A imagem da dama: o elogio à senhor nas cantiga de amor de Dom Dinis

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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS IMAGENS E NARRATIVAS

ANAIS

CAVALHADAS, ANTÔNIO POTEIRO PIRENÓPOLIS – GOIÁS – BRASIL 13 A 15 DE JULHO DE 2015

DADOS BIBLIOGRÁFICOS Anais Eletrônicos do XI Encontro Internacional de Estudos Medievais: Imagens e Narrativas. Organizadores: Geraldo Augusto Fernandes; Márcio Ricardo Coelho Muniz. Pirenópolis, GO: ABREM - Associação Brasileira de Estudos Medievais, 2015. Vários Autores. Bibliografia. ISBN: Índice para catálogo sistemático: 1. Europa: Idade Média: Civilização: Ciências Humanas

COMISSÕES Comissão Organizadora: Adriana Vidotte (UFG) Geraldo Augusto Fernandes (UFC) Marcella Lopes Guimarães (UFPR) Márcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA) Renata Cristina Sousa Nascimento (UFG)

Comissão Editorial Leila Rodrigues da Silva Lênia Márcia Mongelli Maria do Amparo T. Maleval Mário Jorge da Motta Bastos Patricia Grau-Dieckmann

Organização dos Anais Eletrônicos Geraldo Augusto Fernandes (UFC) Márcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA)

APOIO

Organização

APRESENTAÇÃO Já não nos lembramos bem de quem foi a ideia – provavelmente de nossa coordenadora geral, a colega goiana Adriana Vidotte –, mas quando a sugestão de fazermos o XI Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associação Brasileira de Estudos Medievais em Pirenópolis, pequena e majestosa cidade colonial brasileira, foi apresentada lembramo-nos bem, agora sim, da recepção entusiasmada de todos nós cinco1. A motivação do entusiasmo coletivo deveu-se ao prazer que todos desfrutamos ao nos relacionarmos com a História, mais ainda quando associada a outras artes. Explicamos. Além de pérola do colonial brasileiro, incrustrada às margens do ribeirão do meio, fruto da riqueza do período da mineração de diamantes, no séc. XVII, Pirenópolis guarda três importantes manifestações culturais cujas raízes se entrecruzam na temporalidade medieval e, ainda que não exclusivamente, na espacialidade ibérica2: a Festa do Divino Espírito Santo, as Cavalhadas e a representação teatral de As Pastorinhas. A Festa de Pentecostes e o consequente culto ao Divino Espírito Santo datam dos inícios da cristandade e, no espaço Ibérico associam-se diretamente a Isabel de Aragão, rainha consorte de Portugal entre 1282-1325, chamada a Rainha Santa, que teria tido contato com o culto ainda em terras aragonesas. À popular caridade da Rainha Santa Isabel de Portugal, esposa de um dos mais brilhantes poetas do movimento trovadoresco galego-medieval, o rei D. Dinis, liga-se à origem do culto do Divino Espírito Santo, nas Ilhas dos Açores, no Portugal medieval. Transladados posteriormente para terras americanas por migrantes açorianos, há registro do culto e das festas dedicadas ao Divino Espírito Santo em terras brasileiras desde o início de nossa colonização. Já os primeiros registros da realização da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis datam de 1819. Desde então, a Festa só fez crescer, acabando por se tornar na principal manifestação religiosa e cultural da cidade, bem como se 1

Adriana Vidote e Renata Nascimento, professoras de História da Universidade Federal de Goiás, Marcella Guimarães, professora de História da Universidade Federal do Paraná, Geraldo Augusto Fernandes, professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Ceará, e Márcio Muniz, professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, os organizadores, sob a presidência da primeira, do XI EIEM da ABREM, realizado em Pirenópolis-GO, entre os dias 13 e 15 de julho de 2015, nas instalações do Campus Pirenópolis da Universidade Estadual de Goiás. 2 Tempo histórico e espaço geográfico caros aos associados da ABREM, como se sabe.

transformou numa das mais conhecidas e frequentadas Festas do Divino Espírito Santo do Brasil. Como se sabe, teatralmente participando da festa religiosa, a sociedade de corte é o espelho ainda hoje refletido nos paramentos e na dramatização do cortejo festivo do Divino Espírito Santo em Pirenópolis. Associadas à festa do Divino Espírito Santo estão as Cavalhadas. Espetáculo teatral grandioso, com duração de vários dias, as Cavalhadas mimetizam e rememoram a mítica, ainda que histórica, batalha de Roncesvalles. Como se sabe, em 778 d.C., os Doze Pares da França – a ‘guarda privada’ de Carlos Magno, rei dos Francos –, comandados pela mais famoso daqueles cavaleiros, o forte Rolando, vindos das lutas contra os sarracenos, senhores da Península Ibérica desde 711 d.C., enfrentaram no campo de batalha um grupo de montanheses bascos. Embora derrotados e dizimados na luta, os cavaleiros e seus feitos tornaram-se memória duradoura por meio de uma das mais belas e famosas canções de gesta3 medievais, a Canção de Rolando, poema épico anônimo do século XII. Escrito próximo de três séculos depois do feito histórico que toma como matéria ficcional, mas fruto provável de longa tradição oral, a Canção de Rolando reescreve a história e estabelece as bases míticas que permanecerão nas rememorações da batalha e de suas personagens: uma luta entre mouros e cristãos, entre o bem e o mal, entre o azul cristão e o vermelho mouro. É isto, em síntese redutora, que se dramatiza durante as Cavalhadas pelo Brasil afora. A de Pirenópolis, mais uma vez, destaca-se por ter ganho ao longo de seus quase 200 anos4 a grandiosidade de espetáculo público, que envolve toda a cidade em sua confecção e encenação. As Cavalhadas de Pirenópolis são memória viva, ressignificando permanentemente a história e a cultura medieval e sua tradução para as terras e realidade social brasileiras. O espetáculo teatral As Pastorinhas, cuja primeira representação em Pirenópolis data de 1922, também está inserido na Festa do Divino Espírito Santo, assim como as Cavalhadas. Embora auto natalino, desde a década de 1950 domina a cena teatral de 3

Gênero épico medieval dedicado ao canto laudatório de famosos cavaleiros e batalhas. Conforme a página na internet oficial do Município de Pirenópolis: “Introduzida [as Cavalhadas] em Pirenópolis em 1826, pelo Padre Manuel Amâncio da Luz, como um espetáculo chamado de ‘O Batalhão de Carlos Magno’. Pirenópolis manteve forte esta tradição, uma porque os primeiros colonizadores desta antiga cidade mineradora eram, em sua maioria, portugueses oriundos do norte de Portugal, local onde mais se resistiu à invasão moura, outra porque o caráter centralizador da população dominante viu com bons olhos o efeito separatista entre as classes sociais. Porém o que mais motiva a população a manter viva a infindável rixa entre muçulmanos e cristão é a beleza do espetáculo e o prazer pela montaria”. http://www.pirenopolis.tur.br/cultura/folclore/festa-do-divino/cavalhadas 4

Pirenópolis durante os festejos de Pentecostes. Conforme nos ensina a recente editora do texto dramático d’As Pastorinhas: observa-se [no Auto] um amálgama de influências históricas diversas, eruditas e populares, sagradas e profanas, acadêmicas e folclóricas, que se ocultam sob sua encantadora simplicidade. Para dois pontos essenciais converge essa diversificação de facetas, quanto aos aspectos mais antigos delas: de um lado, coloca-se o mistério da Natividade, cujo modelo está na Bíblia; de outro, a figura central do “pastor”, ligada às sociedades agrárias e assim cantadas pelos poetas helênicos e latinos”. E as duas vertentes, que não são estáticas mas dinâmicas, ganharão ingredientes novos a partir do Renascimento quinhentista, quando essa realidade literária chega à América Latina com a era dos Descobrimentos (MONGELLI, 2014: 29).5

Mais uma vez, temporalidade e espacialidade ibérica medieval entrecruzam-se. Se, como diz Márcia Mongelli, a tradição do auto natalino transporta-se para a América, em especial o Brasil, por meio das naus quinhentistas, temos de lembrar que são autos natalinos o mais antigo testemunho de texto dramático ibérico, o Auto de los Reyes Magos, anônimo toledano provavelmente do século XII, bem como parte significativa dos textos dos dramaturgos da “geração dos Reis Católicos”, Juan Del Encina, Diego de Ávila, Lucas Fernández, Bartolomé de Torres Naharro e Gil Vicente. O anacronismo da encenação de um auto natalino durante as festas de Pentecostes não diminui em nada a importância que As Pastorinhas alcançaram no conjunto da Festa do Divino Espírito Santo. A encenação guarda importância social e memória cultural: concede centralidade às mulheres, numa festividade fortemente masculina, tornando-se forte elemento de coesão social, e é prova da força que o teatro historicamente sempre teve em Pirenópolis. Em suas investigações, Mongelli acentua a presença de encenações dramáticas desde o ano de 1819, quando se tem a primeira documentação da Festa do Divino Espírito Santo. Registra ainda a existência de edifícios teatrais desde 1860, contando a pequena cidade com três teatros; num deles, o Teatro de Pirenópolis6, de 1899, encenase até hoje o espetáculo As Pastorinhas. Dentre as peças encenadas, neste e noutros espaços teatrais, durante a Festa do Divino Espírito Santo, desde o século XIX, estão 5

MONGELLI, Lênia Márcia. A Tradição do Pastorialismo: Da Manjedoura de Belém aos Palcos de Pirenópolis. In: MONGELLI, Lênia Márcia; GOMES, Neide Rodrigues. As Pastorinhas de Pirenópolis-GO. São Paulo: Ateliê, 2014, p. 25-63. Registre-se que tivemos, os organizadores do XI EIEM, o prazer de promover, durante o evento, o lançamento dessa bela e rigorosa edição do texto pirenopolino de As Pastorinhas. 6 Gostaríamos de agradecer à Direção do Teatro de Pirenópolis por nos ter possibilitado que parte importante de nosso XI EIEM acontecesse em seus espaços: jardins, plateia e palco.

Guerras do Alecrim e da Manjerona, do dramaturgo setecentista luso-brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, ou Ezio em Roma, do também setecentista dramaturgo italiano Pietro Metastasio, dentre outros (Carlos Francisco Moura apud MONGELLI, 2014: 18, n. 11). Retomando o fio da meada, foi esse reservatório de história, de literatura, de arte e de cultura que é Pirenópolis que nos deixou tão animados em realizar nesta linda cidade o nosso XI Encontro Internacional de Estudos Medievais da Associação Brasileira de Estudos Medievais (XI EIEM/ABREM). Sem nenhuma dificuldade, os dois grandes temas norteadores do Encontro se impuseram: imagens e narrativas. E Pirenópolis foi inspiradora. Ao longo de três dias, orbitando em torno de três eixos – Mundo Muçulmano; Narrativas de Cavalaria; Filosofia, Artes e Ciências –, uma série longa de temas correlatos foram abordados em Conferências, Mesas Redondas, Mesas de Comunicação e Minicursos: colonização de Al-Andalus, nobreza moçárabe portuguesa, Reconquista, Cruzada, retórica e cavalaria, teatro em vertentes popular e religiosa, festas populares, peregrinação, sociedade de corte, educação feminina, misoginia entre muitos outros. Em síntese final, apresentamos aqui uma série de estudos da ordem da História, das Letras, da Filosofia, das Artes e da Cultura medieval. Todos foram, primeiramente, expressão oral, pública, submetida ao debate; posteriormente, foram manipulados e aperfeiçoados pelos seus autores, responsáveis pelo texto final que apresentamos. Em medidas diferentes, todos inspirados pela magia medieval que habita e sobrevive em Pirenópolis. Agradecemos a cada um a disponibilização de seus textos para publicação, e recomendamos fortemente aos demais colegas a leitura de todos.

Geraldo Augusto Fernandes Márcio Ricardo Coelho Muniz

SUMÁRIO CONFERÊNCIAS E MESAS-REDONDAS ANTÓNIO REI - A Memória Árabe da Nobreza Moçárabe Portucalense (Séculos X XIII)...............................................................................................................................11 FLÁVIO ANTÔNIO FERNANDES REIS - A Ekphrasis no Clarimundo de João de Barros: Duas Cenas de Pictórico Heroísmo..................................................................25 MARGARIDA SANTOS ALPALHÃO - Narrativas de Batalhas: Das Crónicas ao Teatro Popular por entre Livros de Cavalarias..............................................................35

COMUNICAÇÕES ALINE SANTANA LÔBO & TEREZA CAROLINE LÔBO - As Companhias de Santos Reis e suas Peregrinações pelo Município de Pirenópolis, Goiás..................375 ANA LUIZA MENDES - A Imagem da Dama: O Elogio à Senhor nas Cantigas de Amor de Dom Dinis......................................................................................................51 CAROLINA MINARDI DE CARVALHO - Caminhos de Armas e Fé: Uma Abordagem dos Preceitos Lulianos de Conduta em Tirinhas Digitais para o Ensino Básico............................................................................................................................64 CINTHIA M. M. ROCHA - Os Sepulcros da Cartuxa de Miraflores: Iconografia, Soteriologia e Política....................................................................................................74 CLEUSA TEIXEIRA DE SOUSA - A Ação para além da Política Social de D. Manuel I: O Decreto do Édito de Expulsão dos Judeus de Portugal (1496)..............................91 CYNTHIA VALENTE - A Questão Judaica na Hispania Visigoda. Séculos VIVII...............................................................................................................................109 DEBORA SANTOS MARTINS - Entre o Imaginário e o Vivido – As Representações dos Padeiros na Catedral de Chartres (França – Século XIII).......................................................................................................................119 EDILSON ALVES DE SOUZA - O Pensamento Misógino Medieval em Confissões, de Santo Agostinho.........................................................................................................134

GERALDO AUGUSTO FERNANDES - A ARTE POÉTICA NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE RESENDE, 1516....................................................................................................................145 HELOISA GUARACY MACHADO & MARÍLIA CARNEIRO FERREIRA - A Reconquista Cristã e sua Atualidade no Discurso Muçulmano. Mídia, Representação e Ensino da História......................................................................................................160 HUGO RINCON AZEVEDO - Perpetuar a Memória: O Mosteiro da Batalha no Testamento de D. João I (1426)..................................................................................175 JAMYLE ROCHA FERREIRA SOUZA - A Relação Cortesania e Rusticidade na Dramaturgia Ibérica Quinhentista..............................................................................186 JÉSSIKA HINGRIDI RODRIGUÊS VIEIRA - Desenhando o Recato do Olhar: Ferdinand Gregorovius, Lucrécia Bórgia e as Tensões Estéticas da Escrita Historiográfica............................................................................................................201 JOÃO GUILHERME DA TRINDADE CURADO & CÉLIA FÁTIMA DE PINA Museu das Cavalhadas: Acervo de Imagens e Narrativas sobre uma Representação Medieval no Cerrado..................................................................................................209 JOHNNY TALIATELI DO COUTO - Camadas de Tempo: O Discurso Engendrado na Destituição de D. Sancho II (1223-1248) e seu Alcance..........................................

223

KATIUSCIA QUIRINO BARBOSA - Cartografia e Viagens na Baixa Idade Média..........................................................................................................................236 LÁISSON MENEZES LUIZ - As Relações entre o Poder Monárquico e o Poder Eclesiástico em Portugal ao Tempo de D. Dinis (1279-1325)...................................246 LUÍSA TOLLENDAL PRUDENTE - Casamento, Família e Sociedade na IV Partida de Afonso X de Castela e Leão (1252-1284)..................................................................260 MAGDA RITA RIBEIRO DE ALMEIDA DUARTE - O “Fiel, Honroso e... Mártir” Simão de Montfort (1209-1218): A Imagem do Líder Cruzado Estampada na Historia Albigensis....................................................................................................................270 MÁRCIA MARIA DE MELO ARAÚJO - Christine de Pizan e a Defesa da Mulher na Literatura Medieval: Imagens e Narrativas................................................................281

MARIA ASCENÇÃO FERREIRA APOLONIA & MARIA ELIZABETH SANTO MATAR - As Bem-Aventuranças Frequentam a Corte: A Educação Cristã da Princesan' O Livro Das Três Virtudes, de Christine de Pisan....................................289 MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL - Imagens em Desfile na Escultura e no Teatro Medieval.O Ordo Profhetarum e o Ordo Virtutum......................................................................................................................302 NORMA SUELY DA SILVA PEREIRA - Imagens da Cultura Medieval Reveladas em Rituais Religiosos da Bahia Colonial.........................................................................311 PAULA DE SOUZA VALLE JUSTEN - A Atuação de Alfonso X na Colonização Cristã da Andaluzia (1252-1284)...............................................................................324 PEDRO CARLOS LOUZADA FONSECA - Misoginia no Pensamento e na Literatura da Idade Média: Aspectos Temáticos e Discursivos..................................................333 RENATA BRITO DOS REIS - SI TE OLVIDAS DE QUIEN ERES/ NO ME OLVIDO DE QUIEN SOY: O ETHOS DO REI NA COMÉDIA DE DIU, DE SIMÃO MACHADO.........................................................................................................342 RENATO TOLEDO SILVA AMATUZZI - A Carne e o Microcosmos Alimentar Medieval: Virilidade, Força e Poder...........................................................................353 SOLANGE PEREIRA OLIVEIRA - Os Instrumentos Simbólicos de Castigos e Torturas no Imaginário do Inferno Medieval.............................................................364 VERÔNICA CRUZ CERQUEIRA - Marialis Cultus: A Representação de Nossa Senhora na Dramaturgia Hagiográfica Portuguesa do Século XVI...........................388 VIVIANE AZEVEDO DE JESUZ - O Lugar dos Mortos na Londres Medieval – entre Narrativa e Testamentos.............................................................................................399 WANDERSON FERNANDES FONSECA - A Dimensão Histórica na Canção Dos Nibelungos: Reflexos dos Povos Germânicos no Poema Medieval...........................409

COMUNICAÇÕES A IMAGEM DA DAMA: O ELOGIO À SENHOR NAS CANTIGAS DE AMOR DE DOM DINIS Ana Luiza Mendes UFPR/NEMED Doutoranda RESUMO: Dom Dinis, além de rei também foi o trovador português do qual preservaram-se o maior número de composições que se dividem entre as denominadas cantigas de amor, amigo e escárnio e maldizer. No que diz respeito ao primeiro gênero podemos destacar algumas temáticas abordadas pelo rei-trovador, dentre as quais encontra-se o elogio à senhor, a qual pode ser relacionada com o enaltecer da dama presente na literatura medieval através do ideal do amor cortês, por meio do qual o homem se transforma no vassalo amoroso da dama. Tal concepção amorosa foi transmitida pelos trovadores provençais considerados mestres na arte de trovar que contribuíram para a disseminação de um ideal amoroso do qual utiliza-se Dom Dinis que mostra, assim, ter conhecimento de uma tradição poética além da ibérica. Nesse sentido, para a compreensão da imagem da dama nas cantigas de amor de Dom Dinis se faz necessária a análise do próprio contexto peninsular que permitiu a existência de trocas culturais que influenciaram a própria formação do rei, a sua obra e a sua personificação como trovador e vassalo amoroso das damas portuguesas. Palavras-chaves: Amor cortês, elogio à senhor, Dom Dinis

ABSTRACT: Dom Dinis, beyond king was also the Portuguese troubadour which were preserved the largest number of compositions which are divided between the so-called songs of love, friend and scorn and cursing. With regard to the first kind we highlight some themes addressed by the king-troubadour, among which is the praise to the Lord,

which can be related to the uplift of this lady in medieval literature through the ideal of courtly love, for through which man becomes the loving lady's vassal. This loving design was transmitted by Provencal troubadours considered masters in the art of trovar that contributed to the spread of a romantic ideal which is used by Dinis showing thus that he had knowledge of a poetic tradition beyond the Iberian region. In this sense, for understanding the lady's image in the songs of love by Dom Dinis it is necessary to analyze the peninsular context itself that allowed the existence of cultural exchanges that have influenced the formation of the king, his work and his personification as troubadour and loving vassal of the Portuguese ladies. Keywords: Courtly love, praise to the senhor, Dom Dinis Para nada serve cantar se o canto não parte do fundo do coração e, para que o canto venha do fundo do coração, é necessário que aí dentro exista um verdadeiro amor. E é por isso que minha poesia é perfeita, pois para o gozo pleno do amor emprego a boca, os olhos, o coração e a inteligência. (SPINA, 1991: 133) Este é um trecho de uma composição do trovador provençal Bernard de Ventadour (c.1150-c.1200) que revela a relação existente entre o cantar e o amar. Para o poeta, por excelência, do amor cortês (SPINA, 1991: 56), a prática trovadoresca é legítima enquanto deixa transparecer a real situação do trovador que também é amante. E é justamente por realmente amar que Ventadour diz que sua poesia é perfeita, pois ela reflete o estado de sua alma. De fato, é sabido que Ventadour amou. Uma dileta de seu coração foi Aliénor d’Aquitaine (1124-1204), neta do primeiro trovador conhecido, Guilherme IX (10711126), esposa de Luís VII de França (1120-1180) e, posteriormente, de Henrique II da Inglaterra (1133-1189). Figura controversa. Do tipo de pessoa que se ama ou se odeia. “Ela é a mais conhecida, a mais amada ou a mais detestada das rainhas medievais” (LE GOFF, 2013: 179). Ventadour a amava. E, por isso, a cantava em suas composições. Interessante analisar a relação existente entre o amor e os versos. Estes conjugam-se dentro de uma norma estilística que surge no sul da França, na língua d’oc, que codifica o que chamamos de amor cortês. É um gênero literário que se fundamenta na retórica do amor-paixão, no sofrer por amor, isto porque a dama a qual se destina a cantiga é inacessível. Inacessível porque é casada. E, geralmente, com o senhor. O

senhor para o qual o trovador deve fidelidade, que nas canções se dirige à dama. O trovador coloca-se como seu vassalo amoroso. Percebe-se aqui uma confluência entre a realidade social vivenciada no período em que as criações do amor cortês surgem. Há que se considerar que as criações literárias usufruem de elementos do contexto social, cultural e político do qual emergem, ainda que contenham certo grau de idealização. No caso do amor cortês a idealização relaciona-se à imagem da mulher que é colocada num patamar superior no discurso literário que se desenvolve num período que ocorre uma transformação na concepção da figura feminina. É no século XII que se tem a propulsão do culto a Maria, símbolo de mulher a ser seguido. Ela também simboliza a esperança na remissão dos pecados femininos. Como se vê, a concepção sobre a figura feminina é controversa, mesmo no período em que alguns estudiosos visualizam uma transformação de comportamentos e percepções sobre eles. A mulher ainda é considerada estéril se não gera filhos varões. Foi o caso de Aliénor. Ela gerou duas filhas para Luís VII. Estéril. Rechaçada. Renegada. Sim, pois, ainda que a mulher tenha ganhado mais espaço na sociedade medieval a manutenção da hereditariedade ainda era mais importante. Além disso, “a santidade da união conjugal se mede, com efeito, pela glória dos homens que são fruto dela” (DUBY, 1989: 45). Com Henrique II, Aliénor teve três filhas e seis filhos. Filhos que foram reis, como Ricardo Coração de Leão (1157-1199). O casamento era um negócio.

Social, político,

econômico.

Aliénor

provavelmente, assim como tantas outras mulheres, não se casou por amor. O amor era o oposto do casamento. O amor estava na literatura que cria “elementos de um ritual que codifica uma maneira nova de imaginar, fora do quadro conjugal, as relações afetivas entre os dois sexos, e talvez as de viver” (DUBY, 2001: 115). Talvez Ventadour realmente tenha amado como sugere sua cantiga. Talvez essa mesma cantiga tenha sido dirigida a Aliénor. Não sabemos. O nome da amada não é revelado. Regra do amor cortês que exige mesura e discrição. O amor cortês não ensina apenas a amar, também ensina regras de cortesia, regras de comportamento, de civilidade que distinguia o homem cortês do vulgar. Ou melhor, a forma como amar está inserida nas regras de civilidade que distinguirão os nobres dos demais seres,

através de um ideal estético e ético expresso num estilo de vida, num código de conduta que expressa um modo de amar especificamente cortês. Sobre a sinceridade do amor que afirma sentir também não podemos ter absoluta certeza. Por conta da incerteza, a sinceridade do sentimento dos provençais já foi questionada: Proençaes soen mui bem trobar e dizem eles que é com amor; mais os que trobam no tempo da frol e non em outro, sei eu bem que nom am tam gram coita no seu coraçom qual m’eu por mha senhor vejo levar. Pero que trobam e saem loar sas senhores o mais e o melhor que eles podem, sõo sabedor que os que trobamquand’ a frol sazom a e, nom ante, se Deus mi perdom, nom am tal coita qual eu ei sem parar. Ca os que trobam e que s’alegrar vame-no tempo que tem a color afrolcomsigu’e tanto que se for aquel tempo, logu’ em trobarrazom nomam, nem vivem em qual perdiçom oj’ eu vivo, que pois m’ a de matar.

(LANG, 2010: 228) Nesta cantiga, Dom Dinis (1261-1325), reconhece a qualidade do trovar dos provençais, porém, questiona se esse trovar provém de um sentimento sincero. Diante disso podemos deduzir que o rei-trovador considera que o trovar se relaciona intimamente com a sinceridade amorosa que intenta transmitir. Segundo o rei português, os provençais amam somente no tempo da frol, ou seja, na primavera, o que significa dizer que não amam verdadeiramente, pois o amor não tem estação, não é determinado por ela. Ora, Ventadour também é da mesma opinião. Na cantiga com que iniciamos identificamos inclusive o reconhecimento da perfeição da sua composição pelo fato de que ela foi inspirada por um sentimento verdadeiro. Como, então, podemos entender esse questionamento de Dom Dinis? Primeiramente, devemos reconhecer o fato de que Ventadour e Dinis são de séculos diferentes. Portanto, Dinis generaliza. Posiciona-se na frente de todos os provençais. Questiona a arte trovadoresca provençal. Arte que lhe era conhecida. Dinis foi educado para ser rei e para ser trovador, por isso conhecia as

técnicas do trovadorismo provençal. Um dos elementos que identificava os trovadores era justamente a educação artística. Esta educação lhes conferia o nome trovadores, daí se explica o orgulho dessa denominação (SPINA, 1991: 75) e a afirmação perante aos jograis e segréis1, seres diferentes do ponto de vista social e artístico. Dinis, desse modo, construía sua retórica poética a partir do conhecimento do “concorrente”. Estava familiarizado com as temáticas provençais em que a primavera e a natureza florescente testemunhavam o amor cantado pelos trovadores do sul da França. O mais fecundo dos trovadores galego-portugueses procura pôr em evidência a versatilidade dos poetas da França meridional, estabelecendo um paralelo entre a arte de ocasião desses poetas e a poesia que parte realmente do sofrimento amoroso que o poeta afirma possuir. Sofrimento que não depende da vontade, mas que permanece em todo o tempo. (SPINA, 1991: 310).

Para Dinis, a testemunha do sentimento amoroso é a sinceridade. Sinceridade que também é apregoada por Ventadour. Retóricas. O trovadorismo, além de revelar um jogo de amor também transborda de uma oratória específica, pois é preciso convencer o público que aquele amor é verdadeiro. Dinis, portanto, está inserido nesse meio trovadoresco. Tem a educação, a técnica, a retórica e a consciência de pertencimento a esse movimento. Também tem consciência de que esse movimento é distinto. Tem consciência que há o trovadorismo provençal e que há o trovadorismo ibérico. Sua retórica investe no trovadorismo que, em certos aspectos, se distancia daquele de Ventadour. A começar pela língua utilizada. Diferente da Provença e das cortes italianas, que continuaram utilizando a língua d’oc, a língua poética de Portugal e Castela, é o galego-português. O uso do galego-português pode ser compreendido também pelo viés político. O trovadorismo galego-português encontra seu auge em Portugal no reinado de Dom Dinis que, dando continuidade à prática de seu pai, Afonso III (1210-1279), promove ações que visam a centralização política e a autonomia do reino português. Dinis obtém sucesso

no

seu

empreendimento,

ainda

que

tenha

que

enfrentar

alguns

1 Esse termo foi utilizado para designar, no século XIII, o jogral que além de executar também compunha as cantigas, porém, não foi nesta acepção que o termo foi empregado pelos investigadores do assunto. Além desses personagens do movimento trovadoresco também existiam as soldadeiras, dançarinas ou cantoras que acompanhavam os jograis. Sobre esse assunto vide: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.

descontentamentos internos por parte da nobreza, personificada na figura de seu irmão e de seu filho. No campo externo é reconhecida sua autoridade política, uma vez que é convocado a mediar conflitos entre Castela e Aragão. Também pode ser considerado um eminente político quando, nos primórdios do seu reinado, mesmo sem muita maleabilidade, resolve o conflito com a Igreja, herança do reinado de seu pai. Os conflitos entre a coroa e a Igreja continuaram durante o seu reinado, mas não havia a necessidade de recorrer a uma instituição externa para resolvê-los. Com Dinis, portanto, o reino português faz as pazes com Roma, sai do interdito e adentra à comunidade cristã novamente. Porém, ainda que fazendo parte da comunidade cristã era preciso se diferenciar e a utilização da língua galego-portuguesa e do próprio português na chancelaria mostravam que o reino português não era só mais um reino cristão. Era um reino cristão, mas com uma identidade própria. Daí pode-se compreender o uso do português em documentos oficiais, assim como a criação da universidade, num período crucial da política régia de centralização do poder e do controle do poder senhorial, laico como eclesiástico. É por isso natural que D. Dinis promovesse uma instituição que lhe poderia fornecer indivíduos com formação jurídica, mas fora dos círculos formativos habitualmente controlados pelas instituições eclesiásticas. (PIZARRO, 2008: 179).

Percebe-se, portanto, que as ações de Dom Dinis, tanto no campo político quanto no cultural unem-se em torno de um mesmo objetivo: a afirmação de uma identidade de um reino que se percebe integrante de uma “comunidade”, seja ela cristã ou trovadoresca, mas também se reconhece como distinto buscando, inclusive, se afirmar a partir da diferença, como podemos observar na retórica poética de Dom Dinis. Na cantiga anteriormente mencionada podemos identificar, como afirma Graça Videira Lopes, a defesa de uma diferença entre esses proençaes que soem mui bem trobar e o eu que aqui canta – diferença cujo enunciado a adversativa “mas”, no princípio do terceiro verso, introduz – o que, como também tem sido desde sempre notado, não deixa de constituir uma interessante declaração de autonomia da arte galego-portuguesa face aos modelos provençais admirados (mesmo no que toca à cantiga de amor, como é o caso). Distinguindo entre um eles e um nós, de que o trovador, mesmo se a título pessoal, se faz portavoz, D. Dinis parece postular claramente essa diferença. (LOPES, 2009: 3).

Isto posto, podemos afirmar que Dom Dinis se reconhecia como integrante do movimento trovadoresco de origem provençal, mas também se posicionava como capaz de não se restringir a ele. Dessa forma, ele concebia as diferenças entre uma forma poética e outra. E considerava a sua como melhor. Uma retórica poética que também se faz política no contexto de sua ação centralizadora e de autonomia perante aos demais reinos. De fato, podemos identificar os elementos que aproximam a lírica galegoportuguesa da provençal, assim como os que as separam. Neste último aspecto podemos apontar uma transformação de gênero ocorrida na Península Ibérica. Essa transformação diz respeito às cantigas de amigo que nos revelam uma voz feminina cantando o amor, a alegria, a saudade ou a coita causados pela presença ou ausência do seu amigo. É neste gênero, segundo Serrão, que Dinis se impôs como um dos maiores líricos da Idade Média portuguesa. (SERRÃO, 1978: 239). A origem deste gênero ainda causa questionamentos. É possível que sua gênese esteja relacionada com a presença árabe na Península Ibérica que não foi exclusivamente motivo de luta. Interessante pensar que o árabe já foi a “língua erudita e literária do Sul da Península, enquanto o Norte e os cristãos conservaram o latim como língua escrita; porém a língua falada, ou romance, devia facilitar as relações quotidianas e o comércio entre uns e outros”. (RUCQUOI, 1995:68). Diante disso podemos reconhecer a intensa interrelação entre cristãos e muçulmanos que possibilitou um rico trânsito cultural. Em termos poéticos, a cultura andaluza foi responsável pela criação das jarchas, produzidas entre os séculos XI e XIII em romance que se finalizam em breves estrofes, denominadas muwassaha. Tais composições nos remetem ao universo feminino, sobretudo através da figura da mãe, o que nos permite relacioná-las com as cantigas de amigo galego-portuguesas. Entretanto, também é possível supor que a cultura árabe tenha tido contato com a cultura provençal. Diante disso, torna-se difícil determinar com segurança a origem da influência dessas variadas culturas. Perante a extrema mobilidade existente no período medieval é possível afirmar que as variadas culturas e suas expressões entraram em contato com outras. Assim, pode-se falar em uma contínua interação entre elas que culminou em variadas formas de expressão dos sentimentos que também seria influenciada pelo contexto social específico. “As origens do movimento lírico, que se define na Galiza e

no norte de Portugal e tem Santiago de Compostela como seu centro produtor e de irradiação, explicam-se pela influência simultânea destes jardins poéticos espalhados pela Europa” (SPINA, 2006: 13), que proporcionou na Península Ibérica, segundo José D’Assunção Barros, a formação de um tipo específico de rei, que sabe lidar com a alteridade e com a diversidade. (BARROS, 2014: 38). E, podemos dizer, que sabe se utilizar dessa diversidade como constituinte de sua própria inspiração poética, como podemos observar nas cantigas de amor. Como já mencionado, estas composições transmitem as regras do amor cortês: a submissão à amada através da vassalagem amorosa; a promessa de honrar e servir a amada; desprezo pelos intrigantes; o elogio à dama; a prática da mesura e a utilização do senhal, um pseudônimo para não divulgar o nome da dama, isto porque, como vimos, era casada. Estes preceitos também podem ser identificados nas cantigas de amor de Dom Dinis, afinal ele é um conhecedor das normas do amor cortês. A cantiga em que ironiza a poesia provençal também serve para indicar que ele tem consciência deste modo de fazer poético. Assim, podemos identificar 12 cantigas de amor em que ele faz referência à vassalagem amorosa e 25 em que faz elogio à dama. O elogio à dama é o segundo tema profano mais recorrente nas suas cantigas de amor, perdendo apenas para o tema da coita2 que aparece 38 vezes. No tocante ao elogio à dama, que no contexto ibérico será a senhor, uma vez que não havia o signo feminino desta palavra, ela será, assim como as diretrizes do amor cortês, a mais fremosa de todas as mulheres. E é justamente por esse motivo que o trovador lhe rende o seu amor e declara a sua coita por não ter esse amor correspondido. A senhor também será amada por ter mesura, ou seja, delicadeza, cortesia. Tal característica é cobrada, no amor cortês, ao amante. Ele deve tratar a dama com mesura. Instigante pensar que em uma de suas cantigas, Dom Dinis reconhece o mesmo em sua senhor: Pois mha ventura tal é ja que sodes tam poderosa de mim, mha senhor fremosa, por mesura que em vós a, e por bem que vos estará, pois de vós nom ei nenhum bem, de vós amar nom vos pes em, senhor. 2 Dor, sofrimento.

(LANG, 2010:235) A mesura é, pois, um tema extremamente importante na construção da poética cortês. Em outra cantiga, Dom Dinis brinca com este elemento, como se estivesse atormentado por ter que cumprir a mesura e querer quebrá-la: Vós mi defendestes, senhor, que nunca vos dissesse rem de quanto mal mi por vós vem; mais fazede-me sabedor, por Deus, senhor, a quem direi quam muito mal eu ja levei por vós, se nom a vós, senhor.

(LANG, 2011: 130) Nesta cantiga, Dom Dinis confessa sofrer pela sua senhor e pergunta a quem poderá contar sofre esse sofrimento. Segundo as regras da mesura ele não deve contar a ninguém, pois ninguém deve saber a quem devota o seu amor. Assim, ele canta o seu pesar na cantiga, para a sua amada. Dinis joga com os lugares-comuns do amor cortês, afirmando que não há como se ter mesura sem um indício de desmesura (NOBRE, 2001: 56). É nessa perspectiva que também podemos analisar outra cantiga: Preguntar-vos quero por Deus, Senhor fremosa, que vos fez mesurada e de bom prez, que pecados foram os meus que nunca tevestes por bem de nunca mi fazerdes bem. Pero sempre vos soub’ amar dês aquel dia que vos vi, e assi o quis Deus guisar que nunca tevestes por bem de nunca mi fazerdes bem. Des que vos vi, sempr’o maior bem que vos podia querer, vos quiji a todo meu poder; e pero quis nostro senhor que nunca tevestes por bem de nunca mi fazerdes bem. Mais, senhor, a vida com bem se cobraria bem por bem.

(LANG, 2011: 229)

À senhor, mesurada e de bom prez, ou seja, de boas qualidades e, portanto, digna de ser amada, Dinis pede por um bem. Ele reclama que nunca, desde o momento em que viu sua senhor, momento a partir do qual passa a amá-la, ela quis lhe fazer o bem. Este bem é uma recompensa pelo seu amor. A recompensa poderia ser um presente, poderia ser um olhar, uma correspondência ao amor do trovador. Ou algo mais. Sim, pois o amor cortês pregava certa continência, não a castidade. O amor cortês, com todos os seus artifícios, dialoga com um sensualismo que pulsa sob a cobertura do amor idealizado. (BARROS, 2007: 89) A senhor de Dom Dinis é, assim como a dama dos provençais, idealizada, sem correspondência na realidade. Talvez uma cantiga possa dizer o contrário: Pois que vos Deus fez, mha senhor, fazer do bem sempr’ o melhor, e vós em fez tam sabedor, unha verdade vos direi, se mi valha nostro senhor: erades bõa pera rei. E pois sabedes entender sempr’ o melhor e escolher, verdade vos quero dizer, senhor, que servh’ e servirei: pois vos Deus atal foi fazer, erades bõa pera rei. E pois vos Deus nunca fez par de bom sem nem de bem falar, nem fará ja, a meu cuidar, mha senhor, por quanto bem ei, se o Deus quizesse guisar, erades bõa pera rei.

(LANG, 2011: 204-205) A senhor aqui cantada, assim como a das demais cantigas, não se compara a nenhuma outra no mundo. Deus a fez sem par, tanto no julgamento quanto no falar. Porém, nesta cantiga acrescenta-se mais uma característica extremamente interessante. A senhor é tão perfeita que erades bõa pera rei. Ou seja, ela era perfeita para um rei. Que senhor seria perfeita para o rei Dom Dinis? Sim, rei. Nesta cantiga não é somente a voz do trovador que aparece. Dom Dinis não tira a coroa ao trovar. E, se a dama do amor cortês é superior ao trovador, quem seria a dama superior ao trovador que é superior a todos?

Para alguns estudiosos esta cantiga foi inspirada em Isabel de Aragão (12701336), esposa de Dom Dinis, rainha culta e santa. Pode-se dizer que Isabel foi escolhida a dedo. Um enlace com a filha do rei de Aragão traria inúmeras vantagens políticas. Ela, de fato, tinha muitos pretendentes, e o escolhido foi Dom Dinis, também um excelente partido. Dessa forma, o casamento de Dinis e Isabel foi um bom negócio. Como deveria ser um casamento no período medieval. Isabel era culta e uma rainha extremamente ativa, auxiliando o reinado de Dom Dinis com suas habilidades diplomáticas com Aragão e com seu próprio filho que se insurge contra o pai e com suas atividades de caridade e assistência. É possível afirmar, então, que Isabel foi uma excelente rainha. Além disso, cumpriu seu papel de mulher: deu um herdeiro a Dom Dinis, o futuro Afonso IV, além de uma filha, Constança, que seria rainha de Castela. Então, diante disso, poderíamos afirmar que a cantiga foi destinada a Isabel. Podemos dizer que é possível. Isabel, de fato, era boa para rei. Era boa para ser rainha, como o foi. Porém não há como comprovar. Além do mais, devemos lembrar que Dom Dinis tinha amantes, ou barregãs para nos atermos ao termo da época. Os nomes de algumas delas eram conhecidos e constam no Livro de Linhagens do conde Pedro de Barcelos, um dos filhos bastardos do rei. Inclusive, um destes bastardos teria sido o motivo pelo qual Afonso, o filho legítimo, se insurge contra o pai, por conta do poder que o irmão, Afonso Sanches, estaria recebendo no comando do reino. Uma luta gerada por ciúme. Mas um ciúme político. Afonso não fez nada mais que assegurar o seu trono. Diante disso, fica a questão: quem era boa para rei? As regras do amor cortês impedem Dinis de dizer. Ele nunca diria, pois ele é um trovador, de fato. E não o é simplesmente por ter sido o mais profícuo trovador português, com 137 composições, mas também pela sua qualidade e por promover “uma condensação, recapitulação e síntese da tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto criativo com os textos que ‘cita’ ou aos quais ‘alude’” (PIZARRO, 2008: 321). Assim, ao fazer o elogio à senhor Dom Dinis faz um elogio ao trovadorismo galego-português, a si e ao seu reino. Tanto ele quanto os provençais irão afirmar a perfeição do seu fazer poético e cada qual quer que o seu seja o mais sincero. Através do elogio à senhor que se mantém nos moldes do amor cortês e da pretensa vontade de querer trovar como os provençais, como sugere a cantiga Quer’eu em maneyra de

proençal, o rei-trovador, na verdade faz um elogio ao seu reino. Utilizando-se da emulação, que é um tipo de imitação, mas que se pretende diferente porque sua meta é superar os provençais. E, para tanto, atualiza a recepção de forma consciente (GUIMARÃES, 2014: 58), ou seja, imitando ou se utilizando das técnicas provençais de trovar ele estabelece o público em uma tradição poética que passa, então, a ser compartilhada e transformada numa expressão de identidade.

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