A IMAGEM DA CAVALARIA CONSTRUÍDA A PARTIR DA ANÁLISE DO LIVRO DA ORDEM DA CAVALARIA DE RAIMUNDO LÚLIO (1279-1283)

June 1, 2017 | Autor: Saulo Nascimento | Categoria: History, Medieval History, Ramon Llull, Chivalry (Medieval Studies)
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

A IMAGEM DA CAVALARIA CONSTRUÍDA A PARTIR DA ANÁLISE DO LIVRO DA ORDEM DA CAVALARIA DE RAIMUNDO LÚLIO (1279-1283)

CURITIBA 2016

SAULO NASCIMENTO

A IMAGEM DA CAVALARIA CONSTRUÍDA A PARTIR DA ANÁLISE DO LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA DE RAIMUNDO LÚLIO (1279-1283)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Licenciatura em História. Orientador(a): Profa. Dra. Adriana Mocelim

CURITIBA 2016

SAULO NASCIMENTO

A IMAGEM DA CAVALARIA CONSTRUÍDA A PARTIR DA ANÁLISE DO LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA DE RAIMUNDO LÚLIO (1279-1283)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Licenciado em História.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________ Professora Doutora Adriana Mocelim (Orientadora). Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Curitiba, 31 de maio de 2016.

Dedico esta obra a minha orientadora Adriana Mocelim pela paciência e carinho durante esses anos dedicados a mim e a todos os seus estudantes.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por garantir na fé a força necessária para compreender minhas limitações e mostrar o caminho para me superar todos os dias da minha vida. Agradeço minha mãe Roseli Nascimento por ser inspiração, força, companheira e mãe em todas essas horas. Mãe você me fez ser forte para as horas difíceis e suave para os bons momentos. Agradeço a minha irmã Maria Carolina de Oliveira Pienegonda que viu em mim fonte de inspiração enquanto eu via nela a força de uma mulher guerreira que corre atrás de seus sonhos. Família é algo difícil para se definir nos dias atuais, a minha é composta por pessoas muito especiais que mesmo que não dividam consanguinidade são integrantes importantes do meu coração e estiveram comigo nessa jornada e em tantas outras as quais já cursei. Sobre esse tipo de família reservo um espaço especial para Pedro Leonardo Alves Springer, você é meu irmão e amigo, é inspiração para continuar estudando e é inspiração de caráter na minha vida, é uma honra trilhar os caminhos dessa vida ao seu lado. Ainda sobre a família que encontramos na vida agradeço minha orientadora Adriana Mocelim que me abriu oportunidade de levar para além da sala de aula a pesquisa histórica, sua confiança em mim me deu força para continuar trabalhando apesar de todas as adversidades. Agradeço com todo o meu coração as pessoas que transcenderam as paredes da universidade e vieram fazer parte da minha vida como amigos de verdade, sem vocês essa conquista não seria possível: Dani G. da Costa por ter vindo para noite e compor esse grupo de amigos; Evandro Silva pelos fantásticos “boa noite’s”; Felipe Tkac pelas ótimas discussões que contribuíram para a minha formação e por uma amizade muito importante; Gabriel Silva pelas ótimas risadas juntos; Gabriel Paris pelo choro juntos; Jacqueline P. Zellner pelo companheirismo e carinho; Jhenifer Fernandes por rir comigo mesmo das coisas difíceis; Lucas Augusto por enriquecer meu dialogo sobre o medievo e pelo companheirismo; Thays G. May por ser parceira para todas as horas e Wesley V. Borges a peça importante que uniu todo esse pessoal nessa amizade.

Afinal de contas, é disso que a história trata, em sua acepção mais ampla: como e por que o Homo sapiens passou do paleolítico para a era nuclear. (HOBSBAWM, 2013, p. 96)

RESUMO A cavalaria medieval, nas palavras de Flori: “Rainha das batalhas do século XI ao XIV” (2006, p. 185) é fruto de estudo e pesquisa por muitos historiadores. Pesquisar sobre a cavalaria compreende também o intuito de desconstruir alguns valores românticos e buscar compor o entendimento de imagem e ideal para o período. Esta monografia irá abordar o ideal de cavalaria proposto por Raimundo Lúlio em sua obra “O Livro da Ordem de Cavalaria” no período de 1279 a 1283 anos aos quais o autor se dedica a refletir sobre a mesma. Para entender o ideal proposto por Lúlio é importante conhecer a cavalaria como instituição do medievo, bem como o contexto histórico e o ideal proposto por aquela sociedade. Conhecendo o contexto histórico é possível levantar alguns questionamentos: Quais eram esses valores; sobre quais princípios estavam pautados; e quais os vícios que um cavaleiro deveria evitar? Para responder esses questionamentos foi empregado o uso da ampla análise bibliográfica de autores como Jean Flori, Jacques Le Goff e Ricardo da Costa que auxiliam no entendimento do período. Palavras-chave: Cavalaria Medieval, Ideal de cavalaria, Raimundo Lúlio

ABSTRACT

The medieval chivalry, according to Flori: "Queen of the battles of the century XI to XIV" (2006, p. 185) is the result of study and research by many historians. Search on the chivalry also includes the intention to deconstruct some romantic values and seek to compose the image understanding and ideal for the period. This paper will handle the ideal of chivalry proposed by Ramon Llull in his work "O Livro da Ordem da Cavalaria" in the period 1279-1283 years in which the author is dedicated to it. To understand the ideal proposed by Llull is important to know the chivalry as a medieval institution, and the historical context and the ideal proposed by that society. Knowing the historical context is possible to raise some questions: What were those values; about what values were lined; and what vices that a knight should avoid? To answer these questions we employed the use of extensive literature review of authors such as Jean Flori, Jacques Le Goff and Ricardo da Costa that makes up the understanding of the period. Keywords: Medieval Chivalry, Chivalry Ideal, Ramon Llull

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1. A ORDEM DA CAVALARIA ....................................................... 11 1.1 A PENÍNSULA IBÉRICA E MAIORCA NO CONTEXTO DE RAIMUNDO LÚLIO ........................... 15

CAPÍTULO 2. A IMAGEM DA CAVALARIA SEGUNDO “O LIVRO DA ORDEM DA CAVALARIA” DE RAIMUNDO LÚLIO ........................................................ 25 2.1 DOS VÍCIOS E VIRTUDES DE SER UM CAVALEIRO EXPRESSOS NA OBRA DE LÚLIO ............... 28

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 35 BIBLIOGRAFIAS .............................................................................................. 37 FONTES ........................................................................................................... 39

INTRODUÇÃO

A cavalaria medieval, nas palavras de Flori: “Rainha das batalhas do século XI ao XIV” (2006, p. 185) é fruto de estudo e pesquisa por muitos historiadores. Pesquisar sobre a cavalaria compreende também o intuito de desconstruir alguns valores românticos e buscar compor o entendimento de imagem e ideal para o período. A historiografia se debruçou sobre o tema sob a luz de diversas escolas, contudo a escola francesa de Annales foi realmente a mais significativa na composição metodológica na análise do medievo. No bojo das mudanças propostas, o emprego de diferentes fontes históricas e o trato do documento histórico foram imprescindíveis para o crescimento da produção historiográfica sobre o medievo. Ainda sobre a Escola de Annales e seus representantes no campo do medievo, como Marc Bloch, Jacques Le Goff, Georges Duby entre outros, é importante ressaltar o entendimento do imaginário, temática principal desta monografia. A possibilidade de pesquisa pós Annales contribuiu, segundo Oliveira, “(...) para o reconhecimento de elementos culturais que não foram postos em cena como os modos de pensar, agir, imaginário, as práticas e representações, enfim vários objetos que passaram a ser abordados a partir da Cultura” (2014, p. 14). Esta monografia irá abordar o ideal de cavalaria proposto por Raimundo Lúlio em sua obra “O Livro da Ordem de Cavalaria” no período de 1279 a 1283 anos aos quais o autor se dedica a mesma. Para entender o ideal proposto por Lúlio é importante conhecer a cavalaria como instituição do medievo, bem como o contexto histórico e o ideal proposto por aquela sociedade. Raimundo Lúlio foi um filósofo catalão, cavaleiro da coroa de Aragão, e religioso leigo. Sua construção de um ideal de cavalaria permite-nos extrair a imagem do cavaleiro ressaltando os ideais da Ordem de Cavalaria que deveriam ser exaltados, bem como um modelo proposto para a formação do Cavaleiro. Com isso em mente podemos levantar alguns questionamentos:

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Quais eram esses valores; sobre quais princípios estavam pautados; e quais os vícios que um cavaleiro deveria evitar? Para compor uma análise possível é necessário conhecer a cavalaria como parte integrante da sociedade do medievo e que sofreu mudanças ao longo dos séculos XI ao XIV. Para tanto, o importante trabalho de autores como Jean Flori, Adeline Rucquoi e Ricardo da Costa compuseram a base desta pesquisa. Entretanto, conhecer a cavalaria não era o bastante. Foi necessário entender a cavalaria no tempo de Raimundo Lúlio, entender o contexto histórico de Aragão e suas vicissitudes no período. Autores como Adriana Zierer, Ricardo da Costa e Luciano José Vianna trazem em suas obras o entendimento do reino de Aragão no período de Lúlio, bem como uma pesquisa vasta sobre o próprio filósofo catalão. A pesquisa está organizada em dois capítulos. Primeiramente aborda um contexto histórico da cavalaria medieval de sua formação até o momento histórico ao qual Raimundo Lúlio escreve sua obra, bem como compreender o contexto de Lúlio no Reino de Aragão. No segundo capítulo é apresentada a análise da obra “O Livro da Ordem de Cavalaria” como um manual de comportamento aos cavaleiros bem como entender a filosofia luliana no que tange os vícios e virtudes dos cavaleiros

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CAPÍTULO 1. A ORDEM DA CAVALARIA O alvorecer da idade média trouxe consigo conflitos sociais. A Igreja por sua vez, personificada nas palavras de Adalberon de Laon tenta estabelecer uma organização social: A sociedade dos fiéis forma um só corpo, mas o Estado compreende três. Porque a outra lei, a humana, distingue duas outras classes: com o efeito, nobres e servos não são regidos pelo mesmo estatuto. Duas personagens ocupam o primeiro lugar: uma é o rei, a outra o imperador; é pelo seu governo que vemos assegurada a solidez do Estado.O resto dos nobres tem o privilégio de não suportar o constrangimento de nenhum poder, com a condição de se abster dos crimes reprimidos pela justiça real. São os guerreiros, protetores das igrejas; são os defensores do povo, dos grandes como dos pequenos, enfim, de todos, e asseguram ao mesmo tempo a própria segurança, A outra classe é a dos servos; esta raça infeliz apenas possui algo à custa do seu penar.Quem poderia, pelas bolas da tábua calcular, fazer a conta dos cuidados que absorvem os servos, das suas longas caminhadas, dos seus duros trabalhos? Dinheiro, vestuário, alimentação, os servos fornecem tudo a toda gente. Nem um só homem livre poderia subsistir sem os servos. A casa de Deus, que acreditam uma, está, pois dividida em três: uns oram, outros combatem, outros enfim, trabalham. Apud (VIANNA, 2000, p. 91)

Essa imagem edificada pelo bispo compõe as três ordens. Dentre as três, ressalto o objeto desta pesquisa, os que combatem. Os cavaleiros são aqueles protetores dos inermes (aqueles que não dispunham de armas), organizam-se em grupos armados, a cavalaria. Esta é dotada de um conjunto de valores éticos e morais e revestidos de valores religiosos que dicotomicamente caminham entre o paganismo e o cristianismo. De fato a Cavalaria é uma ordem militar, mas que passa a ter aspirações nobiliárquicas e monásticas religiosas a partir do século XII. Segundo Huizinga: À parte os desportos marciais, as ordens de cavalaria abriram uma vasta clareira onde o gosto pela alta cultura aristocrática podia expandir-se. Tal como os torneios e a accolade, as ordens de cavalaria mergulham as suas raízes nos ritos sagrados de um passado remoto. As suas origens religiosas são pagãs, somente o sistema feudal de pensamento as cristianizou. Estritamente falando, as várias ordens são simples ramificações da ordem da cavalaria propriamente dita. (1978, p. 63)

O surgimento da ordem de cavalaria não pode segundo Flori “[...] se confundir com a origem da nobreza e da cavalaria.” (2006, p. 185). No início da cavalaria, até o século XII, durante as guerras de conquistas territoriais um hábil guerreiro poderia ser agraciado pelo seu feito em batalha recebendo do 11

lorde que comandava o exército terras e bens como premiação. Este hábil guerreiro, agora possuidor de terras poderia se tornar um nobre por definição e um cavaleiro por conquista. No século XII, então, o interesse da nobreza para com a cavalaria fica mais evidente, torna-se mais difícil distingui-las tendo em vista os casamentos entre nobres e cavaleiros e passando então a restringir a cavalaria a uma linhagem nobiliárquica. O século XII então torna-se o um ponto de convergência entre elas. “[...] logo a nobreza controla e comanda a cavalaria, empresta-lhe sua ideologia a ponto de, a partir do século XII, a cavalaria aparecer como expressão militar da nobreza, que a considera território particular e alicia seus membros.” (FLORI, 2006, p. 185). Nesse contexto militar e nobiliárquico está também a Igreja, como fundamental nas relações de poder. A Igreja toma então um papel importante de tentar, segundo Flori, “inculcar nesses cavaleiros, e depois em toda a cavalaria, um ideal elevado: a proteção das Igrejas, dos fracos e dos desarmados (inermes) no interior da Cristandade: a luta contra os infiéis no exterior” (2006, p. 186). A esse movimento podemos exemplificar a convocação das Cruzadas1. Na Península Ibérica as batalhas e as lutas travadas pelos cavaleiros são também dotadas desses valores cristãos, bem como preceitos inerentes ao próprio imaginário de batalhas contra os inimigos da fé, num contexto conhecido como Reconquista2.

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Termo utilizado para significar a guerra travada pelos representantes da Cristandade numa tentativa papal de exportar a violência. São derivados desse movimento crúzio, nas palavras de Monte: “Portanto, factores materiais e estruturais no seio das sociedades medievais, associados à própria solidariedade de fé entre cristãos que percepcionavam a expansão muçulmana como uma ameaça, favoreceram a génese do movimento crúzio, enquadrado por uma renovação cultural e religiosa prosseguida desde antes da 1ª Cruzada a partir da Igreja, e que facilitaria a assunção de uma missão bélico-espiritual por parte de reis, guerreiros nobres e pebleus, a ser cumprida no Oriente em defesa dos cristãos e dos lugares santos.” (p. 2-3, 2008). Esses valores foram legitimados por Urbano II no sínodo de Clermont, segundo Flori: “aqueles que até então tinham vivido como saqueadores, martirizando seus irmãos cristãos, poderiam ir para o Oriente, onde os cristãos encontravam-se ameaçados pelos muçulmanos, e empregar sua energia contra os infiéis.” (2006, p. 479) 2 O termo reconquista é entendido como “a recuperação de territórios cristãos ‘usurpados’ pelos muçulmanos. O ‘renascer’ do antigo reino visigótico constitui uma continuidade políticoideológica, primeiro assumida por ásture-leoneses e depois com mais força por leoneses e castelhanos. Esse ideal, designado por nós como neogótico, fora perseguido com empenho nas surtidas para o sul, com tanto ou mais vigor do que o próprio ideal de cruzada pregado além-Pirenéus. Os reis cristãos peninsulares teriam, neste quadro, o dever de recuperar esses territórios.” PAIVA DO MONTE, Marcel. Cruzada e Reconquista: as duas faces da conquista de Lisboa em 1147. In: Revista Medievalista. Nº 5, (Dezembro 2008). Disponível em: HTTP://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista.

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A “Reconquista”, que inicialmente, no século VIII, tratava-se de uma empreitada dotada de um sentimento de expansão territorial e de ideais políticos para reestabelecer o auge imagético do antigo reino Visigótico, atraiu inúmeros cavaleiros. No século XI esse ideal recebe os valores de Cristandade, conforme Souza: Antes mesmo do discurso do Papa Urbano II (1088-1099) que pregava a Primeira Cruzada no Oriente (1095), um pontífice anterior, Alexandre II (1061-1073), havia concedido, em 1063, indulgências para os cavaleiros que fossem combater os muçulmanos na Hispânia em nome de Cristo. De fato quando o Papa Pascoal II (1099-1118) assimilou (em 1102) espiritualmente a Reconquista às Cruzadas na Terra Santa e proibiu aos hispânicos combaterem na Palestina, o pontífice proclamou que as indulgências poderiam ser ganhas na própria Hispânia, pois se tratava de uma guerra santa na qual aqueles que pereciam tinham o Paraíso garantido. (2011, p. 2)

No contexto das batalhas da “Reconquista” é que Raimundo Lúlio compôs um livro com a construção de um ideal de cavalaria, na tentativa de imprimir valores e educar os novos cavaleiros: No começo, como veio ao mundo menosprezo de justiça devido à míngua de caridade, conveio que pelo temor a justiça retornasse à sua honra. E por isso, de todo o povo, foram divididos em grupos de mil e de cada mil foi eleito e escolhido um homem, mais amável, mais sábio, mais leal e mais forte, e com mais nobre coragem, com mais ensinamentos e de bons modos que todos os outros. (2010, p.14)3

Já percebemos, no discurso de Lúlio, um imagético repleto de valores que deveriam fazer parte do conceito de cavaleiro. Sabedoria, Lealdade, Força, Coragem, Conhecimento e Bons Modos são os valores apontados pelo mesmo como parte para ser “escolhido”. Definido o homem, este ser repleto de valores, ele teria como companheiro seu cavalo que completa o sentido de cavaleiro, definido pelo autor: Buscou-se em todas as bestas qual era a mais bela besta e a mais veloz, e a que pudesse sustentar maior trabalho, e qual era a mais conveniente para servir ao homem; e por que o cavalo é a mais nobre besta e a mais conveniente para servir ao homem, por isso, de todas as bestas, o homem elegeu o cavalo, que foi doado ao homem que foi dos mil homens eleito. E por isso aquele homem tem o nome de cavaleiro. (2010, p. 13)

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COSTA. Ricardo da. Tradução in: LÚLIO. Raimundo. O Livro da Ordem da Cavalaria. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2010. Para futuras referências o texto de Lúlio será apresentado apenas a tradução.

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O uso do cavalo em batalhas vem de uma conjuntura de elementos que são reforçados a partir do século IX, o uso do estribo, vindo do oriente, para manter o cavaleiro na cela, contribuiu grandemente para a construção deste guerreiro montado. Aliado a isso, avanços técnicos e de armamento complementaram e modificaram a condição do cavaleiro medieval, segundo Flori: No início do século XII, no entanto, um novo método de combate, o do choque frontal, surgido meio século antes, mas considerado até então secundário, impõem-se a chegar a suplantar os demais: nele se usa uma lança em posição horizontal fixa, que o cavaleiro segura firmemente encaixada sob o braço. Com esse novo método, adotado definitivamente pela cavalaria, a eficiência da lança não depende mais da força do braço do guerreiro, mas da velocidade do cavalo: o cavaleiro forma um todo com sua montaria e esse “projétil vivo” beneficia-se da potência que lhe confere o galope a cavalo. (2006, p. 187-188)

A forma de combater mudou e, com isso, a forma como era visto o cavaleiro na sociedade medieval. Sua força em combate o preencheu de glórias, logo, a nobreza tenta vincular-se a essa força ressaltando seus valores, destacando-se como os defensores da Cristandade, dos bons modos e dos inermes. O rito de ordenação é também incorporado aos valores do cavaleiro. O adubamento4 permeia também o misticismo que a função era imbuída, ritos que transcendiam a Cristandade e remontam a valores pagãos. O sentido era recriar uma tradição militar, um passado glorioso de batalhas em uma mescla de culturas religiosas diferentes, bem como ressaltar em seus números a presença da linhagem cavaleiresca. No conceito de nobreza e cavalaria conforme explanado anteriormente, Flori aponta que: “As profundas mudanças sociais do século XI ampliam o papel dos cavaleiros na nova sociedade” (2006, p. 189). Por mais que num passado não muito distante os cavaleiros tivessem vindo dos camponeses, seus costumes e ideais misturavam-se aos nobres a quem serviam, dada a 4

Este termo técnico (adoubement) não está dicionarizado em português, mas o verbo adubar nas acepções de “equipar”, “preparar”, “temperar”, decore destes mesmos sentidos do francês adouber (significativamente surgido em 1080 na Chanson de Roland), do qual derivou por volta de 1150 aquele substantivo para indicar a cerimônia de entrega das armas equipamento que fazia de alguém cavaleiro. FRANCO JUNIOR, Hilário. Nota de Tradução. In: LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, Ed. EDUSC, 2006.

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proximidade que se encontravam. Contudo, era premissa da nobreza a linhagem, a difusão de sua natureza nobre provinha essencialmente da sua ligação com seus antepassados, que, por vezes, no imaginário do medievo eram até mesmo míticos. Para Flori: Sem se confundir ainda com a nobreza, que permanece questão de sangue, de nascimento, de linhagem, a cavalaria ganha em dignidade e logo compõe uma classe hereditária, que constitui, por usa vez, uma aristocracia, na qual se entra por adubamento, rito cavalheiresco por excelência, que se reserva cada vez mais apenas aos filhos de cavaleiro: só são armados cavaleiros os filhos de pai cavaleiro e de mãe nobre. Por essas disposições, a nobreza controla a entrada na cavalaria e reserva o acesso a ela a seus próprios membros, numa época em que a dignidade cavaleiresca acrescenta distinção àquele que a recebe. Cavalaria e nobreza acabam por se fundir ou por se confundir. (2006, p. 190)

É, então, para Flori, no século XIII que nobreza e cavalaria se confundem definitivamente. Começa a ficar mais e mais restrita a presença de cerimônias de adubamento, tanto pelo seu alto custo, quanto que pela exclusividade de linhagem Nobre. Para Lúlio: Tão alta e nobre é a Ordem do cavaleiro que não bastou à Ordem que se fizesse com as mais nobres pessoas; nem que se lhe doasse as bestas mais nobres nem lhe desse as mais honradas armas, antes conveio ao homem que se fizessem senhores das gentes aqueles homens que são da Ordem de Cavalaria. E porque no senhorio há tanto de nobreza, e na servidão tanto de submissão, se tu, que abraças a Ordem de cavalaria, fores vil e malvado, poderás pensar qual a injúria fazes a todos teus submetidos e a todos teus companheiros que são bons, porque pela vileza em que estás, deverias ser submetido, e pela nobreza dos cavaleiros que são bons, és indigno de ser chamado cavaleiro. (2010, p. 17)

Lúlio considera o cavaleiro pertencente à Ordem um senhor de outros homens, ou seja, um nobre por definição. Logo em seu capítulo de início já deixa claro a linhagem nobiliárquica ao qual o cavaleiro está inserido e, como tal, deve se portar sob os preceitos virtuosos, pois um homem, senhor de outros homens que não age apenas por si mesmo, age também em nome de seus vassalos.

1.1 A PENÍNSULA IBÉRICA E MAIORCA NO CONTEXTO DE RAIMUNDO LÚLIO

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A Península Ibérica fora uma região de extrema importância no controle administrativo romano. Para Rucquoi “A criação das dioceses Hispaniarum, que

o

imperador

Diocleciano

estabeleceu

em

297

[...],

contribuiu

indiscutivelmente para o nascimento de uma entidade administrativa específica que os Visigodos do século VI transformaram em entidade política [...]” (1995, p. 11). Com a chegada dos visigodos por volta do ano 409 e seu estabelecimento em 507 da Era Cristã, essa sede administrativa conhece, segundo Rucquoi, “três etapas, do reino de Tolosa (418-507) aos primeiros reis visigodos (548-569) passando pelo dos Ostrogodos (507-548)” (1995, p.32). Valendo-se da tese de Armando Besga, sob a análise de Jiménez, o norte da Península Ibérica permaneceu ocupado pelos godos mesmo após a chegada dos muçulmanos dando o sentindo a palavra “Reconquista”, traduzida como uma empreitada militar e ideológica que viria a acontecer para tomar de volta as terras daquela península do poderio dos muçulmanos. Ou seja, já havia certa estrutura, ainda que embrionária. Para Jiménez: “Em uma palavra, a restauração da ‘ordem dos godos’ ocorrida nos tempos de Afonso II não surgiu do nada: tal ordem, mesmo embrionária e imperfeita, havia estado presente em Astúrias desde os mesmos dias da sublevação de Pelagio contra os invasores muçulmanos.5 (ALMEIDA & CARVALHO, p. 455 Apud: JIMÉNEZ, 2003. p. 155)

A chegada das forças muçulmanas a Península Ibérica modifica e afasta os visigodos para o norte da Península, a força militar muçulmana é descrita por McEvedy: O primeiro grande avanço aconteceu no Norte da África, onde os árabes vinham operando com êxito variável a partir de um acampamento estabelecido em Kairuan, no sul da Tunísia, em 670. Em 698, eles conduziram essas campanhas a um desfecho vitorioso, capturando Cartago, mas o episódio provavelmente teve menos importância que a posterior conquista e conversão dos berberes do interior (702). Isso deu aos árabes o ímpeto – e os novos recrutas – necessários para prosseguir rumo ao resto no Norte da África e entrar na Espanha. Ao cruzar Gibraltar (Jebel al-Tarik, em que Jebel significa montanha e Tarik é o nome do comandante da invasão), os árabes obtiveram uma vitória sobre os visigodos que deixou em suas mãos toda a península, exceto uma faixa no norte (711).” (2007, p.38) 5

Tradução do autor.

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A Cristandade remanescente nas Astúrias procurou se reorganizar política e estruturalmente oferecendo resistência aos invasores. Reinados independentes surgem como resistência e enfrentamento ao domínio muçulmano e é nesse contexto que surge a Reconquista, através de movimentos que surgiram desde a chegada dos muçulmanos, com batalhas constantes em seu território em um processo de longa duração, caracterizado inicialmente por conquistas territoriais A conquista da Ásia bizantina foi um grande triunfo para o islã. A cristandade não pôde se equiparar, mas na outra extremidade do Mediterrâneo registrou um importante êxito: a captura de Toledo, em 1085. Os cristãos da Espanha começavam a atuar conjuntamente: o número de seus reinos caíra de seis para três, com Aragão absorvendo Navarra e, o mais importante, Afonso VI de Leão dominando Castela e a Galiza (1072-5). (MCEVEDY, 2007, p. 66)

É com Urbano II, segundo Cardini: Enfim, em novembro de 1095, ao final de um sínodo realizado em Clermont, no Auvergne, o papa Urbano II [...] dirigiu à aristocracia francesa uma advertência divulgada a seguir por toda a Europa: aqueles que até então tinham vivido como saqueadores, martirizando seus irmãos cristãos, poderiam ir para o Oriente, onde os cristãos encontravam-se ameaçados pelos muçulmanos, e empregar sua energia contra os infiéis. Assim, com o recurso deste expediente destinado a “exportar a violência”, foi assentada a primeira pedra no edifício das futuras Cruzadas. A guerra contra os muçulmanos na Terra Santa ou na Espanha atraiu um número crescente de cavaleiros [...]. (2006, p. 479)

Tornando-se, então, um amálgama de religiosidade e conquistas territoriais, no século XII. Os já cindidos reinos cristãos no norte da península, são imbuídos dos valores de Cristandade, valores que davam o tom de Cruzada à Reconquista. Devido ao objeto desta pesquisa, será dado o enfoque ao Reino Cristão de Aragão, surgido em 1137 da união dinástica do condado de Barcelona e do Reino de Aragão, segundo Sabaté: O pacto matrimonial estabelecido em 1137 selando o matrimónio do conde de Barcelona Ramon Berenguer IV com a pequena Peronella, de apenas um ano de idade, herdeira do trono de Aragão, veio alterar o testamento do seu falecido tio que cedera o reino às ordens militares, cuja pretensão na realidade abrira uma crise institucional depois da morte de Afonso “O Batalhador” em 1134. (2013, p. 55)

A relação de unidade territorial entre Barcelona e Aragão, como reino, é descrita por Sabaté: 17

Este percurso comum implicou uma aproximação progressiva, compartilhando circunstâncias semelhantes diante da fronteira, sob um mesmo dinamismo económico e com uma evolução cultural semelhante que se espelhou através do latim em uma língua vulgar própria. Foi deste modo que no século XII culminou a percepção unitária do território que pela primeira vez foi descrito por um nome comum: Catalunha. (...) Tratava-se então de um conjunto de espaços inicialmente justapostos, mas que rapidamente foram submetidos a uma coesão social que, na segunda metade do século XII, permitiu estender uma percepção comum sob um mesmo coronómino: Aragão. Assim, entre esta centúria e o fim da Idade Média, um mesmo soberano e seus descendentes regeram a Catalunha e Aragão sem ser capazes de unir mutuamente os dois territórios, tornando-se evidente que não foi o peso da dinastia, mas antes o das respectivas forças sociais que consolidaram um e outro espaço (2013, p. 55-56)

Está união levou a fronteira ao sul, em direção ao mediterrâneo. Conforme Sabaté o reino de Aragão expandiu rapidamente (...)centrada nas conquistas de Huesca (1096) e Barbastro (1100) até à capital da Marca Superior islâmica, Saragoça (1118), sob o estímulo feudal com que se organizou o vale do Ebro central, vindo a prolongar-se para sul mediante a incorporação do território em torno a Teruel em 1177, bem como nas encostas meridionais que ladeiam a fronteira valenciana. (2013, p. 55-56)

Entretanto, prova de que a “Reconquista” não se resumiu apenas a batalhas, mas também a organizações, casamentos e acordos de ambos os lados que permearam as conquistas no Reino de Aragão. O cerco de Valência, é outro exemplo. Conforme Viana: Como o rei estava com poucos cavaleiros, o sítio de Valência não se realizou, e como consequência Jaime estabeleceu uma trégua com o rei muçulmano seid Abu Seid, na qual este pagaria uma quinta parte das rendas de Valência e de Múrcia. Em troca, Jaime se limitava a não atacar a cidade valenciana. Estas exigências financeiras e defensivas, que aconteceram durante o processo de Reconquista da Península Ibérica, foram realizadas tanto de muçulmanos para cristãos quanto de cristãos para muçulmanos, e favoreceram o rápido enriquecimento das partes credoras. Estes procedimentos ocorreram entre os séculos XI, XII e XIII, em um momento que a guerra era a forma mais rápida de enriquecimento. (2008, p. 117)

A ordem dinástica de Aragão nos leva a Jaime I (1208-1276) que assumiu para si os valores empregados na Reconquista e seus avanços para o sul da Península o levam a Maiorca, a maior das Ilhas Baleares no Mediterrâneo, segundo Terrero: “Aos 22 anos, começou a campanha da conquista de Maiorca, com uma grande esquadra que entrou em Palma em 31

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dezembro 1229.6” (1965, p.189). Seu ímpeto era recheado de um valor de Cristandade e a necessidade de acalmar os nobres que questionavam seu trono, pois, para Terrero: “Foi prematuramente elevado ao trono aos 11 anos, e declarado maior de idade, mas até 1227 não havia apaziguado o reino.” (1965, p.189). As batalhas de Maiorca, também representaram, além da luta, a capacidade que o Rei tinha de negociar e adquirir recursos através de diplomacia. Como mostra, segundo Andrade nas palavras de Jaime I o acordo com o muçulmano Aabet: Nós expusemos isso aos nobres da hoste, e todos disseram que era bom que isso ocorresse. Depois, o sarraceno nos disse para enviarmos cavaleiros a um lugar seguro, a aproximadamente uma légua da hoste, que ele sairia dali sob a nossa confiança, para fazer seu pacto conosco e nos servir de boa fé e sem engano, pois assim nós reconheceríamos o grande serviço que ele nos faria. Assim, enviamos vinte cavaleiros e o encontramos naquele lugar. Ele chegou com seu presente, e nos ofereceu cerca de vinte bestas carregadas de cevada, cabritos, galinhas e uvas. As uvas que ele nos trouxe eram de tal qualidade que mesmo estando nos sacos não se partiram nem se estragaram. Em seguida, nós dividimos aquele presente que ele nos ofereceu com os nobres da hoste. Isso fez aquele anjo que Deus nos enviou, e quando digo anjo refiro-me ao sarraceno, pois nos fez tanto bem que o tomamos por um anjo, já que se parecia com um. (Jaime I de Aragão, 2010 Apud ANDRADE, 2013 p. 111)

Assim, o conselho do Rei, nas batalhas que aconteceriam em Maiorca, recebera um inesperado reforço muçulmano garantindo ainda mais fôlego para as tropas aragonesas. As descrições das batalhas que se seguiram no cerco de Maiorca analisadas por Andrade, mostram-nos também que a força aragonesa se valeu de diversos artifícios para vencer, imbuindo o medo no centro da cidade e conquistando de vez a cidade de Palma Em uma passagem anterior, os cronistas relatam que aproximadamente cinco mil sarracenos foram vencidos em uma cilada durante o cerco de Maiorca. Neste conflito, Jaime ordenou que seus homens cortassem a cabeça de seu líder, chamado Fátila, e a arremessassem dentro da cidade (...)” apud (Jaime I de Aragão, 2010: 125-126) (2013, p. 111).

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Tradução dos autores. Para futuras referências o texto de Terrero será apresentado apenas a tradução.

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Em 1232 Jaime conquista plenamente Maiorca dos muçulmanos, sob um importante documento llatinoaràbic del repartiment ele dividiu as terras entre os nobres que o ajudaram na campanha, conforme segue: Tabela Tabela I: Divisão dos distritos da Ilha

Fonte: PASTOR, Plácid P. Mallorca, 1230-1232: reflexions a partir de la relectra del códex llationarábic del repartiment. 2010, p. 31-33. In: Bolleti de la Societat Arqueològica Lul-liana. ISSN 0212 7458. 2010, número 66. Palma de Maiorca.

Conforme demonstra o levantamento de Pastor e aponta Terrero: “Jaime, cumprindo o acordo, dividiu a terra para os cavaleiros que o tinham 20

ajudado na conquista, principalmente catalães de Ampurdán, o que levou às ilhas sua língua e cultura” (1965, p.189). Nesse contexto percebemos uma construção cultural na ilha, segundo Costa: “Por volta de 1300, o Mediterrâneo ocidental falava o catalão como língua “internacional” para o comércio e a diplomacia.” (2001, p. 164). Sob o domínio aragonês, “A tomada a cidade de Maiorca, muitos sarracenos fugiram ou se esconderam, iniciando um período de pilhagem pelos cristãos e de resistência pelos sarracenos. (ANDRADE, 2013, p. 113). O vencido Rei Abû Yahya de Maiorca, capturado agora por Jaime I, fica protegido dos cristãos sob a guarda real, o que levanta um questionamento, exposto segundo Andrade: Mesmo que tenha resistido aos cristãos, e o fizera honradamente, Abû Yahya estava sob o poder de Jaime, e agora não poderia ser tocado pelos cristãos. Enfatizamos a necessidade de não entendermos os sarracenos como uma massa homogênea, pois pelo contrário, compunham um grupo altamente hierarquizado. Ressaltase que, a considerar sua posição social, estas populações foram mais ou menos impactadas pelas transformações ocorridas com a conquista cristã. Tanto Dom Aabet quanto o walī Abû Yahya – que tivera seu poder “traduzido” como o de um rei – ao deixarem de ser inimigos do Conquistador se transformaram em seus vassalos e, portanto, protegidos do rei. (2013, p.114)

Maiorca, ainda na época de domínio muçulmano e posteriormente sob domínio aragonês, era uma cidade de renomada importância, servindo de entreposto comercial, base para os avanços aragoneses e promovendo “(...) um intenso comércio com o norte da África (até o Egito) e a conquista da Sicília (1282), Sardenha (1323) e o sul da Itália (séc. XV). (COSTA, 2001, p. 164). Nesse contexto, ela se difere do restante do Reino e até mesmo da Península. Sua localização geográfica proporcionava uma condição estratégica, bem como cultural e comercial, diferentes do restante do continente Europeu. Conforme o Mapa:

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Figura 1

Maiorca

Fonte: MCEVEDY, Colin. Atlas de história medieval. p. 81. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Nesse contexto, logo após a conquista de Maiorca, já sob o domínio aragonês é que nasce Lúlio. Cresceu acompanhando os feitos do Reino de Aragão sob o comando do Rei Jaime I, (...) nos anos 1238-1245, Jaime conquistou o reino de Valência. O império almôada cambaleava, os pequenos principados da Ocitânia começaram a ser anexados pela coroa francesa, por sua vez apoiada pela Igreja que estava interessada em extirpar a heresia cátara e com a concordância tácita de Jaime I, que, neste caso, não desejava uma guerra com a França, além de ter sido pressionado pelo papa Honório III (1216-1227) a não intervir no Languedoc. (COSTA, 2001, p. 164)

Da Europa ao Norte da África, Maiorca recebia viajantes e comerciantes de diversas partes no entorno do Mediterrâneo, [...] A maioria da população, predominantemente burguesa (no sentido medieval de “residente do burgo”), imprimia um tom de “osmose estamental”, isto é, de amplas possibilidades de ascensão social através do trabalho no comércio. Estas características da sociedade maiorquina deram um grande dinamismo à visão social de Ramon Llull e às relações que ele atribuiu entre o príncipe e seus súditos na Árvore Imperial – além de uma importância a esta

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“burguesia emergente”, em detrimento da nobreza. O porto de Maiorca, estrategicamente localizado, era um centro de rotas marítimas que se entrecruzavam: do Magreg (proveniente de cinco cidades entre Buie e Oran), da Europa, Montpellier, Marselha, Gênova e Pisa faziam escala em Maiorca, e depois Minorca. Além disso, os maiorquinos faziam uma navegação de cabotagem ao longo de toda a costa do Magreb, no Canal da Sardenha e na Sicília, com escala em Túnis. (COSTA, 2001, p. 165).

Ou seja, traduzido na pesquisa de Costa, Maiorca diferenciava-se geograficamente e culturalmente do continente e do restante do Reino. Vivia um período, tanto para seus moradores quanto para as cidades que a rodeavam, de grandes avanços comerciais. Lúlio nasceu por volta de 12327 na cidade de Palma de Maiorca, no meio de diversas culturas religiosas que ali coabitavam os muçulmanos, cristãos e os judeus. Filho de Ramon Llull (Raimundo Lúlio), um cavaleiro que serviu ao Reino de Aragão e que recebeu muitas terras em troca de seus serviços a coroa, herdou de seu pai estas terras, o que lhe garantiu certo conforto em sua vida e, segundo Zierer, “Llull esteve próximo de reis, tendo sido senescal do futuro rei Jaime II, de Maiorca” (2009, p. 2 e 3) com apenas 14 anos. Jaulent explica que “O próprio Lúlio conta-nos que nessa época sua vida era frívola e dissoluta; gostava de compor trovas e poemas para as moças do lugar, e facilmente se envolvia com elas.” (2013, p. 29). Fora também adubado cavaleiro na corte de Aragão. O filósofo catalão vive intensamente as políticas que cercam o Reino e tendo largado as armas e vivido como um eremita e um pregador leigo ligado a Ordem dos Franciscanos abandona Maiorca, conforme Costa: No mesmo ano do tratado de Perpignan, Llull abandonou Maiorca, só retornando à ilha após a restituição de Jaime II como rei — vinte anos depois —, o que indica claramente sua posição política ao lado de Jaime II contra a imposição de vassalagem por parte de Pedro III — além do fato do papa apoiar Jaime II. (COSTA, 2001, p. 166)

Recebeu diversas influências na sua formação desde sua infância, perpassando pela sua cristianização que ocorreu em 1262, ainda segundo

Segundo Jaulent, “É difícil precisar o ano em que ocorreu o nascimento de Lúlio. Existem duas hipóteses: 1232 ou 1235. No lugar onde a tradição situa a casa onde nasceu encontra-se uma placa indicando o ano de 1232.” (2013, p. 22) JAULENT, Esteve. Raimundo Lúlio: um único pensamento e um único amor. E-book: São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2013.

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Zierer, “Aos 30 anos teve uma visão de Cristo crucificado por cinco vezes diferentes. Em virtude dessas visões decidiu abandonar sua antiga vida e tornou-se um pregador leigo.” (2009, p. 3). Sob essas influências, Lúlio cria um ideal de cavalaria, o qual discutirei em meu próximo capítulo.

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CAPÍTULO 2. A IMAGEM DA CAVALARIA SEGUNDO “O LIVRO DA ORDEM DA CAVALARIA” DE RAIMUNDO LÚLIO Raimundo Lúlio, no prólogo de seu livro, apresenta a ideia de um cavaleiro que, cansado e idoso, já não porta mais suas armas e repousa em um bosque a espera de sua morte e o contraponto, um jovem escudeiro que irá ser adubado a pedido do rei. Em aquele tempo, à entrada do grande inverno, aconteceu que um grande rei muito nobre e de bons e bem abundantes costumes, mandou haver cortes. E pela grande fama que tinha nas terras de suas cortes, um esbelto escudeiro, só, cavalgando em seu palafrém, dirigia-se à corte para ser armado novo cavaleiro; e pelo esforço que havia suportado em sua cavalgada, enquanto ia em seu palafrém, adormeceu; e naquela hora, o cavaleiro que na floresta fazia sua penitência chegou à fonte para contemplar a Deus e menosprezar a vaidade deste mundo, segundo que havia se acostumado ao longo de cada um dos dias. Enquanto o escudeiro cavalgava assim, seu palafrém saiu do caminho e meteu-se pelo bosque, e andou à vontade pelo bosque, até que chegou na fonte onde o cavaleiro estava em oração. O cavaleiro, que viu chegar o escudeiro, deixou sua oração e assentou-se no belo prado, à sombra da árvore, e começou a ler em um livro que tinha em sua falda (Saiote, aba). O palafrém quando foi à fonte, bebeu da água; e o escudeiro, que sentiu em sua dormência que seu palafrém não se movia, despertou e viu diante de si o cavaleiro, que era muito velho e tinha grande barba e longos cabelos e rotas vestes por seu uso; e pela penitência que fazia, era magro e pálido, e pelas lágrimas que vertia, seus olhos eram humildes, tudo dando uma aparência de vida muito santa. Muito se maravilharam um do outro, pois qual não havia visto nenhum homem depois de haver desamparado o mundo e deixado de portar armas; e o escudeiro se maravilhou fortemente de como tinha chegado naquele lugar. (LÚLIO, 2010, p. 6-7)

O inesperado encontro do jovem aspirante a cavaleiro com o velho cavaleiro cansado é recheado de simbologia. O velho cavaleiro carrega a sabedoria da cavalaria apesar de seu corpo cansado e fraco, o jovem carrega o vigor de sua juventude. Todo o imaginário no entorno da religiosidade e do significado do “ser cavaleiro” pode ser analisado no conceito apresentado por Jean Claude Schmitt: “Por imaginário, entendo uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, em ficções, em imagens, partilhadas pelos atores sociais. Toda sociedade, todo grupo constituído produz um imaginário, sonhos coletivos, garantidores de sua identidade. ” (SCHMITT, 2007, p. 351). O encontro das duas gerações pode ser remetido a uma parábola para se falar das importantes virtudes a serem dominadas pelos novos cavaleiros e os vícios a serem evitados. Segundo Zierer: “Lull utiliza motivos novelescos em 25

seu livro provenientes dos textos literários da matéria da Bretanha, como, por exemplo, o cavaleiro e o eremita.” (ZIERER & MESSIAS, 2013, p. 134). No prólogo percebemos também uma oportunidade de diálogo entre Lúlio e seu Rei na crônica seu personagem “o eremita” dialoga com “o escudeiro”, em suas palavras: - Senhor – disse o escudeiro – é fama por longínquas terras que um rei muito sábio mandou haver cortes, e fará a si mesmo cavaleiro e logo armará cavaleiros outros barões estrangeiros e privados. E por isso, eu vou àquela corte para ser novo cavaleiro; (Lúlio, 2010, p. 7)

Um rei e sua corte seriam adubados cavaleiros. A preocupação de Lúlio sobre o conhecimento dos valores da Cavalaria são expressados por “- Belo filho, meus pensamentos são sobre a Ordem de Cavalaria e do grande dever que é do cavaleiro manter a alta honra da Cavalaria.” (Lúlio, 2010, p. 9). O personagem eremita, criado por Lúlio, surpreende-se ao perceber que as regras da Ordem da Cavalaria não foram passadas para o jovem escudeiro e faz um alerta: - Como, filho? – disse o cavaleiro – e tu não sabes qual é a regra e a Ordem de Cavalaria? E como tu podes aspirar à Cavalaria se não tens sapiência da Ordem de Cavalaria? Pois nenhum cavaleiro pode manter a Ordem que não sabe, nem pode amar sua Ordem, nem o que pertence à sua Ordem, se não sabe a Ordem de Cavalaria, nem sabe conhecer as faltas que são contra sua Ordem. Nem nenhum cavaleiro deve armar outro cavaleiro se não conhece a Ordem de Cavalaria, porque desonrado cavaleiro é que faz outro cavaleiro e não sabe lhe mostrar os costumes que pertencem ao cavaleiro. (LÚLIO, 2010, p.9)

Tendo estado em contato direto com a coroa de Aragão e sabendo dos problemas aos quais esta enfrentava nos anos próximos da escrita do Livro da Ordem da Cavalaria, conforme Ricardo da Costa Com a morte de Jaime I neste mesmo ano, Jaime II de Maiorca se viu envolvido numa guerra de grandes proporções com seu irmão (Pedro III de Aragão, 1276-1285 — Pedro III de Aragão também possuía o título condal da Catalunha, mas aí era Pedro II) que mobilizou as grandes forças políticas de seu tempo: o papado e a coroa francesa. Esta guerra afetou diretamente a existência de Miramar e a vida de Ramon, e, provavelmente, suas ideias a respeito da função, do papel da monarquia e da importância da paz como fator de unidade interna da cristandade. A querela começou quando Jaime I fez seu testamento (1272) dividindo seu reino entre seus dois filhos Jaime recebeu Montpellier, as ilhas Baleares, os condados de Rossillón e Cerdaña e as regiões fronteiriças de Vallespir e Conflent; Pedro ficou com o reino de Aragão, o principado da Catalunha e Valência. Com a

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morte de Jaime I (1276), Jaime II se coroou rei de Maiorca. (COSTA, 2001, p. 165-166)

Para entender a mentalidade de Lúlio naquele momento é necessário compreender o momento histórico ao qual o autor estava inserido. Havia uma disputa territorial entre Pedro III e Jaime II. O momento se agrava em 1279 (ano de início da escrita da obra O Livro da Ordem da Cavalaria) quando, segundo Costa: No entanto, Pedro III de Aragão não se conformou com esta divisão e, em 1279, pelo Tratado de Perpignan, obrigou seu irmão Jaime II, pela força das armas, a reconhecer que administrava a ilha na qualidade de “feudatário honrado do conde-rei”, isto é, como vassalo. O estado maiorquino se convertia numa série de distritos territoriais integrados juridicamente à confederação. O ato de Pedro III fazia parte de um plano maior de expansão aragonesa com vistas à hegemonia catalã-aragonesa no Mediterrâneo; as ilhas eram um ponto estratégico para controlar o comércio marítimo. (COSTA, 2001, p.166)

A ética cavaleiresca que o eremita tratava de explanar ao jovem escudeiro estava imbuída de valores que deveriam ser conhecidos e relembrados, conforme Zierer e Messias “Além disso, o ofício de cavaleiro está associado ao cristianismo, responsável em moldar a cavalaria a partir dos princípios ideológicos da fé cristã.” (ZIERER & MESSIAS, 2013, p. 135). O escudeiro deixa o encontro com o eremita portando a obra a ser analisada, segundo Lúlio [...] a regra e a Ordem de Cavalaria estão nesse livro que leio algumas vezes para que me faça relembrar a graça e a mercê que Deus me fez neste mundo; porque honrei e mantive a Ordem de Cavalaria com todo meu poder; porque assim como a Cavalaria da tudo que pertence ao cavaleiro, assim o cavaleiro deve empenhar todas as suas forças para honrar a Cavalaria. [...] O Cavaleiro deu sua bênção ao escudeiro, e o escudeiro pegou o livro e muito devotadamente se despediu do cavaleiro, e subiu em seu palafrém e se foi para a corte muito alegremente. E sábia e ordenadamente deu e apresentou aquele livro ao muito nobre rei e toda a grande corte, e permitiu que todo cavaleiro que quisesse entrar na Ordem de Cavalaria o pudesse copiar, para que de vez em quando o lesse e recordasse a Ordem de Cavalaria. (LÚLIO, 2010, p.9-11)

As dificuldades políticas e o exílio de Lúlio de Maiorca, por cerca de 20 anos, até o território retornar a Jaime II, podem ter relação com a aspiração da parábola apresentada no prólogo, levar o texto ao Rei para que os valores da 27

Cavalaria, segundo seus próprios preceitos, fossem relembrados e repassados aos novos cavaleiros. Deixando de lado suas aspirações de domínio e de controle marítimo do mediterrâneo. O cavaleiro, valendo-se de suas armas, deveria proteger a Cristandade, lutar pelos costumes cristãos tendo a fé como guia. Entretanto, Lúlio apresenta a ideia de desvio desse caminho, conforme abaixo.

2.1 DOS VÍCIOS E VIRTUDES DE SER UM CAVALEIRO EXPRESSOS NA OBRA DE LÚLIO Lúlio apresenta uma série de conceitos no que tangenciava a educação de um cavaleiro, bem como a constante vigilância desses conceitos expressos em sua obra. Para Marroni “Llull apresenta a educação do cavaleiro permeada pela elevação das virtudes como justiça, sabedoria, caridade, lealdade, humildade, fortaleza e esperança, todos eles precedidos do mais importante – amar e temer a Deus.” (MARRONI, 2013, p. 2). Com conceitos pautados na cultura cristã e valendo-se dos preceitos bíblicos, segundo Zierer No prólogo de sua obra afirma que o livro é dividido em sete partes, comparando com os planetas e o ordenamento do mundo. O número sete possui uma forte simbologia, pois de acordo com a Bíblia o mundo foi criado em sete dias. Por ser um número perfeito está ligado as sete virtudes, as três teologais – fé, esperança e caridade; e as quatro cardeais – justiça, prudência, fortaleza e temperança. Essas virtudes devem ser seguidas pelo cavaleiro para que possa encontrar a salvação e estão opostas aos sete pecados capitais – ira, avareza, inveja, luxúria, preguiça (acídia), gula (glutonia) e soberba (orgulho). Os pecados segundo Llull devem ser combatidos pelos bons cavaleiros através da leitura do Livro da Ordem de Cavalaria, da frequência às missas, da leitura da Bíblia e das orações. Já os maus cavaleiros atacam inocentes, fracos, mulheres e são duramente criticados pelo autor. (ZIERER, 2009, p. 5)

A forma de educação à Cavalaria empregada por Lúlio com os valores ideológicos da Cristandade dá sentido às armas do cavaleiro protegendo-o contra os vícios e direcionando-o em sua conduta, para o catalão

Ajustada a mais nobre besta ao mais nobre homem, seguidamente conveio que o homem elegesse e escolhesse de todas as armas, aquelas armas que são mais nobres e mais convenientes para o combate e para defender o homem das feridas e da morte, e aquelas

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armas o homem doou e apropriou ao cavaleiro. Ao cavaleiro é dada a espada, que é feita à semelhança da cruz, para significar que assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu na cruz a morte na qual tínhamos caído pelo pecado de nosso pai Adão, assim o cavaleiro deve vencer e destruir os inimigos da cruz com a espada. E porque a espada é cortante em cada lado, e Cavalaria é para manter a justiça, e justiça é dar a cada um o seu direito, por isso a espada do cavaleiro significa que o cavaleiro com espada deve manter a Cavalaria e a Justiça. Chapéu de ferro é dado ao cavaleiro para significar vergonha, porque cavaleiro sem vergonha não pode ser obediente à Ordem de Cavalaria. [...] a fim de que não possa entrar nele nem traição nem orgulho nem deslealdade nem nenhum outro vício. Cota de malha significa castelo e muro contra vícios e faltas; Calças de ferro são dadas ao cavaleiro para manter seguros seus pés e suas pernas, para significar que cavaleiro deve manter seguros os caminhos com ferro (...); Escudo é dado ao cavaleiro para significar ofício de cavaleiro, porque assim como o cavaleiro mete o escudo entre si e seu inimigo, assim o cavaleiro é o meio que está entre o rei e seu povo. (LULIO, 2010, p. 13, 77-83)

Podemos perceber em seu discurso alguns preceitos evidenciados em seu texto e um paralelo com a Bíblia é possível traçar a partir da carta, na fé Cristã, aos Efésios escrita por São Paulo (...) pois não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniquidade nas regiões celestes. Portanto tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, permanecer firmes. Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos lombos com a verdade, e vestida a couraça da justiça, e calçando os pés com a preparação do evangelho da paz, tomando, sobretudo, o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do Maligno. Tomai também o capacete da salvação, e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus; (BÍBLIA, Efésios, 6, 12-17)

Na visão de Costa, “A sacralização dos gestos pelos quais as armas eram entregues ao cavaleiro recém ingresso na ordem tinha como objetivo estender o reino de Cristo ao mundo dos homens através da espada em forma de cruz (...)”. (COSTA, 2001, p. 23). Assim, Lúlio segue ressignificando cada veste, cada arma com a simbologia bíblica exaltando as virtudes e demonstrando a proteção contra os vícios que podem abater ao bom cavaleiro. A historiadora Bianca Messias traz um quadro com a captação dos vícios e virtudes abordados por Lúlio no “Livro da Ordem da Cavalaria” conforme segue: 29

VIRTUDES TEOLOGAIS8

CARDEAIS9

FÉ ESPERANÇA CARIDADE JUSTIÇA PRUDENCIA FORTALEZA TEMPERANÇA

VÍCIOS LUXÚRIA AVAREZA IRA INVEJA SOBERBA ORGULHO GLUTONIA

(Fonte: MESSIAS, 2012)

Na visão de Lúlio, as armas são a representação da proteção e do dever do cavaleiro para com suas virtudes contra os vícios do mundo. O cavaleiro vem para combater tais vícios são estes que evocam diretamente o cavaleiro no mundo, segundo o autor: Faltou caridade, lealdade, justiça e verdade no mundo; começou inimizade, deslealdade, injúria, falsidade; e, por isso surgiu erro e turvamente no povo de Deus, que foi criado para que Deus fosse amado, conhecido, honrado, servido e temido pelo homem. No começo, como veio ao mundo menosprezo de justiça devido à míngua de caridade, conveio que pelo temor a justiça retornasse à sua honra. E por isso, de todo o povo foram divididos em grupos de mil e de cada mil foi eleito e escolhido um homem, mais amável, mais sábio, mais leal e mais forte, e com mais nobre coragem, com mais

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Sobre as virtudes, no texto Lúlio separa as mesmas em teologais e cardeais, sobre diversos pensamentos de filósofos medievais a inspiração das virtudes teologais provém de São Paulo e trata das virtudes provenientes de Deus, conforme Costa: “Elas se encontram em São Paulo (c.10-66 d.C.), em sua Primeira Epístola aos Coríntios, escrita por volta dos anos 50-57 d.C. Ao comentar o uso e a hierarquia dos carismas — um dos problemas cruciais do cristianismo primitivo — São Paulo, trata da importância da caridade (...) São Paulo fala das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, sendo que a caridade — no sentido grego de ágape, um amor de dileção, que quer o bem do próximo, sem fronteiras, que busca a paz no sentido mais puro, o amor que é a própria natureza de Deus — é a maior delas. (COSTA, 2001, p. 33) 9 De forma simples podemos relatar no pensamento de Tomás de Aquino transcrito Bazuchi no que tange a diferenciação de virtudes cardeais e virtudes teologais como a primeira um comportamento racional, adquirido da aprendizagem e a segunda ser pertinente ao divino, doadas por Deus na alma do homem, conforme a autora: “A virtude teria nossas almas como sujeito, sendo sua distinção o vício. Além do que, as virtudes são algo mediante o qual vivemos retamente. Assim, em relação a esta noção de virtude, Tomás seguiu Aristóteles, considerando-a também como um habitus e como uma capacidade. Para ele, a ideia geral de virtude corresponde ser de uma disposição sólida e firme da parte racional do homem. Porém, quanto à distinção, Tomás estabelece uma diferenciação fundamental entre virtudes adquiridas e virtudes infusas. Quanto àquelas, como o próprio nome diz, significa virtudes que não estão imanentes em nós, sendo desta forma objetos de aprendizagem (como é o caso das virtudes cardeais). Já as virtudes infusas são aquelas conferidas por Deus à alma não sendo, portanto, adquiridas (como é o caso das virtudes teologais: fé, esperança e caridade). (BAZUCHI, 2011, p. 50)

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ensinamentos e de bons modos que todos os outros. (LÚLIO, 2010, p. 13)

A dicotomia entre os vícios e virtudes, disputados internamente em cada cavaleiro, é evidenciado em uma batalha ética no íntimo de cada um, segundo Messias e Zierer: Os vícios são constantemente presentes e praticados pelos cavaleiros, reinando principalmente durante os torneios, atividade favorita dos guerreiros e encontro dos pecados mundanos, em que verificamos o desempenho da inveja de seu próximo, por ser melhor nas armas e mais forte; a ira em que eles ferem e matam sem piedade; a avareza ao realizarem as guerras privadas, visando o lucro e aprisionando o adversário, esperando a recompensa do resgate; a gula ao participarem de muitas festas que oferecem muito comer e beber; a soberba exibindo a sua vaidade; o orgulho em que louvam as suas glórias e conquistas; a luxúria ostentando a sua posição social de ser nobre e agradando as damas. (MESSIAS & ZIERER, 2013, p. 147-148)

É com esse tema que a cavalaria medieval é edificada na concepção de Lúlio, na tentativa de imprimir aos bellatores um manual de ética da cavalaria naquele período, Segundo Costa: Com sua obra, Llull pretendia iluminar com valores morais e éticos os novos pretendentes à cavalaria, registrando por escrito os códigos cavaleirescos, a sacralização do rito de passagem (adoubament), a simbologia das armas do cavaleiro e principalmente as virtudes que o cavaleiro deveria conhecer e os vícios que deveria evitar para honrar a ordem de cavalaria e se tornar um cavaleiro de “bons costumes e bons ensinamentos”. (COSTA, 2001, p. 13)

A preocupação de Lúlio na formação dos novos cavaleiros desde o juramento à Ordem até a prática cavaleiresca são constituídas pela essência das virtudes descritas por São Paulo e incorporadas no discurso do Catalão, e a imagem invertida no espelho, os vícios são um alerta à cavalaria numa mensagem que deveria chegar até o rei para que o mesmo fosse vigilante consigo e com seus cavaleiros. Dentre os costumes do bom cavaleiro, Lúlio apresentou um sistema lógico de “conveniências” que estabelecem primariamente o bom cavaleiro e o que lhe convém fazer. Em seu oposto, o que não lhe convém, habita o vício materializado no pensamento dos sete pecados capitais. Na análise de Costa, “(...) Llull ainda opõe diretamente as virtudes aos vícios, alterando um pouco a relação acima e criando uma série de binômios 31

contrários.” (COSTA, 2009, p. 67), a relação apresentada no capítulo anterior é alterada quando Lúlio trata dos vícios. Nas virtudes a fé é a principal delas, pois é dela que surgem as demais. Nas palavras do autor: “Cavaleiro sem fé não pode ser bem acostumado porque, pela fé vê o homem espiritualmente a Deus e suas obras, crendo nas coisas invisíveis. E pela fé o homem tem esperança, caridade, lealdade e é servidor da verdade.” (LÚLIO, 2010, p. 89). Entretanto quando se trata de vícios é a fortaleza a principal força que mantém o bom cavaleiro dentro das conveniências, segundo Costa: De todas as virtudes, a fortaleza seria a mais necessária ao cavaleiro, pois ela combateria a luxúria, a avareza, a preguiça, a soberba e a inveja, pecados mortais que provavelmente assolavam a cavalaria da época. Na descrição de todos os vícios, Ramon dá exemplos de como os cavaleiros eram tentados. (COSTA, 2009, p. 67)

Então, para Lúlio, um cavaleiro deveria resistir às tentações que seu posto iria impor para si, a fortaleza e a humildade protegem o cavaleiro da soberba, pois Cavalaria não pode ser mantida sem o arnês que pertence ao cavaleiro, nem sem os honrados feitos e as grandes despesas que convêm ao ofício de Cavalaria. E por isso, escudeiro sem armas e que não possua tanta riqueza que possa manter Cavalaria não deve ser cavaleiro, porque por falta de riqueza falha o arnês, e por enfraquecimento do arnês e despesas, malvado cavaleiro torna-se roubador, traidor, ladrão, mentiroso, falso e de outros vícios que são contrários à Ordem de Cavalaria. (LÚLIO, 2010, p. 61)

Na avareza como no excerto acima que trata do cavaleiro sem riqueza não tem condições de tomar armas, pois pode se entregar aos vícios, por almejar a riqueza dos outros deixando o sentido do ofício ao qual foi designado. Ao orgulho, ou acídia, cabia também a fortaleza resistir, pois segundo o autor, “se o escudeiro tem vanglória do que faz, não parece que seja bom cavaleiro, porque vanglória é vício que destrói os méritos e as recompensas dos bons feitos que são dados pela Cavalaria” (LÚLIO, 2010, p. 63). Para combater a luxúria o cavaleiro deve se pautar na fortaleza, que “(...) seguir-se-ia que Cavalaria fosse mais conveniente à natureza do corpo do que da alma e isso não é verdade, uma vez que a nobreza de coragem que convém à Cavalaria, convém melhor com alma do que com o corpo.” (LÚLIO, 2010, p. 59). É na fortaleza que se combate também a inveja. Nas palavras de Lúlio:

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Fortaleza é virtude que se encontra no coração nobre contra os sete pecados mortais, que são carreiras pelas quais vai-se aos infernais tormentos que não tem fim: glutonia, luxúria, avareza, preguiça, acídia, ira. (LÚLIO, 2010, p. 95)

A fortaleza é simbolizada, no ritual de adubamento, na entrega das armas como a armadura, citada anteriormente. No quadro abaixo adaptado de Costa, vemos o contraponto de cada um desses vícios que deveriam ser combatidos pelo cavaleiro ou pelo escudeiro que aspira o ofício de cavalaria:

Pecados Glutonia Luxúria Avareza Acídia Soberba Inveja Ira

Conveniências ao bom Cavaleiro Abstinência Fortaleza Fortaleza Fortaleza Fortaleza e Humildade Fortaleza Coragem, Caridade, Abstinência e Paciência

Adaptado de: COSTA, Ricardo da. Ensaios de História Medieval. p. 67. Rio de Janeiro: Ed. Sétimo Selo, 2009.

Na análise do quadro vemos a formação de um conjunto binário que, segundo Costa, “através de séries de binômios contrários, submetidos a uma lei de formação, o sistema luliano de virtudes e vícios formava um todo unitário. Seu objetivo era reproduzir no ser humano a imagem da Divindade, traduzindo as dignidades divinas em virtudes humanas.” (COSTA, 2009, p. 67). Para cada pecado havia uma virtude a ser ressaltada, que serviria de base para o caminho do bom cavaleiro, pautada no conceito de “conveniências” de Lúlio que direcionavam o ideal de um bom cavaleiro. Lúlio compôs um ideal de cavaleiro forjado no combate contínuo dos vícios, entretanto, segundo Costa, A proposta utópica do Livro da Ordem de Cavalaria nunca pôde realizar-se. O século XIV, com o fortalecimento das monarquias européias, a Guerra dos Cem Anos e a Grande Peste, viu o fim de todos os projetos cavaleirescos e dos sonhos de harmonia do sistema feudal baseado no conhecimento das virtudes e vícios criados pelos clérigos – e leigos como Ramon Llull. Terminava a Idade Média (COSTA, 2009, p. 68)

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O texto de Lúlio carrega seus anseios como um homem de seu próprio tempo, objetivando educar e estabelecer a paz cristã, dentro de um “Projeto Civilizador Cristão” (COSTA, 2009, p. 68), ainda que frustrado pelos adventos históricos vindouros seu texto é importante para entender que Lúlio só se propõem a denunciar os vícios da cavalaria porque estavam inseridos naquela sociedade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Raimundo Lúlio como filósofo e homem da Corte detinha um posicionamento político bem característico, ainda que cavaleiro e fiel ao rei seu posicionamento político fica marcado no prólogo do “Livro da Ordem da Cavalaria” onde podemos perceber a intencionalidade do autor quanto ao posicionamento do Rei Pedro III de Aragão (1239-1285) no que tange a administração de Maiorca e sua predileção em favor a Jaime II, na passagem do “eremita e o escudeiro”. O filósofo catalão cria um manual com pretensão de estabelecer um sistema de formação destinado aos cavaleiros. Levar o texto ao rei que promove os adubamentos é uma missão na tentativa de imprimir um ideal de cavaleiro no século XIII, segundo os princípios da Cristandade e os valores da Corte da época que representam a necessidade de moldar o grupo dos bellatores. Percebemos com o texto do filósofo catalão que, segundo Zierer, “O propósito do autor era a valorização da importância do grupo social do qual ele mesmo, um ex-cavaleiro era proveniente, a nobreza, bem como contribuir para a salvação da sociedade como um todo.” (2009, p. 11). As disputas internas na Europa através das guerras privadas que Urbano II advertiu serviram de inspiração a Lúlio para direcionar os esforços dos cavaleiros aos inimigos da Cristandade e parar com as disputas internas. Além disso, Segundo Zierer e Messias, “O filósofo maiorquino também procurava impedir com o seu manual que pessoas enriquecidas, mas sem origens nobiliárquicas, ingressassem na cavalaria.” (2013, p. 150). O modelo de sociedade trifuncional proposto pelo Bispo Aldebarón de Laon influenciaram os ideais expostos pelo autor. Sobre o manual de conduta exposto por Lúlio, no sentido de formar o cavaleiro segundo os preceitos da Cristandade e impor valores ao mesmo, ative-me a tratar dos vícios com a intenção de produzir com esta monografia um contraponto às virtudes que são normalmente ressaltadas. O sistema luliano filosófico de conveniências faz uma abordagem diferenciada na formação do cavaleiro. Render-se aos vícios era pecar não somente contra si, mas contra a Ordem da Cavalaria e contra a Cristandade. 35

Legitimando sua filosofia através da carta de Paulo aos Efésios, Lúlio tenta ressaltar em seu texto o que convém ao cavaleiro que pretende seguir a Ordem no sentido de preparação para o mundano e para o espiritual.

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