A imagem habitada: uma construção da experiência visual imersiva através das imagens técnicas

July 8, 2017 | Autor: Nathan Cirino | Categoria: Experiencia Estética, Imagens Técnicas, História Da Mídia, Imersão
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A imagem habitada: uma construção da experiência visual imersiva através das imagens técnicas

Nathan Nascimento Cirino Doutorando da UFPE [email protected]

Resumo: A imersão tem surgido como um dos grandes conceitos das experiências do usuário de mídias digitais. Compreendida principalmente como um processo de fruição intimamente ligado aos estímulos sensoriais e ao envolvimento imaginativo, o conceito de imersão pode ser visto como fruto de um longo percurso de tentativas de controle da atenção do observador através da evolução dos dispositivos ópticos. O conceito de imersão aliado à história das imagens técnicas dos últimos séculos pode traduzir, portanto, uma importante trajetória da experiência imersiva atual. Este trabalho tem por objetivo a compreensão da construção da experiência imersiva através dos dispositivos ópticos que precederam a tecnologia digital nos séculos passados, ajudando-nos a vislumbrar uma trajetória midiática para surgimento do que temos hoje por imersão. O presente estudo utilizará como base autores como Arlindo Machado, Jonathan Crary, Peter Berger e outros pensadores atuais a respeito do tema, sendo um trabalho de análise bibliográfica em sua essência. Palavras-chave: Imersão. Atenção. Visualidade. Dispositivos ópticos.

Introdução Quando a imagem técnica surge, destacando-se da chamada imagem tradicional, uma nova gama de possibilidades de fruição se abre, uma vez que, de acordo com Flusser, “no caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado” (1985, p. 10). Ainda segundo o autor, as imagens técnicas – aquelas que são resultado de processos ópticos, químicos e mecânicos de algum aparelho – são tidas como janelas da realidade e não como meras imagens, em um caráter aparentemente não-simbólico e objetivo. As novas possibilidades que chegam através do surgimento dessas imagens-janelas do real acabam por proporcionar uma busca por construções de aparelhos que tragam consigo experiências visuais cada vez mais realistas, capazes de revelar ao observador novos

contextos e espacialidades. O cinema e a fotografia, como grandes expoentes das imagens técnicas, traçam ao longo da sua breve história uma jornada através de tentativas que abarcam as mais variadas estratégias de fruição da imagem, construindo um rico painel que irá compor uma experiência bastante comum nas discussões atuais acerca das novas mídias: a imersão. Estaria a construção das imagens técnicas apontando para o processo imersivo de fruição desde sua origem ou podemos vê-las meramente como meios de uma evolução tecnológica com potenciais cada vez maiores de estímulos sensoriais? Ao mencionar a caverna de Platão como um protótipo do que viria a ser a situação cinema, Arlindo Machado (2011) nos deixa um caminho para construirmos uma resposta para o questionamento acima. Segundo o autor: “Desde que o cinema se constituiu em instituição, a partir de fins do século XIX, analistas e pensadores não cessam de apontar para a extraordinária semelhança entre a cena da caverna de Platão e o dispositivo de projeção cinematográfica” (MACHADO, 2011, p. 31). Platão menciona uma caverna com pessoas que assistem sombras de estátuas de homens e animais provocadas pelo fogo e guiadas por uma voz fantasmagórica. A situação esconde, portanto, a realidade. O público que observa as imagens vive a ilusão de conhecer o real, quando, em verdade, o mundo se descortina, de fato, fora da caverna. Vale salientar, entretanto, que a situação cinema: [...] se caracteriza, antes de mais nada, pelo completo isolamento do mundo exterior e de todas a suas fontes de perturbação visual e auditiva. Uma sala de cinema ideal deveria ser inteiramente vedada, para impedir qualquer entrada de luz ou de ruídos do exterior. Qualquer outro ponto luminoso que não a tela, mesmo que se trate apenas do letreiro com a indicação de saída de emergência, já é suficiente para distrair a atenção e perturbar esse estado de disponibilidade em que se acham os espectadores. (MACHADO, 2011, p. 43)

Este isolamento sensorial do espectador exigido pelo cinema, limitando sua percepção apenas ao que está no filme e ao que é filme, pode facilmente ser relacionado à caverna de Platão e à experiência imersiva.

Assim como na caverna e no cinema, as novas tecnologias trabalham no sentido de tragar o espectador para uma realidade paralela, de estímulos que não pertençam à sua realidade cotidiana. Através do pensamento de Machado sobre o mito de Platão podemos enxergar muito além do desejo não datado, ancestral, de construirmos o dispositivo cinema. Estamos, de fato, diante de um desejo da construção da experiência de imersão, seja por meio de sombras, de projeções, ou dos mais variados recursos disponíveis ao longo da história das imagens técnicas.

Imersão Para Janet Murray (2003, p. 102) imersão é “um termo metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água”. Esta definição, dotada de certa superficialidade, nos permite divagar sobre as mais variadas experiências aceitando-as como imersivas, uma vez que estar imerso seria o mesmo que estar hermeticamente rodeado de outro contexto, ou seja, estar fisicamente arrebatado para outra espacialidade, mesmo que esta seja apenas uma simulação. Segundo este prisma, a imersão está condicionada à percepção sensorial e, de certa forma, mais independente de processos puramente imaginativos. Traduzimos aqui, no entanto, a imersão segundo outros autores, que bebem não apenas das fontes voltadas às novas tecnologias como também daquelas que dialogam com a literatura e a psicologia. Quando aproximados da imersão no meio literário, temos, por exemplo, Charlotte Bronte, que classifica o termo como “a projeção do corpo do leitor dentro do mundo textual” (apud RYAN, 2001, p. 89, tradução minha). Podemos ainda aproximar o conceito das palavras de Richard Gerrig, que simplifica a discussão ao definir que a leitura de um texto cria uma viagem do leitor a um mundo paralelo, distanciando-o de seu mundo original a ponto de romper determinadas conexões com este (apud RYAN, 2001, p. 95). Ainda dentro do rico apanhado de Marie-Laure Ryan (2001) de definições, sobressaltam também

as categorias de Victor Nell para definir quatro graus de imersão (ou “Reading entrancement” segundo o autor), sendo eles: 1) Concentração: Um estado frágil de conexão com o conteúdo, sujeito a fáceis interrupções provenientes de interferências externas; 2) Envolvimento imaginativo: O leitor se transfere para o mundo textual, mas permanece atento a características formais e estéticas do texto; 3) Transe: A leitura passa a ser não-reflexiva, pois o leitor está totalmente capturado pelo mundo textual, perdendo até mesmo a capacidade de receber alguns estímulos externos ao texto; 4) Vício: Estão presentes neste grau duas situações: (a) a atitude de procurar uma experiência imersiva, mas não encontra-la devido a uma leitura compulsiva e rápida; (b) a perda da capacidade de distinção entre o mundo ficcional e o mundo real, adentrando o campo da patologia no que é chamado de Síndrome de Don Quixote. A partir destes autores, podemos enxergar o processo imersivo tendo como berço a literatura e a capacidade imaginativa humana como sua mola mestra, sua engrenagem propulsora, diferentemente da visão de Murray que condiciona a imersão às hermeticidades de um novo contexto sensorial e interativo. Outros autores como Carolyn Handler Miller (2008), no entanto, concordam com Murray ao entendem que a experiência imersiva é basicamente multissensorial e se torna possível somente a partir do momento em que há uma produção não apenas de estímulos diversos à percepção, como também se constitui como interativa e explorável, possibilitando uma jornada virtual em ambiente rico de detalhes e envolvente, passível de manuseios de objetos e interações nos mais diversos níveis. Para a autora, as produções interativas “te capturam e envolvem de maneira que as formas passivas de entretenimento raramente podem fazer” (MILLER, 2008, p. 57, tradução minha). Já para Novak existe um meio termo, haja vista que “embora seja possível escapar para outros ‘mundos’, como nos livros e filmes,

as pessoas não participam desses mundos tão diretamente como nos games” (2010, p.45). Para a autora, os games proporcionam um nível maior de uma experiência chamada escapista, onde o usuário usufrui de uma fuga de sua realidade por necessidade de viver em um ambiente diferente daquele abrigado em sua realidade cotidiana. Para a psicologia, poderíamos aproximar o termo imersão de um estado semelhante ao de transe, que demanda a concentração do usuário de determinada plataforma a ponto de desconsiderar os estímulos sensoriais de seu contexto real. Trata-se de uma troca de uma realidade palpável por um mundo virtual que ganha contornos de real a partir da dedicação cognitiva. Seja considerando a interatividade e os múltiplos estímulos sensoriais, como no pensamento dos autores voltados às novas tecnologias, ou bebendo na fonte da literatura, o que temos em comum em todas as definições é o estado limítrofe de concentração de um observador atento, que por vezes tem na sua experiência de fruição um arrebatamento para um campo imaginário. Sobre a atenção, Crary (2013, p. 39) afirma que ela foi percebida por estudiosos do século XIX como “um modo impreciso de designar a capacidade relativa de um sujeito para isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial em detrimento de outros, a fim de manter um mundo ordenado e produtivo”. Entende-se, desta forma, que a atenção, em relação sinonímica com a categoria de concentração mencionada por Victor Nell, é a base da construção de uma experiência imersiva. É a atenção que ordena nossa percepção de mundo e nossos estímulos sensoriais e isto se aplica não apenas ao contexto real, como também aos virtuais trazidos pelas mais variadas plataformas, do texto escrito ao texto figurativista, da narrativa oral à realidade virtual interativa. Para os autores Charles Féré e Alfred Binet, a atenção é entendida como “uma concentração de toda a mente num único ponto, resultando na intensificação da percepção desse ponto e produzindo em torno dele uma zona de anestesia; a atenção amplia a força de certas sensações, enquanto enfraquece outras” (apud CRARY, 2013, p. 63). Corroborando com o entendimento de que a atenção, e não a sensorialidade, está na

base da construção da experiência imersiva, Ermi e Mäyrä (2007) mencionam três tipos de imersão: a sensorial, a baseada no desafio e a imaginativa. Para os autores, é possível imergir através de três caminhos, sendo a sensorialidade apenas um deles. Esta definição nos é rica por agregar todas as discussões apresentadas anteriormente. Por um lado, temos a imersão como aquela voltada para os estímulos, aquela que tanto se aproxima dos óculos de realidade virtual e da interatividade, por outro ainda podemos listar experiências de jogos ou de leitura dentro da mesma categoria. Também estamos absortos em outra realidade quando, por exemplo, jogamos xadrez, constituindo nesta fruição uma imersão baseada no desafio; da mesma forma exploramos novos horizontes ao lermos um romance, o que nos insere na imersão predominantemente imaginativa. Com base nestas definições e raciocínios a respeito do conceito, podemos compreender que a experiência imersiva tem por base a atenção e a partir daí desenrola-se em diversas possibilidades, principalmente quando atrelamos ao seu escapismo natural a presença e influência dos estímulos sensoriais das mídias. O que de mais concreto podemos retirar destas reflexões é que, ao tentarmos retratar uma origem da construção da imersão, cabenos destinar o foco de nosso estudo às tentativas de controle da atenção com fins de desenvolvimento de campos finitos de significação. Berger e Luckmann (2003) mencionam este termo quando caracterizam o que define aquilo que chamamos de realidade. Em seus estudos, percebemos claramente a formação de vários níveis de realidade, abrangendo desde aquela com a qual não temos contato direto até aquela que nos cerca no dia-a-dia, a realidade cotidiana. É justamente dentro deste campo – próximo e palpável, que surgem os campos finitos: O teatro fornece uma excelente ilustração desta atividade lúdica por parte dos adultos. A transição entre as realidades é marcada pelo levantamento e pela descida do pano. Quando o pano se levanta, o espectador é "transportado para um outro mundo", com seus próprios significados e uma ordem que pode ter relação, ou não, com a ordem da vida cotidiana. [...] Todos os campos finitos de significação caracterizam-se por desviar a atenção da realidade da vida contemporânea. Embora haja, está claro, deslocamentos de atenção dentro da vida cotidiana, o deslocamento para um campo finito de significação é de natureza muito mais radical. Produzse uma radical transformação na tensão da consciência. No contexto da

experiência religiosa isto já foi adequadamente chamado "transes". (BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 43)

Estes campos – onde tempo e espaço lúdicos circunscrevem áreas e períodos específicos da realidade cotidiana transformando-a em palco para uma outra – são, portanto, por definição, campos de imersão. Em seu livro Word of Mouse, Jim Banister (2004), conselheiro norte-americano de estratégias de mídia junto a empresas como Time Warner e Disney, disserta sobre a era da mídia em rede sob diversos aspectos, dentre eles a construção da narrativa imersiva. Para o autor, o computador está nos possibilitando conhecer não apenas a tradicional narrativa contada (storytelling), como também as narrativas formadas (storyforming) e habitadas (storydwelling). De forma bastante sucinta, podemos classificar a visão do autor sobre a história formada como toda aquela passível de manipulações estruturais, interações e reorganização de fluxo narrativo em consonância com a vontade da audiência. Incluem-se aí os jogos eletrônicos e filmes interativos, por exemplo. Por outro lado, o conceito de narrativa habitada representa toda a narrativa que constrói sobre si um universo explorável e interativo, ou seja, plenamente imersivo por abarcar tanto os estímulos de desafio dos jogos, quanto as diversas percepções sensoriais, bem como a capacidade imaginativa da experiência lúdica. É olhando para a narrativa habitada de Banister, em um primeiro momento completa em seus graus imersivos, que enxergamos a imersão na sua forma atual neste longo caminho evolutivo nas mídias. Imergir, portanto, pode ser entendido como “habitar” o virtual, vivê-lo em suas exigências de comprometimento cognitivo. Tendo este fato como resultado de um percurso desenvolvido ao longo do surgimento das imagens técnicas, podemos então retornar a elas com outra perspectiva: como e em que momentos, as imagens de aparelhos passaram a ser utilizadas para capturar a atenção do observador e traçar os primórdios da experiência escapista das mídias atuais? Trata-se, portanto, de perceber a história dos dispositivos técnicos como tentativas de reconstruir mentalmente espacialidades previamente capturadas, de indicar a vivência de realidades paralelas a partir da fruição de realidades reproduzidas, em suma, trata-se de tentar, desde os primeiros momentos, habitar a imagem

virtual.

Atenção, Visualidade E Som Antes mesmo de conseguirmos atingir o nível tecnológico de replicação da imagem real em sais de prata, havia métodos para se reproduzir com fidelidade as formas da natureza. A base destes métodos perpassa a chamada câmara escura, que durante os séculos XVII e XVIII foi, segundo Crary: [...] o modelo mais amplamente usado para explicar a visão humana e representar tanto a relação do sujeito perceptivo quanto a posição de um sujeito cognoscente em relação ao mundo exterior. Esse objeto problemático foi muito mais do que apenas um aparelho óptico. Por mais de duzentos anos, subsistiu como metáfora filosófica, como modelo na ciência da óptica física e também como aparato técnico usado em uma variedade de atividades culturais. (2012, p. 35)

Através de um pequeno orifício em um espaço escuro, a luz do ambiente exterior entrava projetando uma imagem invertida na parede oposta. Inicialmente sem o auxílio das lentes, a imagem era borrada, mas mesmo assim ainda servia para auxiliar a produção de registros pictóricos de paisagens e pessoas. Não raro podemos encontrar discussões sobre grandes pintores que se utilizaram da câmara escura para criar suas obras com um alto grau de realismo, através da cópia da imagem projetada. Ainda podemos destacar, no entanto, que este uso era apenas uma das finalidades da câmara escura, pois Para os que compreendiam seu funcionamento óptico, ela oferecia de maneira transparente o espetáculo do funcionamento da representação; para os que ignoravam seus princípios, ela proporcionava os prazeres da ilusão. [...] Muitas descrições contemporâneas da câmara escura consideram a representação do movimento como seu aspecto mais impressionante. (CRARY, 2012, p. 40)

Poderíamos então conceber esse espaço fechado e escuro como um passo além da mitologia da caverna de Platão já aqui mencionada. O indivíduo que ali adentra e contempla, por ignorância, a magia da imagem-luz que se move na parede, está diante do mundo exterior transmutado em espetáculo mágico, assistindo ainda com pouca definição

de linhas aquilo que seus olhos poderiam fazê-lo com perfeição há apenas alguns passos dali. A situação cinema composta pelo isolamento do espectador frente a uma projeção, estava sendo gerada, mas faltava ainda nos séculos XVII e XVIII a possibilidade de levar para esta virtualidade mágica realidades distantes ou até mesmo ambientes frutos da imaginação humana, longe de qualquer registro de aparelhos técnicos como viria a ser a fotografia e o cinema no século XIX. Destacamos então, a partir do momento histórico do surgimento da câmara escura e sua utilização para contemplação e entretenimento, o início dos dispositivos de controle de atenção do observador para ambientes imersivos primevos. Seguem-se à câmara escura os diversos aparelhos ópticos que trabalhavam as ilusões de movimento e fusão de imagens, tais como o fenascistoscópio, o zootrópio e o taumatrópio, sobre os quais a literatura já tem dissertado de forma abrangente. Cabe-nos, no entanto, ressaltar alguns outros dispositivos que melhor exemplificam nosso objeto de estudo: o controle da atenção aliado à busca da imagem habitada. Para tanto, destacamos primeiramente o diorama, de Louis J. M. Daguerre no início da década de 1820. A pintura panorâmica circular ou semicircular rompeu com o ponto de vista localizado da pintura em perspectiva ou da câmara escura, conferindo ao espectador uma onipresença móvel. Era forçoso, no máximo, que se virasse a cabeça (e os olhos) para ver toda a obra. O diorama multimídia retirou essa autonomia do observador, com frequência situando o público em uma plataforma circular que se movia lentamente, possibilitando visões de cenas diferentes e efeitos de luz variáveis. Assim como o fenascistoscópio e o zootrópio, o diorama era uma máquina de rodas em movimento, da qual o observador era um componente. (CRARY, 2012, p. 113)

Percebe-se então um grande maquinário que imobiliza o observador para que a imagem o circunde, acabando por limitá-lo em seu campo perceptivo de forma que perca sua autonomia de ação em prol da sensação de estar dentro de outro contexto espacial – virtual – composto por figurativismos próprios e jogos de luz. A proximidade corporal e a imobilidade do observador não eram exigências apenas do diorama, mas também de outros aparelhos de jogos ópticos, a exemplo das primeiras imagens estereoscópicas, que surgiram

no século XIX antes mesmo da fotografia (CRARY, 2012; TURRIAGA, 2013). “As bases do espetáculo e a ‘percepção pura’ do modernismo abrigam-se no território recém-descoberto de um espectador plenamente corporificado, mas o triunfo final de ambos depende da negação do corpo, de suas pulsações e seus espectros, como fundamento da visão.” (CRARY, 2012, p. 133, grifo nosso). Se os aparelhos começavam a condicionar a fruição a certa imobilidade e fixação do olhar, faltava ainda à imagem, em si, a maior aproximação com o real através da tactilidade: a expressão plena da visão não apenas no realismo da fotografia, mas também na profundidade que os campos de visão do real proporcionavam. Iturriaga (2013, p.29, tradução nossa) esclarece que “o primeiro aparato de visão estereoscópica, o estereoscópio, foi apresentado publicamente em 1838 pelo inglês Charles Wheatstone”, embora frise que o termo “descobrimento” não se aplica ao mencionado aparelho, uma vez que a conquista da representação estereoscópica foi fruto de um esforço coletivo prévio de diversos outros cientistas. O autor ainda afirma que: [...] efetivamente houve uma febre estereoscópica. Estima-se que somente no Reino Unido, em 1854, havia um milhão de estereoscópios circulando. Além deste visor portátil, foram aparecendo outros dispositivos de visualização como as pequenas cabines, ou peep shows, que foram os suportes onde diversos técnicos experimentaram com imagens estereoscópicas em movimento desde 1850. Na década seguinte se obtiveram, em nível de protótipos, diversos sistemas de projeção estereoscópica em telas, que permitiram passar do consumo individual ao coletivo. (ITURRIAGA, 2013, p. 30, tradução nossa)

Considerando que estereoscopia e dispositivos para simulação de imersão sensorial começaram a se desenvolver juntos, recaímos sobre nosso primeiro grande exemplo de controle da atenção aliado a imagens em três dimensões: o kaiserpanorama. Uma estrutura de 4,5 metros de diâmetro que podia acomodar até vinte e cinco espectadores, segundo Crary, que [...] viam imagens estereoscópicas diferentes, iluminadas por 25 pequenas lâmpadas. O interior continha um motor que girava as placas de um espectador para o outro, em intervalos de aproximadamente dois minutos. Uma campainha tocava pouco antes da mudança de placas. Assim, se o

consumidor quisesse, a experiência poderia durar até cinquenta minutos – um longo período de imersão nesse mundo de vistas aparentemente tridimensionais de cenas locais e distantes, com legendas descritivas. (2013, p. 149)

O peep show no formato kaiserpanorama representou no meio do século XIX o ambiente imersivo construído a partir do controle da atenção do observador, que se traduzia na anulação de sua presença física diante de um contexto espacial virtual. Através das limitações sensoriais impostas ao mundo externo e uma indução de percepção dos elementos exibidos nos binóculos, o kaiserpanorama prenunciava o processo imersivo através de seu apelo sensorial, distante de suas portas de acesso através da imaginação ou do desafio, sendo estas bem mais antigas e conhecidas do grande público. Com as imagens técnicas, a indústria do entretenimento descobria que para imergir em realidades paralelas, algo mais do que uma boa história narrada ou um bom desafio poderia ser acionado na mente dos espectadores. De certa forma, a estrutura de fruição individual formada por múltiplas cabines, era um precursor do invento de Thomas Edison que viria algumas décadas depois, com utilização de imagens em movimento, o cinetoscópio. Segundo Machado (2011), o cinetoscópio de Edison surge em 1895 com o grande diferencial de oferecer não apenas a imagem em movimento em suas cabines individuais, mas também por ter som sincronizado, proveniente de outro invento seu de quase duas décadas anteriores, o fonógrafo. Com diversas dificuldades de sincronização e com estrutura projetada para atender apenas ao alcance individual do som, Thomas Edison e seus inventos acabam por perder espaço no mercado, que assumia, em 1895, a fruição coletiva de cinema em grandes salas dos Lumière como padrão. O formato coletivo, já utilizado no diorama, era mais viável para o cinema economicamente. Em menos de um século, o grande salto dado entre estes dois dispositivos tinha por base a mudança dos desenhos e pinturas do primeiro modelo para a imagem em movimento do segundo. O cinema, com sua tela iluminada em sala escura, refletia uma realidade diferente e estimulava os sentidos da audiência, conseguindo de

forma magistral trabalhar a imersão não apenas pelos estímulos multissensoriais, mas também pela construção de narrativas, em estímulos de imaginação típicos dos livros e narrativas gráficas. Era possível experimentar a imersão não apenas em uma das duas formas, mas nas duas concomitantemente. Um fator, no entanto, colocava o diorama em situação vantajosa quanto à sua capacidade imersiva: a imagem do cinema não circulava o espectador, mas era ainda obediente aos moldes da câmara escura do século XVII. Salienta-se, entretanto, o experimento do cineorama como alternativa frustrada de solucionar o problema, pois ele: [...] implicava em várias fotografias projetadas, lado a lado, em uma tela circular e usando filtros para suavizar as juntas. No Cineorama, dez projetores jogavam simultaneamente suas imagens em diversas telas, cada uma medindo cerca de 9 por 9 metros; estas eram dispostas de modo que abrangiam 360 graus. [...] No entanto, o calor gerado pelos projetores criava um risco de segurança, e a atração foi abandonada depois de um acidente durante a sua quarta exibição. (COMMENT, 1999 , p. 76, tradução nossa)

A ousada proposta do cineorama tentou unir a coletividade a uma vivência do espaço virtual que circundava o espectador no início do século XX, mas a ideia se mostrou além das competências técnicas disponíveis na época. Caberia ao cinema, então, exercitar o dispositivo que uniria a imersão imaginativa e a sensorial pautada na anulação do sujeito em sua sala escura. Inúmeros outros dispositivos ópticos acabam por reforçar a trajetória aqui demonstrada para o controle da atenção do espectador, tomando-a por base do processo imersivo. Faltava a algum destes dispositivos envolver não apenas as duas formas de imersão já mencionadas, mas também a sua terceira modalidade: a imersão baseada no desafio. Essa conquista viria décadas depois com a junção de narrativas, mídias e jogabilidade. Os videogames podem ser, na verdade, a grande inovação dos processos imersivos iniciados na câmara escura, os aparelhos técnicos que nos fazem pensar a imersão nos dias atuais com todo seu caráter exploratório e interativo. Esta “proto-imersão” aqui levantada, no entanto, deixa indícios de um percurso constitutivo para a imersão que conhecemos hoje.

Considerações Finais O percurso apresentado neste estudo aponta para dois centros na discussão a respeito da construção da experiência imersiva através da história das imagens técnicas. O primeiro deles está ligado ao próprio conceito de imersão, que cabe ser entendido como três aspectos fundamentais, com base no processo cognitivo da imaginação, com base no processo cognitivo e/ou motor do desafio e, por fim, com base na percepção sensorial. É justamente esta última forma de acesso ao transe imersivo que elencamos ao longo de grande parte dos aparelhos ópticos dos séculos XVIII, XIX e XX. O segundo centro das análises aqui levantadas não diz respeito à imersão em si, mas aos recursos sensoriais explorados pelos dispositivos ao longo dos exemplos dados. Cabe-nos neste momento uma observação que julgamos de suma importância: há entre todos os aparelhos de controle da atenção aqui levantados duas constantes. A primeira delas é a luz. Seja no campo filosófico da caverna de Platão, na câmara escura ou nos demais dispositivos listados, a luz aparece como elemento norteador da atenção. Obviamente, poderíamos ser categóricos ao afirmar que todos os processos de visualidade não existem sem a luz e, portanto, a ressalva é tão simplória quanto banal, contudo, destacamos a luz como elemento encantador de todos os processos. Não a luz que cerca os ambientes exteriores aos dispositivos, ou seja, a luz da realidade cotidiana, mas sim a luz manipulada que dá vida aos ambientes virtuais. Nos aparelhos ópticos mencionados (e também nos não mencionados) a luz gera um foco de concentração, guiando a percepção para determinada área física onde se manifesta uma virtualidade. Seja nos efeitos de iluminação do diorama, nas pequenas lâmpadas do kaiserpanorama ou nas telas projetadas do cineorama e do cinema, falamos de luz como janela construtora de um acesso ao mundo imaginário. De forma complementar, outra constante aparece desde o princípio da discussão: a negação do sujeito físico, a anulação do corpo do observador diante de um momento de contemplação do ambiente imersivo. Seja pela debilidade, fruto do encantamento momentâneo, ou mesmo pelas condições físicas de fruição do dispositivo, todos os estágios de concentração levantados para este estudo consideram que o espectador/observador/usuário deve anular-

se para uma vivência plena de outro contexto espacial virtualizado. Ao aproximarmos os dados referidos da imersão atual, tão presente nos aparelhos de realidade virtual e videogames, percebe-se que, ainda, luz e anulação do corpo são peças chaves para o processo imersivo. Embora não caibam aqui maiores explanações sobre a presença da luz nestes novos jogos ópticos, dada a simplicidade da associação, cabe-nos pensar sobre a anulação do corpo do sujeito fruidor. Atualmente, os processos de imersão das novas mídias, ao contrário do que fora dito há algumas linhas atrás, exigem cada vez mais o corpo do indivíduo, com controles dotados de câmeras e sensores de movimento. Onde estaria a lógica de afirmarmos, no desfecho desta análise, que o processo imersivo atual continua prezando pela anulação o sujeito físico? Percebamos que a proposta aqui se desenrola em múltiplas possibilidades de aprofundamento, mas podemos também perceber que os movimentos exigidos hoje pelos novos dispositivos não são movimentos que pertençam à realidade do sujeito. Pelo contrário, são movimentos que pertencem ao mundo virtual, o que nos coloca diante de um pensamento que julgamos pertinente para esta conclusão: conseguimos, enfim, habitar a imagem. Ao explorarmos mundos virtuais, resultados de todo o avanço técnico aqui apresentado, podemos interagir com lugares totalmente gerados por computador, ambientes imersivos lúdicos e descompromissados com as leis da natureza, ou, por vezes, criadores de suas próprias leis. São universos erigidos em luz, que continuam a nos anular enquanto sujeitos físicos de uma realidade cotidiana e começam a nos tragar o corpo e os movimentos rumo a realidades paralelas. Aquilo que chamamos de “proto-imersão” e a imersão atual somamse, desta maneira, em um caminho extenso rumo à fruição plena do nosso próprio imaginário.

Referências BANISTER, Jim. Word of Mouse: the new age of networked media. Chicago, EUA: Agate, 2004.

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento. 23 ed. Trad Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. COMMENT, Bernard. The Panorama. Traduzido por Anne-Marie Glasheen. Londres: Reaktion Books, 1999. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Tradução de Verrah Chamma. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. _____. Suspensões da percepção: Atenção, espetáculo e cultura moderna. Tradução de Tina Montenegro. São Paulo: Cosacnaify, 2013. ERMI, Laura; MÄYRÄ, Frans. Fundamentals Components of the Gameplay Experience: Analyzing Immersion. In Worlds in Play: International Perspectives on Digital Games Research. New York: Peter Lang Publishing, 2007. FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985. ITURRIAGA, Jorge. La estereoscopía en la historia. Empoderando al observador y relativizando lo natural. In: FAJNZYLBER, Victor. La imagen táctil: de la fotografia binocular al cine tridimensional. Santiago, Chile: Fondo de Cultura Económica, 2013. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-Cinemas. 6 ed. São Paulo: Papirus, 2011. MILLER, Carolyn Handler. Digital Storytelling: A creator’s guide to interactive entertainment. 2. ed. Burlington, USA: Elsevier, 2008. MURRAY, Janet H.. Hamlet no Holodeck: O futuro da narrativa no ciberespaço. Tradução de Elissa Khoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003. NOVAK, Jeannie. Desenvolvimento de Games. Trad Pedro Cesar de Conti. São Paulo: Cengage Learning, 2010. RYAN, Marie-Laure. Narrative as Virtual Reality: Immersion and Interactivity in Literature and Electronic Media. Londres: The Johns Hopkins University Press, 2001.

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