadrilátero quase perfeito, com cerca de 230 metros de lado. Os desvios das faces relativamente aos pontos cardeais são também mínimos, assim como as medidas dos quatro ângulos. Uma grande diferença residente nesta pirâmide é o facto de a câmara funerária se situar no interior da pirâmide, acima do nível do solo, isto após duas tentativas falhadas, abaixo dela. «Estas decisões arquitectónicas quanto à posição da câmara real parecem demonstrar que não existia um plano prévio de carácter definitivo, executando os arquitectos as necessárias alterações e adaptações durante os trabalhos de construção». 35

Khafré «Um segundo filho de Khufu chamado Khafré (...) regressou ao planalto de Guiza para aí edificar, junto de seu pai, aquela que é a segunda pirâmide do local. (...) A grande diferença consiste nas soluções internas, com a câmara real colocada praticamente ao nível do solo, e, junto ao templo de acolhimento no vale, o aproveitamento de um grande esporão rochoso para nele se esculpir a célebre Esfinge». 36 Khafré conseguiu erigir uma pirâmide quadrangular com 215 metros de lado e 143,5 metros de altura. Por ter sido construída sobre uma plataforma de 10 metros, cria a ilusão de ser maior que a de Khufu. O seu ângulo interno é um pouco maior que a do seu pai e, por isso, «a very slight twist can be discerned at the top, introduced because the four corner angles were not quite aligned correctly to meet at the apex».37 Lehner afirma que o templo mortuário de Khafré consiste num avanço arquitectónico notável em relação ao anterior, já que é maior e engloba os cinco elementos que se tornariam standard, a saber: «an entrance hall»; «a broad columned court»; «five niches for statues of the king»; «five storage chambers»; «an inner sanctuary – a pair of stelae, a false door or a combination of both».38 O templo do vale é bastante semelhante ao de Khufu, o que para Lehner não é surpresa, já que «as a gateway or portal to the whole complex, it more or less encapsulates, within a single temple, the architectural pattern of an entrance». 39 Era ladeado por estátuas e a decoração interior também as continha, numa espécie de circuito cósmico, onde esculturas de Khafré assentavam em nichos nas paredes, num caminho que dava para para o telhado do templo que tinha um pequeno pátio., que Lehner classifica como sendo 35

Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 81. Vide ibidem, p. 82. 37 Vide Mark Lehner, op. cit., p. 122. 38 Vide ibidem, p. 125. 39 Vide ibidem, p. 124. 36

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aberto ao sol, enquanto as câmaras inferiores se relacionam com um aspecto ctónico do templo. Este circuito processional de estátuas percorre todo o templo, «taking both the chtonic and the solar aspects of afterlife beliefs and of the embalming ritual, for which the valley temple was the stage according to some Egyptologists».40 Rogério Sousa completa, afirmando que este caminho de estátuas em conjunto com as colunas austeras que se integravam na decoração, «parecia assim vocacionado para evocar, ao jeito de um memorial, a manifestação que o faraó tivera em vida como uma incarnação viva de Hórus».41 A maior prova disso é a estátua de diorite do monarca, com Hórus, representado como falcão, à cabeça do rei, as asas envolvendo o seu toucado num gesto protector. No fim do passadiço da pirâmide de Khafré, foi esculpida na rocha a Esfinge, uma estátua leonina com cara humana, erguendo-se 20 metros acima do solo. O leão era um símbolo solar e também um arquétipo da realeza e, por isso, a cabeça humana num corpo de leão simboliza o poder e a energia controlados pela inteligência do rei. Associado à esfinge existe um templo que não foi terminado pelos trabalhadores de Khafré, o que leva a supor que talvez nunca tenha existido um culto activo. Tem dois santuários, um a este e outro a oeste, o que poderá simbolizar o sol nascente e o sol poente. Lehner comenta sobre a planificação da esfinge ao utilizar os equinócios como referência. De acordo com o egiptólogo, nessas duas alturas a sombra da esfinge e a sombra da pirâmide de Khafré fundem-se. «The sphynx itself, it seems, symbolized the pharaoh presenting offerings to the sun god in the court of the temple».42 Durante o solstício de verão, o sol põe-se no mesmo local do horizonte durante três dias, e nesse intervalo, para quem se coloca no templo dedicado à esfinge, o astro solar fica posicionado entre as duas pirâmides maiores em Guiza (Khufu e Khafré). Isto parece indicar uma grande planificação por parte dos arquitectos responsáveis pelo projecto de construção.

Menkauré O sucessor de Khufu, Menkauré, «ficar-se-ia por uma pirâmide comparativamente menor, evidenciando a sua estrutura vários planos de construção, e tendo a novidade de estar coberta, até razoável altura, com um revestimento de blocos de granito que não era de todo habitual».43 O tamanho desta pirâmide é, efectivamente, menor: a sua base é um rectângulo com 102,2 por 104,6 metros de lado, tendo uma altura de 65 m e um ângulo interno

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Vide ibidem, p. 126. Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 110. 42 Vide Mark Lehner, op. cit., p. 130. 43 Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 83. 41

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semelhante ao de Khufu (cerca de 51º).44 A morte de Menkauré deixou o seu complexo funerário inacabado, sendo completado, em adobe, pelo seu sucessor Chepseskaf, já que «in theory, each new sovereign should look after the burial of his predecessor, finish his tomb and his cultic installations, if necessary, and endow his cult with land, personnel, and priests».45 O facto desta pirâmide ser consideravelmente mais pequena que as outras duas poderá significar que os construtores estavam a ficar sem espaço no planalto de Guiza para levar a cabo um edifício tão grande. Porém Lehner avança com outra explicação, afirmando que Menkauré, como filho de Ré, teria de enfatizar os templos e os seus serviços como forma de prestar um culto solar mais acentuado, descurando o tamanho do seu próprio túmulo. Dentro do seu templo funerário, que originalmente terá sido planeado para ser revestido com granito, tal como a sua pirâmide, foram encontrados fragmentos de estátuas reais, incluindo partes de uma estátua colossal que seria a peça central do seu complexo funerário. Esta estátua representaria o rei a emergir pela porta falsa, um portal simbólico que daria acesso ao submundo da pirâmide. «There he received the offerings brought to him as head of his household for eternity and projected his divine force through the pyramid complex and out into the Nile Valley for the good of all Egypt». 46 Dentro do seu templo do vale foram encontradas estátuas de Menkauré, umas com a sua esposa principal, a rainha Khamerernebty II, e, no santuário central, as tríades do rei, que mostram o monarca, com a coroa do sul, ao lado da deusa Hathor e de outra divindade representativa de uma província do Egipto. Com Khufu, Khafré e Menkauré, o planalto de Guiza torna-se uma necrópole quase dinástica. «Moreover, the tombs of private people from these various reigns are assembled around the pyramid of Khufu, in three vast groups (…), articulating the importance of this sovereign through the scale of the site». 47 Esta gigantesca necrópole representa então não só os esforços de um rei em afirmar a sua posição divina, garantindo ao mesmo tempo um local de repouso, mas a sua articulação com os seus oficiais e com toda a população já que «a unidade da nação em torno da realeza e do monarca divino patenteia-se bem no trabalho disciplinado e organizado de equipas enquadradas e laboriosas que se afadigam no transporte dos pesados blocos para a casa de eternidade do faraó e nos cemitérios dos funcionários, cujas mastabas se alinham em torno da pirâmide de Khufu, com o aspecto de uma impressionante e

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Vide Mark Lehner, op. cit., p. 134. Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 68. 46 Vide Mark Lehner, op. cit., 136. 47 Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 67-8. 45

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bem urbanizada cidade dos mortos acolhida à sombra protectora do seu poderoso senhor». 48 É mais uma vez a aplicação da maet à escala global, a ordem colocada sobre a população que se vê sem trabalho nos meses das cheias nilóticas e que é colocada a trabalhar para o rei, não um rei qualquer, mas um deus, levando a população a trabalhar para o bem geral pois, como dito acima, é este deus quem garante a segurança e o desenvolvimento do país. E por isso Lloyd considera que «The Khufu project on the Giza plateau is in the fullest sense Pharaonic in scale».49 No entanto é necessário não esquecer o carácter sagrado associado a este imenso conjunto de complexos funerários, bem como as próprias crenças no Além, no regresso do ka real ao mundo dos vivos. Como deixa claro Rogério Sousa, «para os deuses e para os mortos a única esperança de imortalidade residia na possibilidade de regressar periodicamente à Duat. A necrópole era, por esta razão, tida como um território fortemente sacralizado, era ta djeser, a “terra sagrada”, pois era aí que habitavam os deuses (e os mortos)».50 O propósito de uma pirâmide não terminava com as obras de construção. Cada pirâmide estava inserida num complexo funerário que era ponto nevrálgico do culto do rei nela sepultado, culto esse que, na teoria, se deveria manter indefinidamente. O monarca providenciava, em vida, o seu próprio culto, tratando das oferendas que o iriam servir na Duat. Porém, Shaw faz notar que provavelmente apenas uma pequena parte das oferendas iria parar aos altares, e mesmo essa pequena parte não seria desperdiçada, sendo, utilizando a fraseologia do autor, reciclada.51 Wilkinson afirma que o propósito do culto funerário real seria o da afirmação da divindade do monarca falecido.52 No entanto, era mais complexo ainda pois aqueles que eram sepultados perto do rei e os responsáveis pelo seu culto funerário perpetuavam uma relação e, por isso, «It was, therefore, in everybody’s interests to safeguard the king’s position and status after his death as much as in his lifetime».53

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Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 85. Vide Alan B. Lloyd, op. cit., p. 73. 50 Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 30-1. 51 Vide Ian Shaw, op. cit., p. 95. 52 Vide Richard H. Wilkinson, The complete gods…, p. 60. 53 Vide Ian Shaw, op. cit., p. 92. 49

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Conclusão A ideologia real do Império Antigo encontra-se já cimentada e definida, especialmente a associação com o ciclo osírico e com o ciclo solar. «The close relationship between the deceased king and the gods may be seen in the textual and representational evidence associated with the royal mortuary cults from early times». 54 As estátuas de Menkauré no seu templo do vale são um bom exemplo disso. A necrópole de Guiza encerra em si estas noções de realeza divina, quer pelo papel dos túmulos aí encerrados quer pela funcionalidade dos templos e das estruturas a eles associadas. Uma vez que as estruturas ligadas à pirâmide prestavam o culto do rei e eram locais onde se faziam oferendas e organizavam festivais os complexos funerários funcionavam como um relógio, onde cada peça faz movimentar o mecanismo e, por isso, é errado pensar-se sempre na pirâmide como «o seu edifício mais saliente»55, já que esta era selada após o sepultamento. Uma prova disto é o facto de em dinastias posteriores a pirâmide decrescer em tamanho e as estruturas adjacentes se tornarem mais complexas. Porém, «apesar do gigantismo destes projectos, a sua relação com o exterior era cuidadosamente delimitada pelos muros envolventes. O complexo funerário real no Império Antigo era um mundo fechado e secreto concentrado nos rituais funerários do faraó e onde cada representação, cada relevo ou estátua, estava investida de uma forte carga mágica». 56 Também convirá notar que projectos da magnitude dos de Guiza só poderiam ter sido levados a cabo por um forte poder monárquico e não é à toa que a IV dinastia é considerada como o apogeu do Império Antigo, algo que não se deve apenas às obras arquitectónicas levadas a cabo mas também ao forte poder central e administrativo. «Esse apogeu faraónico, materializado piramidalmente no planalto de Guiza, é o espelho não apenas do grande poder e da eficácia da realeza dos Hórus vivos, mas igualmente do pensar e sentir de todo um povo, numa época de notável florescimento de outras manifestações artísticas».57 É a época de reis poderosos que reuniam em si Hórus, Osíris e Ré, o que se espelha em Guiza. É, porém, o ciclo solar que começa a ganhar preponderância no Império Antigo, especialmente a partir do antecessor de Khafré, Djedefré, o primeiro a delcarar-se oficialmente filho de Ré. Por isso é seguro afirmar que «a transformação que o complexo real Vide Richard H. Wilkinson, The complete gods…, p. 60. Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 114. 56 Vide ibidem, p. 113-4. 57 Vide Luís Manuel de Araújo, op. cit., p. 83. 54 55

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sofreu no início da IV dinastia obedecia, assim, a uma formulação rigorosa e sistemática claramente estruturada a partir da noção teológica do percurso cósmico do Sol, por oposição às estruturas anteriores em que os elementos do monumento real eram dispostos de modo flexível e heterogéneo (...). Os cerimoniais reais estavam agora subordinados a uma nova interpretação da vida do faraó no Além. Num certo sentido, estas novas estruturas ocultavam a manifestação terrena do faraó para dar visibilidade à sua manifestação solar».58

58

Vide Rogério Sousa, op. cit., p. 112.

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Banco de imagens

1 - O faraó oferece a Maet.

2 - Alinhamento da necrópole de Guiza.

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3 - Pirâmide de Khufu.

4 - Cemitério a este da pirâmide de Khufu e pirâmides das rainhas.

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5 - Valas a este da pirâmide de Khufu em forma de barcos.

6 - A esfinge de Guiza a guardar a pirâmide de Khafré.

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7 - Estátua de Khafré com o deus Hórus falcão à cabeça.

8 - Pirâmide de Menkauré.

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9 - Tríade de Menkauré. Aqui o monarca encontra-se lado a lado com a deusa Hathor e uma divindade de uma província egípcia.

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Bibliografia Obras ARAÚJO, Luís Manuel de, As pirâmides do Império Antigo. 2ª ed. Lisboa: Edições Colibri, 2003. LEHNER, Mark, The complete pyramids. Londres: Thames & Hudson, 2008. LLOYD, Alan B. (ed.), A companion to Ancient Egypt. Reino Unido: Blackwell Publishing, 2010. SHAW, Ian (dir.), The Oxford history of Ancient Egypt. Oxford: Oxford University Press, 2003. SOUSA, Rogério, Em busca da imortalidade no Antigo Egipto. Viagem às origens da civilização. Lisboa: Ésquilo, 2012. WILKINSON, Richard H., The complete gods and goddesses of Ancient Egypt. Londres: Thames & Hudson, 2003. WILKINSON, Richard H., The complete temples of Ancient Egypt. Londres: Thames & Hudson, 2000.

Imagens Figura 1 – WILKINSON, Richard H., The complete temples of Ancient Egypt, Londres: Thames & Hudson, 2000, p. 89. Figura 2 – LEHNER, Mark, The complete pyramids. Londres: Thames & Hudson, 2008, p. 107 Figura 3 – Ibidem, p. 109. Figura 4 – Ibidem, p. 116. Figura 5 – Ibidem, p. 118. Figura 6 – Ibidem, p. 127. Figura 7 – Ibidem, p. 126. 20

Figura 8 – Ibidem, p. 137. Figura 9 – Ibidem, p. 136.

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