A importância de comprender o conceito de \"livre apreciação da prova\"

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Paulo Saragoça da Matta

A importância de compreender o conceito de livre apreciação da prova

Escreveu Klaus Tiedemann, algures, que o princípio da livre apreciação da prova constituia demonstração da “grande confiança do legislador alemão nos juízes”. A ser verdade esta afirmação, que julgo sê-lo, importa saber a quem é que – em última análise – o legislador alemão e quase todos os outros legisladores ocidentais deram tal grande confiança. É que para isso é preciso compreender qual o uso que os juízes fizeram de tal confiança que lhes foi dada pelos legisladores. Para tanto é necessário compreender o comportamento judicial (i.e., o comportamento dos julgadores), o que em última análise é fundamental para compreender o Direito, pois é na judicatura que, em última análise, radica o impacto último de todo e qualquer sistema de Justiça. Mas o conhecimento do comportamento judicial é também fundamental para conformar e disciplinar esse mesmo comportamento futuro dos juízes, adequando-o ao dever ser e às necessidades da sociedade, e, assim, reformar o próprio Direito. Ou seja: compreender o significado da livre apreciação da prova pode ser – e creio seguramente que o será – um dos pilares de toda a estruturação do direito que queremos ter. Porém, só pode compreender-se o comportamento judicial se se analisarem os juízes e os seus modos de julgar numa perspectiva mais lata do que o mero enfoque processual. Necessário é que se analise a sua formação, as suas motivações e convicções, as suas faculdades, métodos de selecção, normas de profissão, e, o que mais é, psicologia. A dificuldade é tanto maior num sistema como o português, onde, inexistindo as regras de precedente próprias dos sistemas de common law, inexiste também verdadeiramente qualquer uniformização de jurisprudência. Acresce uma outra dificuldade, transversal a todos os sistemas, a que alude Richard Posner 1 (ele próprio um magistrado de tribunais superiores das Justiças dos EUA): a maioria dos juízes, senão a totalidade, é evasiva quando se trata de falar daquilo que faz. Limitam-se os juízes a descrever a sua própria actividade fazendo uso da visão procedimental dessa mesma actividade constante das leis processuais, não se esquecendo nunca de sublinhar a sua vinculação estrita por regras legais e constitucionais. Como sublinha Posner, ao agirem desse modo os Juízes habitualmente acreditam naquilo que dizem, apesar de tais descrições em nada corresponderem à prática efectiva da sua actividade diária. 1 Richard A. Posner, How judges think, Harvard University Press, Cambridge, 2008, pp. 1 a 15.

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Ou seja: há milénios que os juízes se esforçam por convencer as sociedades, e convencer-se a si próprios, de que fazendo uso de faculdades mais ou menos esotéricas, constroem desinteressadamente um edifício decisório livre de quaisquer discricionariedades, de influências políticas ou de ignorância (Posner). Mas isso não é assim. Na realidade todos sabemos que isso não é assim. Tal como a Igreja procura convencer os fieis da tendencial devoção dos sacerdotes à doutrina da fé, daí os votos por estes tomados em obediência a esses mesmos valores religiosos, também o sacerdócio judicial procura afirmar a virtude própria na dedicação aos valores da Justiça e da Lei. Assim que seja impossível encontrar um julgador que assuma discricionariedade nas suas decisões: e seguramente que a maior parte acredita seriamente e de boa-fé que decide exclusivamente com base na lei e nos valores nesta cristalizados. Ora, a grande dificuldade em compreender o comportamento judicial advém de dois factores: 

por um lado, da variabilidade técnica (ou doutrinal) quanto ao direito (são conhecidas de todos as polémicas doutrinais em que os homens do Direito se envolvem, seja quanto ao direito substantivo, seja quanto ao direito adjectivo, enredando-se em exegéses hermenêuticas como se o Direito fosse algo mais do que a justa decisão do caso concreto)2;



por outro lado, do secretismo que envolve a deliberação judicial quanto aos factos (o que vale para os juízes togados e para os jurados em sistema de júri).

Nos sistemas de civil law dir-se-á sempre que o legalismo impõe ao julgador um juízo necessariamente reflexivo (na categorização de Hutchenson Jr., 1929 3), e não juízos aleatórios, intuitivos ou asnáticos. Ou seja, um juízo assente em pensamento, lógica e razão. Mas dizer isso é o mesmo que nada, pois por mais legalista que seja o sistema – como o caso português bem o demonstra – ao final do dia continua a ser imensa a margem de discricionariedade outorgada pelo sistema ao julgador. Que outra coisa pode ser, senão discricionariedade, outorgar-lhes um poder de apreciar livremente a prova, se não se consegue concretizar, determinar, circunscrever com extrema precisão o que seja isso de apreciar livremente a prova? Por isso, quer no civil law quer no common law, diferentes juízes podem fazer mudar o Direito. E se no common law tal situação é assumida e, até, acarinhada por alguns sectores políticos, no civil law a situação é dissimuladamente escamoteada.

2 Basta haver dois bons juristas para haver logo, pelo menos, três opiniões sobre qualquer assunto. 3 Apud Richard Posner, idem, ibidem.

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Ninguém minimamente responsável afirma publicamente que o Direito (i.e., a concretização da Justiça) possa depender do juiz que nos saia em sorteio! E pur si muove! Não cabe aqui, nesta breve exposição, abordar do carácter mais ou menos estrito do legalismo jurídico no plano técnico ou dogmático da interpretação do Direito. Importa, isso sim, enfrentar o segundo factor de incerteza da compreensão do comportamento judicial, i.e., o processo de apuramento dos factos, matéria em que intervém o princípio a cuja polemização nos propusémos: o princípio da livre apreciação da prova! Tentando densificar esse conceito de “livre apreciação”, concluímos já noutro estudo feito no passado, que no exercício de tal poder de livre apreciação da prova o Julgador deverá pautarse por regras lógicas e de racionalidade, de modo tal que quando confrontados terceiros com o decidido possam estes aderir ou afastar-se, também racionalmente, da valoração feita. Neste sentido Paolo Tonini escreveu: “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé (como aconteceria se se dissesse: o facto é verídico porque, de outro modo, o ministério público não teria formulado a acusação)”4.

Mas ao afirmar que a livre apreciação da prova se faz usando a lógica e a razão está o princípio respectivo suficientemente densificado? Avançámos algo mais em relação ao ponto em que nos deixaram aqueles magistrados atrás citados que apelavam à lógica e à razão para garantir que a sua actividade não é discricionária? Penso que não. Derivemos um pouco. Afirma-se amiúde a existência de uma íntima conexão entre o princípio da livre apreciação da prova e: 

o princípio da presunção de inocência,



o dever de fundamentação das sentenças,



o direito ao recurso, e



o direito à tutela efectiva5.

Todos estes relacionamentos, a existirem, são inequivocamente multi-direccionais. Quanto à relação entre o princípio da livre apreciação da prova e o dever de fundamentação das 4 Paolo Tonini, La prova penal, 3ª Ed., Cedam, Padova, pp. 9 e s. 5 Assim o Tribunal Constitucional português, nomeadamente nas seguintes decisões: Acórdãos T. Constitucional n.º 401/02 (no âmbito do processo n.º 528/02, onde se lê: “…de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este Tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador ‘objectivável e motivável’, conjugando-se com dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade”), n.º 464/97 (in D.R., IIª Série, de 12/01/1998), e n.º 546/98 (in D.R., IIª Série, de 15/03/1999). 3

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sentenças, escrevemos já em escrito anterior (2004). Também então analisámos as relações entre tal princípio e o direito ao recurso. Poderíamos, pois, hoje, analisar as relações do princípio da livre apreciação da prova com o princípio da presunção de inocência e com o direito à tutela efectiva. Mas não o faremos. Afigura-se-nos mais importante, para permitir uma reflexão criativa sobre como pode densificarse o princípio da livre apreciação da prova, apresentar uma série de perplexidades que se nos têm vindo a suscitar relativamente à concretização de tal princípio. Escreveu Marques da Silva que “o actual sistema da livre convicção não deve definir-se negativamente, isto é, como desaparecimento das regras legais de apreciação das provas, pois não consiste na afirmação do arbítrio, sendo, antes a apreciação da prova também vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório”6. Logo, caberá concluir a este respeito que a liberdade concedida ao julgador e que aqui constitui objecto da nossa análise não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional7. Ora, para que o exercício de tal poder, i.e., o exercício da judicatura, seja justificado e comunicacional, ponto é que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja susceptível de auto-controlo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo dos próprios sujeitos prejudicados com a actividade instrutória em questão. Daí que tenhamos escrito que “a livre apreciação da prova seja a antítese da ideia liminar e intuitiva que se tem quando se fala em íntima convicção. A liberdade de apreciação da prova não pode por isso estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis”. Fruto do labor da jurisprudência e da doutrina, enunciam-se as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência, e os conhecimentos técnicos e científicos, para balizar e circunscrever os limites da liberdade valorativa da prova. E também por isso temos afirmado

6 G. Marques da Silva, Direito processual penal, volume III, p. 110. 7 G. Marques da Silva, op. cit., p. 111, escreve: “Também a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros”; Castanheira Neves, op. cit., p. 203, refere: “Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”. 4

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que o único modo de se garantir o respeito intocado por tais baias é a exigência de uma motivação clara, suficiente, objectiva e comunicacional. Mas vejamos: 

O que são as regras da lógica e da razão a que a doutrina e a jurisprudência se referem? A lógica aristotélica e escolástica? A Fuzzy Logic moderna? Outras lógicas matemáticas ou filosóficas das que foram sendo desenvolvidas nos últimos milhares de anos? Aquela por que cada um dos julgadores optar de acordo com a sua preferência? Terá a sociedade algo que ver com essa lógica que deve estar em uso na apreciação das provas? A formação dos juízes e a análise psicológica de cada magistrado ou candidato a magistrado deve contribuir para apurar, moldar ou reformar as lógicas utilizadas por cada um deles? E, qui ça, para alterar as convicções prévias de cada um deles sobre a própria estrutura e função da lógica e da razão?



O que são, e quem define, o que são as máximas da experiência? Máximas da experiência de quem? Do Tribunal? De um, de dois ou de três-terços do colectivo? E exigir-se-á unanimidade ou maioria para determinar qual a máxima que a experiência dá? Será a máxima da experiência do homem médio? V.g. Máximas da experiência da vida comercial que têm de ser entendidas e compreendidas por juízes que nunca exerceram o comércio e que nunca estiveram numa jurisdição comercial? Ou sequer cível? Ou serão novas epifanias, politicamente correctas, dos bons costumes e da moral (no sentido de mores ou de regras religiosas ou sociais) de outros tempos? Será a máxima da experiência uma média da experiência social tomada no seu conjunto? Isso existe? Ou será antes uma mediana dessa mesma experiência social caso exista?



Por fim, a que conhecimentos técnicos e científicos está sujeito o julgador que, de acordo com a própria lei, os pode afastar depois de ter ordenado a sua produção processual? Com que justificação lógica e racional se pode afirmar que a perícia apenas pode ser ordenada para o apuramento e apreciação de matérias que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, e depois se permite a um leigo nessas matérias afastar-se fundamentadamente desses mesmos especiais conhecimentos de peritos? Será esta apenas uma válvula de escape a que os Tribunais, precisamente por prudência, nunca apelarão, mas que existe para deixar uma última possibilidade de o julgador evitar uma condenação que lhe, pessoalmente,

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pareça injusta? E este parecer pessoalmente injusto é ainda livre apreciação da prova nos termos admitidos pela lei geral?

Vejamos então a final: a livre apreciação da prova é algo que esteja já suficientemente compreendido e concretizado, para evitar que seja totalmente discricionária a apreciação de prova que diariamente ocorre em milhares de procedimentos judiciários? Temos ou não uma confiança

ilimitada

nos

destinatários

deste

poder-dever

para

lhes

outorgar

despreocupadamente estas faculdades sem que se entenda sequer a latitude com que podem ser usadas? Tudo reflexões a que a comunidade jurídica portuguesa tem dado muito pouca, quase nenhuma, atenção, mas que hoje aqui quisemos deixar apontadas por serem o objecto dos nossos estudos em curso, tudo a bem de uma mais justa justiça!

Figueira da Foz, 18 de Junho de 2011

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