A imanência e o desenho

October 10, 2017 | Autor: Márcio Pereira | Categoria: Georges Didi-Huberman, Victor Hugo, Desenho, Regimes De Imanência
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Imanência

Márcio Otávio Ferreira Pereira



Resumo: O presente trabalho pretende estabelecer relações entre o conceito
de imanência, a partir de ideias apresentadas por Georges Didi-Huberman no
texto A imanência estética, e a prática do desenho. Essa relação se fez
possível ao estabelecer uma aproximação entre o corpo do desenhador, seus
gestos e suas projeções mentais, que conecta a experiência do desenhar com
tempo/espaço, e o resultado final, apresentado através do desenho.

Abstract: This paper aims to establish relations between the concept of
immanence , from ideas presented by Georges Didi-Huberman in the text
Aesthetics immanence, and the practice of drawing . This relationship is
made possible by establishing a connection between the body of the drawer,
their gestures and mental projections, which connects the experience of the
draw with time / space , and the end result , presented through drawing.







Corpo e pensamento em um mesmo plano. A imanência no desenho. Segundo o
dicionário Aurélio, poderíamos usar o termo imanência para descrever aquilo
que está intimamente ligado à vida, que não pode ser encontrado do lado de
fora, algo inerente, inseparável, intríseco. Da mesma forma poderíamos
pensar o desenho.

Não podemos conceber o desenho como algo externo ao próprio ato de desenhar
ou mesmo à própria ação do intelecto que projeta o desenho. O desenho nasce
de uma ação, é circunscrito por uma ação. Desta forma, para se pensar o
desenho é necessário pensá-lo em sua condição imanente.

No texto A imanência estética, Geoges Didi-Huberman analisa alguns
procedimentos gráficos e poéticos em desenhos do poeta, dramaturgo e
artista francês Victor Hugo e aponta para uma estética da imanência.
Segundo Didi-Huberman essa estética privilegiaria o gesto e não a
representação, o processo e não simplesmento o aspecto, o contato ao invés
da distância.

O desenho constitui a modalidades artísticas mais imanente por excelência.
Por si é constituido por gestos corporais e especulações mentais que se
transformam em registros gráficos, em sua grande maioria. Uma sucessão de
movimentos provocados pelo desenhador que ficam registrados em algum
suporte ou que dão forma à alguma coisa. O desenho seria uma forma direta
de transmitir o que se passa no corpo e pensamento do desenhador. Também
seria a inscrição do movimento do tempo e espaço e a inauguração da forma.

Neste trabalho trataremos de uma das várias modalidades do desenho,
denominada esboço. Por acreditar que essa modalidade comporta o fazer e o
pensar ao mesmo tempo, ou seja, o esboço ser um tipo de desenho em que o
artista pensa enquanto faz, esta modalidade permitirá aqui aproximar o
desenho da ideia de imanência.

O desenho reencontra no gesto seu propósito existencial. E o gesto, o que
seria? Os gestos fazem parte de uma linguagem corporal utilizados para
comunicar de forma não verbal, possuem uma certa codificação e dizem do
corpo, se inscrevendo no espaço e tempo em que acontecem. Um desenho se
faz exister por este mesmo processo e não por aspectos exteriores a si
mesmo.

Seria então o desenho a síntese perceptiva e um rítmo que nasce do encontro
do corpo com o espaço/tempo no qual este mesmo corpo habita? Para isso
teríamos que pensar que esse mesmo desenho, a partir de oscilações
corporais, variações de intensidades e amplitudes, constituindo um
acontecimento[1].

Segundo Didi-Huberman poderíamos caracaterizar imanência por: "o fluxo
generalizado, a dobra de cada coisa em cada coisa, a vida em toda parte, a
matéria porosa destinada às turbulências." (Didi-Huberman, 2003)

O desenho visto como imanência requisita acesso direto ao tempo, ele se
inscreve no tempo atraves do corpo do desenhador. Ele existe enquanto
movimento, enquanto pulsação. Poderíamos então pensar o ato de desenhar
como o ato se colocar exposto a este fluxo, como uma forma de perceber e
especular a partir dessa matéria porosa destinada a tais turbulências.

Em outra passagem do texto, Didi-Huberman nos descreve como essas
caracteristicas se encontravam presentes em um dos desenhos de Victor Hugo:

Num pequeno folheto conservado na Biblioteca Nacional da
França, Hugo desenhou o perfil severo de um homem de
barba; uma espécie de mancha, na frente de sua boca,
parece fazer as vezes de sopro sombrio, como este caos
"vomitado de volta à terra" pela goela do homem-peixe.
Embaixo, à direita, está inscrito: "Demócrito ria/
Heráclito chorava/ Aristóteles observava". Depois, em
letras grandes: "Lucrécio sonha". Como em vários outros
desenhos, o rosto traçado a pena parace exalar esta visão
– esta "ciência terrível" – que a aguada torna indistinta
como um turbilhão no qual tudo é chamado a se afogar, a se
dissolver. (DIDI-HUMERMAN, 2003)




Seria então desenhar uma tentativa de entrar em contato com algo que se
encontra em plena transformação, em constante metamorfose? O desenho pderia
servir como instrumento para tentar captar o que Victor Hugo chamou de "a
substância[2] e imagem que é irradiada de todos os corpos"[3]?

Na sequência do texto A imanência estética, Didi-Huberman aproxima a ideia
de imanência à imagem do mar. O fluxo das ondas, seu rítmo incessante, sua
extensão e profundidade, uma pulsação que está intimamente ligada à ideia
de vida. Talvez isso explique o interesse imenso que Victor Hugo nutria por
essa paisagem e tudo que se via associado a ela.




Em seus desenhos que tematizavam o mar ou as ondas, também apresentados
pelo texto de Didi-Huberman, pode se perceber um movimento de ir e vir
produzido pela pena embebida em tinta marrom e aguada que procura não
simplesmente reproduzir a figuração do mar. Ao contrário, parece que Victor
Hugo ao desenhar procura através dos gestos recriar esse movimento em sua
qualidade imanente. Asiim como afirma Didi-Huberman: "o poeta verdadeiro
será ondas e fará ondas". (Didi-Huberman, 2003)



Meu Destino, 1864. 17,4 x 25,9 cm

Pena, aguada de tinta marrom e guache sobre papel velino.

Paris, Maison de Victor Hugo (Inv. 927)




E exatamente nesse momento, em que o ato de desenhar se faz imanente, no
qual o desenhador não quer simplesmente representar algo, mas sim
disponibilzar seu corpo a uma experiência maior, "fazer elevar em si o
trabalho do mar". (Didi-Huberman, 2003)

O desenho entendido como imanência então atua através dessa experiência com
o instante espacial de realização do desenho. Esse desenho carrega em si a
vitalidade dos gestos do desenhador. E seria através dessa vitalidade que o
artista tenta captar o movimento infinito que há nas coisas, possibilitando
ao desenho seus traçados e as intensidades que ele apresenta.













Referências bibliográficas:



A imanência estética. Didi-Huberman,Georges Alea : Estudos Neolatinos 2003-
07-01 info:eu-repo/semantics/article text/html
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
106X2003000100009 por info:eu-repo/semantics/publishedVersion

ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio
de Janeiro: Relume Dumara, 2004.

SPINOZA, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988





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[1] Aqui o uso do termo acontecimento remonta ao conceito desenvolvido por
Gilles Deleuze e apresentado por Francois Zourabichvili no livro O
Vocabulário de Deleuze. O verbete Acontecimento neste vocabulário e
apresentado "como aquilo que, na linguagem, distingue-s da proposição, e
aquilo que no mundo distingue-se dos estados de coisas".

[2]Segundo Spinoza, a substância "é algo em si e e que é concebido por sí,
isto é, isso cujo conceito não necessita do conceito de nenhuma outra coisa
a partir do qual deva ser formado" (SPINOZA, 2007).

[3] Hugo, V. "Philosophie prose" (1840, 1854 e 1860). Océan: 64, 69 e 109;
"Science – Questions relatives à la forme sphérique" (1843). Océan: 130-1 e
"Critique" (1840 ?). Océan: 148.
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