A imagem do Africano pelos Portugueses antes dos contactos

June 2, 2017 | Autor: José da Silva Horta | Categoria: Representation of Others
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LuísDEALBUQUERQUE ANTÓNIOLuís FERRONHA JOSÉDASILVA HORTA RUILOUREIRO

o Confronto do Olhar o encontrodospovos na épocadasNavegações portuguesas SéculosXVe XVI

PORTUGAL ÁFRICA)ÁSIA)AMÉRICA

COORDENAÇÃO

DE: ANT6NIO

Luís FERRONHA

Edição patrocinada pelo Grupo de Trabalho do Ministério da Educação. para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses

CAMINiO colecçãouniversitária

L

Índice

INTRODUÇÃO

António Luís Ferronha Notas """""""""""

Bibliografia

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....... 27

CAPÍTULO I Breves consideraçõessobre o outro na cartografiaportuguesa............ 31 Luís de Albuquerque CAPÍTULO II Nota introdutória aos capítulos 11 e fi ................................................ A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos ............ José da Silva Horta Notas .......................................... Bibliografia . CAPÍTULO III Primeiros olhares sobre o Africano do Sara Ocidental à SeITa Leoa (meados do século xv-inícios do século XVI) José da Silva Horta Notas ... Bibliografia

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73 121 125

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íNDICE

CAPÍTULO IV Quando o sagrado se manifesta- as brancas imagens """""""""""

António Luís Ferronha Notas """""""""""""""""""""""""""""""""""""'" Bibliografia

148 150

CAPÍTULO V O encontro de Portugal com a Ásia no século XVI Rui Loureiro Notas

155 208

CAPÍTULO VI O encontro inesperado Parte I: As primeiras imagens do Brasil António Luís Ferronha Notas Bibliografia Parte 11: A visão do índio brasileiro nos tratados portugueses de finais

do século

XVI

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215 252 256 259

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Rui Loureiro Bibliografia

284

CAPÍTULO VII A iconografiado encontro

289

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António Luís Ferronha Notas

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Bibliografia

CONCLUSÃO António Luís Ferronha

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Nota introdutória aos capítulos TI e lTI

o segundo capítulo constitui uma tentativa de reconstituição, parcial, da imagem do Africano pelos portugueses - ou, mais propriamente, do horizonte rcferencial em que essa imagem se poderia situar - antes dos encontros sucessivos com o mesmo, no seu continente dc origem, no decorrer dos séculos xv e XVI. Se uma vertente do problema se cinge ao imaginário ocidental-cristão que recobre o Negro e a cor negra - tida em conta a perspectiva própria da Península -, outra vertente supera a especificidade da imagem do Africano, para a enquadrar no código cultural que num dado momento -

século XIV e inícios do século xv

-

estaria disponível para

tornar inteligível e avaliar a hcterogeneidade dos povos extra-europeus. Deste código - que atravessa vários tipos de discurso e de público, apropriado em diferentes graus pelos diferentes agentes culturais - serão afloradas as classificações em que o Outro Cultural é integrado no plano das suas crenças. Neste, como noutros campos das representações antropológicas, o peso das imagens prçvias é gem evidente nos primeiros contactos, seja com sociedades de Africa, Asia ou América. O modo como, dos meados de Quatrocentos aos inícios de

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-

Quinhentos, os portugueses - mas também outros europeus que os acompanharam nas suas viagens (partilhando experiências e formas de sentir) ou que ouviram os seus relatos - olhavam o Africano, é objecto do terceiro capítulo. Confrontados com a extraordinária riqueza dos textos que documentam esses encontros de culturas, de que decorreu a produção de um discurso antropológico, não se pretendeu apresentar extractos de todos os textos desse tipo que chegaram até nós, mas antes escolher entre estes, os passos considerados mais significativos. Optou-se também, dada a extensão da problemática, por incidir a antologia num determinado espaço geográfico: do Sara Ocidental - onde se desfazem as primeiras incógnitas sobre os habitantes do continente até aí desconhecidos - à Serra Leoa. A definição deste parâmetro permitiu, por um lado, uma maior aproximação às representações, tendo em conta a relação entre estas e a natureza dos contactos, os referentes culturais de viajantes e produtores do discurso e a visão de um mesmo conjunto de sociedades; por outro lado, dispor os textos de molde a ser perceptível algo do que mudou e do que de essencial se manteve nas representações do Africano, desde os primeiros contactos - conferindopor isso uma atenção especial a Zurara - às primeiras sínteses do saber antropológico em causa. José da Silva Horta

A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos (*) José da SilvaHorta

Quando nos perguntamos qual terá sido a representação do Africano, em particular do Negro, pelos portugueses que, ao longo dos séculos xv e XVIo contactaram pela primeira vez nas costas do seu continente (ou destes receberam notícias), devemos antes de mais atender à imagem anterior a esses contactos. Esta permite avaliar com mais aproximação o peso dos referentes culturais dos viajantes, nos seus primeiros olhares sobre o Africano. Esses referentes constituem-se como um código de que fazem parte classificações várias, estereótipos, lugares-comuns e valores que são comuns, no fundamental, ,!OOcidente cristão, espaço cultural a que Portugal pertence. E com base neste código referencial que se valorizam ou desvalorizam os povos extra-europeus, consoante estes, na imagem que deles

(*) Este capítulo tem por base uma comunicação de 1986, apresentada às 1.~ Jornadas de História Moderna (Faculdade de Letras de Lisboa, 16-19 de Outubro). A mesma foi reescrita, eliminando-se intencionalmente parte das notas que documentam as asserções que aí são feitas; em eontrapartida, inseriram-se textos da época, dados novos e inclusive algumas rectificações a que investigação ulterior conduziu. A actualização por que se optou nas citações (à falta de edições modernizadas), bem como os sublinhados nas mesmas, são da exclusiva responsabilidade do autor.

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o rosto se fará negro, os olhos se farão trevosos, as orelhas

se constrói, se aproximam ou se afastam do padrão que o Ocidente cristão para si mesmo definiu e de que não abdica. O Negro, e o Africano em geral, não obstante as características próprias da sua imagem, são assim um dos alvos dessa atitude profundamente etnocêntrica. O alcance e os limites dessaimagem são traçados pelo código cultural que em cada momento histórico está disponível para os avaliar.

ensurdecerão, a bocasefarámuda,ealínguaseencurtará;»(3) Nas Cantigasde Santa Maria, uma obra de meados do século XIII,o adjectivo negral é mesmo sinónimo de desgraçado. A cor negra é também a cor do castigo dos maus ou pecadores por oposição à cor branca, da recompensa dos bons, como no Boosco Deleitoso (4). A contraposiçãobranco/negrode sentidosrespectivamentepositivo e negativonãorepresentaemsi qualquerpreconceitode tipo racial, mas é tão-só o resultado do sistema de cores próprio do código cultural. Numtextoescritoem latime de carácteracentuadamenteteológico, acessível a um púglico muito restrito - o Colírio da Fé contra as Heresias de Frei Alvaro Pais -, a cor negra (num dos seus sentidos) é definida, no apêndice final de interpretação de «palavras e figuras da Bíblia», não sócomoa cor do pecadomas igualmentedo demónio. Mas esta caracterização do diabo como negro é largamente difundida e está ao alcance da maioria: é um tema frequente nos exemplos das obras espirituais, de devoção pessoal ou para responder às necessidades da pregação; estão neste último caso, os exempla de uma obra de adequação pedagógica de doutrina, como o Orto do Esposo, a literatura de visão, a hagiografiaou mesmo a poesia piedosa destinada a ser cantada. O diabo intervém sob a forma animal - cavalo negro, ave de cabeça negra, etc. - e principalmente sob a forma humana ou semelharyte.Toma a aparênciade uma criança negra no Espelhodos Reis de Alvaro Pais, em duas situações semelhantes: no capítulo sobre as tentações:

Recuamos ao século XIV e inícios do século XV, situando-nos nas

fontes escritasportuguesasou de versãoportuguesa(ou mesmoao século XIII nas obrasque apenasnos chegarampor versõesanterio.. res). Pretende-seefectuar uma sondagemem diversasáreasda produção escrita em que o referido código, associado a diferentes preocupações e intenções, se pode captar, com evidência para as fontes narrativas, fontes relativas à vida moral e religiosa (principalmente teológicase de espiritualidade) e pedagógicas (I). Num primeiro momento, trataremos os tópicos e estereótipos directamente associados à cor negra e ao Africano-Negro; na orientação desta abordagem foram essenciais como ponto de partida as conclusõesdos estudosjá realizadospor especialistaspara as fontes escritas e iconográficas do Ocidente medieval; noutro momento - em articulação com o primeiro - as categorias mais englobantes da imagem dos povos não ocidental-cristãos em que o Africano se integra. Escolhendo o campo religioso como núcleo dessa imagem, veremos como as categorias - Cristão, Mouro, Gentio, etc. - aparecem articuladas e hierarquizadas, compondo assim uma classificação antropológica, que será, a posteriori, largamente utilizada na caracterização dos povos, não só africanos como ameríndios e asiáticos, com que a expansão europeia dos séculos xv e XVIse viu confrontada.

«E de S. Martinho se lê que o diabo amiúde lhe apareceu em forma humana. Semelhavelmente se lê de S. António a quem apareceu na forma de um menino negro e na forma de diversas alimárias.»

1. Nas fontes portuguesas confirma-se o grande peso negativo para a imagem do Africano do século XIV e inícios do século xv dos estereótipos de herança medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro (2). O enegrecimentoda cor da pele aparece associado à morte ou aproximação da morte e simboliza a tristeza e o sofrimento àquela ligados:

e como um dos impedimentos à oração: «O nono impedimento é a sugestão do diabo que retrai a muitos da oração. Donde Gregório num dos diálogos: "Certo monge não podia estar no oratório em oração; sempre que era corrigido, saía, e nunca quis emendar-se. Ora, S. Bento viu um menino negro arrastá-lo do oratória pela fímbria do vestido. S. Bento corrigiu este monge com açoites, e, por fim, retirou-se como se ele próprio é que fosse açoitado."» (5)

«Pois que tu és homem que serás feito não homem; e quando enfermares para a morte, crescer-te-á a dor, e tu, pecador, haverás grande pavor; o teu coração tremerá, a cabeça cairá, o siso esquecerá,a virtude secará, a face emarelecerá,

.,\

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«[...] aparecem entre eles muitos acipios [sic por etíopes] negros e mui espantosos e mui grandes como gigantes, e pela catadura que haviam tomada e pelas vestiduras negras que traziam podia todo homem bem entender, que eram sergentes do Inferno e traziam nas mãos espadas muito agu-

Na realidadea metamorfosedo demónio em criançanegraé um protótipo fornecido pelos Diálogos de Gregório Magnoque chega a originar uma representação iconográfica da tentação deS.Martinho (6). Todavia, é sobretudo sob formas em que o aspecto humano e o fantástico estão associados que se representa o diabo negro nas obras de maior vulgarização - a que esta e outras de Álvaro Pais não pertencem -, dos géneros atrás referidos e ainda nas destinadas a um meio menos alargado (de corte e eclesiástico),como os romances de cavalaria do ciclo da Demanda. São mais frequentes como elementos de caracterização: homens ou demónios negros como carvão ou como pez; atormentadores; espantosos; pela sua grande altura compara,dos a gigantes; olhos vermelhos em brasa ou como candeias acesas. E deste modo notória a presença do estereótipo do diabo negro, atormentador ou tentador, que continuava no século XIVe até meados do século xv (pelo menos na iconografia) a ter grande sucesso no Ocidente cristão. As comparações de negro como (ou mais que) pez, carvão ou ainda amora e tinta, não são mais que fórmulas constantemente repetidas, revelando a preocupação dos vulgarizadores em facultarem uma «visualização» imediata correspondente à adjectivação de «negro», que por si só era insuficiente para o horizonte cultural de um público mais alargado que se pretendia edificar (1). O mesmo esquema de adjectivação é utilizado em todas as referências à cor negra nas Cantigas de Santa Maria, obra que frequentemente capta temas da devoçãopopular. Note-se que no Orto do Esposo - na sua globalidade, texto mais comum a um meio clerical cultivado - ao adjectiyo «negro» não é acrescentada nenhuma comparação clarificadora. E particularmente sugestivo para a imagem do Africano o esquema de contraste negrolbranco da Visão de Túndalo na descrição dos demónios:

das.»

(10).

Do termo «etíope» (de aethiops

= face

queimada) coexistem dois

significados dominantes na Idade Média (bem como na Antiguidade): por um lado são «etíopes» o conjunto dos povos submetidos aos rigores do sol; por outro é a designação espontânea do Negro como tipo mais caraçterístico deste grupo humano. O Egipto, e globalmente o Norte de Africa, estão assim numa situação de transição para uma região mais a sul e a oriente que constitui o que se poderia designar por «Africa Aethiopica» (François de Medeiros). A assimilação do Etíope à negritude do demónio está relacionada com a estadia prolongada deste no Inferno, mas também com a evocação pela cor negra, das consequências do calor da zona tórrida donde provém o Etíope (11). Essa coloração tem na relação com o clima um lugar-comum explicativo que podemos encontrar na General Estoria de Afonso X: «E César, disto podes haver tu por testemunho a própria cor do povo que mora em Etiópia, cujo sangue é queimado pelo grande calor do sol, que tem ali o poder do seu fervor e dos bafos do ábrego que é entre os ventos o mais quente, donde têm os homens dali a cor mui negra.» (12) Este tipo de explicação é pensado no plano simbólico, inserido ou baseado nos esquemas exegéticos de tradição patrística: «Etíope» e «Etiópia» -

bem como «Egípcio» e «Egipto»

-

como metáforas

do pecado, Diabo ou Inferno. Na verdade, Egipto e Etiópia são alegoricamenteconsideradasterras de reserva do pecado, no quadro de uma imagem estável do Ocidente cristão em que a negritude é o signo do mal (13), a que se juntam os esquemas veiculados pelos enciclopedistas relativos aos povos exteriores, que aparecem repetidos, por exemplo, no Orto do Esposo:

«E disseram [os diabos] porque tardamos mais. Dêmo-Ia [a alma] a Lúcifer que a coma. «E aqueles demónios eram negros como carvões,e os olhos haviam como candeias acesas, e os dentes haviam brancos assim como a neve e traziam rabos, como escorpiões, e as unhas dos pés e das mãos eram de ferro agudas e mui más e assim ameaçavam a alma, e movendo contra ela seus aparelhos que tinham com que atormentavam as outras almas iam ao Inferno.» (8)

«A duodécima abusão é a gente sem lei, porque aquele que despreza os dizeres de Deus e os estabelecimentos da Lei, vai por desvairados caminhos de errores e cai em laço de traição e de muitos maus costumes, assim como há algumas gentes por partes do mundo. «Exemplo. Em os desertos de Etiópia há umas gentes que

O demónio toma tambéma forma de «etíope negro»,estereótipo igualmente comum nos exempla retirados das vidas dos santos (9), mantendo os elementos de caracterização atrás definidos:

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vivem sem lei, assim como bestas e têm mulheres sem casamento e são chamados Garamantes. E outros há aí que maldizem o sol, quando se levanta e quando se põe, porque os queima em aquela terra mui fortemente. Outros há aí que moram em covas e comem as serpentes e toda outra cousa que pode ser comida, e estessão chamados Trogloditas. Outros andam nus e não trabalham em nenhuma cousa, e estes são chamados Grafasantes.» (14)

e houve fortes suores[...]. E a santamulher chegou-sea ele e levantou-ode terra e disse:Padreporque torvam tanto teus pensamentose és em mim escandalizado,cuidandoque eu era fantasma e espírito mau, e fingia fazer oração? Senhor sei certo, que eu sou mulher pecadora, mas sou baptizada do baptismo de Nosso 'Senhor Jesus Cristo e espírito mau não sou, sou terra e cinza e não/sou nenhuma obra do espírito maligno.» (16)

Coexiste, todavia, com a interpretação do elÍope e da cor negra da pele (queimada pelo calor do sol), desvalorizante para o Africano, uma outra mais positiva. Testemunha-o por exemplo o passo do Boosco Deleitoso (cap. LXXVI)relativo ao «etíope» Moussés que de ladrão se toma depois servo de Cristo e em exemplo da virtude da vida solitária. A própria cor negra do Etíope toma também um sentido positivo: no Orto do Esposo, que tal como o Boosco é apologista da vida eremítica, é referida num exemplo da vida de S. Jerónimo como consequência da penitência do justo na vida do ermo «que mortifica a carne para dar vida à alma» (15). É nesta interpretação que se enquadram outros dois exemplos semelhantes: da Vida de Barlaão e Josaphat e da Vida de Santa Maria Egipciaca que aqui mais nos interessa. Trata-se do encontro de um «santo homem» do ermo com uma egípcia, pecadora no passado, que se converteu, baptizou e se penitencia no ermo; depois de um primeiro momento em que o seu interlocutor, Zozimas, a confunde com a imagem do demónio, logo compreende que ela é uma «santa mulher» a quem Deus conferiu poderes milagrosos e trata-a com a máxima veneração. Deste texto apresentam-se dois pequenos extractos:

É um episódio que não só atesta a recusa da identificação linear negro-diabo mas também, e mais importante, nos parece poder remeter - como uma das leituras possíveis - para o tema da conversão da Gentilidade tornada capaz de se «Salvar», simbolizada na egípcia negra e seu percurso ascético, tal como no etíope do Boosco, e subjacente no texto na caracterização do Egipto e Líbia como terras em

«E um dia à hora da sexta levantouos olhos ao céu, e teve atenção à parte direita; viu em um lugar, assim como uma sombra de corpo humano, e foi muito espantado e torvado. E cuidou que era fantasmaaquilo que via, e fez o sinal da cruze orou.E feita e perfeitaa oração,viu um corpocontra a parte do meio dia andar, todo mui negro e da quentura do sol muito queimado. Os cabelos da sua cabeça eram alvos como a lã alva, pequenos e chegavam até ao colo. [...] E maravilhou-semuito Zozimas que cousa era aquilo que assim vira pensando quc era alguma nobre e grande pessoa. [...] Mais dava ele em testemunha Nosso Senhor e dizia que enqui}nto aquela santa mulher fazia sua oração que a via ele, estar levantada dc terra cm o ar acerca de um côvado. E cle vcndo tal visão houve grande temor, e com espanto caiu em terra

que vivem muitos cristãos que vão em peregrinação a Jerusalém. Esta imagem espiritual (coexistindo com a de sinal negativo já mencionada) é repetida na sua formulação teológica no Colírio da Fé..., mas não ultrapassa o simples esquema exegético que se limita a reproduzir uma tradição pré-estabelecida:

«Aegyptus (Egipto), o mundo ou o povo dos gentios. Nos Salmos: "Virão legados do Egipto". Aethiopia (Etiópia), a Igreja dos gentios. Nos Salmos: "Da Etiópia virá a mão de Deus" [...]» (17) Coloca-se-nos o problema de saber se o retomar deste texto

hagiográfico,além de se inserir numa dada tendência mística e no gosto pelo patético dominante na época - que explicam o sucesso que obteve também em Portugal com, pelo menos, duas versões pouco distanciadas no tempo (de Trezentos ou de início de Quatrocentos) -, poderá ainda de algum modo indiciar um interesse real pelo problema da evangelização dos povos exteriores e seu acolhimento na «Igreja de Cristo» ou «dos Gentios», que nos é sugerido pela grande conversão da Egípcia: temática da articulação do Africano com a categoria de Gentio. Mais próxima que a mítica e obscura Africa Aethiopica, a franja setentrional do continente africano parece constituir para o cristão peninsular, como salienta Annie Courteaux (referindo-se em concreto aos castelhanos do século XIII),um referente de espaço e uma presença, reais na sua vida quotidiana (18),sintetizados no contacto bélico com os muçulmanos. Para o caso português devem ainçla ser tidas em conta as relações comerciais frequentes com o Norte de Africa,

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pelo menos desde o século XIV,e mesmo os contactos estabelecidos por ordens religiosas, ao longo dos séculos XII e XIII,em que também portugueses participaram (19). A associação Mouro-Africa é reforçada por uma versão oficial da história peninsular que tem a sua origem na Corte de Afonso X de

rissimamente respeitado o nome de Cristo, e que hoje é habitada por Maomé. Submeteram-na à fé os reis dos Godos, teus ascendentes, gloriosíssimos e fidelíssimos na fé de Cristo. Agora detêem-na e ocupam-na, por causa dos nossos pecados, os inimigos da fé e teus [...]. Ela pertence-te por direito hereditário. E, porque te pertence, submete-a à fé, ocupa-a em nome de Cristo e vinga a ofensa contra Ele cometida.» (22)

Caste1a (2°). Conhecida a grande influência em Portugal da obra histórica afonsina, uma leitura da genealogia e cronística portuguesa (dos finais do século XIVe inícios do século xv) daquela em grande parte derivada, permite constatar: por um lado, uma imagem do Mouro como opositor político-religioso fundamental; por outro, a identificação de Africa, no sentido restrito (uma das suas acepções), como terra de Mouros, ambas já veiculadas pela historiografia castelhana. A maior operacionalidade e predomínio deste conceito restrito depreende-se, por exemplo, do horizonte geográfico do Ministerio Armorum, tratado de «formação profissional» de arautos, cujo ofício os obrigava a deslocações frequentes na bacia do Mediterrâneo. Escrito um ano depois da conquista de Ceuta, revela ainda a adequação desse conceito de África

-

região setentrional do continente

O Negro aparece frequentemente «camuflado» sob as designações mais abrangentes de Africano e Mouro que são frequentemente sinónimas, como observa Courteaux: «O termo Mouros designa os Muçulmanosem geral e no caso da Península Ibérica recobre duas realidades: os Muçulmanos Negros e os Muçulmanos Brancos sem que seja feita distinção de cor quando se trata do povo.» (23)

ocupada por

muçulmanos «
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