«A Igreja numa das suas metamorfoses»: questões em torno do percurso de Manuel Ribeiro (1878-1941). In Ferreira, António Matos; ALMEIDA, João Miguel (ed.) - Religião e Cidadania. Protagonistas, motivações e dinâmicas sociais em contexto ibérico. Lisboa: CEHR-UCP, 2011 [ISBN: 978-972-8361-36-5].

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«A IGREJA NUMA DAS SUAS METAMORFOSES»: QUESTÕES EM TORNO DO PERCURSO DE MANUEL RIBEIRO (1878-1941) Sérgio Ribeiro Pinto

Nenhuma vida há que possa reduzir-se à possível coerência do discurso sobre ela, quer para lhe apontar uma linearidade congruente ou contradições paradoxais que, em última instância, dizem mais do biógrafo que do biografado. Essa dificuldade parece avolumar-se quando se depara com figuras cujo percurso e obra precisam de ser resgatados pela memória. Esse é o caso de Manuel António Ribeiro, nascido na freguesia de Albernoa, concelho de Beja, a 13 de Dezembro de 1878. Seja pelo seu empenho nas lutas sindicais durante as primeiras décadas do século XX, reforçado pelo esforço doutrinador nas múltiplas colaborações em diversos periódicos1, alguns dos quais ajudou a fundar, e pela actividade de tradutor2; seja pela posteridade das iniciativas partidárias em que se empenhou; seja, ainda, pela produção literária multifacetada e de assinalável êxito em vida, seria Os periódicos em que colaborou podem ajudar a estabelecer algumas das etapas significativas do seu percurso pessoal; no periódico O Sindicalista. Semanário defensor da classe trabalhadora, assinou a coluna «Na Linha de Fogo» entre 22 de Setembro de 1912 e 12 de Julho de 1914; entre 23 de Fevereiro de 1919 e 18 de Outubro desse ano, Manuel Ribeiro colaborou com o jornal A Batalha. Porta-voz da Organização Operária Portuguesa. Diário da Manhã, que tinha como redactor principal Alexandre Vieira, tal como O Sindicalista, aliás; nele continuou a sua coluna «Na Linha de Fogo», título sob o qual publicou em 1920 uma colectânea de artigos de imprensa; a partir de 01 de Novembro de 1919, data de publicação do n.º 5 do jornal Bandeira Vermelha. Órgão e Propriedade da Federação Maximalista Portuguesa. Semanário Comunista, Manuel Ribeiro assume funções de director deste periódico, assinando também diversos antigos até Maio de 1921. Dez anos mais tarde, o escritor alentejano integrará o grupo que, em torno do padre Manuel Alves Correia, publicará o jornal Era Nova – Semanário de Doutrina e Defesa Social, numa aproximação crescente aos ideais da democracia cristã, tal como era formulada nas primeiras décadas do século XX; aproximação essa que se manifestara, pelo menos, desde a publicação de Novos Horizontes. Democracia Cristã. Lisboa: Livraria Editora Guimarães & C.ª, 1929. 2 A Livraria Editora Guimarães & C.ª publicou diversas obras que tiveram Manuel Ribeiro como tradutor: em 1903 a obra de Jacques Yvel – Madame Flirt; e em 1930 a de François Mauriac – O deserto do amor. Entre os autores traduzidos contam-se Etienne Antonelli, Paul Eltzbacher, Maximo Gorki, Leon Tolstoi e Piotr Kropotkine. Para um panorama completo dos títulos e autores traduzidos, veja-se Carlos Alberto Maria Antunes – Manuel Ribeiro. Itinerário de uma conversão: mística e questão social. Lisboa: Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 1998 [Trabalho de Licenciatura]. Esta obra, centrando-se, sobretudo, 1

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expectável encontrar mais notícias e análises da sua vida e obra que os breves esboços de enciclopédia e breves menções ao seu percurso. Resulta, porém, que Manuel Ribeiro «é um dos escritores mais injustamente esquecidos»3, não que isso configure, por si só, a pretensão de uma avaliação prévia dos méritos literários do escritor alentejano; as mesmas referências esparsas, apenas, encontram-se também quanto ao seu empenho anarco-sindicalista, à actividade jornalística, à sua militância político-partidária ou ao seu percurso profissional que podem ser desfiados na linearidade primária da cronologia. Depois dos estudos liceais no concelho natal, Manuel Ribeiro matriculou-se na Escola Politécnica de Lisboa, preparando-se para cursar medicina. Forçado a interromper os estudos, exerceu durante alguns anos a actividade de professor do ensino livre e trabalhou, posteriormente, nos escritórios da Companhia dos Caminhos-de-Ferro, onde esteve 17 anos, sendo demitido em sequência do seu empenho nas actividades de reivindicação operária ligadas ao anarco-sindicalismo. Entusiasta da revolução bolchevique operada na Rússia, que é impedido de visitar, faz parte do núcleo que, em dissidência com a Confederação Geral do Trabalho, cria a Federação Maximalista Portuguesa4 (FMP), experiência de curta duração, já que, dissolvida a FMP em Dezembro de 1920, constitui-se a partir dela o Partido Comunista Português, a 6 de Março de 1921, em Lisboa, em cujo grupo mais significativo se contavam, entre outros, Carlos Rates, Caetano de Sousa e Manuel Ribeiro, pertencendo este à Comissão de Educação e Propaganda do partido e sendo o «redactor principal» do seu semanário, O Comunista. Entretanto, já Manuel Ribeiro tinha dado à estampa, com grande sucesso, o seu primeiro romance, intitulado A Catedral, publicado durante a sua prisão no Limoeiro, consequência da rusga policial que, a 15 de Outubro de 1920, conduziu ao impedimento da publicação do jornal A Bandeira Vermelha, órgão da FMP e de que Manuel Ribeiro era director. O Deserto e A Ressurreição são os dois romances que completam a primeira das trilogias de Manuel Ribeiro – a trilogia social – bordejando entre o propósito da exemplaridade da narrativa e o relato romanceado do percurso pessoal: como Luciano, a personagem principal da trilogia, o início dos anos 20 foi, para Manuel Ribeiro, o caminho da inquietação existencial, da na trilogia social, constituiu uma primeira tentativa de estudo integrado e abrangente do percurso e das inquietações de Manuel Ribeiro. 3 Cecília Barreira – Sondagem em torno da cultura e das ideologias em Portugal. Lisboa: Polemos, 1983, p. 91. Na realidade, o desconhecimento da obra e do percurso de Manuel Ribeiro, assinalados pela autora, continua. Além do trabalho de Carlos Antunes já assinalado e de breves referências esparsas, os estudos em torno do escritor alentejano encontram-se, ainda, em estado embrionário. 4 Começando as suas actividades em Setembro de 1919, a sua institucionalização ganhou corpo com a publicação do seu semanário, começado a publicar-se a 05 de Outubro desse ano. Além de Manuel Ribeiro, A Federação Maximalista contava entre os mais relevantes membros com José da Silva Oliveira, Francisco Dias, António Peixe e Arsénio Filipe, entre outros, que com o escritor alentejano haviam de estar na origem do Partido Comunista Português.

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interrogação religiosa e da militância social que, do afastamento do PCP pouco depois de ter estado na sua fundação, o conduziu ao embate com a experiência pessoal dos monges da Cartuxa de Miraflores, em Espanha, e à idealização das primitivas comunidades cristãs, traduzindo a experiência espiritual no empenho de construção da igualdade social, que intuiu na doutrinação e acção de Luigi Sturzo5. Essa década revelou-se, literariamente, a mais produtiva: entre outros romances, publicou a segunda trilogia – que nomeou de nacional6. Menos frutuosa em termos de publicação, a década de 30 havia de adensar um conjunto de preocupações estéticas anteriormente manifestadas, ganhando crescente peso a reflexão sobre a tradição literária nacional7 e as origens alentejanas de Manuel Ribeiro. Simultaneamente, o romancista compaginou a sua produção literária com o trabalho de funcionário da Biblioteca Nacional, a partir de 1932, de onde transitou para a Torre do Tombo onde foi Conservador até à sua morte, a 27 de Novembro

Luigi Sturzo (1871-1959). Nascido no seio de uma família aristocrata, Sturzo era filho de Felice, Barão de Aldobrando, e Catarina Boscarelli; formou-se em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana tendo sido ordenado presbítero a 19 de Maio de 1894 em Caltagirone, sua terra natal. Inscreveu-se posteriormente na La Sapienza de Roma e na Academia de São Tomás de Aquino. Influenciado pelo pensamento de Giuseppe Toniolo, destacou-se pela sua actividade social, tendo fundado a Caixa Rural São Tiago e uma cooperativa mutualista em 1897 e colaborado na Acção Católica Italiana, onde foi Secretário da Obra Nacional para os Órfãos da Guerra. Fundou diversos periódicos católicos (destacando-se La croce di Costantino, em 1897) e colaborou com outros, nomeadamente Il Sole del Mezzogiorno desde os primeiros anos do século XX. Seria, no entanto, a sua actividade política que o haveria de notabilizar: com o intuito de afirmar uma alternativa política e social católica ao movimento socialista, fundou, em 1919, o Partido Popular Italiano, que liderou até 1923. A sua oposição ao fascismo em ascensão obrigou-o ao exílio que o haveria de levar a Nova York, depois das duas primeiras cidades do exílio, Londres e Paris. Embora a actividade política de Luigi Sturzo se tenha tornado menos intensa após a II Grande Guerra, foi nomeado Senador Vitalício a 17 de Dezembro de 1952 pelo Presidente da República Luigi Einaudi. Veio a morrer em Roma, em Agosto de 1959. Deixou publicado um conjunto diversificado de obras onde se destacam as problemáticas sociológicas e políticas que constituíram o núcleo da sua actividade pública; entre outras, veja-se Politica e morale (1938) e Coscienza e politica (1953). Sobre Luigi Sturzo e o Partido Popular Italiano, vejam-se, entre outros autores, os diversos estudos de Gabriele De Rosa: Il Partito Popolare Italiano. Bari: Biblioteca Universale Laterza, 1988; Sturzo. Torino: Utet, 1977; e também a obra Luigi Sturzo e la democrazia europea, atti del convegno su «Luigi Sturzo, i partiti di ispirazione cristiana, la democrazia europea». Coord. Gabriele de Rosa. Roma-Bari: Editori Laterza, 1990. 6 A Trilogia Nacional compreende os romances: A colina sagrada (1925), A planície heróica (1927) e Os vínculos eternos (1929), todos editados pela Livraria Editora Guimarães & C.ª. 7 Um filão significativo da produção literária de Manuel Ribeiro, na sua fase final, prende-se com as suas raízes alentejanas, no seguimento do interesse repetidas vezes manifestado pela reflexão em torno do património cultural nacional. São significativas, desse ponto de vista, as publicações em torno de Madre Mariana Alcoforado. Por todas, veja-se Vida e Morte de madre Mariana Alcoforado (1640-1723). Com uma tradução nova das cartas portuguesas. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1940. Luís Trindade inclui Manuel Ribeiro entre os autores que deram corpo ao nacionalismo literário em Portugal nas primeiras décadas do século XX. Cf. Luís Trindade – O estranho caso do nacionalismo português: o salazarismo entre a literatura e a política. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008, passim. 5

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de 1941, tendo deixado concluído o último romance, Sarça Ardente, publicado postumamente. A diversidade que transparece no desfiar do percurso cronológico de Manuel Ribeiro sublinha o espanto pelo silêncio em torno da sua obra e personalidade, quer nos estudos literários, quer no percurso político, quer no que respeita às suas preocupações quanto à literatura e às Belas-Artes em Portugal8; espanto esse que motiva o conjunto de interrogações que se seguem.

1. Interrogações em torno da atitude militante: inquietação espiritual e justiça social Apesar do carácter multifacetado do seu empenho, do percurso de Manuel Ribeiro transcorrem permanências sucessivamente metamorfoseadas, mais que rupturas. Importa indagar, por isso, o sentido e o conteúdo da consideração mais usual sobre o trajecto de vida de Manuel Ribeiro, identificando-o com a figura do convertido, tópico importante da realidade eclesial e da apologética católica desde finais do séc. XIX e que atravessou as primeiras décadas do séc. XX, simultaneamente realidade e elemento central da retórica eclesial no confronto com os diferentes grupos não-católicos no período do desenlace do liberalismo9. Aparentemente, o empenho nos movimentos anarco-sindicalistas e a sua actividade jornalística antecedem a produção literária mais significativa que abre marcada pela influência do seu percurso pessoal. A inquietação espiritual, em sentido amplo, concretizar-se-ia, num segundo momento, pela aproximação ao cristianismo católico, que implicou o abandono dos movimentos anarquistas, primeiro, e da actividade partidária, depois. Essa linearidade, contudo, parece desautorizada pelo olhar mais atento ao conjunto da sua obra, por um lado, e pela retrospectiva pessoal que Manuel Ribeiro fez do seu percurso, por outro.

Significativa excepção constitui o texto de João Francisco Marques sobre a arte cartusiana – especificamente, da Cartuxa de Miraflores, Burgos – e a influência da sua espiritualidade no romance O Deserto. Cf. A Arte e a Espiritualidade Cartusianas em O Deserto de Manuel Ribeiro: 1879-1942. In Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias. Vol. 1. Coord. Renata Malcher de Araújo. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, p. 351-368. 9 É significativo que Manuel Gonçalves Cerejeira tenha apresentado Manuel Ribeiro como um dos exemplos da «reconquista católica» em Portugal, aproximando o seu percurso de «convertido» de algumas figuras exemplares daquilo que o professor coimbrão considerava ser a evolução do panorama sócio-cultural francês, rumo à compaginação com o catolicismo, operada a partir das primeiras décadas do século XX; para Cerejeira tratava-se da constatação da falência dos positivismos que teriam minado a intelectualidade europeia no século anterior. Cf. A Igreja e o Pensamento contemporâneo. Coimbra: Coimbra Editora, 1924, p. 255-279. 8

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Quanto ao primeiro aspecto, o percurso do escritor alentejano pode ser aproximado a uma parte significativa da intelectualidade portuguesa do início do século XX que, insatisfeita com os positivismos de carácter cientificista e atravessada por inquietações de ordem metafísica, não encontrava quietação na Igreja Católica. Ao que consideravam ser a preocupação excessiva da Igreja com a sua situação política e o enfeudamento desta ao status sócio-político, opunham o espírito evangélico e a figura humana de Jesus, cuja pobreza e denúncia das injustiças julgavam ausentes das preocupações contemporâneas da hierarquia e da vida religiosa dos cristãos, apreciada como cumprimento ritual desligado de implicações na transformação da realidade social. Em Manuel Ribeiro, os dois aspectos aparecem como declinações da mesma realidade, seja no olhar sobre a figura e a acção de Jesus, ou no significado da religião. Dois poemas, inseridos na colectânea Sentido de Viver, ilustram essa visão com clareza meridiana. A figura de Cristo é descrita no poema homónimo como «Mártir da Ideia, revolucionário és nosso igual nas crenças e no amor. […] Não é no teu aspecto legendário que te podemos compreender melhor. Foge dos templos, abandona a cruz. Feito p’rá terra, apagas-te nos céus e é na matéria que se gera a luz. Não receies que as nossas mães te tomem. Se ainda és pequeno p’ra ser Deus, p’ra os nossos corações és mais do que homem.»10

E no autobiográfico História d’uma vida, a religião resume-se a «Isto: – Evangelizar. E embebido de fé pensou na Igreja entrar. Mas viu o que era a Igreja: instituição venal e torpe que ultrajava o seu pudor moral»

e isso porque: «Imóvel, sem vigor, a Igreja agonizava. Mas, através do templo e do seu espesso muro, como por um cristal, Jesus irradiava o esplendor imortal de apóst’lo do futuro. […]

Manuel Ribeiro – Cristo. Sentido de Viver. Lisboa: Livraria Editora Guimarães & C.ª, 1909, p. 131-132. Actualizámos a grafia nesta transcrição. 10

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A Igreja, o que guardava dessa doutrina? Do amor, a expiação; da fé, a disciplina.»11

A produção literária de Manuel Ribeiro anterior à publicação dos primeiros romances desautoriza as perspectivas que sublinham o trânsito entre o seu empenho na luta pela melhoria das condições de vida da classe operária (e especificamente dos ferroviários) – seja no anarco-sindicalismo, seja na adesão ao comunismo –, a convertido católico como sendo um corte radical, um salto entre campos contraditórios nos seus fundamentos e fins. A mútua implicação dessas duas fases do seu percurso pessoal é também feita pela visão retrospectiva de Manuel Ribeiro quando afirmou que «se hoje me sinto cristão e admiro tanto a Igreja, é porque fui um revolucionário sincero, descrente dos sistemas políticos e apaixonado da Verdade eterna que só no Evangelho tive a dita de encontrar»12. Deste modo, considerados no seu conjunto, a vida e a obra de Manuel Ribeiro deixam transparecer um conjunto de inquietações fundantes que são sucessivamente transfiguradas. A inquietação espiritual traduziu-se, por isso, na atitude militante perante a realidade; ou seja, a consideração das diferentes dimensões da existência como passíveis de serem transformadas pelo empenho pessoal tendente a um sentido final13, que implica sempre um grau de transcendência, quer a concretização desta se dê na esfera imanente, ou não. Nesse sentido, o mesmo empenho militante de Manuel Ribeiro, traduzido em campos diferenciados nas suas características e nos seus propósitos, assenta sobre uma inquietação espiritual – poderia dizer-se, numa mística – atravessada pela preocupação social que se exprime na díade justiça-verdade e que se encontra permanentemente na sua produção literária, anterior e posterior à sua adesão ao catolicismo, expressões outras do desassossego espiritual que se exprimiu, também, na militância anarco-sindicalista. Importa questionar, por isso, o sentido da sua «conversão» e as leituras sobre esta. Manuel Gonçalves Cerejeira, na obra já evocada, inclui Manuel Ribeiro na lista dos convertidos para fazer a apologia do que considerava ser o regresso da Manuel Ribeiro – História d’uma vida. Sentido de Viver, p. 53-68. A grafia foi actualizada nesta transcrição. Carta de Manuel Ribeiro a Victor Marques de Oliveira, datada de 11 de Março de 1927 e publicada no Distrito de Portalegre de 17 de Fevereiro de 1979, parcialmente transcrita por Carlos Alberto Maria Antunes – Manuel Ribeiro. Itinerário de uma conversão: mística e questão social, p. 19. 13 Parece consonante com esta perspectiva a extensa Nota apensa por Manuel Ribeiro a Sentido de Viver. Numa reflexão sobre a sua poesia e o sentido da mesma, afirma que ela nasceu da indignação sobre as injustiças geradas pela organização social liberal «mas, se todos se indignam poucos se elevam até à revolta. Ao embate constante das ondas certas rochas vão-se polindo, arredondando, numa como que transigência com a tempestade: são as individualidades passivas. Outras esgarçam-se em arestas, eriçam-se em escarpas, e a onda passa por elas fendida, lacerada, estilhaçada: são os temperamentos indomáveis». Manuel Ribeiro – Sentido de Viver, p. 150. 11

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cultura portuguesa ao seio do catolicismo, ilustrando esse pretendido trajecto com o percurso delineado pela personagem principal da trilogia social14. Se, para o futuro cardeal, a evolução de alguns intelectuais ilustrava o final do «estúpido século XIX», nas palavras de Leon Daudet a que recorre, não revela menos acerca da sua percepção da diversidade que caracteriza a modernidade sócio-política e do conflito mundividencial no contexto da disputa das soluções para o liberalismo em crise. O que equivale, na prática, a afirmar a autonomia das diferentes soluções e a concorrência em que as diversificadas propostas católicas se encontravam, obrigando, desse modo, a considerar a necessária interpenetração das questões política, social e religiosa que, na óptica do catolicismo integral, só no regresso pleno ao catolicismo romano encontrariam a resposta cabal. Em larga medida, o percurso de Manuel Ribeiro encaminhou-se também neste sentido. Na realidade, a luta pela superação do positivismo heterodoxo e dos materialismos que a obra do romancista alentejano recorrentemente assinala – veja-se o percurso paradigmático de Mateus Contreiras e o seu confronto com o Dr. José Torres no último romance da trilogia nacional Os Vínculos Eternos, ilustrando a falência do cientismo positivista como resposta última às interrogações humanas, um trajecto com aproximações evidentes ao de Manuel Ribeiro –, essa superação aparece movida por um desiderato concreto, a satisfação de uma necessidade dupla – espiritual e orgânica. Nesse sentido, a conversão apresenta-se, para Manuel Ribeiro, como purificação15 ou metamorfose sublimadora da mesma inquietação de fundo que terá sido o centro da sua preocupação desde, pelo menos, o embate com a Lisboa de finais de século XIX – o fascínio do jovem vindo da província ante o bulício da capital16 simultaneamente sedutor e gerador de repulsa pelas desigualdades que a vida urbana gerava. É na percepção da confluência da transformação individual com a superação da entropia da estratificação social na utopia da fraternidade que se encontra a etapa final da metamorfose da militância de Manuel Ribeiro. Etapa final na qual desaguam as preocupações anteriormente manifestadas; por um lado, a inquietação espiritual de fundo e, por outro lado, a incidência social dessas preocupações, apontando para a reconstrução do tecido social baseado na fraternidade como expressão da igualdade dos indivíduos.

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M. Gonçalves Cerejeira – A Igreja e o Pensamento contemporâneo, p. 270-271. Cf. O depoimento de um alto espírito. Novidades (1 de Janeiro de 1926), p. 1. Cf. Manuel Ribeiro – História d’uma vida. Sentido de Viver, p. 53.

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2. Atitude militante e acção orgânica: do anarco-sindicalismo ao catolicismo integral? Em grande medida, são imperscrutáveis as motivações e o percurso de uma conversão, ou purificação, tal como definiu Manuel Ribeiro a sua. Todavia, no trajecto do sindicalista e escritor alentejano algumas constantes insinuam-se com frequência, permitindo traçar algumas linhas de força da sua evolução. Talvez a mais saliente seja o sentido da solidariedade em cuja ausência baseia a crítica à sociedade desigual que seria fruto do liberalismo oitocentista, assinalando simultaneamente a insuficiência do individualismo. Se, face a este diagnóstico, Manuel Ribeiro opõe pessoalmente o empenho militante, o seu percurso faz notar a necessidade de uma intervenção orgânica que, suprindo as insuficiências individuais, abranja de modo mais amplo o conjunto da sociedade. A organicidade fornecida pela instituição surge, assim, como instrumento da intervenção social visando a sua transformação, e o percurso de Manuel Ribeiro revela de modo exemplar o trânsito entre duas organicidades de carácter holístico – da evolução anarco-sindicalista, passando pela intervenção política decorrente do entusiasmo com a revolução bolchevique, até uma outra organicidade de carácter transnacional, a Igreja Católica Romana. Talvez isso ajude a perceber a rápida transição entre duas realidades que, antagónicas no conteúdo e no «momento» da concretização dos seus desideratos utópicos, se aproximam nos mecanismos de integração do indivíduo no grupo, nas concepções orgânicas e no relevo que atribuem ao empenho militante. De facto, entre Setembro de 1919, com a constituição da Federação Maximalista Portuguesa, até à fundação em Março de 1921, a partir dessa base, do Partido Comunista Português, Manuel Ribeiro participa activamente em duas tentativas sucessivas de corporizar a acção política, reconhecendo o que seriam os limites do anarcosindicalismo e a necessidade da intervenção político-partidária no seio do novo regime republicano visando, sobretudo, a alteração das políticas sociais. Todavia, este trânsito, feito de sucessivas expectativas e empenhos, é acompanhado pela turbulência da sua evolução espiritual e actividade literária, conhecendo um êxito assinalável a partir da publicação de A Catedral. Se o lugar evocado e algumas das temáticas presentes nessa narrativa ilustram os primeiros passos na aproximação eclesial de Manuel Ribeiro, não pode, ainda assim, situar-se nesse período (1919) a sua adesão ao catolicismo. Na realidade, embora acompanhando as desventuras amorosas de Luciano e de Maria Helena, a «Condessinha», a trama do romance põe em contraste preocupações e posicionamentos eclesiais e políticos diversos no seio do clero português, ao mesmo tempo que confronta a acção da hierarquia com as preocupações da classe operária representadas pela voz de João Coutinho, o chefe dos operários e sindicalista.

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A aproximação de Luciano ao padre Anselmo é decisiva, a vários níveis, para se compreender a quase heteronímia que o liga ao romancista. Em primeiro lugar, pela valorização da emoção estética como pórtico de acesso ao ambiente espiritual católico, que o escritor fez através do interesse pela arquitectura religiosa medieval e da liturgia; em segundo lugar – justificando a identificação que alguns fazem entre a personagem do padre Anselmo e o padre Pereira dos Reis, que o trajecto pessoal deste último parece autorizar – remete para o passo seguinte, a estadia na Cartuxa de Burgos, facilitada precisamente pelas diligências deste eclesiástico do Patriarcado de Lisboa17, destacando a importância da espiritualidade beneditina, relevando a espiritualidade litúrgica18. O processo iniciado pela atracção estética revelou-se, no entanto, insatisfatório; e o caminho de perfeição individual, testemunhado na austeridade de vida e do grau de entrega dos monges cartuxos ao silêncio preenchido com a presença divina carecia de um sentido pleno, segundo Manuel Ribeiro; essa plenitude dizia respeito ao impacto social da experiência espiritual, devendo ser dirigida à totalidade da realidade social de modo a conferir-lhe uma finalidade universal: a fraternidade. Deste modo, a experiência de transformação individual desenhada nas descrições da vida dos monges cartuxos, apesar do seu impacto marcante, apresentou-se como um passo intermédio cuja concretização Manuel Ribeiro encontrou, apenas, nos esforços descritos pela comunidade do romance A Ressurreição. Na «Vila Galileia», uma evocação idealizada das primitivas comunidades cristãs, o romancista alentejano, através do seu alter ego, Luciano, confronta-se com a acção de Don Lorenzo19 e o percurso de um convertido, Pio dell’Anima, o Isso mesmo foi confirmado por Manuel Ribeiro, que conhecia Pereira dos Reis pelo menos desde a saída do primeiro romance: «O espanto do dr. Pereira dos Reis, um apaixonado da liturgia, quando saiu «A Catedral» feita por um sindicalista!». O depoimento de um alto espírito. Novidades (1 de Janeiro de 1926), p. 2. 18 Os primórdios do que veio a ser conhecido como Movimento Litúrgico estão relacionados com a refundação da Ordem de S. Bento em França, por intermédio de Prosper Guéranger (1805-1875) e os seus estudos em torno da história da liturgia e do Ano Litúrgico, título daquela que será a mais importante das suas publicações, iniciada em 1841. No final do século XIX, os estudos em torno da liturgia católica ganharam novo impulso com os trabalhos de Odo Cassel (1886-1948), da Abadia alemã de Maria-Laach, cuja obra «O Mistério do Culto Cristão» (1932) veio a ter influência decisiva no documento do Vaticano II sobre a liturgia, a Constituição Sacrosanctum concilium (1963). Pretendendo ultrapassar o carácter rubricista e preceitual da liturgia, o Movimento Litúrgico apresentava-a como dinamismo espiritual destinado a clérigos e leigos com implicações eclesiológicas directas, nomeadamente na perspectiva jurisdicionalista da Igreja que decorrente da lenta execução das determinações tridentinas. Embora com ecos tardios em Portugal, seria também ligado à espiritualidade beneditina e, especificamente, a D. António Coelho e a Pereira dos Reis, que o Movimento Litúrgico se desenvolveu, tendo recebido impulso decisivo no Congresso de Liturgia, realizado em Vila Real em 1926, ano em que se fundou a revista litúrgica «Opus Dei» dirigida pelos monges da Ordem de S. Bento. 19 Como o romancista deixou explicitamente assinalado, a personagem inspirou-se directamente na figura de D. Luigi Sturzo: «Dom Lorenzo não é uma figura da minha imaginação. A palavra do resgate humano pela recristianização do mundo, encontrei-a num varão insigne da moderna Itália: Dom Sturzo.» Depoimento de Manuel Ribeiro. Jornal da Madeira. N.º 12 (23 de Março de 1924).

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engenheiro que, vindo dos ambientes anarquistas, o ajudará a dissipar as dúvidas e a possível distância entre a experiência religiosa católica e a instituição, a Igreja Católica, à qual manifesta resistências. A Ressurreição, metáfora polissémica, surge como instância ética e horizonte utópico da justiça social, a realidade última da fraternidade universal, mas também como apelo à conversão pessoal, a metanóia como processo de «alargamento» do horizonte de compreensão da realidade e de inclusão dos indivíduos. Essa tensão mais não era que a permanência do que Manuel Ribeiro assinalara no já mencionado poema «Cristo» e, de outro modo, num outro, «O revoltado em frente das potências do mundo: – O padre/ O juiz/ O militar», afirmando, quanto à primeira daquelas «potências», que «as crenças dos Revoltados […] são mais dominadoras, mais ardentes e evangelizam mais que teus ritos, teus santos, teus missais…»20.

De algum modo, o percurso de Manuel Ribeiro dá conta, também, da tendência contemporânea que opõe a vivência espiritual do indivíduo à adesão comunitária ou, se quisermos, o confronto entre a prática eclesial e dos agentes eclesiásticos – consideradas coniventes com a ordem do mundo –, e o ensinamento do Galileu e do seu Evangelho – percebido naquela que seria a pureza do ideal cristão21. Essa crítica à instituição eclesial, dado o divórcio com o ideal da figura de Cristo que por ela fora aprisionado, transformou-se no apelo à reforma eclesial, que de forma icónica é desenhada na restauração da sé de Lisboa, metáfora do retorno às suas formas originais pelo regresso à idealizada pureza e ordem medievais que o estilo gótico expressaria. O mesmo apelo de reforma explicita-se nas diferentes opiniões do cabido da sé quanto à relação da Igreja com o regime republicano e as reivindicações do operariado22. Na reunião capitular, central na trama do romance, expressam-se sensibilidades diversas quanto ao restauro da sé, o mesmo é dizer, quanto à reforma da Igreja e o modo como esta deve encarar a sua relação com a sociedade portuguesa coeva, quer no aspecto político (a discussão sobre a Lei da Separação), quer social Manuel Ribeiro – Sentido de Viver, p. 69. Esta perspectiva aproxima Manuel Ribeiro de um filão da literatura portuguesa contemporânea que, de algum modo, insiste na distinção crítica entre os elementos centrais do Evangelho e a Igreja Católica enquanto instituição; na diferença entre o que era apontado como incoerência e traição desta à figura poética de Jesus ou a distância entre uma espiritualidade como apelo universal e o dogma enquanto instância convencional fautora de divisões. Confronte-se este posicionamento, a título de exemplos, com o conto O suave milagre, de Eça, e o opúsculo O Padre, de Raul Brandão. 22 Manuel Ribeiro – A Catedral. Lisboa: Livraria Editora Guimarães & C.ª, 1919, passim. 20

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(da relação com o mundo operário): o legitimista Cónego Rocha – que centra a sua recusa do novo regime na auto-suficiência da Igreja; o espiritualismo do Pe. Anselmo e do Pe. Bruno – insistindo na reforma litúrgica e na urgência mística; a adesão do Pe. Tiago – o clérigo formado em Roma, que recusa a intervenção partidária confessional e advoga o empenho eclesial na solução da «questão social», acolhendo as reivindicações do sindicalista João Coutinho. Ao assinalar esse conflito interno, a problemática da reforma eclesial está já presente no início do percurso aproximativo de Manuel Ribeiro ao catolicismo, quer como exigência em face da instituição, quer como elemento de aferição da coerência da vida espiritual, uma vez que, para ele não era suficiente uma conformidade exterior ao preceito e uma ritualidade destituída de densidade existencial. Pelo contrário, é na confluência dessa necessidade da reforma eclesial com a experiência da renovação pessoal – de revolução espiritual, pode dizer-se – que residiu a metamorfose da militância de Manuel Ribeiro, não como o trânsito para um outro lado, completamente diverso do percurso e das inquietações anteriores, mas como transformação do desiderato fundante da sua acção: o retorno ao comunitarismo primitivo das comunidades cristãs, microcosmos da sociedade justa assente na regeneração do Homem. É, ainda, a permanência da questão ética e do alargamento das suas exigências, sublinhando a dependência entre a perfectibilidade pessoal e a renovação das estruturas sociais que, de algum modo, as Novelas Vermelhas23 já enunciam e que O Deserto (1922) explicita na descrição da comunidade da Cartuxa de Miraflores. No entanto, o exemplo desta aparece ainda insuficiente por não poder ser alargado ao conjunto da sociedade, embora subsista como modelo da fraternidade concretizadora da justiça explicitada no comunitarismo da Vila Galileia descrito no romance que culmina a trilogia social. Só por essa altura (1923) se pode situar, como confirmou Manuel Ribeiro, a sua «conversão»; não deixa de ser significativo que o momento decisivo dessa metamorfose inclua Roma como referencial simultaneamente histórico e simbólico – a invocação da irradiação universal do ministério de Pedro e o sentido, simultaneamente de resistência e do nascimento de um outro tipo de realidade comunitária, na evocação das catacumbas. A transformação do enquadramento da experiência militante implicou a fugacidade do seu empenho partidário, transitando para o compromisso religioso a que continuará subjacente, mas sempre explícito, o desiderato da justiça social. Assim, a urgência da Revolução metamorfoseia-se na premência da Reforma, Embora a Colecção apareça com esse nome, «Novelas Vermelhas», as duas obras que Manuel Ribeiro nela publica são dois pequenos contos: A expiação. Lisboa: Secção editorial da Batalha, 1921; e Poder redentor. Lisboa: Secção editorial de A Batalha, 1922. Ambas constituem, respectivamente, o n.º 1 da primeira e da segunda série. 23

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duas modalidades do mesmo empenho e de idêntico objectivo. No fundo, porém, mantém-se a necessidade de uma acção orgânica como mediação da transformação individual e social. Todavia, o percurso da «conversão» de Manuel Ribeiro não foi um decalque perfeito do percurso romanceado de Luciano; processo moroso, o próprio romancista assinalou a distância entre a adesão espiritual e a prática sacramental, deixando entrever o diálogo tensional entre a experiência da limitação pessoal e o excesso de sentido de algum modo experimentado em face da densidade litúrgicosacramental: «Não pratiquei na Cartuxa; não podia ainda, sem escrúpulos da minha consciência, praticar convictamente. […] Assisti sempre, e, sem praticar, sem nenhum compromisso moral, só pelo que vi e observei, saí de lá com o meu passado arrasado e diante do espírito desempoeirado a estrada nova que me havia de conduzir à fé.»24 Na mesma ocasião referia: «Não, não pratico ainda. Mas a culpa não é bem minha. Vive-se num ambiente sórdido de irreligiosidade e de materialismo. A atmosfera da cidade asfixia os tímidos impulsos que afloram»25. Esse aspecto relaciona-se directamente com um dos permanentes filões da obra de Manuel Ribeiro, a presença de figuras de clérigos que consubstanciam modelos diversos da acção do presbítero na sociedade portuguesa contemporânea, no que pode ser visto como um reverso do panorama eclesiástico queirosiano: o (bom) padre como referência da virtude espiritual essencial da espiritualidade cidadã. Esta permanência literária corresponde, também, à influência de diferentes figuras eclesiásticas importante para o seu percurso pessoal de adesão ao catolicismo e que pontuam o percurso eclesial do romancista. Embora se possa, de algum modo, condensar o panorama de modelos de clérigos nas sensibilidades do cabido da sé de Lisboa acima aludidas, elas não se esgotam aí. Veja-se, a título de exemplaridade, a personagem central de A Planície Heróica, Padre Dionísio: acabado de ordenar-se, saído do Minho, «inexperiente e quase sem ter roçado pela vida», confronta-se na freguesia da Carregosa, em pleno Alentejo, com «a natureza fecunda, paganizante e poderosamente genitora», lançando-o «numa certa confusão»26. Na narrativa estão presentes algumas das implicações do novo enquadramento da Igreja Católica posterior à Lei da Separação: a mobilização para a recristianização, dando corpo à avaliação de um território «descristianizado» por falta de presença eclesiástica – «há por aí moço taludo e até já pai de filhos que nunca viu um padre, que não sabe sequer o que seja um padre! Que ele dezasseis anos sem

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Cf. O depoimento de um alto espírito. Novidades (1 de Janeiro de 1926), p. 2. Cf. O depoimento de um alto espírito. Novidades (1 de Janeiro de 1926), p. 1. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica. Lisboa: Livraria Editora Guimarães & C.ª, 1927, p. 106.

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prior…»27; a sustentação do clero, seja por via da transformação das côngruas28, seja pela problemática patrimonial, a questão da devolução de alguns dos bens expropriados, no caso a residência paroquial onde se tinha fixado um posto militar29. A trama tece-se no confronto entre as expectativas de uma população rural quanto à acção do clero e o idealismo do Pe. Dionísio, movido pelo ímpeto de missionação, entendendo o sul do país tão necessitado da presença cristã como um «sertão africano»30. Assim, o jovem clérigo confronta-se com o apelo telúrico do amanho da terra, quer para dela tirar vida, quer como objecto do sonho de independência económica e financeira dos assalariados, oprimidos por «alguns lordes dominiais, que ninguém conhecia, que nunca ninguém vira, [que] senhoreavam as maiores herdades das redondezas»31. Para os habitantes da Carregosa, «o padre não era […] um ministro ungido do Senhor, mas um subalterno de Deus, funcionário do poder divino que legalizava perante o céu certos actos acidentais da vida. Isso explicava porque é que o hieratismo eclesiástico não exercia impressão sobre eles; porque é que o sacerdócio era um modo de vida, e porque tão ligeiramente queriam submetê-lo ao vulgar interesse»32. Na realidade, o padre Dionísio, representava um corpo estranho, com preocupações «espirituais» alheias ao mundo dos paroquianos e distantes do exemplo do predecessor, o «compadre prior José Dias» um «bom copo»33 já que «ali o pároco charnequenho era o sr. compadre prior, andava na terra larga e tinha o seu assento de lavoira, como lavrador que devia ser»34. O novo pároco pretendia demarca-se dessas expectativas («Eu não preciso de trigo para semear, porque vim para padre e não para lavrador») e da imagem arreigada entre a população, a cuja estranheza o sacristão, José Mingorra, dava voz: «Por esse andar não sei como o sr. compadre prior há-de governar aqui a sua vida!»35. Todavia, o Pe. Dionísio não é alheio às preocupações dos seus paroquianos – também ele «queria ter uma alma capaz de amar também a terra»36 – vivendo interiormente o conflito entre esse apelo e o desejo de, ante a beleza das criatu-

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Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 24. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 150 Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 147. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 164. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 37-38. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 53. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 23. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 190. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 146. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 102.

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ras, lhes mostrar a grandeza do Criador: «E por grandes que fossem as sugestões paganizantes – Deus aparecia-lhes sempre maior»37. Correlativo ao apelo da terra, surge o amor de Conceição pelo Pe. Dionísio38, a filha de José Mingorra, em cuja casa o pároco ficou hospedado logo que chegou à aldeia e, segundo o qual, «um padre devia poder casar-se… Assim como assim, eles sem mulher não passam…»39. Geradoras da vida, a terra e a mulher representam na trama a concretude com que o jovem pároco se debate, surgindo estranha à população, sobretudo à masculina, a recusa do padre em relação ao amanho da terra e aos seus apelos, tal como alheios aos seus ouvidos são os apelos do Pe. Dionísio à prática religiosa; isso pertencia exclusivamente ao universo feminino, já que «as mulheres é que fazem isso p’la gente macha, que cá os homens mal lhes chega o tempo p’ra governar a vida»40. A «reconquista» (assim intitula Manuel Ribeiro a segunda parte do romance) não a fez o Pe. Dionísio, porém, através da ritualidade do culto ou da elaboração doutrinal. Em face do definhamento de Conceição – da qual o pároco se afastara para se manter fiel aos seus compromissos de clérigo –, e da atitude de José Mingorra, que o culpa pelo estado da filha, o pároco dispõe-se a casar, renunciando às suas promessas presbiteriais. A redenção aparece, assim, tanto pela grandeza humana do sacrifício a que o jovem pároco se predispõe para que Conceição viva41, como também pela presença divina que ultrapassa a fraqueza humana e que José Mingorra aceita ao pedir que o pároco ministre o viático à filha moribunda 42; nessa circunstância volta a procurar o pároco, a quem ameaçara de morte, ouvindo – surpreendido – a vontade de renúncia ao seu ministério por fidelidade aos princípios que ele representa. Ainda que Planície Heróica seja o exemplo mais claro, na produção literária de Manuel Ribeiro abundam os exemplos de figuras do clero e do que significam, figuras-tipo que encarnam modelos distintos e compreensões diversas de uma disputa que atravessava a Igreja Católica e a sociedade portuguesa do início do século XX; é, no entanto, uma temática a necessitar de trabalhos de enquadramento e tratamento monográfico para um aprofundamento da compreensão da evolução social, cultural e religiosa portuguesa desse período. De algum modo, o conflito interno por que passa o Pe. Dionísio e o destaque dado por Manuel Ribeiro à coerência pessoal da personagem, destacando a intensidade da sua vivência espiritual em conflito com a sedução «pagã» da terra, 37 38 39 40 41 42

Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 108. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 162-164. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 177. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 151. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 318-319. Manuel Ribeiro – A Planície Heróica, p. 326.

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reflecte, também, a preferência pessoal do romancista e o impacto que diferentes clérigos tiveram no seu percurso pessoal. Entre todos, avulta a personalidade e o carisma do padre Francisco Cruz, popularizado como o «Santo Padre Cruz», cujas frequentes visitas ao Limoeiro são várias vezes invocadas por Manuel Ribeiro quando recorda a sua experiência pessoal de prisioneiro; aquele padre representava para o romancista a pobreza e o desprendimento, assim como uma empatia humana atenta (no exemplo do pão e dos cigarros que pedia em esmola para levar aos presos) que deveria caracterizar o clero, segundo Manuel Ribeiro43. O conhecimento travado com o Pe. Cruz, contemporâneo da sua prisão e da publicação do primeiro romance, coincide com a influência de uma outra personalidade do clero lisboeta da época, o padre Pereira dos Reis, figura importante do movimento de renovação litúrgica a que não era alheia a aproximação à espiritualidade beneditina que haveria de concretizar-se, em 1951, com a entrada na Ordem de São Bento no mosteiro de Singeverga44. A personalidade e os interesses do futuro Monsenhor Pereira dos Reis revelaram-se decisivos no percurso de Manuel Ribeiro em direcção ao catolicismo, pelo menos em dois momentos: na aproximação estética inicial, motivada pela arquitectura gótica e o impacto cénico da liturgia, e na já assinalada estadia do romancista alentejano numa comunidade Cartuxa, simultaneamente relevante do ponto de vista das preocupações estéticas do romancista e da inquietação espiritual que o atravessava. No entanto, como atrás se assinalou, a mudança individual sublinhada em O deserto ficaria incompleta, para Manuel Ribeiro, sem a urgência da transformação social traçada em A Ressurreição: o trânsito entre a figura dos cartuxos, e da emoção estética da arquitectura e da liturgia conventual, à necessidade de alargamento dessa experiência à totalidade do tecido social vão de par com as preocupações políticas e sociais do romancista alentejano. O ensaio de teoria política Novos Horizontes (1929), confrontando «sovietismo», fascismo e a democracia cristã, ajuda a trazer alguma inteligibilidade ao percurso que havia de conduzir Manuel Ribeiro ao grupo que com o Pe. Joaquim Alves Correia estará na criação do jornal Era nova (1931). Mais que de um ciclo que se encerra, esta etapa do trajecto pessoal, intelectual e militante de Manuel Ribeiro dá conta das permanências que o Cf. Depoimento de Manuel Ribeiro. Jornal da Madeira. N.º 12 (23 de Março de 1924). Originário da Vermelha, Cadaval, onde nasceu a 30 de Janeiro de 1879, José Manuel Pereira dos Reis foi ordenado presbítero a 19 de Novembro de 1903. Destacou-se pelo seu percurso académico na Faculdade de Teologia em Coimbra, tendo sido convidado para professor da Faculdade de Letras com a extinção daquela, o que recusou. Professor do Seminário de Santarém e pároco dos Anjos, em Lisboa, a partir de Maio de 1917. A ele se deveram os textos litúrgicos da celebração do Santo Condestável, cujo processo para o reconhecimento do culto liderou, incumbido pelo Patriarca D. José Neto. Primeiro reitor do Seminário dos Olivais foi, depois, conselheiro eclesiástico da Embaixada de Portugal no Vaticano entre 1945 e 1948. Morreu no Hospital de S. João, Porto, a 13 de Maio de 1960. Para um esboço biográfico detalhado atente-se a António dos Reis Rodrigues – Vidas autênticas. Lisboa: Paulus, 2004, p. 8-77. 43

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compõe e sucessivamente se vão metamorfoseando, dificilmente permitindo ver nas figuras de clérigos que atravessam essa viagem meros episódios acidentais.

3. A concluir Nas metamorfoses da militância de Manuel Ribeiro, que resumidamente se podem sintetizar no trânsito do anarco-sindicalismo ao catolicismo integral, expressa-se, pelo conjunto da sua obra e pelo percurso pessoal, a diversidade do catolicismo e do universo cultural não-católico coevo, bem como a procura de respostas orgânicas a âmbitos frequentemente tratados como estanques mas que se encontram mutuamente implicados: o político, o social e o religioso. A resposta religiosa (enquanto interpenetração da satisfação da exigência mística, como Manuel Ribeiro frequentemente testemunhará, e da transformação social) aparece como solução cabal, na sua óptica, para as interrogações essenciais do Homem, aproximando-o do catolicismo integral, ou seja, daqueles que advogando o «regresso» à vivência das exigências religiosas se torna possível garantir a coesão social através do reforço dos mecanismos de solidariedade que obstem à erosão provocada quer pela exploração de uma classe sobre outra, quer pela luta de classes contra essa exploração. Deste modo, a densidade espiritual da fé religiosa implica necessariamente, para Manuel Ribeiro, uma prática social conforme com esse substrato, aparecendo como insuficientes, quer a transformação pessoal fechada sobre si – o paroxismo do desencarnado cumprimento ritual das práticas institucionais – quer a renovação das estruturas sociais sem implicar a vida espiritual do indivíduo. O percurso e a obra de Manuel Ribeiro, percebidos que foram como ilustração do trajecto de uma parte da intelectualidade europeia, consciente dos limites do cientismo positivista e corporizando um conjunto de preocupações espirituais de cariz religioso, justificam a visão apologética que o apresenta como figura icónica do «convertido». Se é indiscutível a influência de um certo espiritualismo de inspiração cristã, expresso por autores como Paul Claudel, George Bernanos, J.-K Huysmans45 e a literatura que tem sido classificada como «de conversão», Manuel Ribeiro, pela sua experiência e pelo seu percurso, não foi um simples reflexo desse ambiente Embora frequentemente surjam como ícones do grupo de intelectuais franceses convertidos ao catolicismo, os percursos de Joris Karl Huysmans (1848-1907), Paul Louis Charles Claudel (1868-1955), Georges Bernanos (1888-1948), quer do ponto de vista pessoal, quer do profissional, literário e político, foram bastante diversificados. Apesar disso, podem aproximar-se, entre outras características, pelas inquietações espirituais com que se debateram e em que os positivismos heterodoxos tiveram impacto relevante. Nos casos de Huysmans e Claudel, junta-os, ainda, o fascínio pela espiritualidade beneditina, filão no qual Manuel Ribeiro também se inscreve.

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cultural europeu, particularmente dos ambientes marcados pelo catolicismo, antes assinala como originalidade um modo de sentir e de acreditar nas fronteiras de um certo «existencialismo espiritual» marcado pela tensão entre a «revolução» e a «reforma», tanto do ponto de vista individual como social. Talvez essa peculiaridade permita questionar o que, tanto António Sérgio como Manuel Gonçalves Cerejeira e Paulo Durão, padre jesuíta e crítico literário, assinalaram, sobretudo na «trilogia social», como sendo a falta de espessura na análise do drama interior das personagens ante a expressão prevalente da erudição do autor – numa aproximação que faziam entre a obra de Manuel Ribeiro e a de J.-K Huysmans que o romancista alentejano recusou. Embora essa crítica não pareça destituída de sentido, importa indagar, no entanto, se essa eventual lacuna não resulta da exemplaridade da narrativa e das personagens que parece sobressair como intenção fundadora das obras mais representativas de Manuel Ribeiro. O mínimo que pode dizer-se é que faltam estudos que, permitindo esclarecer estas e outras questões em torno do trajecto pessoal e da obra do escritor alentejano, ajudem a traçar a sua relevância no panorama sócio-político, cultural e religioso coevo para lá do sucesso conseguido à época, o que, de algum modo, permite perceber um clima de receptividade ao seu estilo, se não às inquietações que exprime. Em todo o caso, parece merecer destaque a aproximação quer a um certo franciscanismo intelectual, quer à reflexão social cristã condensada no pensamento leonino, ainda que a sua origem lhe seja anterior e tenha tido significativos desenvolvimentos posteriores. Em equação está o problema da virtude que decorre da vivência da fé e que se torna operativa na acção; nisso encontramos uma das problemáticas fundadoras da modernidade ocidental, a das obras, do seu significado e fundamentação. Dito de outro modo, no centro da obra de Manuel Ribeiro encontramos o problema moral e o horizonte ético da realização humana, bem como a densidade espiritual que a preenche e lhe dá sentido. Para o escritor, a revolução social desejada seria incompleta sem a renovação pessoal, resultando esta da vontade do indivíduo, mais que de qualquer determinismo extrínseco, o que o obriga a apontar a falência do cientismo na construção de um código universal e positivo de conduta. É esse o núcleo no romance Os Vínculos Eternos (1929) e a perspectiva que sobressai da carta em que Manuel Ribeiro o dedica a Manuel de Brito Camacho, onde se lê: «V. Ex.ª sabe-o bem. A ciência pura, que é impessoal e objectiva, e se coloca fora do interesse humano e social, arrasa, pela força da sua lógica inexorável, todas as crenças e subjectividades de qualquer sorte, sejam elas de ordem religiosa ou racional. Tanto fere à direita, como fere à esquerda. Arremete aos dogmas da Religião, como às próprias raízes da Democracia. É uma terrível arma de dois gumes, que nada respeita e nada acata, e tanto

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mais de temer, sr. doutor, que a matreira não quer combate no campo solto da dialéctica, onde a poderíamos filar com alguns passes de retórica, – mas no limite justo dos factos. Parece-me pois que há o direito de nos defendermos dela. É preciso não deixar vingar este horrível lema que a ciência inscreve, em desafio, à entrada do Laboratório: – Determinismo, Desigualdade, Selecção, e opor-lhe a todo o transe este outro que ela diz que está errado e que tem ressaibo cristão: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.»46

A obra e o trajecto espiritual de Manuel Ribeiro afiguram-se como uma leitura da contemporaneidade europeia que, sem recusar os desideratos fundacionais desta, acaba por encontrar na mediação da tradição católica uma resposta de cariz global mas nem por isso totalizante. Na realidade, das suas obras transparece a percepção aguda de que, sendo pessoalmente para o escritor alentejano, o caminho, nem por isso deixa de ser um caminho que disputa com outros a relevância no percurso do indivíduo e da sociedade no seu conjunto.

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Manuel Ribeiro – Os Vínculos Eternos. Lisboa: Livraria Editora Guimarães & C.ª, 1929, p. VII.

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