A imaginação sadomasoquista

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A IMAGINAÇÃO SADOMASOQUISTA

Leandro Soares da Silva
[email protected]
Universidade Federal de Minas Gerais



Este trabalho propõe uma especulação sobre o sadomasoquismo como
fenômeno cultural, a fim de ressignificá-lo além das investidas analíticas
mais comuns a que ele tem sido submetido, como as realizadas pela
psicologia, estudos da sexualidade, psiquiatria e psicanálise. Por ser,
antes de qualquer coisa, uma prática associada a uma modalidade de sexo
considerada pervertida ou anticonvencional, é comum que o sadomasoquismo
seja encarado com maior ênfase sobre aquilo que ele produz materialmente
sobre o corpo e a psique do que sobre o tipo de contribuição cultural que
ele pode indicar sobre nossa sociedade. A proposta deste trabalho é pensar
sobre a imaginação sadomasoquista como um processo discursivo cuja maior
validade reside em apresentar os modos de regulação e controle social aos
quais os corpos são submetidos através de negociações – ou seja:
voluntariamente – ainda que os moldes em que os trânsitos entre dominador e
dominado sejam paródias ou repetições de uma estrutura opressora da
dominação masculina heterossexual.
Três obras serão utilizadas como exemplos da investigação proposta:
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; trechos dos diários
do escritor e crítico inglês Kenneth Tynan; e as fotografias de Robert
Mapplethorpe. Outros exemplos e outras formas de produção artística
poderiam substituir com facilidade qualquer uma dessas. Evitou-se exemplos
oriundos da literatura erótica para evitar o exacerbamento do imaginário
típico dessa produção, ao passo que nos interessa demonstrar como tal
imaginação pode produzir resultados mais materiais. O objetivo aqui é
trazer duas versões da imaginação sadomasoquista que esses autores
discutem, com maior ou menor grau, em seus trabalhos: a perversão como
aparato institucional, no caso de Assis e Tynan, e, em Mapplethorpe, a
reconfiguração do sadomasoquismo da iconografia cristã.
Gilles Deleuze já descreveu o sadomasoquismo como um "monstro
semiológico" (DELEUZE, 2009, p. 130), num estudo sobre Sacher-Masoch, o
escritor de onde o psiquiatra Krafft-Ebing cunhou o termo masoquismo, do
mesmo modo que sadismo provem do nome do Marques de Sade. Em sua análise,
Deleuze expõe o frio masoquista e a apatia sádica, e critica as análises
que pressupõem uma unidade no sadomasoquismo. Tal unidade de fato
desconsidera que sadismo e masoquismo, ainda que necessários para a
efetivação de uma prática sexual, possuem particularidades próprias que vão
além da complementaridade. Contudo, como imaginário – se evitarmos o desejo
quase compulsório de lançar sobre ele uma teoria psiquiátrica ou
psicanalítica – o sadomasoquismo exprime uma unidade construída sobre uma
base discursiva em que dominante e dominado, mestre e escravo, o que
inflige e aquele que é afligido, se combinam na produção de uma tal
discursividade sobre o corpo que tanto pode ser percebida como uma espécie
de perversão – da ordem, dos costumes, da normatividade – ou como uma
espécie de norma histórica.
O instinto de morte do sadomasoquismo é o mesmo do erotismo, como via
Georges Bataille. No S/M, esse instinto está muito mais evidente através de
uma série de práticas associadas a esse tipo de prazer: espancar, cortar,
machucar, morder, queimar, submissão e controle. De um ponto de vista menos
freudiano, porém, Juicy Lucy (apud SULLIVAN, 2003, p. 157) afirma que o
S/M é, entre tantas coisas, apaixonado, erótico, engrandecedor, consensual,
assustador, amoroso, "um sexo incrivelmente ótimo" e "desenvolvimento do
poder interior". A posição de Lucy é não-patologizante e celebratória, pois
contrapõe a ideia do S/M como uma síndrome psicológica a do uso do prazer
que não é violento nem tem a ver com a opressão, ainda que sua versão não
dê conta dos antecedentes que levam à prática S/M como modalidade sexual
não-normativa. Ainda nesse quesito, é possível compreender o S/M como uma
paródia encenada tanto do sexo heteronormativo (quando, por exemplo, ocorre
a inversão, em que a mulher assume o lugar de dominante) quanto das
estruturas discursivas de dominação.
Essas estruturas, como apontou Judith Butler em Bodies that matter com
bastante maestria, são construtos discursivos que literalmente afetam os
corpos através de um ideal regulatório (BUTLER, 2011, p. xi). Um homem, no
papel de escravo durante a prática S/M, desarticula a norma masculina de
que homens são naturalmente dominadores e mais fortes, ao mesmo tempo em
que aponta para a característica construída da sexualidade – e não sua
suposta naturalidade, que Butler, com razão, rejeita. A crítica mais comum
a essa visão do S/M é de que sua prática não parodia a relação
institucional dos corpos – isto é, mediada por pressupostos sexistas e
patriarcais – mas que ela reforça o ideal regulatório heterossexual,
através da representação, em privado, da dominação masculina.
Um exemplo, retirado de Memórias póstumas, é o do escravo Prudêncio.
Cavalgado por Brás Cubas quando este era criança, ao ser alforriado
Prudêncio compra também um escravo, com quem reproduz a violência a que foi
submetido. Nas palavras do autor: "Era um modo que Prudêncio tinha de se
desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. [...] comprou
um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim
recebera. Vejam as sutilezas do maroto!" (ASSIS, 1998, p. 101).
A ordem escravocrata não é pervertida nessa cena, mas reiterada; nem
sequer pode ser vista, em última análise, como uma anormalidade social.
Nada parece mais "justo", numa sociedade em que a violência contra o outro
está na fundação de suas bases, que a opressão seja revigorada pelo
oprimido a partir da repetição de práticas do opressor. A ironia de Machado
de Assis, revelada na sutileza que não há em tal inversão, aponta para o
que se tenta demonstrar aqui: a imaginação sadomasoquista atuando através
de discursos fundadores que reforçam a manipulação do poder dominante e nem
sempre o desarticulam.
O romance de Machado de Assis possui uma pletora de pequenos indícios
de uma ordem social baseada na injunção do sofrimento e do prazer advindo
dessa atividade. De decapitação de insetos a jogos de poder, o livro
desenha a face fria e cruel da sociedade brasileira e de sua camada
dominante, que tem em Brás Cubas – uma consciência formada pelo gosto do
poder – seu representante. O narrador descreve uma série de cenas em que um
imaginário de violência está presente de maneira sutil, possibilitadas pela
personalidade egoísta e dominadora de Cubas: no capítulo XII, por exemplo,
relembra os castigos e a palmatória; no XVII, descreve o ímpeto de
estrangular, humilhar e colocar Marcela aos seus pés; no XXXI, tortura a
borboleta que não teve a sorte de nascer azul, assim como Eugênia, que
seduzirá apenas pelo prazer da manipulação, já que ela também não teve a
sorte de não ter nascido coxa. Esses são exemplos retirados quase que ao
acaso; uma leitura detalhada do livro revela como as oposições prazer/dor,
conforto/incômodo, culpa/remorso aparecem na própria estrutura linguística
do romance, o que talvez seja um indício de uma imaginação sadomasoquista
alerta para a instituição normativa da sociedade e como ela vem sendo
reproduzida pela camada dominante – cuja maior paródia, no livro, é a
Humanitas de Quincas Borba.
Kenneth Tynan, o crítico e dramaturgo inglês autor de "Oh! Calcutá!",
revela outro modo como as estruturas de dominação de uma sociedade atua
sobre os corpos no imaginário S/M. Filho do século vitoriano descrito por
Foucault, seus diários trazem observações e relatos da prática
sadomasoquista que estão mais próximos das conclusões que o historiador
Peter Gay fez em seu estudo da burguesia inglesa do século XIX: uma
sociedade cujos limites do prazer eram revertidos em privado (de modo
semelhante, a também historiadora Anne McClintock, em Couro imperial,
apresenta resultados de sua pesquisa sobre sexualidade vitoriana no
contexto da colonização).
Tynan observa, numa entrada de 28 de setembro de 1971: "É estranho
como a vida da classe alta britânica, entre as duas guerras, foi repleta de
homens ousados e corajosos, de olhos faiscantes, que tomavam chá nas
estufas ducais e depois se refugiavam em quartos de hotel para baixar as
calças e serem vergastados"[i]. O controle social dos corpos, conforme
associada à ética do século XIX inglês, possibilitou uma intensificação do
prazer através da punição. A imaginação sadomasoquista não atua apenas como
paródia da heteronormatividade, mas como desvio criativo de uma sexualidade
sob vigilância. Menos vitorianos do que pressupúnhamos, tal estimulação não
deixa de atuar como um reposicionamento do controle sexual, ainda que o
reitere. Isto aponta para o poder disruptivo do S/M, sua capacidade de
ressignificar uma dominação discursiva até revirá-la pelo avesso.
Em 20 de fevereiro de 1973, Tynan escreve sobre sua própria prática
S/M:

Experiências recentes voltaram a provar que a dor física
não traz prazer nem mesmo ao masoquista. A apreensão, os
preparativos, a ameaça, a exposição, a humilhação, essas
coisas sim são excitantes, assim como o calor que se sente
depois e a visão das marcas produzidas, mas o impacto da
vara nas nádegas não tem a menor graça. (Existia,
antigamente, uma pomada que amortecia as sensações da pele;
era uma bênção para os masoquistas.) Assim, Reich tem razão
quando declara que o masoquismo não é - ao contrário do que
dizia Freud - uma forma de desejo de morte, uma vez que
procura a dor, em vez do prazer. A dor não faz parte do
prazer do masoquismo: é só o preço desagradável que precisa
ser pago pelo prazer que o antecede e o sucede. Escrever
sobre "o assunto" me faz pensar de novo como o sexo
"sadomasô" é infinitamente mais variado, nas suas formas de
excitação, do que o sexo comum. […] as marcas que ficam na
bunda por vários dias, trazendo a reminiscência da emoção a
cada pontada de dor; a antecipação dos maus-tratos, que
pode se estender por uma semana ou mais e servir de
pretexto para uma dúzia de masturbações, antes das
chibatadas propriamente ditas; a imensa quantidade de
papéis que podem ser desempenhados: padre e noviça,
professora e monitor de turma, empregada e patrão, médico e
paciente (departamento de injeções) etc. etc. - cada um dos
quais nos permite explorar diferentes nuanças da dominação
ou submissão.




A relação que se pode fazer com o texto de Machado de Assis e sua
descrição de uma sociedade sob a ordem vigente da escravidão, em que a
tortura física é algo real e não uma atividade sexual consensual, é que o
imaginário de Tynan expõe a sofisticação da humilhação até sua
transvaloração em prazer, ao passo que no caso brasileiro a humilhação e
dor impostas ao outro fazem parte da esfera pública – o que torna muito
mais sombria essa ideia de sadomasoquismo tropical. Duas imaginações,
portanto, distintas, mesmo que ambas reiterem o controle dos corpos. Uma,
que é sobretudo mais sádica e menos revolucionária; e outra que reverte a
norma, transformando-a em fonte de satisfação.
Mas não apenas em seu caráter de reiterador de estruturas de dominação
pode-se perceber a imaginação sadomasoquista. Ela também pode fazer parte
de um domínio do imaginário mais cotidiano e simbólico do que as práticas
realizadas mundo a fora no interior de quartos e clubes de S/M. Uma espécie
de tal imaginação é a iconografia cristã, que atravessa o ocidente com
imagens devotas do Cristo supliciado, de santos e mártires desfigurados,
torturados e feridos, representantes de um ideal de redenção divulgado pelo
catolicismo. É nessa tradição que Robert Mapplethorpe, como fotógrafo de
cenas extremas de sadomasoquismo, se inclui.
O corpo dessa série de fotografias está exposto a vários níveis de
submissão, violência e devoção. O icônico close da cintura de um homem,
vestido num terno de alta costura e que sabemos se tratar de um negro
porque seu pênis e mãos se revelam, cai na categoria da devoção e
fetichização de uma determinada corporeidade e status – o negro como ideal
de masculinidade "animalizada" e a moda como item de consumo. Aqui,
Mapplethorpe abre espaço para pensarmos uma crítica sobre esses valores e
concepções, ao mesmo tempo – e esta simultaneidade é importante – em que
celebra essa paixão da carne.
Outro exemplo: uma cena extremamente forte de fisting, em que um homem
musculoso introduz o braço no ânus de alguém, - fotografado, como sempre,
em austero preto e branco. Mais um: o autorretrato, em roupas de couro, com
um chicote também no ânus. Esses dois exemplos, que tanto desestabilizaram
a noção de fotografia como arte na época, evocam não apenas uma prática de
sexo anticonvencional mas a celebra. É a glória do corpo subjugado ao
suplício, que a aura da impressão bicolor reforça, tal como fomos
acostumados a ver na arte cristã. Mapplethorpe, contudo, não nos apresenta
nem santos nem mártires, e nisso consiste a subversão de sua imaginação
sadomasoquista – o culto ao corpo flagelado como fonte de prazer, diversão
e prática irrestrita da sexualidade.
O couro, as mulheres e homens fisiculturistas, o contraste entre
pessoas de pele branca e negra, os pênis eretos submetidos ou não à
tortura, não precisam ser lidos apenas como indícios de um problema
psicológico ou documento artístico de uma cena S/M, mas como produtos
contemporâneos de um imaginário em que a ideia de suplício e tortura está
relacionada à uma ascese. É esse o sentido de que fala Foucault, quando
afirma ser o sadomasoquismo "uma empresa criativa, que tem, como uma de
suas principais características, uma dessexualização do prazer" e continua:
"A ideia de que todo prazer corporal deve sempre vir de um prazer sexual, e
a ideia de que o prazer sexual é a raiz de todo prazer possível – eu acho
que há algo bem errado nela"[ii] (apud SULLIVAN, 2003, p. 156).
Ainda que esteja bem evidente, quando Mapplethorpe fotografa um ato de
submissão tão extremo quanto o fisting, de que há questões de relação de
poder e de dominação envolvidas na prática e na imaginação S/M, sua obra
não reforça a estrutura normativa porque a desestabiliza através da
radicalização da pornografia como arte. As censuras e protestos que suas
exibições sofreram nas décadas de 80 e 90 e os avisos de precaução que
recebem nas mostras atuais revelam o quanto suas fotografias são uma
resistência ao ideal regulatório cuja norma é o sexo reprodutivo.
Mapplethorpe traz à público o que deveria permanecer privado, e faz disso
uma celebração da carne. Neste sentido, trata-se da perversão como uma
espécie de revolução não apenas dos costumes, mas dos discursos reguladores
sobre as práticas sexuais e nossa relação com a arte. Mais ainda:
pornografia como uma possibilidade artística e não somente como a indústria
bilionária que de fato é. A imaginação sadomasoquista atinge, com
Mapplethorpe, uma ordem de ressignificação que ultrapassa a história social
e a heteronormatividade, para exaltar o corpo no que ele possui de mais
agudo e ameaçador.


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[i] O texto de Tynan está disponível on line.
[ii] Tradução nossa, a partir do inglês: "[S/M is a] creative enterprise,
which has, as one of its main features, what I call the desexualization of
pleasure. The idea that all bodily pleasure should always come from sexual
pleasure, and the idea that sexual pleasure is the root of all our possible
pleasure – I think that's something wrong."








REFERÊNCIAS:


ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1998.

BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New
York: Routledge, 2011.

DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Tradução Jorge Bastos.
Revisão técnica Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

SULLIVAN, Nikki. A critical introduction to queer theory. New York: New
York University Press, 2003.

TYNAN, Kenneth. "A insensata peregrinação da carne". Disponível em:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-13/diario/a-insensata-
peregrinacao-da-carne. Acesso em 29 de agosto de 2012.
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