A igreja de S. Miguel (Freixo de Espada à Cinta). Crónica de uma intervenção

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A igreja de S. Miguel (Freixo de Espada à Cinta) Crónica de uma intervenção João Nisa* Tânia Falcão** Bruno M. Magalhães***

Resumo – No verão de 2014 foi necessário levantar o pavimento no interior da Igreja de S. Miguel, em Freixo de Espada à Cinta. Nesse sentido, foi necessária a abertura de sondagens arqueológicas que revelaram um pouco da história do monumento, bem como do quotidiano e das crenças religiosas desta povoação da raia transmontana, durante a Época Moderna. Neste artigo iremos enumerar os dados mais relevantes sobre a intervenção, resultantes da junção de esforços entre a Arqueologia, Antropologia e a própria História do local. Palavras-chave – Arqueologia; Antropologia; Época Moderna; Freixo de Espada à Cinta; Igreja de S. Miguel. Abstract – In the summer of 2014 an archaeological excavation was carried out inside the church of S. Miguel (Freixo de Espada à Cinta, Portugal), which revealed part of the history of the monument, as well as the daily life and religious beliefs of the population of this village situated in the interior North of the country, during the Modern period. The most relevant data about the excavation will be presented and discussed in this article, considering the Archaeology, Anthropology and History of the site. Keywords – Archaeology; Anthropology; Modern Era; Freixo de Espada à Cinta; Church of S. Miguel.

_______________ * Arqueólogo (Archeo’Estudos Lda.). Correio eletrónico: [email protected] ** Arqueóloga (Archeo’Estudos Lda.). Correio eletrónico: [email protected] *** Colaborador do CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra. Correio eletrónico: bruno.miguel.silva. [email protected] Revista CEPIHS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social), 6, 2016, 443-465

João Nisa, Tânia Falcão e Bruno M. Magalhães

Introdução

O presente artigo pretende dar uma visão geral sobre a intervenção arqueológica realizada no ano de 2014 na Igreja de S. Miguel, em Freixo de Espada à Cinta, incluída nos “Trabalhos de Conservação das coberturas e abóbadas da sacristia e absidíolos – Igreja Matriz de Freixo de Espada à Cinta”, promovidos pela Direção Regional de Cultura do Norte e executados pela empresa Archeo’Estudos Lda. Ainda que a empreitada em causa não previsse qualquer intervenção ao nível dos pisos e subsolo, a realização das sondagens arqueológicas prendeu-se com a necessidade de se verificar qual o motivo para o abatimento do pavimento da igreja junto ao batistério, a sua relação com as infiltrações no edifício e ainda aferir a sequência estratigráfica da sua implantação no terreno. Nesse sentido, o objetivo inicial passou pela abertura de duas sondagens: uma no exterior da igreja, junto à parede norte, com a dimensão de 2x2 m; a outra no interior, junto ao batistério e sensivelmente paralela à referida anteriormente, com uma dimensão de 2x4 m. Devido a várias condicionantes, que se explicarão no ponto respetivo, foi apenas realizada uma sondagem, no interior, com a dimensão inicial de 2x4 m, tendo posteriormente sido alargada para 3x4 m, perfazendo o total de 12 m2. No exterior, acompanharam-se os trabalhos de remoção do pavimento em duas áreas distintas, com um total de 14 m2. Os trabalhos de escavação arqueológica iniciaram-se no dia 30 de Junho de 2014 e terminaram no dia 11 de Julho de 2014. A Igreja de S. Miguel

A Igreja Matriz de Freixo de Espada à Cinta é uma igreja-salão mandada edificar por D. Manuel I no local de um templo anterior. A Igreja já é visível no desenho de Duarte d’Armas, executado entre 1509 e 1510, e as respetivas obras terminaram definitivamente no reinado de D. João IV. A igreja possui três naves retangulares, capela-mor, dois absidíolos e sacristia. O alçado principal, terminado em empena e formado por três 444

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panos separados por contrafortes, apresenta uma porta de grande arco abatido com moldura ornamentada, encimado por um arco decorativo. No interior realça-se o pavimento lajeado e cobertura em abóboda de nervuras. Um dos absidíolos dá acesso à sacristia através de porta setecentista, encimado por escudo nacional policromado. Na capela-mor, inseridas num amplo painel de talha dourada barroca, subsistem tábuas do retábulo-mor original, atribuídos à escola de Grão Vasco e datáveis da década de 20 do século XVI. Encontra-se classificada como MN - Monumento Nacional pelo Decreto 16-06-1910, DG n.º 136 de 23 junho 1910, DG, 2.ª série, n.º 19 de 23 janeiro 1953. Os trabalhos dos anos 40 do século XX

A partir de meados dos anos 30, o Estado Português deu início a uma campanha de reabilitação de monumentos de Norte a Sul do país. A Igreja de S. Miguel não foi exceção, destacando-se os seguintes trabalhos: • Demolição de dois corpos da fachada principal e de um anexo no topo da

capela-mor; • Demolição das vedações do adro; • Reparação e substituição de cantarias em todo o edifício; • Substituição e retificação do pavimento do interior da Igreja; • Substituição da cobertura; • Reparação e arranjo do altar-mor e dos altares, incluindo o restauro de painéis; • Construção de uma escada de madeira, para acesso ao coro; • Reparação e pintura de todas as portas da Igreja, com substituição das ferragens e reposição de elementos decorativos então desaparecidos; • Reparação do púlpito de ferro forjado; • Instalação de rede elétrica para iluminação da Igreja; • Construção de vidros decorativos, para todas as frestas e janelas; • Rebaixamento e nivelamento de toda a superfície do adro.

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A intervenção arqueológica

No dia 30 de Junho de 2014, data em que a equipa de arqueologia iniciou a intervenção, o pavimento já tinha sido retirado numa área aproximada de 4x3,30 m, tendo-se procedido à marcação de uma sondagem de 2x4 m. A camada superficial (UE 1001), bastante revolvida e onde já se observavam alguns ossos desarticulados (sobretudo ossos longos), continha materiais de cronologias diversas, alguns dos quais diretamente relacionados com espólio funerário, o que nos levou a considerar que os enterramentos existentes já não se encontrariam preservados. Do material recolhido nesta unidade destaca-se: cerâmica de construção, cerâmica vidrada, faiança, vidro, alguns pregos, contas de colar, um crucifixo em liga metálica e espólio numismático. Sob esta UE foram identificadas duas unidades estratigráficas: uma camada heterogénea, arenosa, desagregada e de cor castanha (UE 101) e uma camada de terra castanha muito desagregada, com bastante cantaria em granito e algum xisto (UE 103). Estes elementos constituem, sem dúvida, restos de demolição, sendo possível interpretar este aglomerado de pedras como uma fossa de despejo resultante de demolições efetuadas nas obras da DGEMN dos anos 40 do século XX, nomeadamente dos dois corpos torriformes que faziam parte da fachada principal, do anexo no topo da capela-mor e dos bancos e degraus de cantaria existentes junto das portas laterais. Parte das cantarias demolidas foram reutilizadas na edificação do muro que se encontra a sul da igreja. Sob a UE 101 e na extremidade este da sondagem, foi individualizado um sedimento de cor castanha escura, de matriz arenosa, que cobria um depósito secundário constituído, na sua maioria, por crânios2 (UE 109). Foi ainda identificado um crânio que, devido ao facto de se encontrar em conexão anatómica e prolongando-se para uma área que não se iria Unidade Estratigráfica. A escavação manual realizada na Igreja de S. Miguel foi efetuada segundo o modelo desenvolvido por P. Barker (1977) e E. Harris (1979) – Matriz de Harris. As unidades estratigráficas são retiradas por ordem inversa à da sua formação, quer esta seja de origem natural (depósitos) ou antrópica (estruturas positivas, estruturas negativas, depósitos, etc.). 2 Estes resultados serão analisados em pormenor, no ponto respetivo.

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intervencionar, não foi escavado. A UE 101 cobria o enchimento (UE 104) de uma sepultura (sepultura 1), delimitada pela interface UE 108. Esta sepultura foi aberta no afloramento xistoso (UE 114) e continha um enterramento de um adulto (UE 105) associado a uma criança (UE106) que aparentava repousar sobre o seu braço direito, bem como uma redução constituída por crânio e ossos longos (UE 107), junto aos membros inferiores do enterramento UE 105. Os restos osteológicos encontravam-se em mau estado de preservação visto que, como pudemos observar no dia 2 de Julho, a água que entrava através das juntas da parede norte aproveitava as oscilações de cota do afloramento e infiltrava-se, tornando difícil a definição, preservação e remoção dos vestígios osteológicos. No enchimento (UE 104) foram recolhidas cerâmicas variadas (comum, construção, porcelana e faiança), metais associados ao ritual de inumação (pregos, alfinetes, um fragmento de fecho de caixão), material associado ao vestuário e ao espólio funerário (uma medalha, um crucifixo, contas de colar em liga metálica e pasta vítrea, restos de calçado, um botão, vidros e moedas). Devido aos resultados preliminares da intervenção, foi necessário alargar a sondagem em mais 1,30 m, perfazendo um total de 3,30 x 4 m. Estes trabalhos permitiram identificar mais uma sepultura (sepultura 2) que continha dois enterramentos de indivíduos adultos (UE 116 e UE 117). À semelhança do que foi referido para a sepultura 1, foi aberta uma interface (UE 118) no afloramento xistoso, de formato trapezoidal, encontrando-se a zona dos membros inferiores destacada em ambos os casos. O enchimento (UE 113) desta sepultura encontrava-se bastante revolvido, à semelhança do enchimento 104 (sepultura 1). Do material exumado foram associadas 141 contas de colar (com formato circular em pasta vítrea de cor azul clara) ao enterramento UE 116. Ao enterramento UE 117 foi possível associar uma fivela assimétrica, em cobre, possivelmente de sapato ou espora, um botão (possivelmente de casaca) com formato circular, face achatada e em liga de cobre e uma conta de rosário em madeira. Neste enchimento foram ainda recolhidas contas de colar de cor negra, bem como um fragmento de medalha em liga de cobre.

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Os materiais arqueológicos – Cerâmica

O espólio cerâmico é pouco expressivo e resume-se a alguns fragmentos de faiança e vidrados de chumbo de pequenas dimensões. Foram ainda identificados alguns fragmentos de cerâmica de construção de cronologia Contemporânea. Estes materiais encontravam-se sem contexto arqueológico, em nível de revolvimento e não têm expressividade dentro do contexto geral. Ainda assim destaca-se uma faiança tricolor, da UE 104, de produção espanhola (Talavera de la Reyna), datada de Fig. 1 – Fragmento de faiança tricolor finais do século XVI, inícios do século XVII3. – Metal • Fivela

Junto ao enterramento UE 117, englobado no enchimento (UE 113), foi identificada uma fivela assimétrica, de moldura dupla, em oito ou em “D”, em liga de cobre, com as dimensões de 35x31 mm. Podemos enquadrá-la entre os tipos 558 e 560 de Whitehead4 que lhes atribui uma cronologia entre 1575 e 1700. Devido às suas reduzidas dimensões, o mesmo autor associa este tipo de fivela ao uso de esporas, embora admita a possibilidade de serem utilizadas em sapatos, referindo um exem3 Maria Castro Lorenzo, “La vajilla de lujo en Santiago de Compostela en los siglos XVI y XVII: aportaciones de la arqueologia”, in Revista de Estudios Provinciais, n.º 22, Pontevedra, Deputación de Pontevedra, 2009, pp. 126-127. 4 Ross Whitehead, Buckles 1250-1800, Es§sex, Greenlight Publishing, 1996, p. 91.

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plar que foi encontrado com um sapato datado de finais do século XVII5. Em Portugal encontramos paralelo com um exemplar proveniente de Machico, recolhido em estratos atribuíveis ao século XVI6. Fig. 2 – Fivela assimétrica

• Medalhas

1. Proveniência: UE 101; Material: liga de cobre; Dimensões: 19x16 mm; Datação: século XVIII. Anverso: Imagem de S. João Baptista, à esquerda. Legenda: S. IOAN. BAP. OP [N?]. Reverso: Figura masculina (?). Legenda: COR ANN 17[…]8.

Fig. 3 – Medalha com a imagem de S. João Baptista (anverso)

Fig. 4 – Medalha com a imagem de S. João Baptista (reverso)

2. Proveniência: UE 101; Material: liga de cobre; Dimensões: 23x19 mm; Datação: séculos XVII-XVIII. Anverso: Nossa Senhora com o menino ao colo, sobre uma nuvem, com raios de luz a emoldurar a figura. Idem, ibidem, p. 90. Cf. Élvio Sousa, Ilhas de arqueologia. O quotidiano e a civilização material na Madeira e nos Açores (séculos XV-XVIII). Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (texto policopiado), Lisboa, 2011, pp. 484-485. 5

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Reverso: “F”. Observações: Aparentemente esta representação iconográfica parece tratar-se de Nuestra Señora de la Fuencisla, embora também exista a possibilidade de se tratar de Nuestra Senõra de la Fuensanta ou Nuestra Señora de la Peña de Francia. O que parece inequívoco é que se trata de uma devoção que não tem origem em território nacional, Fig. 5 – Medalha de Nuestra Señora mas sim em território espanhol. de la Fuencisla Nuestra Señora de la Fuencisla é uma devoção da cidade de Segóvia, da qual é padroeira, tendo o primeiro santuário sido construído em 1237 e reconstruído em 1613, inauguração à qual assistiu o rei Filipe III; a Virgem da Fuensanta é um dos muitos cultos marianos existentes em Espanha, com manifestações importantes em Múrcia, Córdoba e Villanueva del Arzobispo (desde o século IX); Nuestra Señora de la Peña de Francia é uma devoção mariana originária do local com o mesmo nome, perto de Salamanca, existindo aí testemunhos de devoção desde o século XV. 3. Proveniência: UE 104; Material: liga de cobre; Dimensões: 17x15 mm; Datação: séculos XVI-XVII. Anverso: Calvário – representação da figura de Cristo na cruz, ao centro da medalha, ladeado pela Virgem Maria e por S. João Evangelista. Reverso: Sagrada Eucaristia – representação do cálice eucarístico encimado por hóstia sagrada resplandecente e ladeado por dois anjos de perfil, ajoelhados, com as mãos unidas em atitude de oração e vestindo túnicas compridas. Apresenta inscrição no exergo: ROMA. Observações: Este tipo de iconografia encontra paralelos em Santa Clara-a-Velha7 sendo que a autora associa estas temáticas a determinações pós Concílio de Trento (1545Teresa Mourão, “As medalhas religiosas de Santa Clara-a-Velha”, in Numus, n.º XXVIII-XXX, Porto, Sociedade Portuguesa de Numismática, 2007, pp. 348-351. 7

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-1563). A mesma autora8 refere que as medalhas religiosas eram cunhadas em Roma, servindo como importante veículo de disseminação da doutrina da Cúria Romana, permitindo a divulgação de novas devoções e cultos.

Fig. 6 – Medalha com a representação do calvário

Fig. 7 – Medalha com a representação do calvário (reverso), onde se encontra representada a Sagrada Eucaristia

4. Proveniência: UE 104; Material: liga de cobre; Dimensões: 29x16 mm; Datação: séculos XVII-XVIII (?). Anverso: Virgem Maria (?). Reverso: Sagrada Eucaristia (?). Observações: o mau estado de conservação não permite a leitura.

Fig. 8 – Medalha com a representação da Virgem Maria (?) 8

Fig. 9 – Reverso de Medalha com a representação da Virgem Maria (?)

Idem, ibidem, p. 336.

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• Crucifixos

Foram recolhidos dois crucifixos em liga metálica de cobre. O primeiro (40x40 mm) foi recolhido na UE 100, em camada de revolvimento. Representa Cristo crucificado, em relevo, com a cabeça tombada sobre o ombro direito, com sendal; no reverso apresenta uma figura feminina, em relevo, possivelmente a Virgem Maria, envergando uma túnica comprida. Na UE 104 foi recolhido outro crucifixo, de menores dimensões (32x21 mm), com um orifício circular (para suspensão?) na parte superior e em que as restantes três extremidades têm formato pontiagudo. Este exemplar é idêntico a um que foi exumado na Igreja de Colmeal (Góis)9.

Fig. 10 – Crucifixo com a imagem de Jesus Cristo

Fig. 11 – Crucifixo

• Botões

A maioria dos botões exumados corresponde a uma tipologia específica: os botões de face achatada. Este tipo de adorno popularizou-se a partir de meados do século XVII com as Leis Pragmáticas dos reinados de D. João IV e D. Pedro II, que versavam sobre restrições aos luxos e, em particular, o vestuário. Os quatro botões (UE 101, UE 104 e UE 113 – 2 exemplares) correspondentes a esta tipologia apresentam a cabeça circular com 17 mm de diâmetro e terão pertencido, possivelmente, Cf. Rui Pinheiro, “A Igreja Matriz de Colmeal: breve análise do material exumado”, in Al-Madan Online, n.º 19, tomo 2, Almada, Centro de Arqueologia de Almada, 2015, p. 56. 9

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a uma casaca. Existem paralelos para este tipo de botão no Cadaval10e em Sobral de Monte Agraço11. Particularmente interessante é um botão da UE 104, em cobre (?), dourado, com 22 mm de diâmetro e que apresenta, no interior, uma decoração com motivos vegetalistas, o que parece indiciar um estatuto socioeconómico elevado, bem como um gosto requintado.

Fig. 12 – Botão de face achatada

Fig. 13 – Botão de face achatada, com decoração

• Moedas

Os numismas identificados formam um grupo bastante heterogéneo, com cronologias que variam entre os séculos XV-XVI e o século XX. Conforme foi referido, as infiltrações de água no sítio contribuíram para o mau estado de preservação de alguns materiais arqueológicos, em particular os metais. Das doze moedas identificadas, duas resumem-se a fragmentos, três não possuem qualquer tipo de leitura, três são passíveis de classificação/identificação e quatro são passíveis de identificação, correspondendo a ceitis (séculos XV-XVI), facilmente identificáveis devido à sua iconografia. Foi possível classificar 1 Real de D. Sebastião (1557-1578), 4 Maravedis de Carlos IV de Espanha (1803) e 10 Centavos da República Portuguesa (1925). Guilherme Cardoso, A Igreja de Nossa Senhora da Conceição no Cadaval – Trabalhos arqueológicos realizados em 2003, Cadaval, Câmara Municipal de Cadaval, 2007, p. 39. 11 Idem, “A Capela de Santo Amaro, Martim Afonso (Sobral de Monte Agraço)”, in Actas do 3.º Seminário do Património da Região Oeste, Cadaval, Câmara Municipal de Cadaval, 2006, p. 127. 10

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– Contas

As contas são o tipo de material que apresenta maior representatividade e variedade no conjunto. Embora não existam muitos estudos que analisem este tipo de material arqueológico, pensamos que a sua presença neste contexto funerário se deverá mais ao facto de fazerem parte de objetos de devoção (terços e rosários) do que a objetos de adorno, embora não devamos excluir essa hipótese. Apresentam uma grande variedade de formas, cores, tipos de material e tamanhos, tendo sido objeto de grande disseminação. Podemos observar esse facto na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Santa Cruz de Tenerife, onde se recolheram contas semelhantes, integradas num rosário12. Também na Igreja de Colmeal se exumou um importante conjunto, muito similar ao agora referido13. As tipologias identificadas na intervenção encontram-se transpostas no seguinte quadro-síntese: Quadro 1 Tipologia de contas identificadas na intervenção

Matilde Arnay de la Rosa, “ La arqueologia histórica en Canarias. El yacimiento sepulcral de la iglesia de Nuestra Señora de la Concepción de Santa Cruz de Tenerife”, in Arqueologia Iberoamericana, n.º 3, Huesca, Edições Pascual Izquierdo Egea, 2009, p. 31. 13 Rui Pinheiro, “A Igreja Matriz de Colmeal...”, op. cit., pp. 58-59. 12

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O material osteológico humano recuperado durante a escavação

No total foram exumados 4 esqueletos articulados, uma redução com 117 ossos, 1 ossário com 3 crânios e 115 ossos soltos, para além de 2419 ossos soltos das várias unidades estratigráficas escavadas, num total de 2654 ossos humanos recuperados. No geral, os ossos encontravam-se mal preservados, essencialmente por duas razões: em primeiro lugar, devido às próprias premissas que levaram à intervenção arqueológica realizada no local. Com efeito, as infiltrações de água que regularmente aconteciam na área onde foi aberta a sondagem (que inclusive foram um problema durante a escavação) são as mesmas que terão contribuído para a má preservação dos ossos recuperados, que praticamente se desfaziam devido à humidade. O facto de as sepulturas terem sido abertas na rocha base também não ajudou, uma vez que a água se acumulava no fundo devido à impossibilidade de escoamento, o que fazia com que, por vezes, nos encontrássemos a escavar com bastante lama. Em segundo lugar, as obras realizadas pela DGEMN nos anos 40 (assim como outras anteriores que possam eventualmente ter sido realizadas)14,15, parecem ter minimizado as hipóteses de enconDGEMN, Igreja de Freixo de Espada à Cinta, in Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, n.º 70. Porto, Empresa Industrial Gráfica do Porto, Lda., 1952, pp. 5-27. 15 Fernando Pintado, Igreja Matriz de Freixo de Espada à Cinta – Notas para o seu estudo, Bragança, Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1991. 14

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trarmos ossos em articulação anatómica e isso foi visível no facto de apenas nos locais de cota mais baixa terem sido exumados esqueletos articulados; em locais de cotas mais elevadas aquelas obras parecem ter afetado toda a área escavada e, também por isso, terão sido recolhidos tantos ossos soltos. Tudo isto fez com que os ossos recuperados se encontrassem mal preservados, raramente completos e muitas vezes se desfizessem quando os tentávamos armazenar com todo o cuidado. Nesse sentido, a aplicação de métodos para a avaliação do perfil biológico e o próprio registo das caraterísticas da Antropologia Funerária ficaram, muitas vezes, comprometidas. Neste contexto, foi possível observar que o osso mais representado no conjunto da amostra e que nos dá um número mínimo de indivíduos mais elevado é o fémur esquerdo, num total de pelo menos 26 indivíduos presentes, sendo 24 adultos e 2 não-adultos. As inumações escavadas e as sepulturas familiares no interior da igreja

O contexto do interior da sepultura registada com a interface [108] foi talvez o mais interessante nesta intervenção arqueológica. No seu interior foram inumados pelo menos os indivíduos 1 e 2. O indivíduo 1 tinha presentes apenas os fémures e parte dos coxais, todos muito fragmentados e mal preservados. Apesar disso, a presença dos fémures permitiu perceber que foi inumado em decúbito dorsal, com orientação oeste-este e que terá falecido durante os primeiros meses de vida. O grau de desenvolvimento dos fémures mostra que não se trataria de um recém-nascido. O indivíduo 2 encontrava-se igualmente mal preservado. Apenas o crânio, fémures e tíbias foram recuperados, enquanto os ossos dos membros superiores estavam fragmentados e os restantes estavam ausentes. Foi também inumado em decúbito dorsal e com orientação oeste-este. O braço esquerdo foi registado sobre a zona pélvica e o direito parece abraçar o indivíduo 1, enquanto os membros inferiores 456

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encontravam-se distendidos e paralelos entre si. A aplicação dos métodos para a diagnose sexual16,17,18,19 permitiu perceber que estamos provavelmente perante um indivíduo do sexo feminino. Para além disso, todas as epífises presentes encontravam-se fundidas, pelo que tratar-se-á de um indivíduo adulto. Apesar da fragmentação óssea foi também possível registar perda dentária antemortem no seu maxilar (canino e 1.º molar esquerdos) e mandíbula (incisivo lateral e 1.º pré-molar esquerdos, ambos os incisivos centrais e 1.os pré-molares e todos os molares à exceção do 3.º direito, que não é observável). A conjugação destes fatores parece mostrar que ambos os indivíduos foram inumados simultaneamente, com o não-adulto por cima e abraçado pelo indivíduo 2, naquela que parece ser uma relação de bastante proximidade, talvez entre mãe e filho. Se não existisse esta relação familiar forte entre ambos o não-adulto teria provavelmente sido inumado à parte, em espaço próprio, ou, em caso de uma maior separação temporal entre a morte de ambos, o braço direito do indivíduo adulto não estaria a segurar o não-adulto. Para além disso, a área abrangida por esta sondagem parece ser exclusivamente preenchida por sepulturas familiares, o que está de acordo com o que é dito atrás. Os enterramentos 1 e 2 destacam-se também pela quantidade de espólio que tinham associado: 15 contas de colar, 1 crucifixo em cobre, 5 moedas em cobre, 2 medalhas ovais, 1 fecho, 2 alfinetes de cabeça, 1 fragmento de gancho, todos em liga de bronze, para além de 1 botão circular em cobre. Para além disso, foi ainda exumado um indivíduo em redução, por cima dos membros superiores do enterramento 2. Este indivíduo terá Hugo Cardoso, Dimorfismo sexual na estatura, dimensões e proporções dos ossos longos dos membros: o caso de uma amostra Portuguesa dos séculos XIX-XX. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana, Departamento de Antropologia, Coimbra, 2000. 17 Rosa Wasterlain Morphé, Análise das proporções entre os membros, dimorfismo sexual e estatura de uma amostra da colecção de esqueletos identificados do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana, Departamento de Antropologia, Coimbra, 2000. 18 Denise Ferembach et alii, “Recommendations for age and sex diagnoses of skeletons”, in Journal of Human Evolution, n.º 9 (7), 1980, pp. 517-549. 19 Jane Buikstra e Douglas Ubelaker, Standards for data collection from human skeletal remains, Arkansas Archaeological Survey Research Series, n.º 44, Fayetteville, 1994. 16

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sido reduzido para o canto este da sepultura para o enterramento de um outro indivíduo que já não foi encontrado durante a escavação. Nesta redução foi recolhido o úmero, rádio, fémur e tíbia esquerdos, e a tíbia, astrágalo e calcâneo direitos, para além do crânio quase completo (embora muito fragmentado), com todas as epífises observáveis fundidas, o que está de acordo com a presença de um indivíduo adulto. Os métodos aplicados20,21 no fémur esquerdo e tíbia direita mostram que é provável que se trate de um indivíduo de sexo masculino. A identificação de indivíduos em redução é relativamente normal, dado os cemitérios públicos, e especificamente as suas sepulturas, terem sido sucessivamente reutilizados ao longo de vários séculos e, também por aqui, é possível perceber que o espaço foi utilizado durante um largo período enquanto cemitério. Noutros locais foram identificadas mais frequentemente, como, por exemplo, no cemitério do Alto do Calvário, em Miranda do Corvo (Coimbra), onde foram escavadas 24 sepulturas, com 22 indivíduos exumados em conexão anatómica e 21 em redução22. Os enterramentos 3 e 4 não foram escavados uma vez que a sua maior parte se encontrava para lá do corte este da sondagem 1. Foi apenas identificado o crânio de ambos, assim como a mandíbula do indivíduo 3. Ambos parecem indivíduos adultos inumados com a orientação canónica oeste-este e no mesmo espaço funerário (tal como os indivíduos 1 e 2). Foi ainda registado um ossário com pelo menos 3 crânios muito fragmentados à volta do crânio do enterramento 3. Foram também recolhidos outros ossos associados, como um úmero e um fémur e vários ossos indeterminados. O enterramento 5 encontrava-se também mal preservado, tendo sido mesmo cortado ao nível do terço proximal dos fémures. O estado de preservação era tão mau que os ossos dos pés já não se distinguiam e formavam uma “massa óssea” quase uniforme. Apesar disso, foi ainda possível observar, através da metodologia aplicada ao Hugo Cardoso, Dimorfismo sexual na estatura..., op. cit. Rosa Wasterlain, Análise das proporções entre os membros..., op. cit. 22 Vera Santos, “Intervenção arqueológica no Alto do Calvário, Miranda do Corvo: a necrópole rupestre”, in Medievalista [Em linha]. N.º 14, (Julho - Dezembro 2013). [Consultado 25.04.2016]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/ME DIEVALISTA14/santos1405.html 20 21

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fémur direito23, que estaremos perante um indivíduo de sexo feminino. Para além disso, deveremos estar perante um adulto inumado segundo a norma canónica, isto é, com orientação oeste-este e em decúbito dorsal. Os membros inferiores encontravam-se distendidos e paralelos entre si, enquanto os superiores estavam ausentes. Associado ao enterramento 5, junto à zona do punho/mão direita, foram recuperadas 141 contas de colar com formato circular, em pasta vítrea e de cor azul clara. O enterramento 6 foi inumado no interior da mesma sepultura do anterior e com a mesma orientação e decúbito. O braço esquerdo foi colocado sobre o tronco e o direito sobre a zona pélvica, enquanto os membros inferiores se encontravam distendidos e paralelos entre si, posição normal dentro da norma cristã24. Tratar-se-á também de um indivíduo adulto, sendo que o fémur direito25 mostrou estarmos perante um indivíduo de provável sexo masculino. Mais uma vez, todos os ossos recuperados encontravam-se bastante fragmentados e afetados pela humidade proveniente das infiltrações no espaço. Associado ao indivíduo 6 foi recuperada uma fivela assimétrica em cobre, possivelmente de sapato ou espora, um botão circular em cobre e com face plana e uma conta circular de rosário em madeira (?). Tal como parece ter acontecido com os anteriores, também os indivíduos 5 e 6 foram inumados no mesmo espaço sepulcral, uma vez que não foi detetada qualquer diferença no sedimento que estava por cima de ambos, para além de que os limites da sepultura foram escavados na rocha base, de forma a que ali fosse inumada mais do que uma pessoa. Os espaços sepulcrais aqui descritos mostram-nos que muito provavelmente estaremos perante locais específicos e previamente organizados para aí serem inumados indivíduos da mesma família, tal como os espaços que existem nos cemitérios atuais. No caso que aqui descrevemos foram identificados três espaços que deveriam pertencer a três famílias diferentes.

Hugo Cardoso, Dimorfismo sexual na estatura..., op. cit. Carlos Alberto Machado, Cuidar dos mortos, Sintra, Instituto de Sintra, 1999, p. 19. 25 Hugo Cardoso, Dimorfismo sexual na estatura..., op. cit. 23 24

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Análise patológica

Nos ossos soltos recuperados durante a intervenção arqueológica aqui descrita foram identificadas algumas das patologias que normalmente estão presentes no estudo de amostras osteológicas portuguesas. Foi registada cribra orbitalia não muito intensa na órbita esquerda de um fragmento de osso frontal. Apesar da muita da literatura sugerir que esta patologia está normalmente associada a deficiências de certos nutrientes na dieta e esta ser uma das resposta à anemia por deficiência de ferro, estudos recentes referem que a cribra orbitalia pode ter outras origens como outros tipos de anemias ou hemorragias subperiosteais, associadas a deficiências nutricionais como o escorbuto, entre outros26,27. Foi também registada perda antemortem em duas mandíbulas desarticuladas, uma delas sem os seis molares e 1.º pré-molar esquerdo (enquanto os restantes dentes foram perdidos postmortem) e a outra a revelar perda dentária antemortem total. Infelizmente, as restante mandíbulas encontravam-se muito fragmentadas e afetadas tafonomicamente na zona dos alvéolos. Ainda assim, a maior perda dentária antemortem nos dentes mandibulares é relativamente normal, principalmente se tivermos em conta outros estudos de indivíduos de época Moderna28,29. Para além disso, foi identificada uma fratura transversal totalmente remodelada numa costela desarticulada. Este tipo de fraturas são das mais comuns, quer no registo clínico, quer no paleopatológico30. Ulrike Wapler et alii, “Is cribra orbitalia synonymous with anemia? Analysis and interpretation of cranial pathology in Sudan”, in American Journal of Physical Anthropology, n.º 123, 2004, pp. 333-339. 27 Phillip Walker et alii, “The causes of porotic hyperostosis and cribra orbitalia: a reappraisal of the iron-deficiency-anemia hypothesis”, in American Journal of Physical Anthropology, n.º 139, 2009, pp. 109-125. 28 Ricardo Godinho, Vestígios de um império passado: a necrópole do Colégio de Santo Antão-o-Novo e a Lisboa dos séculos XVI-XVIII. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008, p. 103. 29 Bruno Magalhães, Os irreconciliados da fé da Inquisição de Évora. Análise paleobiológica de uma amostra osteológica Moderna proveniente do “Quintal da limpeza dos cárceres”. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013, p. 45. 30 Arthur Aufderheide e Conrado Rodríguez-Martín, The Cambridge encyclopedia of human paleopathology. Cambridge, Cambridge University Press, 1998, pp. 24-25. 26

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Foram ainda registados nódulos de Schmorl em três vértebras desarticuladas. Os nódulos de Schmorl são depressões nas superfícies do corpo vertebral causados pela herniação do nucleus pulposus através do enfraquecimento do annulus fibrosus31. São lesões frequentemente observadas no registo paleopatológico e normalmente nas vértebras torácicas inferiores e lombares32. Embora a sua etiologia seja multifatorial pode resultar da tensão biomecânica (que origina a degeneração dos discos vertebrais), trauma, deficiências metabólicas, aumento do peso corporal ou mesmo de uma predisposição genética33. Embora não seja uma associação completamente compreendida, estudos clínicos34 mostram que a localização dos nódulos de Schmorl no centro das vértebras pode aumentar a dor nas costas, pelo que é um fator importante para percebermos este mecanismo nos indivíduos aqui estudados. Para além disso, foi ainda identificada nos ossos soltos a fusão entre duas vértebras. A organização do espaço no interior da Igreja Matriz de Freixo de Espada à Cinta

Apesar de apenas ter sido aberta uma pequena sondagem não é difícil imaginar que os enterramentos se tenham espalhado um pouco por todo o interior da igreja até ao altar, ainda para mais num espaço que foi utilizado como cemitério durante mais de 400 anos. Desta forma, parece-nos natural que quase todo o interior da igreja tenha sido utilizado como local de enterramento, tal como aconteceu, por exemplo, na igreja matriz de Arcos de Valdevez, onde as inumações foram identificadas

Kimberly Plomp et alii, “Vertebral morphology influences the development of Schmorl’s nodes in the lower thoracic vertebrae”, in American Journal of Physical Anthropology, 149, 2012, pp. 572-582. 32 Idem, ibidem, pp. 572-582. 33 K. A. Kyere et alii “Schmorl’s nodes”, in European Spine Journal, n.º 21, 2012, pp. 2115-2121. 34 Kathleen Faccia e Robert Williams, “Schmorl’s nodes: clinical significance and implications for the bioarchaeological record”, in International Journal of Osteoarchaeology, n.º 18, 2008, pp. 28-44. 31

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até junto ao altar35. No entanto, é importante realçar que, em Portugal, os enterramentos no interior de edifícios religiosos foram várias vezes proibidos desde o I Concílio de Braga, no século VI36. Mesmo assim, os hábitos de enterramento no interior das igrejas ou claustros enraizaram-se um pouco por todo o país até meados do século XIX, uma vez que, ao longo dos séculos, nunca foram tomadas medidas verdadeiramente sérias para impedir que tal acontecesse37. Por outro lado, a noção de proximidade era muito importante para alcançar a proteção dos santos e este imaginário tornou-se central, transformando-se quase em dever religioso38. Neste sentido, há pouco de aleatório no local onde cada um era enterrado, e muitas pessoas já tinham escolhido o local de enterramento mesmo antes de morrerem39. Pelo menos desde o século XIII a burguesia rica e a sua família era inumada dentro da igreja católica, enquanto os ‘cidadãos normais’ eram inumados no seu exterior40. Nesse sentido, não será de admirar a presença de inumações no interior da igreja de Freixo de Espada à Cinta, assim como o abundante espólio associado aos enterramentos exumados, até porque seriam as famílias com mais posses que poderiam comprar os espaços mais próximos dos santos no interior da igreja. Todos os conjuntos sepulcrais recuperados parecem contribuir para o argumento de estarmos perante sepulturas familiares tal como hoje as encontramos nos cemitérios, o que está de acordo com as evidências registadas e com a organização do espaço que atrás foi descrita.

Bruno Magalhães, Igreja Matriz de Arcos de Valdevez. Relatório Antropológico de Campo. Relatório policopiado, Vila Nova de Gaia, 2014. 36 José Francisco Queiroz, Os cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal: consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória. Dissertação de Doutoramento em História da Arte, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2002, pp. 3-4. 37 Idem, ibidem. 38 Idem, p. 4. 39 Tony Waldron, Counting the dead: epidemiology of skeletal populations, Nova Iorque, Wiley-Blackwell, 1994, p. 12. 40 Maria Manuel Oliveira, In memoriam, na cidade, Universidade do Minho. Dissertação de Doutoramento em Arquitetura, Braga, 2007, pp. 34-35. 35

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Fig. 14 – Indivíduos: 5 à direita e 6 à esquerda

Fig. 15 – A. Cribra orbitalia; B. Perda dentária mandibular total antemortem; C. Nódulos de Schmorl; D. Fusão entre duas vértebras

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Fig. 16 – Enterramento 2 recuperado no interior da sepultura identificada com a interface [108], por baixo do enterramento 1 (esq.) e pormenor do indivíduo 1 recuperado no interior da sepultura [108], por cima do 2 (dir.)

Fig. 17 – Sepultura 1

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Fig. 18 – Sepultura 2

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