A Imagem Irrecuperável: antecedentes do olhar e do andar de Henri Cartier-Bresson

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Descrição do Produto

Sumário

1

Sumário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1

Lista de ilustrações

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1

INTRODUÇÃO (UM INSTANTE MODERNO) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3

1.1

Que ninguém entre aqui se não for geômetra

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4

1.2

Emoção, modernidade,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

6

1.3

Fotograa e experiência: da caverna â câmera escura

2

A CONQUISTA DO QUADRO

2.1

André Lhote: a alfabetização do olhar

2.2

Paul Cézanne

2.3

Cubismo

2.3.1

As invariantes plásticas e os ritmos primitivos

2.4

Henri Cartier-Bresson

3

SONHO E AUTOMATISMO

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

22

3.1

A psicanálise de Breton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

22

3.1.1

De natureza e cultura

24

3.1.2

Estranhamento e beleza

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

29

3.2

O estranho fotográco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

30

4

DESTILAR O TEMPO

35

4.1

O repórter independente

ânerie

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

7

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

10

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

10

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

12

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

15

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17

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

37

4.1.1

A forma-reportagem

4.2

O mundo como espetáculo e representação

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

40

38

4.2.1

Arte sem arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

41

4.2.2

Tempo de agoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

42

4.3

Epílogo: o tempo do homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

42

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

43

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

44

Lista de ilustrações

Aesculus parviora . . . . . . . . . . Mme. Cézanne com vestido vermelho, Les Demoiselles d'Avignon, 1906. . .

Figura 1  Karl Blossfeldt,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Figura 2  Paul Cézanne,

c. 1890

Figura 3  Pablo Picasso,

5

. . . . . . . . . . . . . . . .

15

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

16

Figura 4  Divisões do retângulo e espiral áurea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Figura 5  Figura 6  Figura 7  Figura 8  Figura 9  Figura 10  Figura 11  Figura 12  Figura 13 

La Révolution Surréaliste, p.19, n. 1 (dezembro de 1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . Exemplo de doubling. S/autor, s/data. La Révolution Surréaliste, n. 1. . . . . . . . . . . . Brassaï, Sculptures Involontaires, 1933 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Man Ray, Sem título, 1933 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henri Cartier-Bresson, Dieppe, 1926 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henri Cartier-Bresson, França, 1929 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henri Cartier-Bresson, Costa do Marm, 1931. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henri Cartier-Bresson, Atrás da Gare Saint-Lazare, 1932 . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henri Cartier-Bresson, Beijing, dezembro de 1948. Nos últimos dias dos nacionalistas no poder, com a chegada dos comunistas, as ruas da cidade foram tomadas por especuladores comprando e vendendo dólares de prata. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

18 25 30 31 32 33 34 36 37

39

1 Introdução (um instante moderno)

O advento do daguerreótipo, em 1839, precede em duas décadas a era de ouro da pintura ao ar livre. Os olhares voltavam-se, então, para a vida cotidiana, deixando para trás a pompa e a regra do imaginário imperial. A Luz, elemento essencial da arte, dissolvia as sombras dos retratos de mecenas e recompunha-se em cores nos cabarés; no interior da câmera escura, operava milagres sobre a prata lunar. A invenção da fotograa costuma ser descrita ora como conquista do território da pintura, ora como sua complementar no estudo da representação - e provavelmente foi um pouco dos dois. Independente de possíveis relações causais, o processo fotográco surge e evolui em paralelo a uma revolução nas artes plásticas - o Impressionismo - com apenas alguns

clics

de vantagem: é no estúdio de Félix Nadar que a primeira exposição

da Sociedade de Artistas terá lugar; o amanhecer de Claude Monet virá ao mundo abrigada pelo mais famoso dos fotógrafos retratistas de 1874. A imagem técnica roubava a clientela dos pintores que, de seu lado, já não se viam tiranizados pelos cânones da delidade - haveria cópia da natureza mais el que aquela da imagem fotográca? Livres de suas amarras, os artistas do período se lançaram à experimentação do suporte. Impressionismo, arte

naïf,

fauvismo, Cubismo... cada abordagem trazia suas próprias questões, nascidas

de tentativas de compreender e superar os limites da representação nas dimensões do quadro ou escultura. O início do século XX embala tentativas de sistematização dos valores pictóricos: Wassily Kandinsky imagina

1 Em Paris, uma retrospectiva de Paul

mesmo um aparelho que medisse o peso relativo de um signo gráco.

Cézanne, em 1907, orienta alguns pintores (especialmente Picasso e Braque, mas também Matisse e todo o grupo de Paris) a ler nas entrelinhas do espaço, na ordenação e representação dos objetos e na claridade das cores, e a revelar, por meio delas, o próprio funcionamento do quadro. O Cubismo se compraz em denunciar seus artifícios. Nos

Traités du Paysage et de la Figure, de 1950, o cubista André Lhote identica, a partir das experiências

impressionistas, a emergência de um novo ciclo de sensibilidade na produção e recepção das artes plásticas [Lhote 1963, p. 180]. Não falava apenas da concepção do quadro, mas da percepção de mundo do artista e do público. Encontrava-se de acordo com a proposição de Walter Benjamin, no conhecido ensaio

na Era de sua Reprodutibilidade Técnica :

A Obra de Arte

no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção

das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. [Benjamin 1996, p. 169] De fato, as condições de existência na Europa transformavam-se dramaticamente no período. Atravessado por revoluções desde 1789, nos últimos cem anos o continente presenciava o recrudescimento, em diversas regiões, de forte sentimento nacionalista - movimentos que culminariam nos totalitarismos da década de 1930. Nas grandes cidades, a tecnologia que seria empregada na guerra e na manipulação mostrava sua face esclarecida: a energia elétrica iluminava as ruas e as primeiras projeções de Lumière, os motores de explosão movimentavam apenas trens e escassos automóveis. Chaminés inltravam-se no horizonte, a paisagem e os homens modicados pela indústria.

Henri Cartier-Bresson nasce em 1908. Atravessa, da infância à idade adulta, os últimos dias do mundo operário da Segunda Revolução Industrial - os anos 1930 ainda eram o século XIX, dizia [Galassi 2010, p.

1

V. Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte..

65] - e a emergência do capitalismo total, cada vez menos fundado na produção, do pós-guerra. Alfabetizado em pintura por André Lhote, travou diálogo com a tradição dos geômetras, extensa linhagem que o mestre traçava entre Pitágoras e Cézanne; conviva à mesa dos surrealistas, enveredou pelo inconsciente e saiu à rua, como se entregaria e exporia a arte do século XX. De maneira um tanto involuntária, a obra fotográca de Cartier-Bresson questiona e responde aos projetos das vanguardas artísticas. Da tradição de Lhote e Cézanne, guarda a atenção às linhas reguladoras da composição, e a observância da proporção áurea. Propõe à geometria clássica um desao surrealista: organizar, num todo coerente e signicativo, a emoção suscitada pelo encontro - qualquer encontro - que estabeleça um contato com o inconsciente. A emoção do encontro - e do reconhecimento de sua beleza plástica - é espontânea e efêmera; qualquer tentativa de traduzi-la em desenho seria perturbada pelas distorções do traço e da memória.

Em 1932,

porém, Cartier-Bresson descobre um instrumento capaz de registrar, no instante mesmo da emoção, a forma descoberta, uma máquina de desenho automático. Então, diz o fotógrafo, a Leica se tornou uma extensão do meu olho. Diversas vezes ele irá se referir ao aparelho como seu

carnet de croquis,

um caderno de esboços.

A pequena câmera permitia ao fotógrafo participar das cenas que registrava. Eu caminhava todo o dia com o espírito alerta, investigando as ruas, tentando fotografar a vida em agrante delito. E desejava, mais do que tudo, recolher em uma só imagem o essencial de uma cena em curso. [Cartier-Bresson 1997, p. 18]

O jovem século XX já lhe dera régua e compasso.

1.1

Que ninguém entre aqui se não for geômetra

André Lhote era muito orgulhoso da tradição clássica. Ensinava os alunos a abstrair do quadro seus traços gerais, quando então podia analisá-los como um sistema de linhas e planos, e classicá-los conforme o ritmo, a composição, e os pontos de atração. A insistência na geometria, porém, era mais que uma herança pitagórica: baseava-se na observação direta da natureza - o ideal de Cézanne - e nas descobertas mediadas pela fotograa, capaz de revelar, na estrutura de caules e folhas, uma riqueza microscópica de padrões naturais. Defendendo a invenção de Daguerre, o físico François Arago já advertia, em 1839: Quando os inventores de um novo instrumento o aplicam à observação da natureza, o que eles esperavam da descoberta é sempre uma pequena fração das descobertas sucessivas, em cuja origem está o instrumento. [Benjamin 1996, p. 93] André Lhote aprende sobre os ritmos e as formas da natureza lançando mão de uma observação irredutível, numa aposta similar à de Goethe morfologista, ao estudar as mesmas estruturas: utilizando-se da imagem técnica, era capaz de observar a evolução de detalhes microscópicos - não em busca das leis objetivas e as regularidades dos organismos vivos (...) gracamente visíveis em suas formas estruturais [Buck-Morss 2002, p. 102], mas das invariantes e regularidades geométricas que se ofertavam, dóceis, na macrofotograa. Nas fotograas de Karl Blossfeldt, o cubista encontra o ritmo espontâneo da arte africana e polinésia. A mesma pureza essencial foi-nos deixada pelos gregos e, mais tarde, por Leonardo da Vinci: trata-se de uma concepção natural da geometria, seu estabelecimento como uma linguagem visual por excelência, nascida da observação dos fenômenos e sujeita a ser codicada em sintaxe e gramática. É nessa linguagem que Lhote alfabetiza seus alunos.

2

Idioma divino, porque natural:

Está escrito no Evangelho:

no princípio era o

Verbo. Bem, para mim, no princípio era a geometria, provocava Cartier-Bresson.[Guerrin 2008, p. 157] A geometria não é a língua sagrada dos pintores apenas por derivar da natureza:

ela traz, em sua

origem, as mesmas leis que conformam o aparelho psicosiológico da visão. Tomá-las como ponto de partida,

2

V. André Lhote,

Traités du Paysage et de la Figure, pp.

58-60 e prancha 13.

Figura 1  Karl Blossfeldt,

Aesculus parviora

organizando os elementos plásticos segundo elas, usando a cena como pretexto para imitá-las, tal é o objetivo do artista segundo André Lhote. Assim procedendo, o pintor atenderia às exigências do olho, órgão tirânico que exige ser excitado pela variedade dos elementos dispostos no quadro e rearmados por algumas analogias judiciosamente situadas.[Lhote 1963, p, 57] A variedade destes elementos e suas ressonâncias no quadro adquirem, na pintura, o mesmo efeito que a edição e os cortes no cinema.

A excitação do olhar se dá por meio de saltos, inscritos na duração (no

caso do cinema) ou no espaço (nas artes plásticas e na fotograa): é por esta característica que Benjamin assinala, na montagem cinematográca, a expressão artística dos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo, correspondentes a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo. [Benjamin 1996, p. 192] A metamorfose vira metáfora na sala de cinema, onde o espectador assiste, indefeso, a uma história em 24 quadros por segundo - no limite de sua percepção. Da mesma forma, o indivíduo moderno habita um mundo de distração, contemplando, como o anjo de Klee, as ruínas que a modernidade acumula. Como iluminação técnica e artística da alienação do homem, o cinema acumula potencial revolucionário. A narrativa cinematográca, contudo, diz muito mais sobre os processos lineares de comunicação - oral e escrita, principalmente- do que sobre os processos formadores da imagem. A unidade do lme é garantida pelo roteiro; a unidade da imagem, pela disposição dos elementos.

O

quadro composto, objeto último das aulas de André Lhote, é um quadro cuja estrutura - na forma de linhas reguladoras subjacentes ao desenho - salva os elementos grácos da dispersão, constelando-os no campo harmônico das invariantes geométricas. O lme conta uma história no tempo; o quadro - a tela ou o fotograma - conta no espaço, e por isso convida a outro regime de tempo. E o salto entre temporalidades, deduzimos de Lhote, se dá pelo reconhecimento (ainda que inconsciente) das leis naturais da geometria. A portabilidade da câmera garantiu a Cartier-Bresson a liberdade necessária para procurar a ocorrência dessas leis no cotidiano. A adaptação da película cinematográca - fotograa permitiu nalmente a naturali-

zação do instantâneo, a desaparição do

durante

no instante fotográco [Lissovsky 1999, p. 89]: mais sensível

à luz, o lme cinematográco de fato congelava o movimento. E é no movimento que a geometria pode ser imobilizada, capturada em momento-mônada, sua conguração espacial carregada de tensões. Capturar este momento fulgurante em um fotograma é oferecer, pelo registro de uma experiência única e subjetiva, um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade. [Benjamin 1996, p. 187] Benjamin falava da produção cinematográca, onde o aparelho impregna tão profundamente o real que o próprio real se torna um procedimento técnico;[Benjamin 1996, p. 186] a fotograa de Cartier-Bresson parte do princípio oposto, que é a redução do aparelho até sua virtual desaparição nas mãos do fotógrafo - e é ele, fotógrafo, quem deve se impregnar de real: o gesto técnico é um tipo especial de automatismo, o reexo de uma emoção.

1.2

ânerie

Emoção, modernidade,

O componente emocional já se integra à pintura desde a revolução impressionista.

Racionalizado pelos

cubistas, emerge como força anárquica no Surreal: para ser franco, vivíamos a época do Grande Desejo: os surrealistas queriam acordar a innita concupiscência que tem por objeto o Todo, escreveria Sartre em 1960.[Nizan 2003, p. 29] O oceânico desejo de que falava o lósofo derivava da leitura muito particular de Freud promovida pelo Surrealismo. Com a intenção de criar uma arte que canalizasse livremente o material inconsciente descrito pela psicanálise, o movimento seguiu em duas direções: o sonho e a cidade, derivantes do sonho e do automatismo,

3

os eixos gêmeos da psicanálise.

Essas duas dimensões são complementares: a pesquisa onírica resultava diretamente da psicanálise, elaborada em relatos de sonhos, pinturas e objetos fantásticos; pretendia dar uma expressão ao inconsciente, o lugar do maravilhoso. Mas o maravilhoso que habita esse inconsciente também pode projetar-se no mundo, singularizando objetos e encontros, tornado objet trouvé, coisa achada na rua. Nos dois casos, o objetivo dos surrealistas era libertar o indivíduo de escrúpulos afetivos paralisantes, [Breton 1979, p. 41] abrindo o caminho para uma comunicação desimpedida entre inconsciente e real. O Grande Desejo: a redução desses dois estados aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de

sobre-realidade,

se é lícito chamá-la assim. [Breton 2001, p. 28] Essa sobre-realidade - o

surreal

- sintetizaria a subjetividade do indivíduo e a objetividade do real em um nível superior: em linhas gerais, essa era a meta e o programa dos surrealistas. A fotograa dos anos 1920 e 1930 ajusta-se perfeitamente ao projeto do movimento. Peter Galassi assinala a inuência da pintura moderna sobre a fotograa do período, indo além das inovações formais e propondo a inovação como um m em si, situando a arte, agora identicada com a experiência pessoal, como projeto experimental que tem o meio como sujeito; opondo-se combativamente a ideias preconcebidas, o artista - e também o fotógrafo, quer se considere a fotograa como arte ou não - passa a responder ao poder simbólico do fato ordinário, opondo-se, como meio século antes alguns pintores se opuseram, aos temas e abordagens tradicionais.

[Galassi 1991, p.

32] Aos poucos, as fantasmagorias remanescentes do

Ancien Régime

eram

dissipadas na construção de uma visualidade igualitária, tendendo decisivamente para a representação do banal, do corriqueiro e do desprezado.

4 Do reprimido, para voltarmos à metáfora psicanalítica: reconhecê-lo

(e nomeá-lo) é libertar-se.

3 4

The Photographic Conditions of Surrealism, p. 3. La Révolution Surréaliste, principal publicação do movimento, apresenta vasto material de Eugene

William Rubin, citado por Rosalinde Krauss, Não é por outra razão que

Atget, fotógrafo de ruínas, locais e construções abandonados.

Essa ética libertária - quase se pode falar em uma estética libertária - era o ponto-chave de união entre diversas tendências da época, e particularmente signicativa na relação de Cartier-Bresson com os surrealistas. Vivia em um estado de total disponibilidade, e experimentava um prazer difícil, mas que prazer!

Disponível :

nada de diletantismo! As coisas e o mundo possuíam, para mim, uma importância enorme. [Montier 1996, p. 91] Estar disponível - Bresson o armou a vida inteira - é precondição para a emergência do

acaso objetivo, 5

através do qual a necessidade exterior se manifesta, abrindo caminho através do inconsciente.

A disponibilidade para o acaso fundamenta o método empregado por André Breton e Louis Aragon em suas explorações literárias da cidade, traço distintivo dos primeiros romances - o gênero apenas tangencia as obras - surrealistas. Em

Nadja

e

O Camponês de Paris, Breton e Aragon buscam nas ruas e nos espaços mais

decadentes da capital francesa as centelhas do Maravilhoso, captado nos encontros fortuitos com pessoas, signos e objetos.

Revisitavam a

ânerie

baudelairiana, essa não-atividade tão moderna, tão tipicamente

parisiense; mas o faziam como quem psicanalisa o real, mantendo-se em um estado de atenção desarmada, não-intencional.

Cartier-Bresson resume muito bem o emprego deste método na fotograa (e ratica sua

ligação com os artíces do Surrealismo) em uma entrevista de 1970: É preciso limpar o olhar, cuidar de abrir os olhos, desfrutar do sabor daquilo que, cotidianamente, nos circunda. É indispensável conservar o frescor das impressões, a capacidade de se deixar surpreender. (...) Mas o grande princípio, o gesto fundamental, é desintelectualizar o olhar, praticar a fotograa automática, como Breton praticou a escrita automática.[Montier 1996, p. 88] Praticar a fotograa automática é justamente observar o mundo como quem associa livremente ideias e afetos às imagens de um sonho; ou, permanecendo na atividade de Breton, como quem deixa as palavras correrem no papel obedecendo apenas ao ditado desconexo e descontínuo do inconsciente.

A fotograa, porém, se

diferencia de qualquer outra técnica de automatismo pela sua relação contínua com a realidade: todo signo fotográco é índice de um momento, tendo a luz do instante retida nos sais de prata como, no céu, as constelações testemunham estrelas que já não existem. A matéria de que ela se ocupa é concreta, ainda que fugidia. Esse caráter indicial suscita questões éticas muito especícas, a principal delas sendo a autoridade do suporte fotográco - supostamente neutro e objetivo. Ao enquadrar o acaso no visor de sua pequena Leica, Cartier-Bresson nos pergunta: é possível representar alguma verdade sobre um dado evento nos limites de um retângulo?

1.3

Fotograa e experiência: da caverna â câmera escura Como surge um assunto? Ele se impõe. E uma vez que tudo o que acontece - tanto no mundo, quanto em nosso universo íntimo - é assunto, é preciso apenas que sejamos lúcidos em relação ao que se passa, e honestos em relação ao que sentimos. Em suma: que nos situemos em relação ao que percebemos.[Cartier-Bresson 1997, p. 22]

Ao trazer a consciência para o centro da prática fotográca, Henri Cartier-Bresson rearma a inuência surrealista em seu trabalho, ao mesmo tempo em que desloca a centralidade da dimensão técnica do meio: para Beaumont Newhall, a sua obra era considerada uma rebelião absolutamente coerente contra a técnica irrepreensível e o virtuosismo então em voga entre os pontíces da fotograa.[Montier 1996, p. 84]

5

V. André Breton,

O Amor Louco, p.

30.

De fato, o imaginário bressoniano é testemunho de uma consciência altamente diferenciada, atenta tanto ao movimento interno - as emoções e afetos mobilizados pela cena - quanto ao externo - expresso gracamente pela composição dos elementos do real. Enquanto dispositivo apenas marginal para Cartier-Bresson.

6 técnico, a fotograa tem interesse

O que importa, conclui o fotógrafo, é saber pinçar a cena signi-

cativa,surpreender a verdade dos fatos na relação com a sua realidade profunda.[Cartier-Bresson 1997, p. 22] Neste exercício de desvelamento, o fotógrafo atende ao chamado surrealista subjetiva e objetivamente: ao implicar-se na cena, convoca todo o seu ser a uma participação quase mística no tecido da realidade; no papel de fotojornalista, cônscio da responsabilidade social e política de sua produção, garante a integridade assumindo o caráter efêmero e pessoal de suas imagens. A criação da agência Magnum, devotada a salvaguardar a liberdade de seus fotógrafos, é consequência direta dessa visão do ofício. De um ponto de vista mais losóco, Cartier-Bresson se vale do adensamento da experiência vivida para cumprir seus objetivos.

O fato de uma fotograa capturar uma fração de instante- o obturador ajustado

para 1/125 de segundo - exige um esforço concentrado de atenção, tanto à cena quanto à própria vivência do fotógrafo: De fato, para se chegar rápido, é preciso chegar com suavidade.

É preciso observar, olhar

como as coisas se passam, compreendê-las, senti-las; de outra forma, corremos o risco nos tornar confusos e pretensiosos.[Guerrin 2008, p. 150] Assim, o programa surrealista, que aspirava à grande síntese entre inconsciente e real, é instado a dar um passo adiante: o Maravilhoso perde seu caráter quase anedótico - uma certa intencionalidade provocadora de choques - e convocado a participar da autenticidade da obra, legitimando a relação do homem com o fenômeno; em última análise, assegurando a verdade construída entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Ao m e ao cabo, toda experiência vivida em profundidade é capaz de iluminar um aspecto da própria vida. Fixar essa experiência em uma imagem à sua altura, no entanto, não depende apenas de uma consciência alerta - e muito menos da sorte: não se compõe [uma foto] gratuitamente, adverte Cartier-Bresson. Nós trabalhamos no movimento, numa espécie de pressentimento da vida, e a fotograa deve encontrar no movimento o equilíbrio expressivo.[Cartier-Bresson 1997, p.

25] É fundamental que a sionomia da imagem

obedeça ao que está dentro [dela], e não à interioridade, como indica Benjamin, comentando os quadros de Paul Klee.[Benjamin 1996, p.

116] A imagem - mesmo a imagem técnica - tem suas próprias regras.

Cartier-Bresson o aprendeu com os cubistas. A aproximação com a losoa de Walter Benjamin nos permite ampliar a compreensão da ética subjacente ao trabalho de Cartier-Bresson, desde que respeitemos o grau de elaboração e vericabilidade de empreitadas tão díspares; mais modesto que o lósofo, Bresson não aspira à Verdade, mas à honestidade. A losoa de Benjamin, por sua vez, não se esgota na eterna busca pela próxima imagem: ela pretende, sim, representar o esboço de [uma] imagem abreviada do mundo.[Benjamin 2004, p. 35] Contemporâneos, lósofo e fotógrafo são muito próximos, ainda que innitamente distantes. É impossível dar conta de todos os desdobramentos da losoa de Benjamin e da fotograa de Bresson em um trabalho tão curto. Contudo, eles existem, e são certamente capazes de iluminar um ao outro. Em suas respectivas áreas, ambos propuseram um trabalho profundamente crítico a qualquer forma de autoritarismo: foram também vítimas do fascismo ao qual se opunham - Benjamin ao morrer na fronteira com a Espanha, deixando a França ocupada pelos nazistas; Cartier-Bresson ao ser preso pelas mesmas tropas invasoras. Foi

6

No sentido que Foucault e, posteriormente, Giorgio Agamben empregam o termo. V. Giorgio Agamben,

temporâneo?, pp.

27-51.

O Que é o Con-

talvez essa rebeldia comum que fortaleceu a crença na construção de um conhecimento baseado na observação da natureza (seja pela inuência de Goethe, seja pela de Cézanne):

um conhecimento independente da

autoridade externa, sempre sujeita às manipulações do poder; um conhecimento baseado na experiência viva. Infelizmente, apenas um deles viveria o suciente para contar sua história.

Em 1952, pronta a diagramação de

Images à la Sauvette,

7 os

segundo livro de Henri Cartier-Bresson,

editores Tériade e Richard Simon perguntaram ao fotógrafo: - Como você faz suas fotos? - Não sei, e isso não tem importância... - Então, por quê você continua a fazê-las após vinte anos? Escreva sobre isso, deite suas impressões no papel, será muito bom... Assim nascia

L'Instant Décisif,

o único texto teórico escrito por Cartier-Bresson.

A força da ideia -

8 uma citação do Cardeal de Retz - foi tamanha que batizou um estilo. A diculdade de traduzir o título do livro para o inglês (à

la sauvette :

furtivamente, mas também de passagem) bem como a objetividade

da língua e o apelo da expressão levaram a obra a ser publicada nos Estados Unidos com o nome de

Decisive Moment. O Instante Decisivo 9

The

divide a carreira de Bresson ao meio - literalmente. Escrito a duas décadas do início

de seu trabalho (em 1932, ele descobre a Leica e publica suas primeiras fotos na revista francesa Vu) e a duas décadas do m (em 1975, se despede da fotograa para se dedicar à pintura e ao desenho), o texto faz um balanço de seu trabalho e dene sua visão do ofício.Eu tinha tudo na cabeça desde o início. E não mudei meu ponto de vista. A única coisa que me interessa na fotograa, escrevi em

L'Instant Décisif. [Montier

1996, p.

134]

Esta monograa é uma crônica daquele instante.

7 8 9

Beautiful Jaipur ), um retrato da pequena Jaipur feito a pedido do governo indonésio, as referências são escassas. Il n'y a rien dans le monde qui n'ait son moment décisif, et le chef d'oeuvre de la bonne conduite est de connaaître et de prendre ce moment. Preferimos utilizar a palavra instante no lugar de momento, por sua semelhança com o original e proximidade com o termo instantâneo, tão caro à fotograa. Do primeiro (

A citação completa é:

2 A conquista do quadro

Sempre fui apaixonado pela pintura. Era o que eu fazia às quintas e domingos, quando criança; e nos outros dias, sonhava com ela.[Cartier-Bresson 1997, p. 17]

Duas guerras e três continentes separam o jovem estudante de pintura do fotógrafo que assina as

à la Sauvette ;

Images

mas a primeira lembrança que vem ao seu texto, a primeira linha, é uma declaração de amor

à pintura. O próprio Cartier-Bresson explica seu percurso: A pintura se tornou uma obsessão para mim desde que meu "pai mítico", o irmão de meu pai que conheci aos cinco anos, no Natal de 1913, me apresentou o seu ateliê. Lá, eu vivia em uma atmosfera de pintura, cheirando as telas. Um amigo de meu tio, aluno de Cormon, iniciou-me na pintura a óleo quando eu tinha doze anos. Meu pai também desenhava muito bem, mas queria que eu zesse carreira na indústria têxtil: foi preciso então que eu entrasse na HEC [Escola de Estudos do Comércio]. Levei bomba três vezes, e as expectativas que pesavam sobre mim logo se dissiparam. escrever.

Mais tarde, fui aluno de André Lhote, de 1927 a 1928.

Ele me ensinou a ler e

Seu Tratado da paisagem e da gura é um livro fundamental.

Ele costumava dizer:

"se você tem o instinto, tem direito a trabalhar". Diante de algumas de minhas telas, às vezes exclamava:

Ah!

Pequeno surrealista!

pouco antes de sua morte [1962].

Você usa cores alegres, continue!"Eu não o revi senão

"Tudo vem de sua formação de pintor", ele dizia de minhas

fotograas.[Guerrin 2008, p. 151] A origem desta paixão pela pintura, lembrada quarenta anos depois de seu primeiro contato com a arte, é gravada na memória do fotógrafo com ainda mais intensidade devido à perda de seu tio Louis, o pintor, em 1915: Louis tinha trinta e três anos, e lutava no front francês da Primeira Guerra. Caberia a Jean Cottenet, amigo de Louis, iniciar Cartier-Bresson nas técnicas mais avançadas da pintura. Mas sua alfabetização - para usar sua própria metáfora - é responsabilidade de André Lhote, pintor e teórico do Cubismo.

2.1

1

André Lhote: a alfabetização do olhar

O processo de aprendizagem proposto por Lhote começa pelo que ele chama de

exercícios desinteressados,

análises dos elementos expressivos de obras relevantes da pintura, destinados a renovar os meios especícos da pintura expressivo-decorativa que temos a ambição de instaurar.[Lhote 1963, p, 4] Esses exercícios visam, principalmente, a desenvolver a sensibilidade visual do aluno:

1

Em

a nova pintura exigia a compreensão do

Mundos antigos, tempos modernos, o curador Peter Galassi refere-se ao trabalho de Quentin Bajac sobre André Lhote

(L'Enseignement d'André Lhote) para apresentar a primazia do pintor sobre Cartier-Bresson como uma interpretação tardia do fotógrafo sobre sua obra, que procurava, a partir dos anos 1970, enfatizar suas raízes nos suportes tradicionais. Não nos deteremos nesta discussão, concentrando nossa pesquisa nos aspectos da pintura que foram sistematizados por Lhote, e não na ascendência do professor sobre o aluno. V. Peter Galassi,

Henri Cartier-Bresson: o século moderno, p.

25.

trabalho de seus antecessores, para que o artista, de posse de um repertório visual organizado em uma linguagem, pudesse entregar-se às próprias sensações: Porque todo objeto, se renunciamos por um instante à consciência, seja de sua forma, cor ou matéria, torna-se fonte de imagens inesperadas, em cuja captação extasiada a imaginação poética do espectador encontra um trampolim sem precedentes.

Essa tradição, de um impressionismo

ampliado no sentido plástico, e discretamente nutrida pela nostalgia do classicismo latino, está de tal forma instalada na sensibilidade contemporânea, que daqui para frente, pintar - e também esculpir - sem o recurso dos imperativos da sensação, não será mais que virtuosismo impuro e retórica vã.[Lhote 1963, p. 4] É preciso atentar para o uso dos adjetivos da última frase, o virtuosismo impuro e a retórica vã: eles permitem deduzir seus opostos, um virtuosismo puro e uma retórica fundamentada, para os quais o recurso à percepção do artista é recomendado. Com isso, Lhote buscava a síntese entre o sentido de harmonia (e, num sentido mais amplo, de virtude) da tradição clássica e a experiência sensorial dos impressionistas, entre intelecto e sensibilidade. Da Vinci e Rimbaud parecem convergir nessa empreitada : É através do delírio que o artesão se torna poeta; é na presença do delírio face a técnica que ele dá ao espectador a ilusão de se evadir da técnica, alcançando suas metas.[Lhote 1963, p. 17] O correto uso da técnica para capturar a sensação suscitada pelo objeto, paradoxalmente, faz com que a técnica desapareça na representação.

Se esse é o ponto mais alto do trabalho artístico, é por lançar mão

de uma verdadeira história comparada do olhar e da representação visual. Em um eixo da criação, temos o contato com o mundo sensível; em outro, o conhecimento das

leis invariantes da composição,

determinadas

pela análise - essa ferramenta tão moderna - dos estilos e obras anteriores. Ao propor a formação do pintor através dos exercícios desinteressados de análise, Lhote aplica a racionalização do artista intelectual à vivência do sensível, e cumpre a dupla tarefa de situar o estudante historicamente e educar seu olhar para o reconhecimento das invariantes plásticas na natureza. Lhote considera o ensino da pintura efetivamente uma alfabetização visual. Nos

la Figure,

Traités du Paysage et de

comenta as diculdades no aprendizado dessa linguagem:

O mesmo rapaz que, para aprender a escrever, consentiu em fazer repulsivas análises gramaticais e "lógicas", que o familiarizaram com os caminhos mais complicados da sintaxe, desmontando a frase parte por parte, revolta-se quando pedimos a ele, alguns anos mais tarde, que pratique a mesma operação sobre estas frases plásticas muito mais complexas que constituem o quadro composto.[Lhote 1963, p. 137] O

quadro composto

século.

é o tema central da pedagogia de Lhote, herança direta das experiências da virada do

De acordo com o pintor, os cubistas franceses entre 1908 e 1914 - na fase do chamado

Analítico

- procuraram continuar a experiência impressionista[Lhote 1963, p.

Cubismo

53] no plano plástico:

o

Cubismo buscará a solução das contradições entre espaço e objeto (e estrutura e síntese) na criação de uma

forma-objeto,

desdobrando os ângulos da representação do objeto em planos sobrepostos.

As obras

dessa primeira fase revelam forte presença da geometria aplicada: as vistas do objeto são rebatidas de modo a apresentar uma visão totalizante de suas partes, distribuídas no plano em uma estrutura rigidamente organizada. Essa visão da pintura não tinha suas raízes no trabalho dos impressionistas mais típicos, como

Claude Monet; embora sua ousada (para os padrões da época) visão da arte não fosse isenta de consequências, é ao pós-impressionista Paul Cézanne que os cubistas irão se referir.

2.2

2

Paul Cézanne

Em 1907, um ano antes da data citada por Lhote como nascimento do Cubismo, uma grande retrospectiva de Cézanne no

Salon d'Automne

apresentava um panorama de seus estudos sobre a pintura. Cézanne pertencia à

geração impressionista; participou da primeira coletiva da

Societé Anonyme Coopérative des Artistes Peintres,

Sculpteurs et Graveurs, em 1875, o mito fundador do movimento.

A péssima recepção às obras fez com que ele

abandonasse o circuito dos salões e voltasse para Aix-en-Provence, sua terra natal, onde pode se dedicar, sem maiores aborrecimentos, à pesquisa pictórica. Seu trabalho tomou um rumo bem diferente daquele seguido por Claude Monet, por exemplo; mas os impressionistas nunca formaram um grupo homogêneo. O impressionismo nasce contestador, questionando a arte dos salões, aquela ensinada na Académie Royale. Criada por Luís XIV em 1648, a tradicional escola estabelecia os cânones da pintura e escultura.

Sua

pedagogia era baseada no estudo e na cópia das obras-primas, na guração de mitos e temas clássicos, na reprodução de cenas e detalhes estritamente codicados.

Realizada nos ateliês, tal pintura ocial não

pretendia representar a natureza ou os seres humanos em eventos cotidianos, mas demonstrar o virtuosismo técnico na semelhança com o real, e o talento na manipulação dos temas. O que os impressionistas farão será justamente levar o cavalete para o ar livre, libertando a luz da moldura das janelas e indo ao seu encontro sob o céu, clareando a paleta e descobrindo novas cores e tons, e inventando novas maneiras de combiná-los. Para Meyer Schapiro, pesquisador do movimento, Mais do que os estilos coletivos anteriores, com os aspectos constantes do imaginado ou recordado, o impressionismo assumiu como temas de representação somente cenas e objetos observados diretamente pelo pintor. A experiência de ver, em um momento particular e a partir da posição que depois se tornou a do espectador, foi sentida como o conteúdo da obra.[Schapiro 2002, p. 24] Essa experiência de ver é traduzida no conceito mesmo de

impressão, tal como usado por Claude Monet no

Salão de 1875. Impressão: sol nascente e mais pelo menos duas obras do artista lançam mão da expressão: A palavra impressão em seus títulos era uma tática para ensinar o público a perceber que o método da nova arte se fundamentava na realidade do impreciso e atmosférico na natureza, e que possuía uma objetividade e uma precisão renada próprias.[Schapiro 2002, p. 35] No caso particular de Monet, essa objetividade e precisão renada eram evidentes no sutil trabalho de decomposição da luz em seus valores cromáticos, chegando ao exemplo extremo das

Ninfeias,

onde a forma

é dissolvida na luz-cor. Mesmo prejudicado pela catarata, o olho do artista ainda respondia à mais delicada variação na luminosidade, assim levada ao quadro em seus menores detalhes, e ampliada para que sua visão pudesse acomodá-la: uma pintura da série chega a medir seis metros de comprimento. Este conceito de impressão é substituído gradualmente por uma construção mais deliberada do quadro. Pesando judiciosamente os matizes e tonalidades da cena, Cézanne fundamenta suas experiências na sensação provocada (talvez fosse melhor dizer eliciada) pela visão do conjunto: "É preciso que se tenha uma ótica", ele dizia, "mas penso que a ótica seja uma visão lógica, quer dizer, sem nada de absurdo".

2

A heterogeneidade técnica e formal do grupo dos impressionistas diculta bastante uma classicação precisa dos pintores. Na bibliograa especializada, Cézanne é referido ora como impressionista, ora como pós impressionista.

"Trata-se de nossa natureza?" pergunta [Émile] Bernard. Cézanne responde: "trata-se dos dois." "- A natureza e a arte não são diferentes?" "- Pois eu os quero unir. A arte é uma apercepção pessoal. Coloco esta apercepção junto à sensação e peço à inteligência que as organize em uma obra".[Merleau-Ponty 1996, p. 18] A inteligência organizadora de Cézanne é simultânea à sensação, e por ela despertada. Tal

visão lógica

põe

de lado os elementos estranhos ao encontro entre o pintor e a cena, suspendendo os apriorismos da pintura acadêmica. O esforço dos impressionistas em compreender pictoricamente o mundo visível aproxima sua arte das ciências naturais, que fazem da descrição minuciosa de seus objetos o seu próprio método de investigação. Ao contrário destas, porém (e talvez antecipando sua evolução), a pintura aceita a subjetividade do artista sem reservas, atribuindo à sensibilidade pessoal um papel preponderante. Para André Lhote, entretanto, a subjetividade não se esgota na sensação: Quando se fala de inteligência na pintura, a primeira observação que me vem ao espírito é que "podemos discernir entre os pintores uma grande variedade de inteligências, marcadamente diferentes". Estes tipos de inteligência são diferentes, como o são as sensibilidades, pois é preciso dizer de novo que a inteligência, em arte, se trata de um equilíbrio (difícil de se atingir plenamente) entre as vontades daquilo que chamamos coração e a censura da experiência. Sentir e exprimir, provar e descrever são atividades opostas e complementares.[Lhote 1963, p. 100] O equilíbrio entre a emoção suscitada pelo objeto e a ordenação dos elementos na tela - entre sensibilidade e inteligência - seria, então, a marca distintiva do gênio. justamente esta inteligência transcendente na pintura:

A Monet, arma um Lhote ponticante, falta

o inovador impressionista é capaz de perceber as

modicações na sensibilidade de seu tempo, mas entrega-se à sua representação de maneira tão apaixonada que não é capaz de traduzi-la em uma ordem que a torne comunicável à posteridade.[Lhote 1963, p. 101] Ao contrário de Monet, o olhar de Cézanne não se xa em um ponto por tempo o suciente para perceber cada matiz: e não o faz porque está se movimentando de um objeto a outro, comparando formas e identicando a relação que as cores apresentam entre si.

Ao utilizar o quadro para expressar essa percepção, Cézanne

transpõe o problema da pintura para o suporte. O problema, no caso, é a recomposição da luz na retina do espectador. Monet o enfrenta sem limites, desintegrando a forma em impressões luminosas; Cézanne surpreende a forma e despreza o detalhe, encontrando suas nuances nas relações internas entre as cores. Contudo, os dois pintores são aparentados na ausência de linhas que delimitem o contorno de suas guras. No pequeno ensaio intitulado

Le doute de Cézanne,

o lósofo francês Maurice Merleau-Ponty arma:

O desenho deve então resultar da cor, se quisermos que o mundo seja representado densamente, já que ele é uma massa sem lacunas, um organismo de cores, através das quais a fuga da perspectiva, os contornos, as retas e as curvas se instalam como linhas de força, e o quadro, no espaço, é constituído de maneira vibrante. E conclui, citando Cézanne: O desenho e a cor não são distintos; à medida que pintamos, também desenhamos; e quanto mais as cores se harmonizam, mais o desenho se precisa... O enriquecimento das cores é o desenho em sua plenitude. [Merleau-Ponty 1996, p. 20]

As

linhas de força

de que fala Merleau-Ponty são o artifício encontrado por Cézanne para garantir a unidade

do quadro. Ao colocar cada coisa em seu devido lugar, o pintor de Aix compõe um desenho cromático, cuja clareza será maior na medida em que os elementos se põem em harmonia. Bem resolvidas as relações internas, o artista cria o quadro composto de que nos fala Lhote, submetendo as sensações do artista à visão lógica procurada por Cézanne. Essa lógica, como não poderia deixar de ser, subordina-se exclusivamente aos elementos próprios da linguagem pictórica.

Os limites do quadro são ordenadores, estabelecendo o ritmo básico da pintura:

a

proporção entre largura e altura. Suas arestas denem o plano expressivo da obra, e determinam, portanto, sua conguração geral. Assim, um ponto qualquer no quadro pode ser facilmente descrito em termos de sua posição em relação aos eixos vertical e horizontal. A geometria apresenta-se como ferramenta de investigação por excelência para o propósito de Cézanne: a organização de todos os elementos pictóricos - luz, cor e suas passagens, ponto, linha e plano, ritmo, paralelismo, etc. - na unidade do quadro. Uma unidade geométrica, devemos ressaltar. Em

Mme. Cézanne de vestido vermelho

(g. 2.1), o pintor parece antecipar em algumas décadas uma das

principais características da fotograa: a liberdade de movimento do quadro. Tudo se move na pintura, tudo fora de lugar, menos o eixo vertical denido pela parte de moldura dourada no alto, Ã esquerda, e pela linha esquerda da face de Mme. Cézanne. A forte diagonal que se origina no vestido da mulher atravessa o quadro por inteiro até o canto superior direito, tocando a quina da cadeira e fazendo um ângulo reto com a cortina ao alto. A diagonal oposta é menos nítida, apoiando-se no canto da moldura dourada e desenrolando-se sobre a sombra do vestido, tocando o pulso de Mme. Cézanne e resolvendo-se na cortina. A porção superior de um X - um V - é formado pela gola de seu vestido, ecoando as diagonais e levantando o centro da imagem.

Costuma-se dizer que os impressionistas romperam com a perspectiva, valendo-se da sobreposição de planos para sugerir as distâncias. Aqui, Cézanne aproxima a modelo do espectador não apenas por colocá-la no centro do quadro, o rosto mais claro que todo o resto, dominando a composição. Para valorizar ainda mais a geometria, o pintor traz a mulher para perto do espectador pelo vermelho de seu vestido, e afasta a parede ao fundo utilizando tons de azul; para acentuar ainda mais o contraste, introduz o amarelo vivo da cadeira: complementar aos azuis do fundo, ele se destaca e reforça a sensação de profundidade. Ao sobrepor o vestido, vermelho, amarelo e azul se fundem em ritmo e tridimensionalidade. Cézanne trabalhava o volume dos objetos reduzindo-os a três formas básicas: a esfera, o cilindro e o cone. Postos em cena, a luminosidade do fundo e a incidência da luz sobre estes objetos são os modelos com os quais o pintor trabalha. é um exemplo perfeito da apresentação que André Lhote faz da abordagem cezanniana. Tomando a cabeça de Mme. Cézanne como um cilindro, devemos situá-lo contra um fundo cinza, ou seja, de luminosidade média: O contraste da iluminação lateral direta será menos violento (...) e o reexo menos perceptível. Por outro lado, a sombra interior estará bem marcada. Convém, então, não acentuar o contraste entre luz e fundo, mas sublinhar a sombra interior, e "passar" para o reexo. [Lhote 1963] A sombra na face direita da modelo, bastante evidente, ganha uma área clara em forma de parábola, com seu eixo paralelo à diagonal do quadro. Com isso, Cézanne consegue iluminar, de maneira bastante verossímil, os dois olhos da mulher - e não apenas aquele mais próximo da janela. Ainda que o trabalho de Cézanne com as cores tenha contribuído signicativamente para o desenvolvimento posterior da pintura, a unidade cromática se encontra subordinada às diretrizes da geometria.

No

Figura 2  Paul Cézanne,

Mme. Cézanne com vestido vermelho,

c. 1890

quadro em questão, as cores estabelecem o espaço do rosto de Mme. Cézanne; da esquerda para a direita e de cima para baixo, os ângulos vão se abrindo (em relação ao eixo vertical): 90o para a moldura, 95o para o encosto da cadeira, 100o para a faixa escura na parede. Do lado oposto, num tom de verde mais fechado - e por isso decorado, as ores clareando a cor e dinamizando a área -, a cortina se abre em 120o, seu vértice em altura próxima ao da moldura, criando tensão e ritmo com a tímida variação da porção esquerda do quadro. As referências da perspectiva clássica - horizonte e ponto de fuga - são perdidas, mas a mancha cromática se espalha em equilíbrio. Utilizando um método baseado na observação da natureza e sistematizado a partir de uma abordagem racional do meio, e dispondo apenas de suas ferramentas de pintor, Cézanne contribui para que as questões da pintura sejam resolvidas internamente, sem a necessidade de linguagens estranhas à pintura.

Prepara,

assim, o terreno que será ocupado logo depois pelos cubistas.

2.3

Cubismo

Giulio Carlo Argan dene a fase inicial do Cubismo como a primeira pesquisa analítica sobre a estrutura funcional da obra de arte: a nalidade era transformar o quadro numa forma-objeto que possuísse uma realidade própria e autônoma e uma função especíca própria. construção desta nalidade, a inuência direta de Cézanne:

[Argan 1992, p.

32] Argan identica, na

Figura 3  Pablo Picasso,

Les Demoiselles d'Avignon,

1906.

na pintura de Cézanne, os objetos são decompostos e reconstruídos na trama do espaço; o quadro já não é a superfície sobre a qual se projeta a representação da realidade, e sim o plano plástico em que ela se organiza.[Argan 1992, p. 302] O (pós) impressionista não era, porém, a única inspiração de Picasso e Braque. Argan também cita o naïf Henri Rousseau, que foi mais radical que Cézanne na sobreposição de planos, mais exótico do que Gauguin na invenção tropical, e pelo menos tão detalhista quanto Monet com os matizes: em sua coleção de pinturas sobre a selva, chega a lançar mão de até cinquenta tons de verde na elaboração do relevo. Finalmente, e em contraposição à Cézanne, Argan acrescenta a arte africana aos precursores do Cubismo. O problema era indicado por Picasso no seminal

Les demoiselles d'Avignon,

de 1906 (g. 2.2).

A tela é considerada um ponto de transição na história da arte moderna, demarcando os limites do gurativismo e abrindo o caminho para a arte abstrata. Retrata prostitutas em Barcelona, onde o pintor passou a juventude; os esboços revelam que, ao conceber a obra, Picasso imaginava um jovem (a gura da esquerda, de torso anguloso, que abre uma cortina e avança, decidida, com o pé direito) chegando a um prostíbulo.

Ao desnudar suas guras, o artista chama a atenção para a elaboração pictórica no lugar da

representação de uma cena. A referência à imagística africana é evidente no rosto da gura no alto, à direita, gurado à semelhança de uma máscara negra. Seria puramente anedótico, caso se limitasse a isso: mas Picasso põe em jogo a própria estrutura do quadro, explorando a tensão entre a espacialidade geométrica de Cézanne e a síntese estilizada da estatuária africana; em outras palavras, entre o

objeto no espaço

e o

espaço criado pelo objeto.

A instrumentalização das formas básicas proposta por Cézanne (o uso da esfera, cone e cilindro) está aqui evocada na mesma gura, no uso estilizado da sombra interna no rosto e no seio e na forma quadrada deste

último. O termo cubismo veio do comentário do crítico Louis Vauxcelles sobre uma exposição de Georges Braque, em 1908: Vauxcelles reduzia as obras a esquemas geométricos e cubos

3 Com as Demoiselles, Picasso

antecipava-se à crítica.

2.3.1

As invariantes plásticas e os ritmos primitivos

As novidades introduzidas por

Les Demoiselles d'Avignon

são o ponto de partida das experiências que

Pablo Picasso realizará junto com Georges Braque nos anos seguintes. Os traços reguladores de Cézanne, distribuídos pelo quadro e explicitados nas formas geométricas nos corpos das Demoiselles, garantem a coesão interna e revelam a autossuciência da linguagem pictórica. Para Argan, o procedimento cubista, que exclui qualquer efeito ilusório, é de cunho nitidamente realista, não mais no sentido de que imita os aspectos do verdadeiro (não se imita aquilo que se quer criar, dirá Braque), mas no sentido que dá origem a um objeto em si, irredutível a qualquer outro, dotado de uma estrutura e funcionamento próprios. [Argan 1992, p. 304] Essa autonomia da pintura - sua realidade irredutível - eleva seus elementos visuais à categoria de signicantes, rompendo completamente com a ideia da representação como mera descrição.

A forma-objeto existe em

função de suas próprias leis, adotando uma lógica intrínseca à elaboração do quadro. Essa noção de autossuciência será questionada em 1912, na primeira exposição do grupo conhecido como

Section d'Or.

Reunindo alguns dos artistas mais importantes das décadas seguintes - Marcel Duchamp e seus

irmãos, Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon, Juan Gris, Fernand Léger e o próprio André Lhote - e excluindo (intencionalmente) Picasso e Braque, a mostra na Galeria de La Boétie se deu sob o signo da razão áurea, descrita por Leonardo da Vinci em seu Tratado da Pintura. Alternando seu trabalho como pintor com os estudos críticos da arte, André Lhote descreve as leis da perspectiva empregadas por da Vinci como uma ciência que tem por m a substituição de uma visão subjetiva por outra que seja global, impessoal, e que portanto sirva a todos: a visão instintiva do mundo exterior, que varia como o sentimento mesmo, deve abandonar seu caráter espontâneo em benefício de uma visão intelectual.

[Lhote 1963, p.

59] Esta visão intelectual deve ser capaz de assegurar o conforto do olho na

contemplação do quadro, oferecendo pontos de vista diferentes, e obrigando os corpos e objetos a abandonarem sua individualidade para se colocarem nos eixos reguladores da imagem. Lhote não renega a autonomia da linguagem pictórica, mas busca na sua própria tradição as leis que regem a organização do quadro. A estas leis, denomina invariantes plásticas. A primeira destas invariantes conhecida pelos geômetras diz respeito à justa proporção entre as partes: na denição de Vitrúvio, para que um todo, dividido em partes desiguais, pareça belo, é preciso que entre a parte menor e a maior exista uma relação igual à existente entre a parte maior e o todo.[Lhote 1963, p. 58] A mais simples demonstração deste princípio é a gura geométrica conhecida como

retângulo áureo.

A razão entre aresta menor e maior do retângulo áureo é igual à razão entre a aresta maior e a soma das arestas: a análise gráca desse retângulo determina os lugares privilegiados dos elementos da composição. A gura 4 representa a divisão geométrica do retângulo. Ao longo do jogo de oblíquas obtido nessa operação, diz Lhote, as formas naturais, abandonando suas direções originais para se integrar a esses traços reguladores, voam como passarinhos: Todos os quadros da Renascença foram construídos sobre este princípio, que se encontra em alguns afrescos de Pompeia, que

3

Art terms: Cubism,

in

http://www.moma.org/collection/theme.php?theme_id-10068.

sido feita por Henri Matisse, antes de Vauxcelles.

A comparação com cubos já havia

Figura 4  Divisões do retângulo e espiral áurea

Poussin (após os góticos) foi quase o único a adotar na França do século XVII, Seurat no século XIX, e os cubistas, particularmente Juan Gris, no século XX. [Lhote 1963, p. 59] A maneira progressiva de fazer esta divisão - o rebatimento das arestas menores formando dois quadrados sobrepostos, o traçado das diagonais e medianas destes quadrados; o processo pode ser repetido indenidamente na geração de retângulos maiores ou menores - tem sua equivalente numérica na série de Fibonacci, (1, 2, 3, 5, 8, 13...), na qual cada número é a soma dos dois números precedentes e a média de seus vizinhos. Para a geometria clássica, o padrão gerado por essas proporções é ritmicamente harmônico. O matemático Matila Ghika, estudioso de razoável inuência no campo artístico do entreguerras, assim dene o parentesco entre proporção, número e ritmo: A técnica pela qual, num desenho ou projeto complexo, as proporções eram ligadas em uma correlação precisa entre o todo e suas partes, era chamada pelos arquitetos gregos e por Vitrúvio de "simetria"; e o resultado obtidoquando da correta aplicação desta técnica era a "eurritmia" do desenho e da construção. Geralmente associamos os termos "ritmo" e "eurritmita" à s artes temporais (poesia e música), e a noção de proporção à s espaciais (arquitetura, pintura, arte decorativa).

Os gregos não se importavam com essas diferenças; para eles, e para Platão em

particular, o Ritmo era um conceito mais geral, dominando não apenas a estética, mas também a psicologia e a metafísica. E Ritmo e Número eram um (Rhytmos e Arithmos tem a mesma raiz: rhein, "uir").[Ghyka 1977, p. 5] Central para o pensamento clássico, o ritmo é a expressão sensível das leis matemáticas.

Trazido para a

pintura, se expressa em relações harmônicas entre as formas. De fato, ao falar da composição, André Lhote arma: "trata-se de organizar ritmicamente a superfície". [Lhote 1963, p. 55] Como ca evidente nas palavras de Ghika, o ritmo não é uma abstração exclusiva da geometria ou da matemática, mas um conceito aplicável a diversos campos de conhecimento. Com efeito, André Lhote assume esta inuência e evoca, com o auxílio da fotograa e do cinema, a existência de ritmos naturais na morfologia botânica. Na dança solar de uma pequena planta que nasce, e nos padrões dos caules da

Aesculus parviora,

uma árvore da família das castanheiras, Lhote identica semelhanças entre as formas naturais e as formas elaboradas por artistas primitivos . O interesse pela arte primitiva, e principalmente pela arte africana, guardava um quê de rebeldia. E o cubista não perdeu nenhuma chance de deixá-lo claro, atacando explicitamente a Academia:

O burguês do início do século [XX] gargalha enquanto os artistas, ultrapassando seus miseráveis professores ociais, foram pedir conselho aos artesãos africanos ou da Oceania. Percebe-se agora que não há melhor escola, e que todos esses senhores do Instituto, por volta de 1900, não passavam de crianças frente esses selvagens sem títulos ou medalhas. [Lhote 1963, p. 156] Aos dito primitivos não se impunha a cópia servil da natureza, mas uma espécie de mimetismo instintivo, seguindo a natureza passo a passo em suas invenções cotidianas. [Lhote 1963, p. 157] O mesmo espírito de observação, embora menos sosticado, Lhote encontra entre os artistas intelectuais do Renascimento, que deram tridimensionalidade à pintura através de ritmos fundamentais construindo o espaço segundo as leis da gravitação universal. André Lhote, como Cartier-Bresson, pertencia à mesma tradição.

2.4

Henri Cartier-Bresson

O ritmo está para a geometria assim como o tempo está para o espaço; ou ainda, o ritmo (se pensamos apenas em seu sentido musical) é a geometria do tempo, da mesma forma que a geometria (ao menos nas artes plásticas) dene o ritmo no espaço. Na verdade, os elementos são de tal maneira intercambiáveis que os gregos inventaram um deus-conceito para lidar com a ideia de uma coincidência entre tempo e espaço: e a esta ideia, deram o nome de Originalmente,

kairós,

kairós

kairós.

se referia a um ponto no espaço. Na Ilíada, Atena desvia os ataques a Aquiles de

kairós

é também o conhecimento intuitivo

que permite distinguir e escolher o lugar correto, o ponto nevrálgico.

Por extensão, acaba designando o

o ponto crucial - seu calcanhar. Em sua primeira versão,

procedimento técnico decisivo, realizado no tempo e no espaço precisos:

a intervenção médica no ponto

vulnerável do corpo, a escolha intuitiva do lugar mais favorável à caça, a medida correta das palavras do orador. No pequeno ensaio sobre a noção de

kairós

no trabalho de Henri Cartier-Bresson, o crítico Jean Clair

chama atenção para a oposição entre kairós e logos: kairós seria como um golpe justo na linha contínua da realidade, um rompimento na ordem lógica das coisas. Nos exemplos acima, a expulsão da doença que, via de regra, levaria Ã

morte; a interrupção do movimento do animal vivo; e a mudança de atitude na plateia.

Ao assumir sua oposição ao logos, kairós adquire sua força de ruptura e transformação. [Delpire 2003, p. 47] Com o passar do tempo,

kairós

foi alçado ao estatuto de divindade e, no m da Era Clássica, ele é o

lho mais novo de Zeus. Representam-no como um jovem alado, com cabelos sobre a fronte e calvo na nuca. Carrega uma lâmina na mão, mostrando-se capaz de passar por uma pequena fresta.

Kairós

deve ser agarrado de frente, pelos cabelos.

É preciso antecipar-se a seus movimentos, car na

espreita em seu caminho. A antropomorzação do conceito cristalizou uma ideia que permeava a sociedade grega nos séculos V e IV a.C.: com o orescimento das artes e das ciências e a consequente multiplicação dos saberes - o espírito racional se debruça sobre todo o mundo e todas as obras -, com a

poikilia,

essa abundância confusa de

conhecimentos, fazia-se necessário redobrado rigor e a capacidade de distinguir, julgar e escolher. Segundo Jean Clair, Face a innita diversidade de fatores que condicionam a ação, e levando sempre em conta as circunstâncias, tornou-se mais necessário do que nunca - ao invés de uma regra xa, imutável, que produz uma ciência balbuciante - dominar este conhecimento superior do momento e do lugar que chamamos

kairós.

[Delpire 2003, p. 49]

Este conhecimento superior de kairós é uma combinação de intuição com o domínio profundo da técnica. Exige inteligência e prontidão de resposta. Em e Vernant tratam este conhecimento Para arrebatar

kairós

métis

fugidio,

Cunning Intelligence in Greek Culture and Society,

Detienne

- como uma espécie de atenção dinâmica:

métis

deve ser ainda mais cortante que esse.

uma situação em mudança, plena de contrastes,

métis

Para dominar

deve estar ainda mais pronta, ainda mais

mutável, e mais polimórca que o uxo do tempo: deve se adaptar constantemente aos eventos conforme eles se sucedem, e ser maleável o suciente para acomodar o inesperado, assim implementando o plano em mente com mais sucesso.[Vernant 1991, p. 20] O plano na mente de um fotógrafo é a própria fotograa. E o que Cartier-Bresson procura é estar a postos quando toda a intensidade de uma cena se revela em um arranjo geométrico: seu dos objetos no plano da imagem, e seu

métis

kairós

é a harmonia rítmica

a intuição geométrica, lapidada pelo estudo das invariantes

plásticas na pintura. De posse dessas ferramentas, Bresson não se demora em uma carreira propriamente artística. A fotograa é um ofício, uma

techné,

uma prática que envolve sensibilidade mas aponta para um m; através dela,

o fotógrafo rompe com o discurso autorreferente das vanguardas, ao mesmo tempo em que assimila seus ensinamentos: Modicamos a perspectiva [de uma foto] com uma ligeira exão dos joelhos, provocamos a coincidência das linhas com um simples movimento milimétrico da cabeça, mas isso só pode ser feito na velocidade do reexo, e evitamos denitivamente tentar fazer "Arte". [Cartier-Bresson 1997, p. 9] O conhecimento das leis da perspectiva e da posição relativa das linhas é da ordem de peito à formação artística de Bresson.

métis,

e diz res-

A forma como esse conhecimento é aplicado, porém, aponta para

uma sensível diferença no tempo de execução da obra: a fotograa é uma ação imediata, o desenho uma meditação.[Cartier-Bresson 1997, p. 17] O caráter técnico da imagem fotográca e sua característica de instantaneidade afastam-na da pintura, de elaboração mais lenta e irreprodutível.

Mas o objeto de Cartier-Bresson é o mesmo explorado pelos

impressionistas, no nal do século XIX: as mudanças e o movimento do mundo.

Se Monet investigava a

qualidade da luz sobre a Catedral de Rouen ao longo do dia e das estações, limitando seu assunto às longas variações de um objeto estático, Bresson vai procurar, no movimento das cidades, o instante irrecuperável de máxima expressão da forma. Georges Seurat e Toulouse Lautrec, cada um à sua maneira, também irão se interessar pelo gesto humano vivo, e deles também encontraremos ressonâncias no trabalho do fotógrafo. Mas a natureza manual da pintura impede o registro imediato da percepção; o pincel traduz uma cena interpretada pelo cérebro em termos de cor, luz, movimento. de saberes e gestos até atingir a superfície da tela.

A percepção atravessa uma longa cadeia

A fotograa, imagem técnica por excelência, permite

atravessar a fresta da interpretação e unir, em um instante decisivo, o fotógrafo e a cena vista. O que é isto senão

sentir

- no duplo signicado que a palavra tem em francês, de sentir e perceber - a natureza, e tornar-se

artista por meio dela, como queria Cézanne? A inuência sobre Bresson das modernas experiências na pintura - o impressionismo e as vanguardas do início do século - é dividida em dois eixos. O primeiro diz respeito ao conhecimento do mundo através da sensação: é o sentir de Cézanne, sua

visão lógica,

sem nada de absurdo - isto é, de externo; o segundo é seu

complemento e sua consequência: uma tal visão lógica instrumentaliza a elaboração racional da natureza, tornando possível conhecer-lhe as leis através da observação. A geometria é a língua falada por essas leis.

A negação da Arte, em seu texto, responde pelo abandono de uma lógica estetizante, de um planejamento prévio (e portanto não-natural) dos elementos. Henri Cartier-Bresson adere radicalmente à máxima de André Lhote: não é preciso procurar muito longe (na razão e no cálculo) aquilo que se pode fazer instintivamente. E se Pitágoras estava certo, a Razão Áurea - uma proporção tão natural - seria facilmente reconhecida por um instinto geométrico desenvolvido. A opção pela reportagem fotográca é uma saída para exercitar esse instinto em meio aos acontecimentos. Revela o interesse de Cartier-Bresson pelo homem, e principalmente pela sua existência fora do cenário espetacular de um mundo em transformação.

Não exatamente o homem natural, mas uma humanidade

atemporal. Para fazer jus à humanidade que retratava, porém, Bresson compreende a necessidade de uma ética prossional. Escreverá sua própria, registrando no

Instante Decisivo :

É vivendo que nos descobrimos, no mesmo tempo em que descobrimos o mundo exterior, que nos fascina, mas sobre o qual também podemos agir. Um equilíbrio deve ser estabelecido entre esses dois mundos - o interior e o exterior - que, em diálogo constante, formam apenas um: e é este mundo que devemos comunicar. Mas isso diz respeito apenas ao conteúdo da imagem, e para mim o conteúdo não pode se destacar da forma; e por forma, entendo uma organização plástica rigorosa, por meio da qual, apenas, as nossas concepções e emoções se tornam transmissíveis. Em fotograa, essa organização visual só pode surgir do sentimento espontâneo dos ritmos plásticos. [Cartier-Bresson 1997] A forma, como se vê, já não é apenas uma organização harmônica que visa à beleza, mas a única conguração capaz de condensar a subjetividade do fotógrafo e a realidade da cena. No nal dos anos 1920, Cartier-Bresson já possuía o vocabulário para se expressar. Naquela época, entretanto, começava ainda a elaborar seu método de trabalho. Em 1929, o fotógrafo recém saído da adolescência abandona o ateliê de André Lhote para percorrer outros caminhos. Com os surrealistas, conhecerá e fará amizade com o Acaso.

3 Sonho e automatismo

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.[Breton 2001, p. 40]

L'Instant Décisif

não faz menção alguma ao Surrealismo, embora sua aproximação com o grupo tenha

sido determinante na vida do fotógrafo. Num pequeno texto em homenagem a André Breton (André

Roi Soleil ),

Breton,

Cartier-Bresson reconhece:

...é ao surrealismo que eu devo delidade, pois ele me ensinou a deixar a objetiva fotográca remexer nos escombros do inconsciente e do acaso.[Cartier-Bresson 1997, p. 68] Cartier-Bresson chegou ao grupo dos surrealistas no nal dos anos 1920, através de seu amigo René Crevel, que conhecera pela mão de Jacques-Émile Blanche. Crevel introduz Bresson às reuniões no café La Dame Blanche, em Montmartre, e depois no Cyrano, na Place Blanche. Mais ouvinte que participante, Bresson conheceu ali a plêiade que gravitava em torno de André Breton: Paul Éluard, Max Ernst, Man Ray, Jacques Prévert... os nomes iam e vinham, conforme o humor e as sentenças de Breton. O jovem Henri aquilatava a rebeldia do grupo, o inconformismo, a crença no acaso; em certa medida, também a política, mas nunca o suciente para liar-se ao partido, como todos zeram. Guardava na memória o episódio de Kronstadt, quando o governo socialista massacrou os marinheiros sublevados contra a centralização do poder e a burocracia estatal  coisas que identicava com o fascismo, seu objeto essencial de revolta. Naquele momento, porém, a política ainda não era tão passional como se tornaria na década seguinte; as feridas da Grande Guerra continuavam abertas, urgia conceber um programa que superasse a potência destruidora das nações e seus generais, um projeto criativo radical que se opusesse à força desagregadora da morte na era de sua reprodutibilidade técnica. Não sabiam os frequentadores do Cyrano que, enquanto discutiam os rumos da arte, um pintor frustrado saía da prisão com seu próprio manifesto de intolerância debaixo do braço:

Mein Kampf

e o magazine

La Révolution Surréaliste vêm ao mundo com meses de diferença.

Eros e Tânatos sempre andam em par.

3.1

A psicanálise de Breton

Todo o esforço técnico do surrealismo consistiu em multiplicar as vias de penetração das camadas mais profundas da mente. Explicava Andé Breton:  `Digo que é preciso ser

vidente,

tornar-se vidente': para nós

tudo consistiu em descobrir os meios de pôr em prática esta palavra de ordem de Rimbaud;[Breton 2001, p. 328] para Freud, A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição.

Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual

mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam diculdades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois `Poderes Celestes', o eterno Eros, desdobre suas forças para se armar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?[Freud 1996] A publicação tardia das obras de Sigmund Freud em francês (particularmente a

Psicopatologia da vida cotidi-

ana, em 1922, e A interpretação dos sonhos, em 1925) alcançou uma República com graves traumas, incluindo a perda de mais de um milhão de vidas na Grande Guerra. O campo artístico parisiense, fortalecido pela constante imigração de artistas das mais variadas técnicas, reagia como possível àquele estado de coisas; aos surrealistas, capitaneados por dois escritores franceses - André Breton e Louis Aragon -, coube a elaboração de um dos mais ousados programas jamais levados a cabo na história da arte.

Eles queriam reabilitar o

direito ao sonho e ao maravilhoso, e explodir a civilização responsável pela morte e opressão do homem livre. Breton era médico, e tomou contato com as obras de Freud enquanto servia no

front

da Grande Guerra, ao

pedir sua transferência de Nantes para o Centro de Neurologia de Saint-Dizier, onde trabalhou com um antigo

1 Conheceu a loucura em meio à guerra, fato que sem dúvida o instigou a questionar 2 a fronteira entre razão e insanidade: em Nadja, romance de 1928, Breton se indagava a respeito: assistente de Charcot.

O essencial é que, ao pensar em Nadja, não pareça haver uma diferença extrema entre o interior do asilo e seu exterior. Deve, claro! haver alguma diferença, por causa do agressivo barulho de uma chave girada na fechadura, da miserável vista do jardim, da empáa das pessoas que lhe interrogam quando você não quer encerar os sapatos...[Breton 1973, p. 160] A perda (ou a ausência) da razão não é aí motivo de preocupações, ou pelo menos não tanto quanto a perda da liberdade: a liberdade de ir e vir, de contemplar o mundo, de vestirse. Nadja (voltaremos a ela adiante) é a representação da mulher livre, da

âneur fêmea

 numa sociedade moralista, avizinhase da prostituta.

"Quem é você?", lhe pergunta Breton; "sou a alma errante", ela responde.[Breton 1973, p. 82] Fixarse é

3

submeterse ao controle.

De fato, o controle, tanto social quanto psíquico, era visto pelos surrealistas como uma forma de opressão - já que em sua visão os sintomas neuróticos de uma sociedade doentia podiam ser encontrados na chamada normalidade.[Fer 1999, p. 187] Na defesa radical da liberdade do indivíduo, a loucura é rebeldia e inspiração. Breton fazia da psicanálise uma terapia às avessas. Mas só aparentemente.

1

Jean-Martin Charcot (1825-1893), clínico e neurologista francês, foi responsável pela primeira escola de neurologia do mundo, em Salpêtrière. Dentre seus alunos ilustres, além do próprio Freud, encontram-se Eugen Bleuler, Alfred Binet e Gilles de la

2 3

Tourette.

Nadja

é uma narrativa dos encontros de André Breton com uma mulher misteriosa nas ruas de Paris, um conto

âneur

sobre a cidade, seus amigos e o fascínio da liberdade. A verdadeira Nadja se chamava Léona Delcourt, e veio a falecer no hospital psiquiátrico de Bailleul, em janeiro de 1941. Coincidentemente, naquele momento, também Cartier-Bresson experimentava a reclusão forçada, como prisioneiro de guerra dos nazistas no

campo de Wurtemberg.

3.1.1

De natureza e cultura

A guerra é um resultado lógico da civilização. Em

O Malestar na civilização,

Freud analisa como a luta

entre o princípio de prazer e o de realidade, entre os instintos eróticos e agressivos do homem, dá origem à vida em sociedade. Este conito, diz o psicanalista, é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de viverem juntos. [Freud 1996] De um lado, as forças do inconsciente impelem o indivíduo a buscar a satisfação imediata de suas necessidades; de outro, a realidade e outros indivíduos negam e frustram essa busca. O que é válido para o indivíduo costuma se repetir de maneira ampla na população, e este caso não é uma exceção. Assim, os membros de um determinado grupo social estão ligados entre si por laços eróticos e de identicação, reservandose a carga agressiva latente, impossível de ser eliminada, para os estrangeiros. Internamente, as sociedades lidam com as pulsões agressivas do indivíduo através de mecanismos repressivos. De acordo com Freud, A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados.

O

poder dessa comunidade é então estabelecido como `direito', em oposição ao poder do indivíduo, condenado como `força bruta'.[Freud 1996] Conforme as sociedades vão se tornando mais complexas, esse direito passa a derivar do Estado para o povo. No indivíduo, essa autoridade é internalizada e forma, em composição com as experiências individuais de repressão e frustração, uma instância denominada

superego

pela psicanálise. É impossível desprezar o ponto

até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, arma Freud. E prossegue: Essa `frustração cultural' domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar.[Freud 1996] A experiência da guerra e o desmoronamento das antigas formas de organização social  o m das monarquias, a profunda transformação do cenário natural e urbano pela ação das máquinas  levou ao chão muitas das certezas conquistadas na longa história do continente europeu. Em um processo muito análogo ao descrito por Freud com relação ao surgimento do direito, 42 países se uniram na Sociedade das Nações em 1919, na esperança de que esta união se sobrepusesse aos interesses de nações isoladas e evitasse, assim uma nova guerra. Para André Breton, no entanto, impedir a agressão não era suciente. Como demonstrado por Freud, lidar com os impulsos destrutivos é um problema de economia psíquica difícil de ser equacionado: adoto (...) o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à civilização.[Freud 1996] Faziase necessário encontrar uma forma de enfrentar diretamente as causas dessa agressividade. A partir da topograa psíquica descrita por Freud, o caminho tomado pelos surrealistas tomava uma lógica ousada: derrubar a autoridade (externa e introjetada) para que os impulsos de conservação da vida ganhassem livre curso e pudessem, dessa forma, ampliar as possibilidades de existência. Pôr abaixo a ordem estabelecida, desaar a modernidade. 'Transformar o mundo', disse Marx; `mudar a vida', disse Rimbaud: para nós estas duas palavras de ordem não são mais que uma só.[Breton 2001, p. 285] Poesia e revolução, as bases do programa de Breton.

Figura 5 

La Révolution Surréaliste,

p.19, n. 1 (dezembro de 1924)

Tal concepção libertária da arte e da vida foi expressa de maneira simbólica, mas inequívoca, em uma montagem do primeiro número da revista

La Révolution Surréaliste

Fig. 3.1).

(

Vinte e oito pequenos retra-

tos, compreendendo artistas do movimento e personalidades que os inuenciaram - como Freud - distribuídos ao redor de uma foto maior de Germaine Berton, anarquista francesa presa em 1923 pelo assassinato de Marius Plateau. Plateau era secretário da

Ligue d'Action Française,

organização que propunha o restabele-

cimento da monarquia na França. Abaixo da foto, uma citação de Baudelaire: "a mulher é o ser que projeta a maior sombra e a maior luz em nossos sonhos".

4 Sonho e revolução, caberia dizer, moviam o imaginário

surrealista. Berton foi celebrada em textos por Louis Aragon tanto em

La Révolution Surréaliste

quanto na

Littérature.

Malgrado a violência do ato de Berton, o que o escritor louvava era a exaltação da vida: É certo que os anarquistas exaltam a vida e reprovam o suicídio, que é, como se sabe, uma covardia.

Então me zeram conhecer a vergonha:

prosternar simplesmente diante desta mulher

4

La Révolution Surréaliste,

n. 1 (dez. 1924), p. 19.

não me deixaram nada a fazer, senão me

completamente admirável,

que é o maior desao

à escravidão que eu conheço, o mais belo protesto lançado à face do mundo contra a mentira hedionda da felicidade.

5

Nadja e Berton: uma rebelde, outra revolucionária;

La plus grande ombre, la plus grande lumiére.

A mulher

aparece, entre os surrealistas, ora como a encarnação de Eros, ora como mensageira de Tânatos. Mas sempre à margem, e em primeiro lugar por ser mulher. Nestes dois casos, elas desaam o arquétipo feminino: Nadja não é a Beatriz capaz de guiar Dante pelo Paraíso e através do abismo, mas uma alma errante que pode ser encontrada percorrendo lugares ordinários; Berton não se permite submeter a uma ideia romântica de felicidade, preferindo a luta e a violência. Acima de tudo, nenhuma delas aceita ser subjugada a qualquer autoridade. A ideologia libertária é um corolário das digressões de Breton sobre a arte e a psicanálise. O programa surrealista previa uma ética totalizante, a transformação do indivíduo levando à mudança social. Freud e Marx (ou Bakunin, ou Trotsky; a coerência não era uma virtude almejada) convergiam na construção de um

6 Assim, o programa surrealista é antes

novo mundo, surreal em sua capacidade de produzir o maravilhoso. um projeto ético do que estético:

[A investigação, através da representação artística, de] sensações relacionadas com processos que se desenrolam nas camadas mais diversas, e até mesmo nas mais profundas, do aparelho psíquico (...) trabalha para a abolição do ego no id, e se esforça, em seguida, por fazer predominar com nitidez cada vez maior, o princípio do prazer sobre o princípio da realidade. Ela tende a liberar cada vez mais a pulsão instintiva, a derrubar a barreira que se ergue diante do homem civilizado, barreira esta que ignoram o primitivo e a criança.

O alcance de tal atitude, a considerarmos,

por um lado, a subversão geral da sensibilidade que ela acarreta (propagação de cargas psíquicas consideráveis aos elementos do sistema percepção-consciência), e, por outro lado, a impossibilidade de regressão ao estádio anterior, é socialmente incalculável.[Breton 2001, pp. 327-328] Para a consecução de tal programa, faz-se mister o desenvolvimento de práticas e técnicas capazes de eludir a censura consciente. Até onde isso é

realmente

possível, não está claro; para a psicanálise, nem mesmo os

sonhos desfrutam de tal liberdade, o conteúdo latente disfarçado sob o conteúdo manifesto. Ainda assim, o sonho é uma espécie de ponto de referência para os surrealistas, lugar de partida para o conhecimento do mundo.

La Révolution Surréaliste

anuncia a boa nova:

O processo de conhecimento quedou-se inútil, a inteligência não se leva mais em conta, apenas o sonho deixa ao homem todo o direito à liberdade. Graças ao sonho, a morte não tem mais um

7

sentido obscuro, e o sentido da vida se torna indiferente.

O sonho, contudo, só será comunicável (de maneira a auxiliar na subversão geral da sensibilidade) se representado através de algum meio. Desde o início, os surrealistas o fazem ao pé da letra: não são raras as obras de Breton (particularmente

Révolution Surréaliste

Os vasos comunicantes )

a incluir descrições e análises de sonhos, e

La

publicava sistematicamente relatos oníricos de seus colaboradores.

Segundo Giulio Carlo Argan, entre os surrealistas o inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica explorada com maior facilidade pela arte, devido à sua familiaridade com a imagem, mas é a dimensão da existência estética e, portanto, a própria dimensão da arte.[Argan 1992, p. 360] Pelo menos duas experiências

5 6 7

La Révolution Surréaliste,

n. 1 (dez. 1924), p. 14.

A psicanálise (em especial a interpretação de sonhos) e o marxismo são dois dos Breton que leva este nome.

20

J.-A. Boiard, P. Éluard e R. Vitrac,

Préface. La Révolution Surréaliste,

vasos comunicantes

da obra de André

n. 1, p.1 (dez. 1924).

no campo estético são de relevância para nós: a escrita automática e a

frottage, pelo que elas podem no revelar

sobre a relação entre acaso e automatismo. Eixo central da ética surrealista, a irrupção do inconsciente na vida cotidiana ganha contornos diferentes de acordo com o suporte. Para além dos sonhos, técnicas de acesso às camadas mais profundas da psique são criadas ou reavaliadas.

A mais conhecida delas é uma herdeira

direta da psicanálise: a escrita automática. A primeira apresentação da escrita automática como técnica surrealista é provavelmente a experiência de André Breton, narrada no primeiro

Manifesto do Surrealismo.

Breton fala de uma frase ouvida distintamente

antes de adormecer, uma frase que se chocava contra a vidraça [Breton 2001, p. 36]; embora o conteúdo exato não tenha sido registrado, referia-se à imagem de um homem cortado em dois pela janela, imagem esta que acompanhava a alucinação (se podemos chamá-la assim) auditiva. Acreditando na potência da imagem, tomou a decisão de usá-la na poesia; logo foi assaltado por uma sucessão de frases, quase tão surpreendentes quanto a primeira. Em meio à avalanche de palavras, André Breton sente-se desnorteado: o domínio que eu até então exercera sobre mim mesmo pareceu-me ilusório e eu só me dediquei a pôr termo à interminável querela dentro em mim. A vívida impressão causada por este acontecimento estimula Breton a tentar uma primeira experiência de escrita automática, ainda sem esse nome. Conta Breton: Como, naquela época, eu ainda andava muito interessado em Freud e familiarizado com seus métodos de exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que se tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunciado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se atrapalha com nenhuma inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao

falado.[Breton

pensamento

2001, p. 37]

8 que se submeteu ao mesmo método a seu lado,

Breton contou com o apoio de seu amigo Philippe Soupault, para que os resultados pudessem ser comparados.

Vistos em conjunto, os resultados de Soupault e os meus eram notavelmente parecidos: os mesmos defeitos de construção, falhas da mesma natureza, mas também, de parte a parte, a ilusão de uma verve extraordinária, muita emoção, um conjunto considerável de imagens de tal qualidade que teríamos sido incapazes de produzir uma só delas de antemão (...)[Breton 2001, p. 38] O relato corrobora a tese de Argan sobre os surrealistas, tanto no sentido da familiaridade com as imagens quanto no da dimensão estética do inconsciente. Processo semelhante é descrito por Max Ernst na pintura, ao comentar a técnica do em esfregar uma mina de grate ou um

crayon

frottage, que consiste

sobre uma folha de papel apoiada em uma superfície texturi-

zada, resultando no surgimento de formas casuais: ali, meus olhos descobriram cabeças humanas, animais, uma batalha que terminava com um beijo... E conclui: O procedimento da

frottage,

apoiando-se, portanto, em nada mais que a intensicação da ir-

ritabilidade das faculdades da mente, por meio de recursos técnicos apropriados, excluindo todos os direcionamentos mentais conscientes (da razão, do gosto, da moral), reduzindo ao extremo a parte ativa daquele que vimos chamando, até agora, de `autor' do trabalho, esse procedimento é divulgado pelos adeptos como o equivalente real do que já se conhece pelo termo `escrita automática'.[Fer 1999, p. 53]

8

Philippe Soupault foi coautor, com Breton, de

Os campos magnéticos.

de alguns romances, acusado de retorno à literatura.

Foi afastado do movimento em 1926, após a publicação

Em ambos os casos, uma imagem que se apresenta à mente é responsável pelo desencadear de uma série de associações que, por sua vez, produzirão novas imagens.

Ernst é muito feliz ao se referir à irritabilidade

das faculdades da mente, expressão que nos remete às frequentes analogias feitas por Freud entre a vida psíquica do homem e o comportamento de seres unicelulares; muitos deles, quando estimulados de maneira persistente (ou seja, irritados), expelem secreções como defesa - secreções estas utilizadas pelos cientistas na investigação da vida celular. Enquanto Breton e Ernst se dedicavam a estas experiências, Louis Aragon anava entre a antiga

l'Opéra

Passage de

e o Parque Buttes-Chaumont; aquela uma construção de 1821 com duas galerias, este uma realização

do Barão Haussmann, planejado sobre um depósito de lixo da época da Revolução Francesa, com a função

9 Aragon frequentou esses lugares cheio de história10 para compor sua

de ser um pulmão verde para a cidade. novela

O Camponês de Paris, que é, ao lado de Nadja, uma das obras mais signicativas dos primeiros anos O Camponês de Paris, não é a mulher quem leva o narrador a explorar a cidade, mas o

do surrealismo. Em

próprio Aragon quem a percorre e minuciosamente a descreve. A experiência de Aragon em seu livro guarda objetivos similares aos de Breton e Ernst com a escrita e a pintura automática.

Seu automatismo manifesta-se, enquanto sintoma, na

deambulação.

Neste caso, os

estímulos ao inconsciente são inteiramente externos e autônomos à sua vontade: são os espaços que observa, a vida em plena ação a desenrolar-se diante de seus olhos, o que desloca seu trabalho da técnica psicanalítica (o pensamento falado, por exemplo) para uma experiência conceitual que se recusa a dizer seu nome. Em Aragon, as imagens não brotam da mente e ganham o mundo; antes, o mundo é fecundado pelas imagens e associações internas que suscita, num

feedback

completo. Em termos psicanalíticos, é como se o investimento

libidinal nas coisas - a catexia objetal - não fosse narcisicamente apropriada pelo ego, mas derivada para a criação linguística. Para conseguir isso, Aragon lança mão de uma série de recursos poéticos, que vão desde aliterações e rimas internas até um certo efeito impressionista causado pela descrição exaustiva. pretende fazer uma

mitologia,

11 Com esse livro, o autor

uma cosmogênese fugidia da modernidade, dimensão mais preciosa ainda

na medida que advém da própria dinâmica da linguagem, e não de fora, da consciência ou da intenção de um sujeito soberano, pretensamente anterior a suas palavras, nas palavras de Jeanne-Marie Gagnebin. Tal mitologia tem suas características próprias e singulares, como nota Gagnebin: (...) a `mitologia' de Aragon não remete, como tantas outras mitologias contemporâneas, ao reencontro com uma pseudo-eternidade, mas sim, consequentemente, à fugacidade, à caducidade, ao

efêmero.

A dimensão da imagem e a dimensão do efêmero são inseparáveis (...)[Aragon 1996,

p. 255] Essa mitologia moderna - da qual tanto Aragon quanto Breton são cultores - é tributária do espírito baudelai-

ânerie, do mergulho na cidade, em seus cafés, bordéis, ruas abandonadas; Breton fez-se acompanhar Jacques-André Boiard, amigo e fotógrafo, autor de boa parte das imagens de Nadja. Reinventavam as

riano da por

tradições, apontando para a liberdade estética: se a vagabundagem de Aragon e Breton é neta de Baudelaire, aquela de Boiard, com suas imagens de prédios abandonados e ruas vazias, demonstra a inuência de Brassaï. Essa paixão pela errância era marcada também pelo sentimento de rebeldia. Para Briony Fer,

9 10

Ainda hoje, o Parque Buttes-Chaumont é a maior área verde da região metropolitana de Paris. Especialmente a

Passage de l'Opéra,

cujas galerias integravam a Academia Real de Música, destruída por um incêndio

em 1873. No lugar da Academia foi construída a Ópera de Paris, mas a passagem continuou a existir, embora entrasse em decadência; lá o anarquista Louis Auguste Blanqui sediou o jornal

11

Le patrie en danger, a partir de 1880.

As galerias foram

derrubadas, como previsto no projeto haussmaniano, no mesmo ano em que o livro de Aragon era lançado (1924). V. a

Apresentação

de Flávia Nascimento à edição

brasileira, em esp. pp. 24-25 e 28ss.

ânerie era uma resposta estratégica à cultura dominante da Gerenciamento cientíco de Taylor. Como tal, fazia parte do A

no

racionalização exemplicada senso de revolta surrealista,

voltando-se contra a noção do moderno como racional, ordenado e eciente.[Fer 1999, p. 188] Do ponto de vista da razão e do capital, a

ânerie

é uma vagabundagem inútil.

Mas os surrealistas se

insurgiam exatamente contra a razão e o capital; de resto, uma visão ordenadora e utilitarista do mundo impede a emergência do inconsciente. surrealista,

3.1.2

convulsionando

E a colaboração deste é o que garante o valor estético da obra

a beleza.

Estranhamento e beleza

Os surrealistas alargaram a passagem da imaginação para o mundo através da arte, em busca de uma estratégia de união (melhor seria dizer

reconciliação ), na obra, entre sujeito e objeto.

Eu creio que, de futuro,

será possível reduzir esses dois estados aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de

sobre-realidade .[Breton

2001, p. 28] Quer se debruce sobre o sonho

ou o real, o surrealista busca no objeto o maravilhoso  uma qualidade que será descrita por André Breton como

beleza convulsiva.

Embora o termo já apareça em

Nadja, é apenas em 1937, em L'Amour Fou, que André Breton aprofundará

o signicado da beleza convulsiva. Algumas de suas características, porém, já são bastante evidentes no nal da década de 1920, e podem nos ajudar a esclarecer a evolução do conceito. Rosalind Krauss, em seu estudo sobre a fotograa surrealista, dene o surreal como a natureza em convulsão numa forma de escrita.[Krauss 1981, p.

15] Manifesta-se sob três formas básicas:

a

mímese,

exemplicada nas asas que imitam olhos das mariposas e nas fotograas de Blossfeldt, que retratam a arquitetura clássica no reino vegetal; a

expiração do movimento,

a experiência de algo que deveria estar

em movimento mas foi parado, sugerida por Breton pela fotograa de uma locomotiva abandonada na oresta; e o

objet trouvé,

o objeto ou fragmento verbal achado, pelo qual um emissário do mundo exterior

traz uma mensagem informando ao receptor seu próprio desejo.[Krauss 1981, p. 14] Todas essas formas estão presentes na fotograa surrealista, à exceção da

expiração do movimento.12

A

mímese é o próprio fundamento da fotograa, embora o caráter indicial do meio possa levantar dúvidas sobre isso; de qualquer maneira, diversas intervenções no suporte remetem visualmente às estratégias miméticas descobertas na natureza, em particular o

doubling,

uma duplicação do original sobreposta a este último em

defasagem (Fig. 3.2).[Krauss 1981, p. 19] O

objet trouvé

é um

signo

do desejo do artista, uma resposta a uma necessidade inconsciente imedia-

tamente reconhecida como tal. Está diretamente ligado à

ânerie,

à vagabundagem disponível, ao estado

de atenção utuante característico do surrealismo e da psicanálise. Não é, porém, um objeto qualquer; na fotograa, vincula-se à noção de

unheimlich,

estranhamento.

O contato direto com a realidade  o uso de objetos concretos  engendra um fazer artístico que extrai sua potência do

estranhamento

do mundo  um

dépaysement,

para usar o termo de Breton:

Para ajudar o desregramento sistemático dos sentidos, desregramento este preconizado por Rimbaud e constantemente reconduzido à ordem do dia pelo Surrealismo, julgo que não se deve hesitar  e tal iniciativa poderia acarretar essa consequência  em introduzir um elemento de estranheza na sensação [dépayser

12

la sensation ].[Breton

2001, p. 315]

A introdução desta variável na fotograa surrealista, como veremos mais à frente, talvez seja a maior contribuição de Cartier-Bresson ao movimento - o que não signica que ela tenha sido adotada por outros fotógrafos surrealistas.

Figura 6  Exemplo de

O

estranho

doubling.

S/autor, s/data.

La Révolution Surréaliste,

que caracteriza o Surreal compartilha o sentido dado por Freud a

é uma negação de

heimlich

n. 1.

unheimlich.

O termo alemão

(doméstico, familiar), carregando em si a ressonância de seu oposto.

Unheimlich

é o não-familiar no qual está contido o conhecido: é uma estranheza inquietante,[Abolgassemi 2008] um reconhecimento acompanhado da sensação de algo proibido ou fora do lugar.

3.2

O estranho fotográco

Krauss identica pelo menos nove formas e técnicas da fotograa surrealista, considerando o uso de múltiplas exposições, manipulações, solarização e até a queima do negativo (brúlage ); aquela que mais se aproxima das premissas fundamentais do movimento, contudo, são justamente as fotos simples e não-manipuladas que ilustram as publicações surrealistas. Nestas, o

estranhamento

é produzido principalmente pelo enquadramento,

que caracteriza uma ruptura no tecido contínuo da realidade; ela o identica na imagem de um chapéu, de Man Ray, e nas

Sculptures Involuntaires,

fotografadas por Brassaï, a pedido de Salvador Dalí:

O quadro anuncia que, entre a parte de realidade que foi cortada fora e esta outra parte existe uma diferença, e que este segmento que o quadro enquadra é um exemplo da natureza-comorepresentação, da natureza-como-signo. Ao mesmo tempo em que sinaliza aquela experiência da realidade, o quadro da câmera também a controla e congura. Isto é obtido pelo ponto de vista, como no exemplo de Man Ray, ou por distância focal, como nos extremos

close-ups

de Dali. Nas

duas instâncias, o que a câmera enquadra, e portanto torna visível, é a escrita automática do mundo: uma constante e ininterrupta produção de signos.[Krauss 1981, p. 17] Man Ray (Fig. 3.3) lança mão de um

contraplongée

para esconder a face do homem sob seu chapéu, dese-

nhando a silhueta deste sobre um fundo claro e homogêneo. Visto de cima, a copa assume a forma de uma vulva, que ocupa o centro do quadro; Brassaï fotografa diversos objetos - um bilhete de ônibus rasgado e amassado, um pedaço de rocambole, o nal de um sabonete - utilizando uma única fonte de luz e criando um espaço entre o objeto e o fundo, ressaltando ainda mais as formas e trazendo um aspecto mais dramático ao

Figura 7  Brassaï,

Sculptures Involontaires,

1933

Figura 8  Man Ray,

Sem título, 1933

conjunto. São, verdadeiramente, esculturas involuntárias: sua plasticidade, ainda que valorizada pelo recurso

Fig.

de iluminação, é natural (

3.4).

São expressões exemplares do

objet trouvé,

e operam como a escrita de

O Camponês de Paris :

trabalham

o plano da representação em seus limites, desconstruindo a sintaxe corrente para provocar os sentidos. O

maravilhoso,

ou o

signicados.

O quadro - o recorte -, ao contrário do que Krauss sugere, não me parece preponderante: é

surreal,

ou a

beleza convulsiva

destas imagens está em sua capacidade poética de produzir

principalmente o suporte da mensagem. Podemos cortá-las sem prejuízo da mensagem, e sem criar maiores problemas estéticos. Uma diferença entre os dois, porém, é fundamental: enquanto Brassaï procura se ater às possibilidades plásticas do objeto, o signicado resultante da fotograa de Man Ray escolhe seu ângulo tendo em vista a ênfase no signcado, adequando-se ao discurso psicanalítico e valendo-se dele para legitimar a surrealidade da imagem. Como nas pinturas de Dalí, o artista parece dispor de um sistema de signos preconcebido para representar o inconsciente. O

tempo

de construção da obra abre uma brecha por onde a previsibilidade pode

passar. Lembremo-nos da experiência de André Breton com a escrita automática: Parecia-me, e ainda me parece (...), que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ela não desaa a língua, nem mesmo a pena que se move rápido.[Breton 2001, p. 37] A preocupação de Breton é condizente com a fúria ordenadora da consciência. Para escapar de sua vigilância e da ação repressora do superego, é preciso agir nas sombras e com rapidez: essa também era a estratégia usada pelos sabotadores anarquistas. Germaine Berton foi capturada e subjugada, mas não sem cumprir seu propósito: o ato foi consumado, antes que a autoridade pudesse intervir; o impulso encontrou seu caminho para o mundo. Em

L'Instant Décisif,

Henri Cartier-Bresson sinaliza justamente o caráter

instantâneo

da fotograa, sua

marca de distinção: O escritor tem tempo de reetir antes que a palavra se forme, antes de deitá-la ao papel; ele pode ligar mais elementos. Há um período em que o cérebro esquece, um esvaziamento. Para nós, aquilo que desaparece, desaparece para sempre; eis a nossa angústia, e também a originalidade de nosso ofício.[Cartier-Bresson 1997, p. 21]

Figura 9  Henri Cartier-Bresson,

Dieppe, 1926

Ao nal dos anos 1920, porém, poucas de suas fotos exploram essa característica essencial da fotograa.

13

Ao contrário de Man Ray, que fez algumas de suas mais famosas fotograas em estúdio, Cartier-Bresson que nesse ponto se aproxima tanto da

ânerie

surrealista quanto da pintura

en plein air

impressionista - faz

das ruas seu ateliê; neste primeiro momento, porém, é fortemente inuenciado pela ideia de

objet trouvé.

As

fotograas desse período retratam, então, em sua maioria, manequins e ex-votos: arremedos de humanidade. Algumas fotos dessa época, porém, já antecipam o estilo que o caracterizaria no futuro.

Em especial

Dieppe, 1926, e França, 1929 . Se Dieppe, 1926 joga com a ocultação das identidades sob o guarda-chuva, sugerindo uma estranha gura de cabeça redonda e quatro pés, a outra imagem (il. X) encerra todos os elementos que irão denir a obra madura do fotógrafo: do manejo perfeito das linhas - o eco entre o ângulo desenhado no cimento e aquele das pernas do personagem que dorme, a diagonal ascendente dinamizada pelo ângulo do braço esquerdo da mulher, o equilíbrio entre espaços cheios e vazios - até o objeto da foto, uma reexão sobre a pobreza que prescinde de qualquer discurso prévio: não uma tese marxista, mas a surpresa de um momento colhido em pleno voo. O encontro entre os dois personagens é a faísca que produz a foto, que não resulta, assim, de uma elaboração consciente. A síntese extrema alcançada em uma foto deste tipo só é possível quando o fotógrafo se encontra num estado muito especíco de atenção, com os sentidos em alerta para o momento em que o

necessidades

acaso

responde às

da composição. À época em que as fotos acima eram feitas, porém, o artista apenas intuía seu

método: seria preciso fazer uma viagem ao coração das trevas para que essa intuição desabrochasse.

13

Existem poucas fotos de Henri Cartier-Bresson desse período.

Boa parte de

seus negativos foi destruída no início da

Segunda Guerra, quando os tanques alemães já cruzavam a fronteira e se aproximavam de Sedan. Cartier-Bresson seleciona os que considera melhores e destrói os restantes no ogo; guardados dentro de uma caixa de biscoitos, esses negativos chegarão a seu pai, que os preservou no cofre de um banco. V. Pierre Assouline,

Cartier-Bresson, L'oeil du siècle, pp.

161-162.

Figura 10  Henri Cartier-Bresson,

França, 1929

4 Destilar o tempo

Nós tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos. Caetano Veloso, 1968

Em arte, a verdade e o real começam quando não se compreende mais nada do que se fez, do que se sabe, e que vos resta uma energia tanto mais forte quanto mais ela é contrariada. É preciso, então, se apresentar com a mais ingênua humildade, imaculado, puro, cândido, o cérebro parecendo vazio, num estado de espírito análogo ao do comungante que se aproxima da Santa Mesa. Deve-se, evidentemente, manter atrás de si todo o aprendizado adquirido, e tembém saber guardar o frescor do instinto. Henri Matisse, Jazz

A formação do artista é trabalho para uma vida, caminho raramente percorrido em linha reta. Sem o domínio da técnica, o resultado estará sempre aquém do possível; mas o mero conhecimento dos meios não é suciente, ou não produz nada além de virtuosismo impuro e retórica vã, como denunciava André Lhote. Cartier-Bresson apaixonou-se pela pintura ainda na infância.

Teve seus mestres - Lhote e Cottenet -

pelo tempo que julgou necessário: abandonou todas as escolas, sem paciência para métodos. Mas reteve a disciplina e a visada geométrica, internalizadas pela prática e potencializadas pelo talento. Sua formação não se concluiu nos ateliês e academias, mas nas experiências vividas. Na famosa entrevista de 1974, o fotógrafo comenta, sobre o período com André Lhote: "Saí de seu ateliê porque nào queria entrar naquele espírito sistemático. Queria me questionar, ser eu mesmo."[Guerrin 2008, p. 151] Em busca de si, vai para a Costa do Marm, retornando com uma fração das fotos que fez: uma invasão de fungos na câmera arruinou a maior parte das imagens. Mas as remanescentes mostram seu interesse pelo Outro, além da exploração da estética simples e poderosa, já reconhecida e assimilada de seus antecedentes pintores.

Figura 11  Henri Cartier-Bresson,

Costa do Marm, 1931.

Ao contrário destes últimos, porém, Cartier-Bresson não se detém diante da arte africana.

As fotos

que decidiu preservar trazem pessoas e objetos de uso cotidiano. Na disposição espacial deste universo - tão exótico para um jovem francês de família burguesa - o olhar de Bresson parece se ampliar, dominar horizontes

g.11).

maiores, pôr-se cada vez mais à vontade (ainda que sempre discreto) diante das pessoas (

Acometido por uma doença tropical, Cartier-Bresson tem certeza de que vai morrer. Escreve então uma carta para seu avô, pedindo que fosse enterrado num bosque, ao som de um quarteto de Debussy. A resposta, lacônica, é escrita pelo pai: "seu avô acha essa ideia muito cara. É melhor voltar de uma vez". Bresson volta, mas não para Paris. Vai morar em Marselha, onde compra sua primeira Leica. E é quando se prepara para cair na estrada como um famosa:

Atrás da Gare Saint-Lazare

(

beatnik avant la lettre,

que faz aquela que será sua mais foto mais

Fig.12), tida como símbolo de uma Europa que se lança no vazio.

Passa os anos seguintes na estrada: entre 1932 e 1933, atravessa de carro o continente europeu, junto com o escritor André Pieyre de Mandiargues e sua namorada, a pintora Leonor Fini; em 1934, vive um ano no México, onde organiza sua primeira exposição (na Cidade do México e depois em Nova York, para onde também vai), junto com Manuel Álvarez-Bravo.

Em 1937, vai para a Espanha lmar dois documentários

sobre a Guerra Civil; não traz fotos, assoberbado com a câmera de cinema.

Victoire de la Vie e L'Espagne Revivra, os lmes rodados na Espanha, marcam a aproximação do fotógrafo com a política. Bresson aprendera os fundamentos do documentário em Nova York com Paul Strand, então à frente da Nykino, uma cooperativa cinematográca de esquerda. Os lmes foram produzidos pela

Centrale

Figura 12  Henri Cartier-Bresson,

Atrás da Gare Saint-Lazare, 1932

Sanitaire Internationale e pelo Secours Populaire de France e des Colonies, nanciadas pelos socialistas.

Eram

documentários, mas também propaganda. Usavam-nos para angariar fundos para as forças republicanas. Na liderança do movimento surrealista, a reserva de André Breton contrastava com o ativismo de Louis Aragon. O último era membro do Partido Comunista Italiano desde 1927, trabalhou no jornal órgão de imprensa do PC francês, e na revista

Commune,

patrocinada pela Associação dos Escritores e

Artistas Revolucionários. Em 1937, consegue autorização do Partido para editar deveria concorrer com o

L'Humanité,

Ce Soir,

um vespertino que

Paris Soir.

Naquele ano, Henri Cartier-Bresson é contratado como repórter fotográco do

Ce Soir.

É o seu primeiro

e último emprego xo: Bresson cai prisioneiro dos nazistas em 1939.

4.1

O repórter independente

As viagens da juventude permitiram a Cartier-Bresson conhecer o mundo em primeira mão, sem pautas a cumprir ou ltros ideológicos a mediar suas relações. Na fotograa, Bresson encontrou sua ferramenta de pesquisa e análise, desenvolvendo um discurso absolutamente visual e aperfeiçoando sua própria narrativa fotográca. Ao fugir do campo de trabalho nazista, em 1942, Bresson tinha em mente abandonar a fotograa para dedicar-se exclusivamente à pintura.[Guerrin 2008, p. 179] Mas o trabalho documental de Walker Evans - a

quem havia conhecido em sua passagem por Nova York - pôs-se como um desao para ele.

1

Junto com o já lendário Robert Capa e David Seymour, além de George Rodger e William Vandivert, Cartier-Bresson funda, em 1947, a agência Magnum. A ideia era que a cooperativa - uma experiência até então inédita em fotojornalismo, visando a maior independência na escola do tema e da abordagem - cobrisse o mundo inteiro, cada fotógrafo sendo designado para um continente. Coube ao francês a Ásia. O pós-guerra acelerou os processos de independência das colônias orientais. Enfraquecidos, os Estados europeus não podiam mobilizar energias para conter o ímpeto de autonomia. Cartier-Bresson acompanhou as revoluções e independências da região: de maneira emblemática, foi o último fotógrafo a fazer uma imagem de Gandhi com vida, meia hora depois de deixá-lo.

2

Da Índia, Bresson seguiu para uma temporada de um ano na China: eram os últimos dias do Kuomintang, quando o exército de Mao já se aproximava de Pequim. O trabalho para a

à l'Autre,

Life

virou um livro,

D'une Chine

Fig.

retratando a vida cotidiana, no período de transição para o socialismo, em Pequim e Xangai (

13).

4.1.1

A forma-reportagem A reportagem é uma operação progressiva da cabeça, do olho e do coração para se exprimir um problema, xar um evento ou impressões. Um evento é de tal forma rico que rodamos em torno dele enquanto ele se desenrola. Procuramos uma solução. Alcançamo-la às vezes em alguns segundos, às vezes leva horas, ou dias; não existe uma solução padrão. (...) A realidade nos oferece uma tal abundância que devemos cortar o próprio uxo da vida (couper

sur le vif ),

simplicando

sempre; mas se cortamos sem parar, o que acontece? É preciso chegar, enquanto se trabalha, à consciência do que se está fazendo.[Cartier-Bresson 1997, p. 18]

O tempo da reportagem não é o tempo do noticiário, nem seus objetivos são os mesmos. A reportagem fotográca tradicional aborda os diversos aspectos de um determinado tema, enquanto a fotograa de noticiário precisa passar suas informações de forma clara e redundante, facilmente reconhecível. O alto custo da reportagem - é um trabalho que demanda tempo - fez com que os jornais e revistas fossem gradualmente a eliminando de suas páginas. Numa carta ao

Le Monde,

em 17 de outubro de 1974, os

fotógrafos Guy Le Querrec e Gilles Peress (agências Viva e Magnum, respecivamente) mencionavam o tema no contexto de uma crítica mais ampla à entrevista de Bresson, um mês antes: Para além das divergências, mais incômodo é o silêncio sobre as condições oferecidas na França à fotograa de reportagem. Porque, a menos que se seja um amador sortudo ou bem nascido, não há outra escolha senão entrar na competição incerta e perigosa da corrid[Pereira 2006, p. 47]a ao clichê-que-vende. Se recusamos a demanda do mercado porque ela gera uma visão estereotipada, acabamos em um impasse.[Guerrin 2008, p.159]

1

Resenha de

Photographing America, com fotos de Henri Cartier-Bresson e Walker Evans.

Revista

Share, 21.05.2009.

Dispo-

nível emhttp://sharemag.blogspot.com.br/2009/07/photographers-henri-cartier-bresson-and.html Último acesso em

2

04.09.2012. Cartier-Bresson conta ter mostrado algumas de suas fotos ao Mahatma, seu procedimento habitual de apresentação.

Ao

deparar-se com a imagem de um rico funeral em Paris, Gandhi lhe teria perguntado sobre o signicado daquela imagem. "É o funeral de um artista muito querido", disse Bresson. Com o dedo sobre a foto, Gandhi repetiu: "a morte, a morte, a morte..." e entregou o álbum de volta. A entrevista estava encerrada. V. Raphäel O'Byrne,

Court.

Henri Cartier-Bresson: L'Amour Tout

Beijing, dezembro de 1948. Nos últimos dias dos nacionalistas no poder, com a chegada dos comunistas, as ruas da cidade foram tomadas por especuladores comprando e vendendo dólares de prata.

Figura 13  Henri Cartier-Bresson,

O conito mercado

vs

realização pessoal não é uma invenção do pós-guerra, embora a homogeneização dos

bens de consumo e produtos culturais talvez tenham-no acirrado ao longo das últimas décadas. Mas o caso do jornalismo, cujo produto é (ou deveria ser) um serviço público, tem implicações éticas muito especícas. Objetividade e imparcialidade são conceitos muito relativos, os teóricos do jornalismo parecem concordar. É ponto pacíco que a seleção e edição de informações dene a forma como o fato será publicado, e que mesmo o discurso mais aparentemente neutro pode ser tendencioso. O desao de Henri Cartier-Bresson é chamar o fotógrafo às falas, exigindo-lhe total honestidade consigo e com os fatos. Por isso, a reportagem deve ser uma operação conjunta de mente, olho e coração: é preciso

ver,

mas também

saber o que se vê,

e

saber o que se sente.

O olho é o instrumento treinado para reconhecer, sob o tecido caótico do real, as disposições geométricas mais plásticas. A mente deve ser lúcida, atenta ao signicado do que o olho vê e à emoção despertada pelo encontro, mantendo o equilíbrio entre mundo externo e interno, sem interferir ativamente em nenhum dos dois.

A

mente registra, questiona, organiza. O coração atribui justo valor à cena, liga fotógrafo e tema: "é o que conta, no m: é o amor. Não somente

o amor físico, mas o amor de toda forma. O amor pela vida". O fotógrafo

passa

3

pelas ruas, como passa a mulher no soneto de Baudelaire. Se está atento e disponível,

seu ritmo íntimo em harmonia com o uxo das coisas, poderá ser capaz de surpreender o instante que se oferece - como o furacão que se divisa nos olhos da passante, como a mulher se oferece ao desejo; se, por outro lado, ele procura condicionar a realidade às suas necessidades, acaba por falsicar o movimento espontâneo da vida. E se o repórter fotográco não se ocupa da vida, a quem serve seu trabalho?

4.2

O mundo como espetáculo e representação

Peress e le Querrec assumem a inevitabilidade do

cliché-qui-se-vend

como uma consequência das condições

4 Seis anos antes,

do mercado, sobre as quais Cartier-Bresson não parecia disposto a exercer sua inuência. Guy Debord escreveria, no clássico

A Sociedade do Espetáculo :

A vitória da burguesia é a vitória do tempo

profundamente histórico,

porque é o

tempo da

produção econômica [grifo nosso] que transforma a sociedade,de modo permanente e absoluto. (...)

A história que até então aparecera como o movimento apenas dos indivíduos da classe

dominante, escrita portanto como história factual, é agora compreendida como

movimento geral,

e nesse movimento severo os indivíduos são sacricados.[Debord 1997, p. 40] O tempo roubado à reportagem é assimilado no espetáculo, essa "relação social entre pessoas, mediada por imagens": é o tempo que uma revista, um jornal ou uma agência aceitam remunerar o fotógrafo pelo seu trabalho. Decerto não muito: tempo é dinheiro. É por isso que se recorre a clichês. Um clichê é uma foto arranjada previamente para que diga o que se quer que ela diga; como o espetáculo, "é uma visão de mundo que se objetivou",[Debord 1997, p. 14] o resultado de um acordo tácito entre fotógrafo, mídia e público, de que já se conhece o sentido e o nal. Da mesma maneira que a imagem-clichê paralisa seu próprio signicado, seu caráter unívoco desembocando na redundância - e, com o passar do tempo, na saturação, quando a repetição esvazia a imagem de todo seu sentido - assim também o fotógrafo se imobiliza, alimentando um círculo vicioso onde quanto mais produz do mesmo, mais se vê obrigado a fazer o mesmo. Do ponto de vista coletivo, essa imobilidade é garantia de estabilidade, ajudando na "organização social da paralisia da história e da memória", seguindo com Debord.[Debord 1997, p. individual, esse aprisionamento é às vezes expurgado na fotograa mesma.

108] Do ponto de vista

A crítica de Bresson, entre o

desprezo e a grosseria, apontava para isso: Todas essas imagens posadas, encenadas, sem o menor senso de forma, de dialética, essas heranças da moda e da publicidade, as fotograas de [Richard] Avedon, de [Jean-Pierre] Sudre, de David Hamilton, de Diane Arbus, de Duane Michals, os trabalhos recentes de Bruce Davidson, o que dizer disso? Seus autores me interessam de um ponto de vista sociológico e político, porque eles representam o m e a desordem de um certo mundo à americana, um mundo que caminha para o nada. Infelizmente, eles não revolucionam nada, eles estão integrados a esta sociedade em liquidação. Eles se assemelham a esse mundo sem sexo, sem sensualidade, sem amor. Escatológicos e coprófagos, eles fotografam suas angústias, suas neuroses.

3 4

Raphäel O'Byrne,

Henri Cartier-Bresson: L'Amour Tout Court.

A crítica também alude discretamente à herança familiar de Cartier-Bresson, que se dene, em "amador, mas não mais um diletante"(p. 18): um

amateur fortuné ou bien né.

L'Instant Décisif, como um

E arremata: Ser a si mesmo, para mim, é ser fora de si.

Como descreve Herrigel: nós nos acertamos a

mirar o alvo - o mundo exterior. Eles só veem as próprias vísceras.[Guerrin 2008, p. 152] O mundo exterior, parece, era cada vez menos verdadeiro. Esmagando o

eu,

o espetáculo apaga os limites entre o indivíduo e o mundo; também elimina a distinção

entre verdadeiro e falso, recalcando a verdade vivida e pondo em seu lugar a "presença

real

da falsidade

garantida pela organização da aparência".[Debord 1997, p. 140] Os

freaks

de Diane Arbus, a ironia gay de Duane Michals, ou os tipos caricatos de Bruce Davidson

propõem a denúncia do ridículo na sociedade, e, em certa medida, a fazem de maneira absolutamente

recuperável,

desorganização das aparências.

Mas o

dentro das regras de produção dessa mesma sociedade: com o

tempo, o choque é absorvido no imaginário, e passa a integrar o conjunto de representações que dene os grupos. Pondo de outra maneira, são trabalhos no limite da radicalidade admitida dentro do próprio dispositivo fotográco. O estranhamento que produzem não é atmosférico, mas claro e denido. Guy Debord enxerga, na arte moderna independente, uma linguagem comum que vem preencher o vazio de comunicação efetiva de uma comunidade alienada de sua própria história - incapaz, portanto, de compartilhar experiências em comum:

essa linguagem é um meio sem m, autorreferente

e justicado pela própria

existência. Mas será possível uma fotograa à margem do espetáculo, como uma pedra atirada no espelho colorido do real separado?

4.2.1

Arte sem arte

Tudo depende do estatuto que se atribui à fotograa.

Se ela é um m em si mesmo - como na carta

de Le Querrec e Peress, os quais parecem defender que, se é preciso render-se aos clichês para continuar fotografando, isso não passa de uma vicissitude do ofício - então toda chance de transformá-la está descartada desde o princípio. Além de ter seu trabalho condicionado pelo mercado, o próprio fotógrafo se coloca como prisioneiro de sua práxis. Alienado de si, o homem ergue seu simulacro na forma de uma prossão. Se, por outro lado, a fotograa é apenas um meio, uma linguagem com sintaxe e gramática próprias, então - como reprodução técnica do real - ela é capaz de uma

iluminação profana

do mundo, uma manifestação

espontânea dessa linguagem no próprio mundo, "de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos sentido", como diz Benjamin sobre o surrealismo.[Benjamin 1996, p. 22] Tal iluminação profana é o reconhecimento, sob a superfície do real, daquilo que é profundamente histórico (e, portanto, sempre atual). Ainda de acordo com Benjamin, os surrealistas a procuravam na embriaguez da linguagem, da qual a escrita automática de Breton é exemplo em um nível, mas que se realiza completamente em

O Camponês de Paris

e em

Nadja :

é a embriaguez do

âneur

que, urbano e moderno, está à margem da

cidade moderna, e por isso se encontra inteiramente disponível para experimentá-la. Não há sentido prévio que guie seus passos. Essa vagabundagem errante, como já vimos no capítulo dois, é uma insurreição contra o planejamento organizado e eciente do tempo; de maravilhas.

por ela o inconsciente pode rasgar seu caminho até o mundo, e fecundá-lo

"Ser a si mesmo é estar fora de si", armou Cartier-Bresson: "e chegamos a nós mesmos

visando ao alvo, ao mundo exterior". Quem fala do alvo é Eugen Herrigel, autor de

A Arte Cavalheiresca do

Arqueiro Zen,

um livro que "parece estar na base de nosso ofício de fotógrafo", diz Bresson.[Guerrin 2008, p.

154] Nele, Herrigel explica o propósito do tiro com arco na sociedade japonesa: Arco e echa são, por assim dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo que também poderia ocorrer sem eles; pois são apenas auxiliares para o arqueiro dar o salto último e decisivo.[Herrigel 2009, p. 19] O salto último e decisivo é o

satori, "o súbito clarão longínquo que vemos através da neblina espessa,"[Herrigel

2009,

p. 23] que Cartier-Bresson - podemos admitir - procura alcançar não no tiro com arco, mas pela fotograa: o fotojornalismo também lhe foi um pretexto, aliás uma sugestão do amigo Capa. Essa fotograa é uma verdadeira

arte sem arte, utilizando meios e códigos artísticos sem ter a arte por m.

É a realização, em certa medida, do projeto de vanguarda situacionista defendido por Debord: "a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma

superação da arte ".[Debord

1997, p. 125]

E se não aponta para a arte, para onde apontará?

4.2.2

Tempo de agoras

"A Origem é o Alvo": a frase de Karl Kraus é epígrafe da Tese 14 do ensaio

Sobre o Conceito de História,

de Walter Benjamin. Sob ela, arma o lósofo: A história é objeto de uma constelação cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de 'agoras', que ele fez explodir do

continuum

da história. A Revolução Francesa se via como uma

Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja nas folhagens do passado. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto da Revolução, como o concebeu Marx.[Benjamin 1996, pp. 229-230] A ideia de história como um tempo saturado de "agoras" põe em xeque a narrativa linear e uniformizante da história ocial e da própria concepção de evolução: não é por uma progressão natural que a sociedade realizará plenamente seus potenciais. Essa revolução só acontecerá quando, da ligação entre dois fenômenos históricos - como é o caso da República Romana e da Revolução Francesa - resultar um novo sentido e o desenho de um novo objeto histórico, "até aí insuspeitado, mais verdadeiro e mais consistente que a cronologia linear",[Gagnebin 1999, p. 15] como assinala Jeanne-Marie Gagnebin: mais verdadeiro e consistente porque concentra o tempo em um único momento, multiplicando seu potencial revolucionário. Ao conectar-se com o mundo através dos olhos, da mente e do coração, o fotógrafo se sensibiliza a essas variações na densidade do tempo; destilando em si esse tempo cronológico, pode reconhecer, no mundo, a constelação signicativa dos elementos visuais que compõem a fotograa. O salto do fotógrafo se dá, então, no espaço, e não no tempo. Se for bem sucedido, a imagem capturada pela câmera será um índice de vida, guardando uma fagulha do fenômeno que lhe deu origem. Se o fotojornalismo pretende ser o primeiro esboço da história, aí está o seu alvo.

4.3

Epílogo: o tempo do homem

Desde que escapou do campo de prisioneiros durante a guerra, Cartier-Bresson considerava-se um fugitivo.

Nationalité: évadé é o título do capítulo que trata do tema na biograa escrita por Pierre Assouline.[Assoulin

1999]

Repórter sem ser repórter, pintor sem ser pintor, surrealista sem ser surrealista:

podemos enleirar

mais alguns termos na lista de paradoxos, fugas recorrentes dos limites impostos por títulos e classicações. Recusando a identicação e o prestígio de um papel - abandona publicamente a fotograa no momento em que vira seu ídolo maior - Henri Cartier-Bresson reservou para si a mobilidade. À pergunta

uma arte?,

a fotograa é

na entrevista citada acima, respondeu:

Todo mundo é um artista em potencial:

todo ser humano é sensível, o difícil é conseguir

exprimir essa sensibilidade: e é trabalhando que isso acontece. (...) A pintura é uma arte? O que é um artista, enm?[Guerrin 2008, pp. 153-154] A alienação do homem só pode ser superada no próprio homem. Esse potencial encontra seu caminho na experiência diária, no fato corriqueiro, no acontecimento banal: o homem vive, trabalha e ama no dia a dia; quando sua consciência é sequestrada, seus atos e pensamentos ditados por uma ordem externa, o dia a dia é o tempo colonizado do trabalho e do lazer, de uma relação mediada com as pessoas e as coisas. A arte e a fotograa, neste sentido, nos parece a arte

moderna

por excelência - tem meios de reconectar o homem

com sua experiência, de iluminar o cotidiano com fagulhas de vida, resgatando-o do uxo ininterrupto de imagens espetaculares. Nisso reside seu potencial revolucionário; nisso e no fato de seu estudo ser resultado da observação da natureza, pedagogia acessível a qualquer ser humano que a ela se dedique. Através da pintura, Cartier-Bresson pôde se situar em relação à tradição pictórica, entrando em contato com a busca, empreendida por muitos outros antes dele, das leis que regem a harmonia da forma. Com os surrealistas, forjou a consciência de um eu que se reencontra pela via maravilhosa do Acaso. Como fotógrafo, deixou seu testemunho pessoal do longo século XX. A universalidade de sua obra não vem de ser artista ou fotógrafo, mas um homem - e, às vezes, uma criança correndo para o mar.

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