A imagem paterna em \"A Transformação\" e \"Carta ao pai\", de Franz Kafka

May 24, 2017 | Autor: V. Fino | Categoria: Literatura, Formalism, Teoria da literatura, Comparatismo, Formalismo Russo
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A imagem paterna em “A Transformação” e “Carta ao Pai”, de Franz Kafka

Vicente Vivaldo Fino Évora Janeiro de 2017

Índice

Nota introdutória ........................................................................................................................... 3

1 - Contextualização histórico-cultural: o autor e a época ........................................................... 4

2 – A criação literária: uma vida, uma obra .................................................................................. 7

3 – A figura paterna em Carta ao Pai e A Transformação .......................................................... 12 3.1 – A Carta ao Pai ................................................................................................................. 12 3.2 – A Transformação ............................................................................................................ 15

4 – Considerações finais .............................................................................................................. 19

Bibliografia .................................................................................................................................. 21

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Nota introdutória “A morte do Pai tirará à literatura muitos dos seus prazeres. Se já não existe Pai, para que serve narrar histórias? Não se reduzirá toda a narrativa ao Édipo? Narrar não será sempre procurar uma origem, dizer as disputas com a lei, entrar na dialéctica do enternecimento e do ódio?”1

A figura que o pai representa na literatura é um dos temas mais antigos que os estudos literários nos têm dado. Desde logo suscitados por essa obra maior da literatura clássica, O Rei Édipo, que ao longo dos anos tem alimentado uma área de investigação muito próxima da psicologia, mas também pelos inúmeros casos de escritores cuja experiência vivenciada se acerca à obra literária, sobre esta lançando alguma suspeição ou, em certos casos, transformando-a irremediavelmente2. Em Kafka este é um problema constante, quer na sua criação ficcional, quer nos textos autobiográficos, sendo disso exemplo a Carta ao Pai, um dos textos que nos propomos interpretar na tentativa de estabelecer um possível pararelismo com essa espécie de texto compilatório da obra do autor checo, A Transformação. Na pele de Gregor Samsa, personagem transformada em insecto, Kafka ensaia uma aproximação à sua experiência familiar e ao seu papel como membro de uma família na turbulência histórico-cultural na passagem do século XIX para o XX. Assim, tentaremos perceber as afinidades textuais, valendo-nos da problemática teórica do ensaio de Chklovski, A arte como processo, para definirmos aquela que entendemos ser uma forte característica da obra kafkiana – a subversão da teoria defendida por Potebnia, e que Chklovski tenta desconstruir -, não deixando de relevar, dos vários e importantes estudos sobre a criação literária de Kafka, o ensaio que a este dedicou Theodor Adorno, sendo aquele que, de entre os existentes (Walter Benjamin, Deleuze e Guattari, Wagenbach…), nos parece ser o que mais se relaciona com a nossa

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Barthes, Roland, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1997 (p. 91) Sendo, talvez, o caso mais conhecido o que aqui abordaremos – o da obra de Franz Kafka -, outros casos há em que a experiência de um relacionamento paterno (mau ou bom) ultrapassa o âmbito autobiográfico e invande a obra de ficção literária. Alguns exemplos, A Invenção da Solidão, de Paul Auster, O Homem Lento, de J. M. Coetzee e mais recentemente o caso de Karl Ove Knausgard em A Morte do Pai, 1º vol. dos 6 que compõem a série “A Minha Luta”. 2

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perspectiva de análise textual, e que se centrará, sobretudo, nessa relação entre o pai da Carta e o pai da Transformação.

1 - Contextualização histórico-cultural: o autor e a época

Franz Kafka (1883-1924) nasceu em Praga num período turbulento no que diz respeito à vida política, numa Europa bastante fragmentada e onde os aspectos culturais eram absolutamente eclipsados pela necessidade diária de lutar contra a decadência de uma época fortemente industrializada. Inserido no seio de uma família judia pequenoburguesa, que vivia do comércio no império austro-húngaro, a infância de Kafka foi suportada, sobretudo, pelo rigor profissional do seu pai, Hermann Kafka (1852-1931), para quem o profissionalismo era um verdadeiro cartão de identificação, característica vincadamente judia e com a qual o pequeno Franz sempre revelara alguma discordância3. No entanto, o papel que o desempenho de uma profissão tem na obra de Kafka é uma evidência da marca que a premissa paterna inculcou no espírito do autor checo. Sofrido também por ter vindo antes das suas três irmãs, e talvez até pela morte prematura daquele que seria o seu irmão mais próximo, Georg, nascido tinha Franz dois anos (1885) mas cuja morte fulminante o levou com apenas 15 meses, marcando profundamente a vida da (ainda) pequena família e acabando por ter um papel indelével na amargura que marcou a vivência do escritor com o patriarca. Só quatro anos mais tarde nasceria Gabrielle (1889-1941), a sua primeira irmã, à qual se seguiram Valerie (1890-1942) e, por último, Ottilie (1892-1943), aquela com quem, segundo os seus biógrafos, Franz mais privou. Os seus primeiros escritos datam de 1907, à época já como funcionário de uma seguradora, trabalho que abominava, 3

A dada altura em Carta ao Pai, Kafka diz o seguinte: “ E nem na religião judaica encontrei a salvação. Poderia pensar-se que esse seria um porto de abrigo, mais ainda, poderia imaginar-se que nós dois nos encontraríamos um ao outro no judaísmo, ou que ele fosse o ponto de partida para a nossa harmonia. Mas que judaísmo foi esse que recebi de ti? (…) Mais tarde, quando cresci, não entendia como podias tu, com o quase nada de judaísmo que era o da tua religiosidade, acusar-me de não me esforçar por levar à prática um nada semelhante ao teu.” (p. 53-54)

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colocando na escrita a sua salvação e procurando esse “desaparecimento” que sempre buscou; um secreto desejo de se transformar na própria escrita. Depois de conhecer aquele que viria a ser o responsável pela revelação da sua obra, Max Brod, Franz acabaria por se apaixonar por Felice Bauer, em 1912, relação que pouco mais deu do que um vasto epistolário - a juntar a variadíssimos outros – e a força necessária para que iniciasse alguns dos seus primeiros textos, como é o caso de O Fogueiro, O Julgamento e, um pouco mais tarde, A Transformação.4 Em 1914 abandona a casa dos pais e começa uma luta interior que durará até final dos seus dias. A tuberculose, que por esta altura lhe consomia grande parte das energias, obrigava-o a refugiar-se em casa mantendo contacto apenas com um restrito grupo de amigos através das inúmeras cartas que deixou no seu espólio5. Entre estas estão as que trocou com Milena, sua tradutora, e onde Kafka conseguia tocar dois extremos: ora escrevia passagens de uma lucidez avassaladora, ora essa lucidez resvalava para o sentimentalismo fácil, raiando o infantil. Já perto do final da sua vida foge com Dora, uma amiga igulamente judia, para Berlim, tendo Max Brod viajado até à cidade alemã – junto com um tio de Kafka – com o intuito de o trazerem de regresso à sua cidade natal onde mais facilmente – e com mais apoio – poderia curar a tuberculose. Franz viria a morrer em Praga, pouco depois desta aventura, no dia 3 de Junho de 1924.

É de particular relevância o facto de a criação literária de Kafka ter atravessado uma guerra com a importância da 1ª guerra mundial (1914-1918), cujo resultado imediato se cifra em 9 milhões de mortos e uma Europa absolutamente devastada. No final, para além da destruição humana, desapareceram quatro dos maiores impérios europeus, a saber: o alemão, o otomano, o russo e o austro-húngaro, no seio do qual a família Kafka se havia formado. Mas se nenhum dos familiares mais próximos de Kafka teve participação directa no conflito - incluindo o próprio escritor -, a relevância que esta 4

Utilizaremos o título A transformação pelo simples facto de ser esse o que intitula a obra por nós trabalhada (Kafka, Franz, Os Filhos – três histórias: A Sentença, O Fogueiro, A Transformação, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007), ainda que concordemos com a assertiva justificação que Álvaro Gonçalves apresenta na introdução à obra, sobre o porquê de ter optado por “transformação” e não “metamorfose”, como na maioria das edições traduzidas para português. Atente-se, igualmente, no facto nada gratuito de nesta mesma edição estarem compilados os três contos sobre os quais Kafka manifestara vontade de ver juntos, precisamente pela temática que os envolve. 5 No conjunto epistolário que Kafka deixou encontram-se em maior número as cartas que trocou com Max Brod, com Dora e, sobretudo, com Milena Jesenská, tradutora para checo das suas obras, originalmente escritas em alemão.

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destruição teve nos artistas foi de tal ordem que houve quem, de entre os seguidores dos movimentos futuristas que começavam a impor-se nos meios culturais europeus, relevasse a necessidade da guerra para a também necessária “limpeza” da sociedade. Toda a arte é marcada por conflitos deste género, quer seja a arte gráfica, quer seja a literatura; e se há mesmo quem a tome (à guerra) como tema da sua criação, mesmo os que o não fazem não escapam à desumanização de um evento de tal magnitude, evento esse que levou George Steiner a colocar em causa a possibilidade de se fazer literatura depois daquela experiência6. No caso de Franz Kafka a questão da guerra encontra-se com maior frequência nos seus diários, até porque a maioria dos seus escritos datam de períodos anteriores ou contemporâneos ao conflito. No entanto, a sociedade vivia já em vésperas da catástrofe, como numa morte anunciada, e desse agrilhoamento nos dá conta o autor checo, embora não o relacionando directamente com a guerra mas antes com a desordem psicológica que a rotina das regras impunha ao ser humano. Para além da rotina que a própria sociedade imprimia como um vínculo necessário para da mesma se fazer parte, a cultura judaica valorizava essa prática como uma espécie de defesa moral, uma marca de elevação cultural que Kafka tão bem conhecia devido, sobretudo, ao exemplo que recebia do seu pai. Ou seja, o escritor estava inserido numa cultura que, pelos motivos que acabámos de apresentar, legitimava o crescente capitalismo da sociedade europeia, obnubilado pela ideia de “saudável” progresso, o mesmo que acentuava o egoísmo e o individualismo: “A actualidade da obra de Kafka deve-se precisamente ao facto de ter conseguido sintonizar-se com uma experiência colectiva e universal e de a ter apresentado de uma forma artística através de um processo de extrema subjectivação e da fidelidade a um individualismo exacerbado até ao isolamento.”7 É, assim, nessa “experiência colectiva e universal” marcadamente decadente que Kafka cresce e amadurece enquanto autor, sempre com a sombra do pai a recordar-lhe o desgosto por uma carreira contrária à sua vontade, uma arte que o desobrigava dos cumprimentos diários já de si tornados complexos devido ao alheamento de tudo o que 6

No ensaio O Silêncio e o Poeta (in “Linguagem e Silêncio”, Lisboa, Gradiva, 2014), Steiner coloca a seguinte questão: “ Terá a nossa civilização perdido, por força da inumanidade que instaurou e justificou – pois somos cúmplices do que nos deixa indiferentes – o direito a esse luxo indispensável a que chamamos literatura?” (p. 94). Em todo o ensaio o autor discorre sobre essa possibilidade, tentando compreendê-la à luz das obras de escritores como Tchekov, Adamov, Beckett, Elisabeth Borcher e do próprio Kafka, ao qual dedica grande parte deste texto. 7 IÁÑEZ, E. O Século XX, a Nova Literatura: a literatura contemporânea até 1945, Lisboa, Planeta editora, 1993 (p. 294)

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não dissesse directamente respeito à literatura. De entre os inúmeros e conhecidos casos de escritores cujos aspectos autobiográficos se mesclam com a obra literária, é forçoso considerar Franz Kafka como um dos que mais evidencia essa relação inseparável e, no seu caso, indissociável.

2 – A criação literária: uma vida, uma obra “O artista não é obrigado a entender a própria obra, e há razões suficientes para se duvidar que Kafka tenha entendido a sua.”8

Tal como acabámos de referir no final do ponto anterior, a vida de Kafka confunde-se facilmente com a obra, não sendo fácil proceder a uma análise geral da mesma sem que se caia na “armadilha” fácil de lhe “ler” a vida através daquela. Tentando escapar ao facilitismo de o fazer, não podemos, ainda assim, ignorar os inúmeros apontamentos biográficos que grassam um pouco por toda a sua obra. Até 1912 a produção literária de Kafka resume-se a uns pequenos textos, ainda sem grandes pretensões e dos quais destacamos, sem dúvida, Descrição de Uma Luta, um texto inacabado, uma espécie de fragmento de alguma coisa que talvez nem o autor soubesse o que seria, uma vez que na correspondência trocada com Max Brod dá a entender precisamente isso. Este é um ano bastante importante na produção do autor checo, não só porque termina um texto que a crítica já considera como sendo canónico no conjunto da sua obra, como é o caso do conto A Sentença - febrilmente escrito durante a madrugada do dia 23 de Setembro -, mas sobretudo porque é neste ano que Kafka inicia uma série de textos que viriam a ser dos melhores que da sua “pena” saíram; falamos de O Desaparecido9, O Fogueiro, Observação e A Transformação. Em relação ao último título, Kafka, em carta enviada a Felice Bauer, datada de 23 de Novembro, refere-se-lhe como sendo uma história “um pouco assustadora” e que a iria

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ADORNO, Theodor W., Prismas, São Paulo, Ática, 2006 (p. 242) Em algumas traduções desta obra para português optou-se pelo título A América

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“assustar a valer”10, ainda que o texto apenas tenha sido publicado em 1915. No ano de 1913 dá conta ao seu editor, Kurt Wolff, de que desejaria ver impressos em um único volume os contos O Fogueiro, A Transformação e A Sentença com o título Os Filhos11. Começa a trabalhar naquele que será, provavelmente, o seu romance mais mediático, O Processo, em 1914 mas que, à imagem de muitos outros, não viria a ser publicado em vida. Em 1919 havia escrito mais dois contos, Um Médico Rural e Na Colónia Penal, juntamente com um volume de aforismos. É também durante este ano que dactilografa a maior parte das cerca de 45 páginas da Carta ao Pai, nunca tendo esta sido entregue ao destinatário. Em 1922 começa a escrita de O Castelo, romance inacabado, e o conto Um Artista da Fome. Com o agravar da doença Kafka pede a Max Brod que, uma vez morto, destrua todos os seus escritos, inclusive os que foram publicados em vida. Morre em 1924. Se definirmos o ano de 1912 como o ano gerador do início da produção literária de Kafka – atentando aos escritos que possuem já as características que marcarão a sua obra – constatamos que o período produtivo se restringe a cerca de dez anos da vida do autor; de 1912 a 1922 produz praticamente toda a sua obra, o que nos ajuda a perceber que não sobraria muito na sua vida para além da escrita. Kafka percebeu cedo, praticamente assim que começou, que a literatura se antepunha a qualquer outra vontade (ou necessidade) que lhe poderia surgir e que da sua personalidade não sobraria muito para além do que entregava à literatura. Perante esta postura “obrigada”, a sua obra não poderia escapar às particularidades biográficas que o marcaram e as fronteiras temáticas dos seus textos estão bem traçadas, “(…) tudo é o mais duro, definido e delimitado possível (…). Em nenhuma obra de Kafka a aura da ideia infinita desaparece no crepúsculo, em nenhuma obra se esclarece o horizonte. Cada frase é literal, e cada frase significa”. [ADORNO, 2006, p. 240] O autor checo parte das experiências do dia-a-dia para escrever sobre questões que particularizam as suas vivências, mormente no que diz respeito à sua relação familiar e de que forma os valores que lhe foram transmitidos pelo pai reforçam a perspicácia para identificar os pequenos “nada” da vida e que para ele assumem um papel primordial na sua relação com a mesma. Numa obra de um hermetismo omnipresente, o que Kafka cedo percebeu foi que esses pequenos “nada” que sobravam da realidade – e que, precisamente por serem desconsiderados ao ponto da anulação, 10 11

GONÇALVES, Álvaro, “Cronologia Biográfica” in Os Filhos, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007 (p. 149) GONÇALVES, Álvaro, “Introdução” in Os Filhos, Lisboa, Assírio e Alvim, 2007 (p. 10)

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eram remetidos para actos que não tinham outra explicação que não o pertencerem às circunstâncias de se fazer parte de um sistema global – continham as características adequadas à compreensão da sua experiência como alguém que também era parte desse sistema mas que, por esse mesmo motivo, podia produzir obras literárias a partir precisamente do que era recusado pela realidade. Tal como disse Walter Benjamin, “O mundo das chancelarias, das repartições, dos quartos escuros, gastos e húmidos é o mundo de Kafka.”12, ou seja, o mundano, o que era absorvido pelo foco da “real” realidade, das regras de conduta, da ordem estabelecida, do comportamento socialmente aceite. Assim, entendida a obra de Kafka sob os pressupostos que acabámos de apresentar, é, cremos, de grande relevância trazermos para a discussão a definição de “texto de prazer” e “texto de fruição” que Barthes apresentou na sua obra O Prazer do Texto, facilitando, como se verá, a leitura a partir da qual melhor possamos entender a obra kafkiana: “ Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que coloca em situação de perda, aquele que desconforta (talvez até chegar a um certo aborrecimento13), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas recordações, faz entrar em crise a sua relação com a linguagem.” [BARTHES, 1997, p. 49]

Encontrada uma definição na qual, com maior ou menor facilidade, poderemos inserir qualquer texto literário, será fácil (e igualmente cómodo, sob o ponto de vista de uma análise global da obra literária de Kafka), perceber que a teia literária do autor checo – no sentido em que os seus textos, embora autonomicamente se afastando uns dos outros, nunca deixam de perder a ligação entre eles – está naturalmente abrangida pela definição de texto de fruição, bastando-nos as palavras certeiras com que Barthes o 12

BENJAMIN, Walter, Kafka, Lisboa, Hiena, 1994 (p. 25) O mesmo aborrecimento de que nos fala Adorno: “Entre as falhas evidentes dos seus grandes romances, a mais sensível é a da monotonia. A apresentação do ambíguo, do incerto e do inacessível é repetida infinitamente, muitas vezes à custa da vivacidade que se busca a cada página.” [ADORNO, 2006, p. 250] 13

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diferencia do outro. É um facto que os textos de Kafka fazem vacilar as “bases psicológicas”, assim como também é verdade que através dos mesmos se atinge com alguma rapidez a sensação de exaustão, do desconforto de que Barthes nos fala, precisamente pela apresentação (quase) exclusiva do mundano, dos pequenos “nada” que formam a “vidinha”. Em pano de fundo, como uma sombra a pairar sobre a maioria dos textos do escritor, está a sua família, com o pai a ocupar um lugar de absoluto destaque. Assumindo o papel do desconhecido, Kafka utiliza imagens nas suas obras cuja função primária, segundo o nosso entendimento, é o de analisar o conhecido (a família) através do que não se conhece. Assim, no caso de A Transformação, o insecto em que Gregor Samsa se transforma será o desconhecido tentando compreender o que é já conhecido de Kafka (família) enquanto sujeito e autor. Pegando na teoria de Potebnia, que os formalistas russos tentaram desconstruir, e que defende que “as imagens não têm outra função senão permitir agrupar objectos e acções heterogéneas e explicar o desconhecido pelo conhecido”14, entendemos que esta só pode ser aplicada a partir da ideia de desconstrução de que a mesma é alvo na obra kafkiana, deixando de ser a imagem como reveladora do desconhecido, ou seja, daquilo que um determinado autor pretende dar a conhecer através das imagens que vai introduzindo no texto, para passar a ter o efeito contrário. Chklovski detecta nesta teoria a dificuldade de a não circunscrever ao texto poético, assinalando a escassa possibilidade de a aplicarmos a um texto narrativo; contudo, a defesa que fazemos desta teoria tem cabimento, parece-nos, nos textos curtos de Kafka e, sobretudo, no que aqui analisaremos com maior acuidade, A Transformação. Desta forma, o insecto seria o desconhecido e a família seria a imagem, o conhecido, uma vez que grande parte dos textos de Kafka são uma tentativa de explicar as várias personagens através do olhar que sobre elas deita a família; não é o insecto que “explica” a relação familiar de Kafka, antes é essa relação familiar que “explica” a existência do insecto. Sendo o texto poético compreensivelmente mais propenso à existência de imagens do que um texto narrativo, compreendemos a dificuldade de Chklovski em entender uma utilização mais abrangente da teoria potebniana, mas em Kafka, devido à inexistência de várias “imagens” actuando em simultâneo – fruto das características textuais que apresentámos no início deste ponto -, é uma leitura que se assume como

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CHKLOVSKI, V., A Arte como Processo in «Teoria da Literatura I», Lisboa, Edições 70, 1978 (p. 95)

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natural no universo kafkiano. Não nos interessa, no âmbito deste trabalho, analisarmos o processo de singularização a partir do qual Chklovski “desmonta” a teoria de Potebnia; entendemos que o tenha feito pelos mesmos motivos que apontámos a esta: também as teorias dos denominados formalistas têm o inconveniente de servir, em grande parte, e ao contrário da teoria potebniana das “imagens”, aos textos narrativos, sendo menor o poder de encaixe em textos poéticos. Contudo, entendemos também que este processo de singularização pode ser entendido como uma renovação/revigoração da teoria das imagens, uma vez que o ponto de vista analítico não antagoniza esta. Segundo o autor russo, “A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção.”15, ou seja, distante da teoria potebniana tão só pela diferença entre o conceito de “singularização” e o de “reconhecimento”, sendo que para chegar ao primeiro há que atingir o segundo: não é possível tornar um objecto singular sem que primeiramente se proceda ao seu reconhecimento. Admitamos que em A Transformação também existe um processo de singularização da personagem Gregor Samsa, sendo por nós aceite o facto de este se ter transformado em insecto precisamente como forma de o autor o singularizar, o tornar exclusivo: um processo de singularização mais radical seria difícil. No entanto, é somente neste texto que esse processo se assume como força mobilizadora do processo narrativo; entendemos que talvez possa não existir outro exemplo tão óbvio como este. Neste pressuposto, parece-nos mais abrangente uma leitura da obra do autor checo a partir da teoria das imagens, ainda que, repetimos, esta seja subvertida na sua finalidade, mas não no processo que a levou a ser encarada por Potebnia como uma teoria universal válida.

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CHKLOVSKI, 1978, p. 103

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3 – A figura paterna em Carta ao Pai e A Transformação “Nas estranhas famílias de Kafka, o pai vive do filho e pesa sobre ele como um grande parasita. Não consome apenas as forças do filho: suga-lhe também o seu direito à existência. O pai é ao mesmo tempo o juiz e o acusador.” [BENJAMIN, 1994, p. 27]

3.1 – A Carta ao Pai

No primeiro parágrafo da Carta ao Pai (1919) a palavra medo é citada quatro vezes. É, aliás, com essa ideia de medo que o texto arranca: “Meu querido pai, perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. 16” E a carta é uma busca pela origem desse medo, para o qual Kafka nunca chega a dar uma resposta genérica mas uma série de diferentes respostas que, unidas, se complementam como unificadoras de géneses dissemelhantes. Nada é culpa da mesma questão, há, sim, várias questões que embocam no sentimento amedrontado com que o autor se refere ao pai. Trata, contudo, de tentar perceber qual a sua culpa, o que poderá existir (ou ter existido) em si que possa ter contribuido para o medo. O pai, diz-nos Kafka, acusa-o de “frieza, estranheza, ingratidão”17, e este parece aceitar as acusações, tentando desvendar-lhe um sinal prático que as denuncie, mas o pai raramente é culpado nas palavras do filho, e grande parte da CP é um exercício de desconstrução da personalidade do seu pai, tentando que a mesma saia reforçada pelas circunstâncias de Franz ter de “(…) aguentar o primeiro impacto sozinho, sendo, obviamente, demasiado fraco para isso.” 18, ao contrário do seu progenitor, que era para o filho “(…) um autêntico Kafka, cheio de força e saúde, de apetite, com a tua voz sonora e o dom da palavra, seguro e superior 16

KAFKA, Franz, Carta ao Pai, Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2008 (p. 7). Doravante a obra será identificada no texto pela sigla CP. 17 CP, p. 8 18 Idem, p. 10

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com a tua perseverança, a tua presença de espírito (…) e, por vezes, também a tua natureza colérica.”19. Ou seja, Kafka assume logo de início que grande parte das características do seu pai são, igualmente, características de um verdadeiro Kafka, mesmo aquelas com as quais o autor mais dificuldade terá em lidar, percebendo-se que é a ele que faltam as características que, à imagem do pai, o tornem um homem digno de prosseguir a linhagem do nome Kafka. São essas caracacterísticas que passarão a guiar todas as acções do seu pai, o mesmo que não sabia tratar uma criança a não ser “(…) com força, barulho e cólera”20 ainda que, para Franz, talvez isso se devesse ao facto de pensar que só assim conseguiria criar um filho à sua imagem: um rapaz forte, audaz e plenamente consciente das agruras que a vida lhe guardava. Para o leitor, a imagem do pai alicerça-se numa autoridade demasiado vincada e talvez numa frustração que só uma análise da vida de Hermann Kafka ajudaria a elucidar. Mas Franz vai mais longe e adjectiva o pai de tirano: “Vejo em ti o enigma próprio de todos os tiranos, cuja razão se fundamenta na sua pessoa, e não no pensamento.”21 Um tirano sem noção do poder que tinha e cujas palavras magoavam toda a gente, sem a mínima sensibilidade para com o sofrimento e a vergonha alheia. Vincadas as características do seu pai, Franz destila ironia quando se refere à educação que este lhe deu, reconhecendo-lhe o mérito do acerto: “(…) todas as tuas medidas pedagógicas acertartam em cheio: eu não me desviei um centímetro do meu caminho. Se sou como sou (tirando, naturalmente, a minha natureza e os efeitos da vida sobre nós), isso é o resultado da tua educação e da minha obediência. E se esse resultado, apesar de tudo, te é tão penoso, se tu te negas, inconscientemente, a reconhê-lo como produto da tua educação, isso deve-se ao facto de a tua mão e o meu material serem tão estranhos um ao outro.”22

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CP, p. 11 Idem, p. 13 21 Ibidem, p. 17 22 Ibidem, p. 25 20

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A natureza de Franz era irremediavelmente diferente da natureza do seu pai, e talvez fosse mais simples aproximá-las tão só com “(…) um pouco de estímulo, um pouco de amabilidade, um pouco de abertura no meu caminho.”23, ao invés da revelação diária das diferenças que os distanciava. E se por um lado os conselhos paternos eram dados pelos exemplos das suas acções, das suas vivências e histórias, por outro lado um comportamento semelhante era-lhes (aos filhos) absolutamente proibido, resultando numa confusão para a cabeça de uma criança que procurava sustento nos exemplos que ia recebendo à medida do seu crescimento. E Franz reconhece que não houve sequer possibilidade de entendimento, a mínima hipótese de encontro: “Entre mim e ti não chegou a haver propriamente luta, eu fiquei fora de combate em pouco tempo, e o que restou foi a fuga, a amargura, a tristeza, o debate interior.”24 Um distanciamento que apenas o afastamento do pai em relação ao negócio de família atenuava, a prova que Kafka evocava para se compreender o que defendia havia muito: para além de tudo o mais, o negócio de família era uma enorme carga para o pai, não só pelo facto de ser absolutamente necessário que o negócio prosperasse, mas também porque era essa impreterabilidade que o frustrava e levava a comportar-se de forma mais autoritária com os filhos. A dada altura, Kafka recorda a sua actividade literária, sobre a qual o pai apenas demonstrou absoluto desinteresse, mas que o autor checo recorda como o início da sua independência em relação à carga negativa que o pai lhe transmitia: “Neste campo consegui libertar-me um pouco de ti, apesar de isto lembrar de algum modo o verme que, pisado atrás, se liberta com a parte da frente e se arrasta de lado.”25 Como o insecto que encontraremos em A Transformação, agredido pelo pai e marcado pela sua sombra constante, como é dito de forma clara e directa por Franz, “O que eu escrevia tratava de ti, e na escrita só me lamentava do que não podia lamentar no teu peito. Era uma despedida de ti, propositadamente retardada, provocada por ti, é certo, mas desenvolvendo-se num sentido que eu próprio determinei.”26 Mas a escrita permanecerá como uma ilha onde o autor pousará o seu corpo, ainda que não deixando de ser banhado pelas influências do pai, como vimos defendendo neste trabalho e como adiante tentaremos mostrar em A Transformação.

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CP, p. 15 Idem, p. 47 25 Ibidem, p. 61 26 Ibidem, p. 62 24

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Para Kafka, o pai que é dissecado na Carta ao Pai será sempre aquele a quem não conseguirá aceder de nenhuma forma e jamais será compreendido. Nesta carta não há reconciliação ou tentativa de algo do género: há um profundo lamento por tudo o que não foi possível viver com um pai para quem Franz seria sempre um ser inferior, “Se no mundo só existíssemos nós dois – uma visão que me era cara -, a pureza do mundo acabaria em ti, e eu, por obra e graça do teu conselho, seria o começo de toda a sujidade.”27

3.2 – A Transformação

Quando Gregor Samsa se vê inteiramente transformado num estranho insecto ainda mal o texto de A Transformação28 (1912) começou. Não é intenção do autor perder tempo com descrições ou com demasiadas explicações sobre o porquê de tal circunstância. Ainda mal entrados no texto e já Samsa é um insecto a lutar contra a inabilidade de se ter num corpo que, sendo-lhe estranho, depressa se assume como uma realidade indesmentível e contra o qual pouco ou nada há a fazer para além do que qualquer pessoa faria na mesma situação: alimentar e manter à distância. A profissão – ou o desempenho da mesma – surge como possível causa do que parece apenas um estranho acordar. Será tudo culpa do cansaço que Samsa sente, não só pelo esforço a que o emprego o obriga, mas também pela responsabilidade de ser o único a trabalhar em casa. Gregor sustenta a família (vive com a mãe, o pai e uma irmã mais nova), como o pai de Kafka sempre sustentou a sua; o autor chama ao protagonista o papel de “cabeça de casal” e é a partir desta revelação que a análise aos actos da família é feita. Perante a demora em sair do quarto – afinal, era mais um dia de trabalho e havia um combóio para apanhar – é a mãe quem alerta Samsa para o possível atraso e acaba também por ser a doçura da sua voz que, ainda que por instantes, acalma o filho. Mas Gregor, em luta contra um corpo que não é mais o seu, nada pode fazer contra a passagem do tempo que opera sobre a sua transformação com a mesma avidez com que o faz perder o comboio e obriga a que o gerente da seguradora vá mesmo a sua 27

CP, p. 75 Todas as citações de A Transformação serão identificadas pela sigla AT e o respectivo número da página de onde as mesmas serão retiradas. 28

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casa. A chegada deste constitui para Samsa o assumir de uma falha que, aos olhos da restante família, será imperdoável. A primeira intervenção do pai no texto dá-se aquando da chegada do gerente e tem como objectivo chamar Samsa à realidade: “Gregor (…) veio cá o gerente e quer saber por que razão não apanhaste o comboio da manhã. Não sabemos o que devemos dizer-lhe. Aliás, ele quer também falar pessoalmente contigo. Portanto, por favor, abre a porta. Ele certamente saberá desculpar a desarrumação do quarto” 29. E é o pai quem acaba por falar com o gerente, reforçando a ideia de que aquele acto não é normal na conduta do filho, sobretudo porque vem de alguém que só pensa no trabalho e para ele vive em exclusividade. Samsa pergunta-se porque estará a irmã a chorar e porque não irá ao quarto consolá-lo, mas também ela está assustadíssima com a rara situação de ver o irmão ainda em casa quando já devia estar no trabalho há mais de duas horas. Mas a mãe começa a ficar realmente assustada e pela primeira vez fala na possibilidade de se chamar um médico, perante os guinchos que saem do quarto de Gregor. É nesta sequência que o pai tem a 2ª intervenção, pedindo à filha que vá chamar um serralheiro para que possam abrir a porta do quarto onde, nesta altura, já nada restava de Gregor Samsa a não ser a sua consciência, que se mantém funcional durante todo o tempo. Apercebendo-se de que os seus gritos são incompreensíveis para os humanos, e que estão a ser tomadas medidas em socorro do seu desespero, Gregor parece tranquilizar-se: “Sentiu-se de novo integrado no círculo humano e esperava das duas partes, tanto do médico como do serralheiro, sem na realidade os distinguir um do outro, contribuições admiráveis e surpreendentes.”30 No entanto, antes da chegada de qualquer um dos dois, Samsa consegue abrir a porta e a sua imagem é causa de grande terror para a sua mãe – que vê o insecto antes de qualquer outra pessoa -, mas também para o seu pai que “ (…) com ar hostil, cerrou o punho, como se quisesse repelir Gregor, empurrando-o para o seu quarto (…)”31. Samsa repara na quantidade de loiça que se encontra por lavar e recorda os hábitos do pai, que gostava de prolongar o pequeno-almoço enquanto lia os jornais do dia. O gerente, ainda em casa da família, acaba por sair, apressado, perante a imagem do seu antigo funcionário – mesmo Gregor assume que dificilmente será aceite no trabalho 29

AT, p. 87 Idem, p. 91 31 Ibidem, p. 93 30

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depois daquilo - transformado num insecto, e que acaba por despoletar outra reacção do pai que, agarrado à bengala que aquele deixou esquecida, “ (…) pôs-se a repelir Gregor para dentro do seu quarto.”32, perante a teimosia daquele em se refugiar, ao mesmo tempo que lançava olhares receosos ao pai. É então que o narrador se refere ao pai de Gregor como alguém que emite silvos insuportáveis para o filho, desumanizando-o e colocando-o em posição semelhante quer à do insecto, quer à do tirano pai de Kafka. Dos três membros da sua família, é acerca do pai que Gregor mais discorre, lembrando os seus hábitos de “ (…) ler em voz alta o vespertino à mãe e, às vezes, também à irmã (…)”33, e recordando como esses hábitos contribuíam mais do que tudo para a tranquilidade que reinava naquela casa. Mesmo agora, sobre a forma de um insecto, Gregor conseguia recordar esses momentos apenas pelo silêncio que imperava na casa, depois da confusão gerada pela revelação da sua forma. Pouco depois da saída do gerente, também a criada da família (Gregor ganhava o suficiente para que essa fosse uma possibilidade) acaba por sair de casa, incomodada com o facto de não reconhecer Gregor e devido ao medo que o animal lhe provocava. Sem os rendimentos da única pessoa trabalhadora da casa, o pai coloca a mãe e a irmã a par da verdadeira situação financeira da família e chega à conclusão que alguma coisa terá de ser feita, uma vez que o dinheiro começa a escassear e, perante a incerteza quanto à permanência do estado de Gregor, não haverá outra fonte de rendimento. No entanto, a irmã e a mãe de Samsa continuam a tratar o pai como sempre o haviam feito, como se aquele fosse o verdadeiro responsável pela entrada de dinheiro na casa, ainda que, lembra o narrador, “ (…) o pai era, na verdade, um homem saudável, mas velho, que nada fizera nos últimos cinco anos e que, em todo o caso, pouco ou nada podia esperar de si próprio.” 34 É, assim, exposta a dependência do pai em relação ao filho, colocando Kafka em Gregor o papel de chefe de família, ao invés do seu pai que sempre fora, na vida do filho, a imagem de homem forte da casa. Na sequência de mais uma tentativa de Samsa em abandonar o quarto, para desconforto da família que tudo tentava em contrário, o pai interpela as mulheres dizendo que “Já estava à espera, não me cansei de vos dizer isso, mas, mulheres como são não me deram ouvidos.”35, e, dirigindo-se até à porta do quarto do filho, depara com este manifestamente contrariado perante a necessidade de voltar para o seu interior. O ar 32

AT, p. 97 Idem, p. 99 34 Ibidem, p. 107 35 Ibidem, p. 117 33

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zangado do pai leva Gregor a questionar-se se aquele seria capaz de o magoar a sério, afinal, e “ (…) apesar de tudo seria ainda o seu pai?”36 Mas este, indeciso entre enfrentar o filho ou impeli-lo à distância a entrar no quarto, decide começar a bombardeá-lo com maçãs, umas atrás das outras, perante o desespero da mãe e irmã que olhavam impotentes aquele triste espectáculo. Para Gregor, a atitude do pai era expectável, até porque “ (…) desde o primeiro dia da sua nova vida, sabia que o pai considerava que a única atitude a ter em relação a ele era a máxima severidade.”37 Uma das maçãs lançadas sobre Gregor irá ficar incrustada no dorso, provocando-lhe uma dor terrível, tendo a mãe, entretanto, lançado-se sobre o pai, implorando que este poupasse a vida daquele que ainda era o seu filho. O episódio da maçã, mesmo no final da 2ª parte do texto, marca um ponto fundamental na sequência narrativa, a partir do qual o pai, a mãe e a irmã percebem que não poderão mais contar com Gregor – e como tal terão de tomar decisões em prol de uma ainda possível felicidade e independência -, e para este será o início do seu fim. O pai assume de forma definitiva as decisões da casa – e também o narrador lhe dedica mais atenção do que a qualquer outra personagem, à excepção de Samsa - e decide alugar um dos quartos da casa como forma de fazer entrar algum rendimento. Perante a presença dos três novos inquilinos – que desconhecem a existência de Samsa – o pai tudo faz para lhes agradar, e não raro a comida acaba por lhes ser distribuída em exclusividade. No entanto, também estes acabam por reparar no insecto e abandonam a casa, altura em que, perante o desespero e raiva do pai por, uma vez mais, ver a situação fugir ao seu controlo, acaba por ser a irmã de Gregor a tomar a decisão que reconheceríamos como mais óbvia se tomada pelo pai: “ «Queridos pais», disse a irmã, batendo com a mão na mesa, à laia de introdução, «isto não pode continuar assim. É possível que os pais não compreendam, mas eu compreendo perfeitamente. Recuso-me a pronunciar o nome do meu irmão diante deste monstro, e por isso digo: temos de tentar livrar-nos dele. Fizemos tudo o que era humanamente possível para cuidar desta criatura e

36 37

AT, p. 117 Ibidem, p. 118

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para o aturar, penso portanto que ninguém nos poderá fazer a menor censura.» ”38

Gregor acaba por ficar agradado com a decisão, afinal o que ele mais pretendia era ver a família liberta de qualquer peso, ainda mais sendo este provocado pela transformação que em si ocorrera. E é então que o pai, carinhosamente, se dirige à filha em auxílio de uma decisão perante a qual se sente impotente e, sobretudo, incapaz de tomar. Uma vez tomada a decisão de desistirem de Gregor, este acaba por morrer quase imediatamente, como se apenas a compreensão da família o mantivesse vivo, como a última esperança numa possível reversão do seu estado animal. E o pai, ao vê-lo morto, tranquiliza-se perante o terminar de uma situação deveras desagradável, sem dar a entender por um único momento sentir pena por ver morrer aquele que era, até há umas semanas, o seu filho Gregor. No final, e já com o “assunto” Samsa resolvido, os três saem de casa, abraçados e felizes pela possibilidade de uma nova vida que se lhes depara.

4 – Considerações finais

As semelhanças entre o pai da Carta e o pai da Transformação são por demais evidentes. A dureza de um é a rigidez de outro, a inflexibilidade de um acaba por ser a palavra de ordem do outro. No entanto, há que levar em conta as excepcionais diferenças entre os contextos: um é pai de uma família que vive sem problemas de maior, que gere um negócio próprio e que apenas se tem de preocupar, quase em exclusividade, com a saúde financeira deste, cabendo à mulher o assumir particamente na totalidade o papel de educadora; o outro é o de um homem já fragilizado, dependente do trabalho do filho mais velho, e que de um dia para o outro se vê perante a situação de um filho transformado em insecto, hipotecando qualquer possibilidade de manter a vida tal como até então a conheciam. Posto isto, é evidente que a postura terá de ser, 38

AT, p. 132

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obrigatoriamente, diferente, ainda que entre uma obra e outra esteja a distância que separa um texto ficcional de um texto autobiográfico, ainda que em forma epistolar. No entanto, e ressalvando as devidas distâncias – e sendo por nós reconhecidas as semelhanças que ao longo da análise aos textos foram assinaladas -, há características no pai da Transformação que dificilmente encontraremos no pai que nos é dado a conhecer na Carta: um homem bastante mais compreensivo, fruto, quiçá, da relação de dependência com o filho mas, sobretudo, alguém menos apto a tomar decisões, não chamando a si a função de chefe de família, como facilmente depreendemos do relato que Kafka nos faz em relação ao pai da Carta. Continua a ser um pai autoritário, sem dúvida, mas essa autoridade já não se exerce de forma directa mas antes se percepciona através das impressões de Gregor Samsa, sobre quem mais discorre ao longo da obra, sempre no pressuposto da compreensão em julgar atitudes que entende como legítimas perante o estado da situação. O episódio da maçã é deveras demonstrativo da tirania que o pai de Gregor pode assumir, e essa é uma marca que o coloca em pé de igualdade com o pai da Carta, mas o episódio que, segundo a nossa opinião, mais contribuiria para acercar um pai do outro, acaba por ser aquele em que é a irmã de Gregor a tomar a decisão mais cruel (ainda que Samsa assim não o tenha compreendido): a de deixar o insecto entregue à sua sorte, assumindo, de uma vez por todas, o que era já uma certeza para todos, ainda que até então apenas se mantivesse como estado mental. Kafka ensaiou uma tentativa de explicar o desconhecido (o insecto) através do conhecido (a família), e só dessa forma podemos conceber a transformação de Gregor Samsa. E como seria expectável, a família acaba por não conseguir aceitar o insecto, que continua sendo o filho e irmão, mas que rapidamente deixa de ser entendido como tal. Tal como Samsa, também Franz se sentiu um ser estranho perante o desapego e autoritarismo do seu pai, e a carta foi o último esforço que o filho fez para captar alguma atenção ao seu progenitor. Entendemos que é possível estabelecer uma ligação entre os dois textos a partir do papel do pai, reforçada pela relação pai/filho e onde as diferenças, mais do que reveladoras do distanciamento entre “pais”, servem as características que diferenciam um texto do outro; uma obra de ficção de um texto com características autobiográficas.

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Bibliografia

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