A IMPORTÂNCIA DO GROTESCO NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA

May 23, 2017 | Autor: Helena Ariano | Categoria: Arte Educação, Educação Artística, Crianças, Grotesco, Feio
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Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP Instituto de Artes - Campus São Paulo

HELENA ARIANO

A IMPORTÂNCIA DO GROTESCO NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA

São Paulo - SP 2016

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP Instituto de Artes - Campus São Paulo

HELENA ARIANO

A IMPORTÂNCIA DO GROTESCO NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA

Trabalho de Conclusão de Curso em Artes Visuais, modalidade Licenciatura, apresentado por Helena Ariano, graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais. Orientadora: Profª Drª Rita Luciana Bredariolli

São Paulo - SP 2016

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AGRADECIMENTOS

Não tenho com as palavras a destreza que gostaria. Desse modo, agradecimentos que pretendia que fossem muito mais profundos e que manifestassem mais fidedignamente como me sinto serão colocados de maneira direta; isso não diminui, no entanto, toda a gratidão que sinto pelas pessoas mencionadas. Primeiramente, agradeço à minha orientadora Rita Bredariolli, por toda paciência, conhecimento, compreensão e ótima orientação. À professora Eliane Gorgueira, que esteve comigo no início da elaboração deste TCC, e me deu muito apoio. Ao professor Omar Khouri, que me orientou no trabalho de bacharelado e também faz parte desta banca. À minha mãe Angela Gertrudes Ariano, presente em inúmeros momento importantes da minha vida; este trabalho não existiria sem as experiências pelas quais passei junto a ela. A Victor Martins Pinto de Queiroz, meu amigo e companheiro, por seu constante apoio moral, amoroso e intelectual; graças a ele, fui capaz de manter a calma em momentos que pareciam desesperadores. A minha família, que sempre me apoiou no caminho das artes visuais. A todos os meus amigos, especialmente Arianna Bonvent, Suellen Sato, Lucas Moutinho, Camila Moura Alves, Julian Maple, Mateus Eustáquio, Núria Pratginestós e Luiz Roveran por toda a paciência, acolhimento e contribuições intelectuais ao longo deste processo.

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Tudo o que era abominável - a devassidão, a morte, a loucura, a pestilência, a destruição… como era possível que essas coisas atraíssem de tal maneira o coração e arrebatassem a alma?

Yukio Mishima 3

RESUMO O objetivo do presente trabalho é tratar do fenômeno conhecido como “grotesco” na estética, na arte e em todos os tipos de representação em geral, tendo como eixo suas definições e procurando compreender de que forma afeta as pessoas em questões perceptivas e morais. ​Procurará, desse modo, explorar sua origem etimológica, suas formas de representação ao longo da história da arte e, a partir de textos teóricos e pesquisas já realizadas sobre o assunto, discorrer sobre a necessidade do grotesco não apenas na área artística, mas em qualquer situação vivenciada por seres humanos. Também busca, ao expor suas características constituintes principais, assinalar os benefícios de se trabalhar essa questão na educação artística, tendo como foco o ensino para crianças de faixa etária de 9 a 12 anos de idade. O trabalho será majoritariamente teórico-reflexivo, contando, além do embasamento teórico, com exemplos práticos vivenciados pela autora, e a relação analisada destes com os conceitos trabalhados.

Palavras-chave: grotesco, feio, ensino artístico, educação artística, crianças.

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ABSTRACT This work aims to explore the phenomenon known as “grotesque” in aesthetics, art and every kind of representations in general, ​centered in its definitions and trying to comprehend the way it affects people either perceptivelly and morally. Therefore, it will tend to explore its ethimological origin, its different representations through the art history and, based on theoretical texts and actual researches about the subject, discourse about the need of grotesque not only in artistical area, but also in any situation experienced by human beings. It also aims to, by exposing grotesque main caracteristics, show the benefits of working this question in artistic education, focusing on the teaching for 9 - 12 year-old children. This work will be mostly theoretical-reflexive, having, beyond its theoretical embasement, practical examples experienced by the author, and its relation with the studied concepts. Key words: grotesque, ugly, artistic teaching, artistic education, children.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1. ​Motivo grotesco, Rafael, século XVI…………………………………………..23 Figura 2. ​Grotesco ornamental, Agostino Veneziano, século XVI…………………….23 Figura 3. ​Bello Sguardo e Couiello, Jacques Callot, 1621. Exemplo de caricatura…26 Figura 4. Páginas de ​De humana physiognomonia libri IIII, por Giambattista Della Porta………………………………………………………………………………………….36 Figura 5. Cena de ​Coragem, o Cão Covarde…………………………………………...52 Figura 6. Sugilite, uma das fusões de ​Steven Universe……………………………….53 Figura 7. Cena dos porcos, ​A Viagem de Chihiro……………………………………...54 Figura 8. Sem-Face, ​A Viagem de Chihiro……………………………………………...54 Figura 9. Howl e Sophie…………………………………………………………………...55 Figura 10. As duas versões da Bruxa do Nada………………………………………...56 Figura 11. Trecho da história de G……………………………………………………….60

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SUMÁRIO Introdução Capítulo 1. O grotesco

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1.1. Conceitos gerais de beleza

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1.2. Sobre estética

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1.3. O fenômeno grotesco

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1.3.1. Origem do termo

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1.3.2. Manifestações do grotesco ao longo da história

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Capítulo 2. Arte, grotesco e educação

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2.1. A importância da educação artística

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2.2. Estética e grotesco na arte/educação

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Capítulo 3. Relatos e análises sobre manifestações do grotesco em minhas experiências educativas

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3.1. O corpo diferente

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3.2. A criança e o grotesco

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Considerações finais

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Bibliografia

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Introdução O presente trabalho é moldado por não apenas de interesses intelectuais, mas também por inclinações pessoais. Proponho tratar do fenômeno do grotesco na estética, na arte e na educação, buscando compreender suas definições e de que formas ele afeta as pessoas em questões perceptivas e morais. Há a intenção, com esse estudo teórico, de explorar de que maneiras esse fenômeno estético pode contribuir na educação artística e no desenvolvimento e expressividade da criança. A fundamentação teórica se dá a partir de autores que tenham estudado o grotesco em suas particularidades estéticas, como Victor Hugo e Wolfgang Kayser, e em sua relação estética com fenômenos sociais, tais como Umberto Eco e Mikhail Bakhtin. Estudiosos que abordem a questão da arte associada à educação e a percepção, como Herbert Read, Lev Vigotski e John Dewey, são exemplos de referências na abordagem sobre educação artística e percepção estética. Além desses teóricos, ​a pesquisa consta de artigos e teses que sejam relacionadas à questão da produção artística grotesca e sua ligação com a infância ou a linguagem da criança​. Assim como o termo estética foi elaborado no século XVIII, mesmo que o seu estudo exista há séculos1 , o mesmo ocorre com o grotesco, que possui representações na história da arte desde muito antes de ser assim denominado, conforme veremos adiante. A origem e o contexto desse conceito serão explicados mais detalhadamente posteriormente, mas algumas considerações prévias são interessantes. Embora a palavra “grotesco” derive de grotta, cujo significado é gruta em italiano, e tenha sido cunhada no século XV, posteriormente o termo passou a se referir a praticamente tudo o que é disforme, horrendo ou ridículo, sendo que o valor do grotesco no campo da estética sempre foi amplamente questionado. Um exemplo disso é que alguns de seus acusadores argumentavam sobre a falta de proporção e de outras qualidades estéticas mantenedoras da harmonia e da beleza em sua representação, e alguns de seus defensores destacavam majoritariamente o caráter onírico e a fantasia como seus maiores atributos.

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Tentativas de se definir o conceito de beleza e analisar as características dos objetos artísticos existem desde a Grécia Clássica. Esse histórico será melhor abordado adiante.

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É interessante destacar que, apesar de ser uma única categoria estética, há diversas formas de representação do grotesco. São muito comuns, por exemplo, o caráter carnavalesco, ou burlesco, e o caráter demoníaco. O grotesco carnavalesco, que teve fortes representações na Idade Média, relaciona-se principalmente com a figura do bufão, do ridículo, e é caracterizado pela brincadeira, como a liberação de todas as inibições, o momento em que tudo se torna moralmente aceitável. O aspecto demoníaco do grotesco, por outro lado, encontrou suas principais representações nos movimentos pré-romântico e

romântico, principalmente na

Inglaterra e na Alemanha, e se insere no âmbito do sobrenatural, do insano, aterrorizante e moralmente condenável, ou tabu. É perceptível, embora haja mais de uma categoria de grotesco, que em diversas ocasiões não há uma separação clara entre o cômico e o horrível; não apenas no caso da arte ocidental, mas também no caso dos yokais2 da cultura japonesa, por exemplo, existem inúmeras situações em que se tem, no mesmo período, uma imagem cômica junto a uma assustadora. Ambos os elementos estão diversas vezes presentes concomitantemente em uma mesma obra de arte, o que só enaltece a profunda relação que há entre a piada e o terror. Segundo Victor Hugo (2010)3 , referindo-se principalmente à produção literária, o grotesco “ora lança riso, ora lança lança horror na tragédia”. Em muitos estudos, inclusive nos de Mikhail Bakhtin (1987), também é abordada a possibilidade aliviadora do riso grotesco, uma forma de superar uma situação absurda ou terrível. Na arte contemporânea, é visível a produção de obras que possuam elementos a serem classificados como grotescos. Diversos estudos a respeito, como os artigos do projeto Imagética Grotesca, coordenado pelo prof. dr. Antonio Vargas (2009), e a obra O império do grotesco, de Sodré e Paiva (2002), mostram a dicotomia entre o grotesco como espetacularização - os freak shows e o sensacionalismo, por exemplo -, e o grotesco como discurso crítico. O exagero também é um elemento muito presente no grotesco em qualquer época, e Bakhtin

O ​yokai é um ser fantasioso da mitologia japonesa, e pode ser definido como monstro, espírito, demônio ou experiência inexplicável ou obscura. ​(por livro na nota ou na bibliografia?) 3 O texto de Hugo ​Do grotesco e do sublime, lançado pela editora Perspectiva no Brasil, foi inicialmente publicado como o prefácio para a peça​ Cromwell, de 1827. 2

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relacionava o fenômeno à hipérbole, destacando sua capacidade de desafiar limites, ultrapassá-los. Um grande problema, porém, que se tem ao abordar a questão estética é justamente o caráter predominantemente elitista desse campo de estudo - e este projeto crê que o grotesco aliado à educação é um excelente meio de se confrontar essa visão. Permanece a ideia, desde o início das teorizações sobre arte, da Beleza absoluta, sua relação intrínseca com uma suposta verdade universal, e tudo o que fugisse do padrão estabelecido seria considerado imperfeito, e consequentemente rejeitado. O grotesco proporciona uma nova reflexão, não apenas acerca de padrões estéticos, mas também quanto à moralidade e a ética. Bakhtin, ao analisar a obra de Rabelais, aborda o corpo grotesco como um valor cultural, e vê a experiência estética como algo coletivo; essa visão se mostra importante para auxiliar na deselitização dos conceitos e experiência estéticos. Tendo como fio condutor a possibilidade indagadora, tanto estética como moral, do grotesco, proponho-me como este trabalho, portanto, a investigar o histórico e as possibilidades do uso desse fenômeno nas produções voltadas para crianças, e de que maneira estas podem ser abordadas de modo a não comprometer quaisquer aspectos do desenvolvimento infantil. Percorrendo toda a história do grotesco, há os contos de fadas e suas inúmeras formas de representação, mostrando tanto o terrível superado por uma força moral como (pela definição mesmo de Bakhtin) o terrível se tornando aceitável - há a liberação do corpo e o irreverente, tipos muito presentes nas festividades populares e no teatro infantil. No entanto, é necessário deixar claro que este trabalho não visa a focar-se apenas no grotesco moralizante, mas mostrar também o valor intrínseco do próprio grotesco enquanto expressão estética. Pretende-se, desse modo, iniciar uma desconstrução de preconceitos e chegar a uma relação harmônica com o grotesco e suas representações. De forma geral, portanto, este trabalho tem como objetivo estudar o fenômeno do grotesco na arte e seus possíveis usos na produção artística e na arte/educação. Um enfoque mais específico é a análise das características estéticas presentes no grotesco e dos efeitos que ele pode exercer nas pessoas, levando em consideração tanto questões pessoais de medo e repulsa, quanto questões sociais, como ética, 10

moralidade e tabu. Será explorado, a partir dessa análise, a possibilidade do uso do grotesco na educação artística voltada para crianças de cerca de 9 a 12 anos, respeitando seu repertório e visando a mostrar às pessoas, e especialmente aos educadores, a importância dessa ação. Tendo-se em vista que este trabalho será majoritariamente teórico, a metodologia consistirá primeiramente em pesquisar sobre o grotesco de forma geral: definições do termo, mudanças de conceituação e representação ao longo do tempo, seus possíveis usos (como espetacularização, como efeito moralizante, como possibilidade crítica) e reproduções de obras visuais como forma de exemplificação, tendo como base a visão de diversos autores sobre o tema. Um segundo momento é a pesquisa da importância da arte na educação e do grotesco na infância, pautando-se em estudos que abordem a relação da criança com o disforme, o medonho e o diferente. Também haverá o relato e a análise de minhas experiências pessoais com crianças, vivenciadas durante minha atuação enquanto arte/educadora. A expressão “educação artística” possui uma problemática que deve ser explicada. Foi incluída no currículo escolar em 1971, como atividade educativa, e não como disciplina, perdendo a qualidade no ensino e se tornando uma mera abordagem reprodutiva, e não crítica. A modificação do termo "Educação artística" para "Ensino da arte" se operou em 1996, propondo que a arte fosse tratada como uma área efetiva do conhecimento, e não mero "fazer por fazer". O uso que faço do termo “educação artística”, no entanto, é diferente: com ele, me refiro ao processo que compõe o ensino de arte, incluindo a abordagem histórica, de repertório, o fazer artístico e a análise, e enxergando essa disciplina como área do conhecimento. No atual momento político do Brasil, em que é proposto que o ensino de arte não seja mais obrigatório, essa noção da arte como área do conhecimento (e, portanto, necessária à vivência dos estudantes), e os modos de abordagem são de suma importância. A própria repercussão desse trabalho já é uma prova da importância do tema. Deparei-me com as mais diversas reações ao responder à pergunta: “Sobre o que é seu TCC?”. Ao ouvirem a resposta, que incluía “grotesco” e “criança” na mesma frase, havia sempre uma reação involuntária de surpresa, seguida ou de “Nossa, 11

que legal!” ou “Nossa, mas tem que ter cuidado, né? É algo delicado ao se abordar com crianças…”, dentre outras variações dessas frases. Pode-se concluir principalmente duas coisas vendo esses tipos de reações: a primeira é que o termo “grotesco” provoca certo fascínio por si só, pela ideia a que ele provavelmente remete à pessoa. A segunda é a rejeição imediata da relação entre criança e grotesco ​- o que é interessante, considerando que muitas produções midiáticas voltadas para crianças possuem esse elemento. A escolha da faixa etária se deve a dois motivos principais: um de cunho prático e experimental, outro de cunho pessoal e íntimo. Enquanto educadora, tive a oportunidade de trabalhar em ambientes de educação formal e não formal, e nesses ambientes, o público alvo que mais me despertou interesse foi justamente as crianças entre 9 e 12 anos. Meu maior interesse era no modo de pensar dessas crianças, sua linha de raciocínio e suas observações inteligentes - o que, infelizmente, tende a surpreender os professores e educadores por haver uma subestimação da inteligência dessas crianças. Interessei-me também por essa faixa etária por ser uma faixa de transição entre a infância e a adolescência, muitas novidades tanto objetivas quanto subjetivas permeiam a vida dessas crianças e influenciam em seu modo de pensar; pretendo, futuramente, estudar mais a fundo essas questões. Em uma de minhas experiências mais significativas, ocorrida durante meu estágio no Sesc Curumim Vila Mariana, que será melhor descrita na parte 3, pude observar certas relações entre as crianças de cerca de 10 anos com o mundo, seu repertório cultural, suas relações sociais e sua própria produção artística que me levam a acreditar firmemente na necessidade de se desenvolver o presente projeto. Sua complexidade mental e sua extrema capacidade de demonstrar empatia por outros, mesmo sendo consumidores de produtos ditos violentos ou grotescos - como jogos de terror -, sua noção e seu esmero estéticos ao executar algum projeto são algumas das maiores provas de que sua inteligência não deve ser subestimada, e que esse seu repertório deve ser utilizado pelos educadores que lidam com as crianças frequentemente. O outro aspecto que cabe destacar é justamente minha própria tomada de consciência da existência do grotesco quando criança. Como filha de enfermeira, 12

entrei diversas vezes em contato com a profissão de minha mãe; em determinado período de sua carreira ela trabalhou em home care4, e me levava para acompanhá-la em suas visitas a casas de pacientes. Muitos desses pacientes possuíam condições diversas de mutações genéticas que alteravam o aspecto físico de seu corpo e sua atividade cerebral e perceptiva; entrar em contato com essas pessoas permitiu-me ampliar os modos de enxergar e me relacionar com outras pessoas. Essa experiência será abordada posteriormente neste trabalho, mas foi nesses momentos em que entrei em contato com os pacientes que tomei contato direto, pela primeira vez, com a “deformação”, no sentido de uma vida que não era a usual. Percebi um corpo diferente do meu, uma existência completamente diversa e modos de percepção e de construção de realidade que não me eram possíveis compreender - pois grande parte desses pacientes eram cegos e surdos, tendo, portanto, um contato com a realidade distinto do meu. A idade em que tive contato com essas situações foi por volta de meus dez anos de idade, juntamente com a tomada de consciência e os questionamentos, mesmo que leigos, acerca daquelas pessoas. Com o tempo eu também pude perceber aqueles corpos, que seriam tão mal vistos em sociedade, como algo que não era assustador, e sim simplesmente como uma realidade diversa. No capítulo 1 abordarei breves noções sobre estética e beleza, além de traçar um histórico sobre o grotesco, a origem da palavra e suas formas de manifestação na arte. O capítulo 2 contará com considerações sobre a importância da educação artística e quais podem ser seus efeitos sobre o indivíduo. No capítulo 3 relatarei algumas experiências pessoais e educacionais, para procurar saber de que forma o grotesco se manifesta nas crianças com as quais trabalhei e como pode ser utilizado como parte do repertório infanto-juvenil. O grotesco é um aspecto essencial não apenas da estética, mas da vivência humana como um todo. É necessário abordar o tema por este estar presente como componente em inúmeras obras de qualquer período artístico e por proporcionar diversos questionamentos acerca de padrões de beleza e de moral vigentes. O ser humano tem necessidade de nomear e de criar conceitos. É uma tentativa de organização mental dos processos e acontecimentos que o rodeiam. O grotesco, 4

Cuidado médico que ocorre na casa do paciente.

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enquanto categoria estética, também é uma tentativa de definição de um fenômeno que é muito mais antigo e muito mais complexo do que o próprio termo. ​Tendo isso em vista, o imaginário e o arquétipo são essenciais a este trabalho - o homem cria símbolos, a partir dos quais se definirão o belo e o feio. É necessário aceitar tanto essa feiura, com todos os efeitos que ela pode nos causar, quanto o fato de que essa feiura é sim relativa. Ignorar essa temática, suas formas de representação e as representações nela presentes é equivalente a ignorar aspectos importantes da arte, da sociedade e da própria psique humana. Justamente por dar uma abertura ao que tende a ser posto de lado, o grotesco permite também a discussão, a problematização e o questionamento, sendo que sua supressão é equivalente não apenas ao apagamento de um fenômeno intrínseco à história da arte, mas também à repressão de inúmeros aspectos instintivos do ser humano, à rejeição de qualquer manifestação que fuja dos padrões estéticos construídos socialmente, à não abordagem de características negativas ou desagradáveis que existem em qualquer esfera da vida. O grotesco proporciona, assim, a desconstrução de padrões de beleza, discussão acerca de estética e de ética, desenvolvimento de sensibilidade estética, além de ter importância enquanto fenômeno, por si só. Ele não se resume, portanto, a “sangue e tripas”. Também não é insanidade mental, deficiência física ou escatologia ou coprologia extremas. Pode, sim, conter todos esses elementos e, de fato, alguns dos exemplos mais louváveis da categoria possuem essas características, mas o grotesco também pode encontrar espaço em uma ironia fina, na sátira disfarçada, em qualquer lugar que destrua violentamente, e zombeteiramente, os dogmas e tabus. O grotesco tem o poder de ser revolucionário, e como tal deve ser abordado e trabalhado.

Capítulo 1. O grotesco

Para compreender um fenômeno é preciso ter consciência de que ele se caracteriza tanto por aspectos tidos como oficiais quanto pelos tidos como não oficiais, ou seja, a visão leiga, o senso comum, também são necessários para a percepção e compreensão de determinado assunto. Quando me refiro ao senso 14

comum não é com caráter de desvalorização, mas para entender justamente os demais contextos, que não o acadêmico, em que a palavra está inserida e no que consiste para as pessoas. Existe, obviamente, um senso comum quando se fala em grotesco. Geralmente este é associado a situações marcadas pelo absurdo e, principalmente nos tempos atuais, pela crueldade, violência e irracionalidade. Muniz Sodré e Raquel Paiva, em seu ​O império do grotesco (2002), observam no início do livro que o feio é tradicionalmente vinculado ao mal, além de proporem uma sugestão de divisões sobre o grotesco, das quais falarei melhor mais adiante. Para os dois autores, o feio não é o simples contrário do belo, possuindo seus próprios elementos constituintes, caracterizando-se, assim, como uma "produção particular". O grotesco, por sua vez, não seria meramente o "feio"; muitas vezes uma imagem pode ser grotesca, causar repulsa, horror ou menosprezo sem ter características comumente associadas à feiura - como se vê em muitas imagens do Romantismo. O grotesco, como fenômeno, atravessa períodos diversos, encontrando inúmeras representações. Sodré e Paiva, por exemplo, dividem o grotesco em basicamente 4 gêneros: escatológico, teratológico, chocante e crítico; Bakhtin, ao se debruçar sobre a arte de François Rabelais, traz à tona um grotesco carnavalesco, cômico e necessário; pelo estudo de Wolfgang Kayser, que mantém seu foco principalmente entre os séculos XVIII e XIX, tem-se um grotesco mais sombrio, demoníaco, abismal - sendo esta última uma característica essencial da categoria, segundo o autor; Umberto Eco e a divisão de seu ​História da Feiura mostra que a feiura, o monstruoso e o grotesco se encontram em diversos períodos artísticos, assumindo inúmeras facetas - desde divindades híbridas da mitologia grega até o fenômeno de demonização de povos estrangeiros. As classificações de grotesco, de belo e de feio são as mais diversas possíveis, provocando várias reflexões e percepções acerca das obras de arte.

1.1.​ Conceitos gerais de beleza

Antes de haver um aprofundamento na temática do grotesco, é interessante uma abordagem prévia de algumas noções de estética e de beleza, de como estas 15

se desenrolaram ao longo da história da arte e sua relação, direta ou indireta, com o tema do presente trabalho. As tentativas de se definir terminantemente, embora muitas vezes num plano metafísico, o que vem a ser Beleza e como esta se manifesta na arte e na cultura ou mesmo na vida cotidiana de um povo, são tão antigas quanto as próprias produções artísticas. Embora toda e qualquer sociedade possua suas próprias conceituações, me manterei principalmente nas ideias ocidentais. Até o século V a. C., na Grécia, não havia uma teoria estética ou da beleza definidas, sendo a beleza filosoficamente associada, portanto, a outras qualidades ou valores, como virtudes, conveniência e a maneira como algo atinge os sentidos. Um princípio muito comum que tinha espaço nesse período era o ​Kalokagathía, uma associação entre beleza das formas e bondade da alma5.

Foi a partir do século V a.C., no qual houve grande

desenvolvimento militar, econômico e cultural, principalmente em Atenas, que se passou a desenvolver melhor as noções de belo estético e técnico nas artes. Outro aspecto interessante da percepção estética grega diz respeito à noção de polos opostos, que se neutralizariam um ao outro, sendo que a harmonia plena se realizaria com esse equilíbrio entre eles. Existe a relação entre os deuses Apolo e Dionísio, e suas características. Apolo era tido como guardião da ordem, enquanto a divindade Dionísio deixa entrever a "irrupção do caos na beleza da harmonia" (ECO, 2014). Portanto, enquanto a harmonia se põe na arte visível, na beleza estática, em Apolo, a beleza dionisíaca é a beleza caótica e conturbada, "frequentemente representada como possessão ou loucura"6 . Os limites entre esses dois tipos de beleza só serão diminuídos principalmente a partir do século XIX, com a intensificação de noções como sublime e a relação entre este e o grotesco no drama, caracterizado pelo gosto pelo horrendo. A visão de Platão também marcou fortemente a Antiguidade e os séculos subsequentes: o belo é encarado como ideia, imutável e atemporal, metafísico. A beleza estaria em toda parte, não em um objeto físico em particular, e para ele era necessário dar prioridade à visão intelectual, não à visão sensível, embora visse na

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Kalós, que muitas vezes é traduzido como "belo", refere-se àquilo que agrada, que "suscita admiração" e atrai o olhar, e ​agathos diz respeito ao que é bom, virtuoso. 6 Umberto Eco, ​História da Beleza, página 58.

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proporção, principalmente das formas geométricas7 , uma forma de beleza. Já para Aristóteles, o belo também é metafísico, mas presente no mundo, nas coisas. As ideias platônicas influenciaram profundamente a Idade Média - o homem é tido como um cosmos8 - o microcosmos (ser humano) e macrocosmos (universo) estão ligados por uma única regra matemática. A beleza, portanto, estaria no cosmos, e não em nós: os seres humanos apenas a percebem, e a intensidade com que isso ocorre dependeria da sensibilidade da alma. Nesse período, perdurou principalmente a ideia do corpo humano como o prodígio da criação, e inúmeros dos critérios pitagóricos foram também usados para definir a beleza moral. Conforme se verá no capítulo 2, crenças fisiognomônicas9 eram muito comuns nesse período, perdurando até o século XIX e início do XX. É possível que essa crença na fisiognomonia tenha aumentado o culto à beleza, pois a partir dela cria-se padrões não apenas físicos, mas também morais e sociais. Também na filosofia neoplatônica, entre os séculos III a VI, temos que "a matéria é o último estágio (degradado) de uma descida por 'emanação' de um Uno inatingível e supremo" (ECO, 2014). Logo, há duas coisas a se considerar: Deus seria justamente a representação do inatingível e do etéreo perfeito do mundo das ideias. Além disso, o grotesco é matéria, é o palpável, é, partindo dessa ideia, o último estágio do último estágio, é a degradação da degradação. Isso será abordado e compreendido no próximo capítulo deste trabalho, principalmente ao abordarmos as análises de Bakhtin a respeito da obra de Rabelais, e o estudo de Muniz Sodré e Raquel Paiva.

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Relação entre beleza e número (principalmente em se tratando da música): Pitágoras é quem inicia, no século VI a.C., uma maior relação entre beleza e número de modo mais explícito. Os pitagóricos viam no número o princípio e a base de todas as coisas, sendo que tudo possui uma ordem baseada em leis matemáticas; as leis, portanto, seriam a "condição de existência e de Beleza". A ideia de proporção enquanto relações matemáticas permeou toda a Antiguidade clássica e se difundiu na Idade Média através de Boécio (século V): todas as coisas deleitáveis têm proporção, e a proporção está principalmente nos números - que, por sua vez, seriam o modelo principal na mente de Deus. 8 Com Santo Agostinho, entre os séculos IV e V, se manifesta a ideia de que até a feiura tem sua função no mundo, de acordo com “Deus”, pois este seria onipotente, sendo impossível, portanto, que cometesse erros. Essa ideia se mostraria de diversas formas na época medieval. Logo, o espaço entre os séculos V a XV, a despeito de seu costumeiro rótulo de Idade das Trevas, foi um período de riquíssimas produções artísticas, e também influenciou significativamente as visões atuais de beleza e de feiura. 9 Fisiognomonia: pseudo-ciência que afirma que características faciais determinariam aspectos da personalidade e do caráter de um indivíduo. Há também a fisiognomonia animal, que propõe o mesmo tipo de associação, mas usando a semelhança do homem com outros animais como comparativo.

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Tomás de Aquino, no século XIII, defende não apenas a proporção, que para ele também tem valor ético, mas também outros aspectos necessários à beleza, como a integridade ou completude, em que algo possui beleza quando se realiza de acordo com sua natureza, ou seja, o corpo ou objeto deve estar com todas as suas partes; o esplendor ou claridade, em que a manifestação sensível de algo deve afetar os sentidos de quem a contempla, e é metafísica; e a consonância: as coisas devem agir em conformidade com seu objetivo primário, ou seja, ser úteis. Para Aquino, portanto, a beleza é a unidade entre forma e matéria, relacionando-se com a ideia de perfeição divina10. Quanto à noção matemática, o rigor dos estudos baseados na proporção numérica aumentam significativamente no Renascimento. Nesse período, os tratados sobre a arte e a necessidade do estabelecimento de regras fixas ganharam imensa importância; a perspectiva, a visão de representação realista, a não aceitação como belo de tudo o que não fosse regido por essas regras. Novos e importantes elementos surgiram na arte renascentista que muito influenciaram as noções não apenas de beleza, mas de representação estética. Perspectiva, novas técnicas pictóricas, neoplatonismo, misticismo: tudo isso influenciou uma visão de beleza ao mesmo tempo fiel às regras científicas e também ligada ao sobrenatural. Nas categorias acadêmicas denominadas Classicismo, Maneirismo, Barroco e Rococó, ao mesmo tempo em que se preza pela perfeição, percorre, segundo Eco, uma noção de beleza informe, inquieta. O conceito de beleza começa a se fundir com algo de abismal, e no século XIX, tem-se o retorno ao gótico e às ruínas, dando origem ao decadentismo, que será melhor explicado na parte 1.3 deste trabalho. Tanto nesse período como nas vanguardas do século XX, os conceitos de beleza passaram a ser questionados, e os padrões foram rompidos.

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Um aspecto nessa ideia de Tomás de Aquino que considero digno de ser destacado é justamente o de uma coisa também é bela ao se adequar a suas funções, ou seja, um corpo mutilado ou com tamanho muito inferior ou superior ao esperado seria considerado feio (enquanto o grotesco está presente no exagero e na deformação). Ao mencionar essa característica do pensamento de Aquino, Umberto Eco reflete sobre o quanto era importante, por exemplo "um corpo de aspecto são em uma época em que se morria jovem e se padecia de fome", e esse é um aspecto a se levar em consideração ao estudar sobre os padrões de beleza ao longo do tempo: considerar os males da época e de que formas as pessoas poderiam fugir deles, ou abstraí-los de suas vidas - mencionar sobre a tuberculose como mau do século XIX e o constante uso da doença como fonte de beleza em obras do Romantismo.

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Portanto, a partir de dado momento, os conceitos de beleza e feiura passam a se misturar no campo erudito da arte. Enquanto no Renascimento, por exemplo, temos uma divisão mais clara entre o que é da elite e o que é do povo (estando as noções de proporção para a elite, e o feio e grotesco para o popularesco), no Romantismo o grotesco, em forma de ruínas, seres disformes, do demoníaco e do abismal, passa a integrar grande parte das produções, ao mesmo tempo em que novos estudos ganham terreno - como no caso do movimento Impressionista. Nas vanguardas do século XX, ele se mostra ainda mais presente por conta não apenas na mudança da temática na arte, mas da quebra nos padrões de representação artística: o objeto artístico e a própria função de arte são questionados, havendo a necessidade de uma nova perspectiva. Esses períodos, portanto, serão melhor abordados na parte 1.3, assim como a estética contemporânea. Sobre esta, basta dizer, por ora, que existe certa dicotomia entre belo e feio, e que ambos estão presentes e misturados nas obras de arte e nos objetos midiáticos, confundindo-se entre si nessa esteticidade difusa11.

1.2. Sobre estética

Quanto ao termo "estética", este foi cunhado no século XVIII pelo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, que o utiliza pela primeira vez em 1735, e o descreve melhor entre 1750-1758, em sua obra ​Aesthetica, considerada uma das maiores referências para o estudo da estética moderna​. ​O termo deriva do grego aisthetiké, referindo-se à ciência do sensorial, ao conhecimento sensorial. Na Grécia Antiga, a palavra “estética” correspondia principalmente à habilidade de receber e responder a estímulos externos através de um ou mais dos cinco sentidos, dizendo respeito à sensibilidade. Em sua obra ​Metafísica, Baumgarten propõe uma definição de gosto, que seria a capacidade de julgar algo (objeto, obra, paisagem) através dos sentidos em vez de através do intelecto. É importante que se tenha em mente essa noção de Baumgarten quanto à ciência e fenômenos sensoriais: ele, ao tratar de estética, não estava se referindo apenas ao campo da arte, mas a questões

Interessante mencionar que Umberto Eco, em ​História da Beleza, fala em sincretismo e politeísmo da beleza, destacando que na época contemporânea é impossível determinar uma noção de gosto. 11

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perceptivas em geral. Isso é o equivalente a dizer que não havia uma noção restrita a uma área específica - como a artística, por exemplo -, o que passou a acontecer posteriormente, especialmente com as teorias estéticas surgidas do fim do século XVIII ao longo do século XIX. Embora não se restringisse à área artística, por sua definição de estética Baugartem entendia que o julgamento do gosto seria baseado em sensações de prazer ou desprazer, sendo um ponto muito importante em sua filosofia a questão do gosto e da “boa” ou “má” arte. Essa visão, no entanto, encontrou resistências e críticas, sendo que Kant inicialmente a considerava uma visão subjetiva demais, posteriormente reformulando sua teoria, e colocando o belo como disposição para uma atitude estética. Kant defendia o prazer desinteressado, e com ele a beleza converte-se em valor apenas estético. Assim como as noções de beleza se modificam através do tempo, a questão da crítica também não permanece a mesma. O conceito de estética passou por inúmeras modificações, chegando mesmo a haver autores que se referiam a ela como algo restrito à obra de arte e a seus elementos concretos: equilíbrio, uso de cores, proporção áurea, composição. É possível perceber, no entanto, a importância da questão da comparação; Hume, na segunda metade do século XVIII, por exemplo, sobre a questão da beleza, disse: “Quem nunca teve oportunidade de confrontar os diversos gêneros de Beleza está absolutamente incapacitado de pronunciar um juízo a respeito de qualquer objeto que lhe seja apresentado”12. Ele acreditava, portanto, em um juízo interior, uma qualidade vinda da alma, e propunha a relativização do gosto. A confrontação de diversos gêneros de beleza é essencial não só para o estabelecimento de algum tipo de juízo - algo que é por si uma questão relativamente polêmica -, mas para uma confrontação mais profunda e concreta das manifestações artísticas. Essa relativização é essencial para a estética e para a arte, embora a questão do “gosto não se discute” não se mostre, a meu ver, como uma postura construtiva. Deve haver constante discussão acerca das noções de beleza e do gosto justamente para proporcionar sua desconstrução e criação de uma maturidade acerca disso. 12

HUME, David, ​Ensaios morais, políticos e literários apud ECO, Umberto, ​História da Beleza, p. 245.

20

O ato de apreciação estética é comumente relacionado a uma suposta atitude de passividade. ​A ausência total de interesse, porém,

não existe; a partir do

momento em que se inicia uma fruição estética, vários processos estão envolvidos, tanto sensoriais quanto motores, além da interpretação e criação simbólica e moral. Mesmo assim, os julgamentos realizados - tanto em elementos como cor, forma, estrutura, quanto na temática representada - devem ser questionados, refletidos seriamente e, da medida do possível, desconstruídos. É necessário manter isso em mente, pois ao falarmos sobre a feiura necessariamente significa, de um modo ou de outro, entrar na questão da moral. Por fim, a beleza na arte não se guia apenas por um padrão de beleza na sociedade (por exemplo, modelo de magreza), mas também por padrões do campo propriamente estético/artístico: descoberta de novos materiais, desenvolvimento de novas técnicas, tecnologias diversas. Tudo isso influencia, juntamente com ideologias políticas, religiosas, sociais, quais serão os temas abordados em uma obra, de que forma o serão, como serão representados e como se inserirão no mundo da arte.

1.3. O fenômeno grotesco

Todo objeto possui qualidades estéticas. A estética não deve ser vista como sinônimo de beleza, principalmente de beleza clássica, e nem como modo de separar a “boa arte” e a “má arte” - por mais que isso ocorra historicamente, principalmente com a associação ao bom e mau gosto feita por Baumgarten. O conceito de estética defendido por este TCC consiste em uma análise das características constituintes do objeto e sua ação sobre o sujeito, de que forma o consumidor da arte (no sentido de aquele que a percebe) recebe o estímulo, principalmente no que concerne a cânones de representação e moralidade. Por mais importante e necessária que seja a questão da dicotomia entre arte erudita e arte popular, o foco não se realizará nesse aspecto. A ênfase se dará em trabalhar alguns exemplos de representação do grotesco, e sua inserção no estudo estético como o termo surgiu em meios culturais dominantes, é necessário estudar a história de seu desenvolvimento nesses mesmos meios; e como inúmeras manifestações do 21

grotesco se deram e se dão na cultura popular e de massa, haverá uma abordagem sobre isso também.

1.3.1. Origem do termo

Wolfgang Kayser foi um grande estudioso do grotesco na literatura. Em sua obra ​O grotesco, de 1957, ele analisa o surgimento do termo e algumas de suas características constituintes principais, traçando uma linha cronológica e trazendo as mudanças conceituais. Para ele, “o grotesco é uma categoria sólida do pensamento científico”13 , e se apresenta de forma mais contrastante, mais forte e mais marcante quanto mais próximo ou inserido em seu “oposto”. Para ilustrar sua afirmação ele menciona o quadro ​Las meninas, de Velázquez, em que as anãs são uma presença impressionante por serem mostradas, também, como parte comum da corte - ou seja, algo normalmente escondido, colocado na surdina, de repente se mostra de forma nítida. Conforme dito anteriormente, o termo “grotesco” tem origem etimológica na palavra grotta, cujo significado é literalmente “gruta” em italiano, e foi cunhada para nomear um tipo específico de ornamentação antiga encontrada no Domus Áurea, na Itália, durante escavações realizadas em fins do século XV. O estilo compunha-se basicamente de figuras híbridas, principalmente de animais e homens ou homens e plantas, sendo que por seu caráter supostamente caótico, contra as leis da natureza, foi condenado por uns e adorado por outros. Na Renascença, o estilo foi amplamente difundido, sendo a

Catedral de Siena, por exemplo, decorada por

Rafael em 1515 com essa estética, e a grande novidade era o absurdo da composição de figuras, o fato de estarem “anuladas neste mundo as ordens da natureza”​.

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KAYSER, ​O grotesco, 2009:13.

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Figura 1. “Motivo grotesco”, Rafael, século XVI

Fonte:Blog Imaginarium14

Figura 2. “Grotesco ornamental”, Agostino Veneziano, século XVI

Fonte: Site do Courtauld Institute of Art15.

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Disponível em: .

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Disponível em: .

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À palavra “grotesco”, na Renascença, estavam relacionados tanto o lúdico, o alegre e o fantasioso quanto o angustiante e sinistro num mundo onde as ordens naturais não existiam. O conceito é desde o início associado ao onírico, e uma expressão significativa relacionada a esse aspecto é ​sogni dei pittori16; surgida no século XVI para se referir a obras de cunho mais fantasioso e híbrido, indica não apenas uma alusão à mistura de corpos nessa ornamentação, mas também uma arte caracterizada pelo absurdo e inventividade. Há um conceito de heterogeneidade dos elementos, e essa heterogeneidade, associada ao grotesco, é algo que perturba a harmonia17. De início, o grotesco decorativo foi aceito por se tratar de uma manifestação artística da antiguidade. No entanto, críticos de arte do século XVI perceberam que havia um sentimento de repulsa em relação ao grotesco, por parte de Vitrúvio. Por deter um forte ideal de proporção e ordem, o arquiteto condenou o estilo, o percebendo como depravação do gosto. O grotesco foi, assim, associado não apenas ao onírico, mas também ao incoerente e desproporcional, e passou a ser renegado enquanto categoria estética, e como manifestação visual válida. Mesmo assim, isso não impediu o avanço e uso do estilo por vários artistas. A manifestação dessa forma decorativa intensificou-se, e durante a expansão desse novo estilo ornamental em outros países, ao longo do século XVI, o conceito sofreu inúmeras modificações. Conforme sua difusão acontecia, o termo, que antes era só um substantivo, passou a se adjetivar, ou seja, o que antes era apenas uma nomeação se tornou uma característica, uma palavra descritiva, o monstruoso, o desproporcional, o ridículo. Com Montaigne18, por exemplo, a palavra passa do domínio das artes plásticas para o da literatura, virando, assim, oficialmente, um conceito estilístico. O substantivo vai se desdobrando e se firmando. Portanto, assim como os adjetivos “dantesco” e “pitoresco”, o grotesco passou a significar mais do

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Literalmente, “sonho do pintor”. No entanto, elementos heterogêneos (como a mistura do humano com o animal) são algo presente nas manifestações artísticas desde a Antiguidade, em qualquer cultura, como se vê em divindades hindus, por exemplo. É possível compreender aqui, melhor ainda, a relação entre a origem do termo "grotesco" e os fenômenos a ele ligados. 18 Em ​O contexto de François Rabelais, Bakhtin fala sobre como Montaigne critica o fato do ato sexual ser mantido na surdina, relacionando isso ao aspecto da corporalidade, essencial em sua concepção do grotesco. 17

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que aquele tipo de ornamentação antiga, além de reafirmar seu caráter fantástico, fantasmagórico e abismal. Com essa abertura, porém, o termo muitas vezes ficava amplo demais - tanto fantástico e bizarro quanto cômico e ridículo. A partir daí, houve a tentativa dar-lhe contornos mais nítidos, oficializá-lo enquanto categoria estética. No século XVIII, por exemplo, estabeleceu-se uma forte conexão com a caricatura. Jacques Callot, já no século XVII, trabalha em suas gravuras esse gênero, com suas personagens exageradas e humanas-mas-não-humanas, seres humanos fundidos com o animalesco (manutenção do caráter da ornamentação grotesca, em que se tem seres híbridos)​, dialogando antecipadamente com a ​commedia dell’arte19. Segundo Kayser: “a caricatura poderia chegar a ser fonte de uma arte significativa, e altamente substanciosa, e (...) não era possível liquidá-la como brincadeira sem importância. Se é certo que a caricatura, com sua reprodução de uma realidade disforme, e, em todo caso, nada bonita, inclusive com sua intensificação da desproporção, constituía uma autêntica força plasmadora da arte, neste caso começava a abalar-se o princípio que a reflexão sobre a arte reconhecera até então como base fundamental: o da arte como reprodução da bela natureza”.20 (KAYSER, ​O grotesco, 2009: 30)

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Explicar (ver Kayser). Um teórico que abordou a caricatura foi Christoph Martin Wieland, estudando-a como manifestação artística, e dividindo-a em três categorias: 1. as verdadeiras, que apenas representam a feiúra da realidade tais como são; 2. as exageradas, em que, apesar de distorcido, o objeto real ainda é reconhecível; e 3. as inteiramente fantásticas, mais precisamente grotescas, em que monstruosidades são criadas. Wieland enxerga os grotescos como algo sem nenhuma relação com a realidade, frutos de uma “imaginação selvagem”. Wieland, desse modo, associa o grotesco ao sobrenatural e ao absurdo, em que todas as leis são aniquiladas. 20

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Figura 3. ​Bello Sguardo e Couiello, Jacques Callot, 1621. Exemplo de caricatura.

Fonte: Site do Fine Arts Museum of San Francisco21.

Na relação do grotesco com a caricatura, acaba, por vezes, havendo até mesmo uma redução do conceito: tende-se a limitá-lo apenas ao cômico, tornando-o inofensivo e ignorando algumas características que Kayser, por exemplo, considera essenciais, como o abismal e o inquietante (por abismal entende-se aquilo que se encontra abaixo de nossos pés, mas não podemos ver; o que é profundo, não claro, quase mergulhado no inconsciente, perdendo o sentido), além de elementos que Bakhtin leva em consideração, como a metamorfose e o caráter dual ou mesmo múltiplo do grotesco. Posteriormente veremos brevemente o conceito de Freud de estranho, em que aquilo que causa inquietação é o recalcado22, é o familiar esquecido que retornou - o que já vimos, mas não reconhecemos de imediato. Umberto Eco, ao falar do inquietante presente na estética dos séculos XVIII e XIX, menciona essa noção de Freud. No entanto, a importância do grotesco no campo estético se fortificava pouco a pouco. Por volta das décadas de 60 e 70 do século XVIII, o conceito de grotesco vai se firmando, e passa a haver uma separação entre cômico e grotesco - termos que estavam dantes ligados. O grotesco conquistava sua posição como categoria estética, enquanto atraía artistas e “intranquilizava os pensadores da época” (KAYSER, 2009), e passava a representar um risco a partir do momento em que

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Disponível em: . 22 O recalque, na psicanálise, seria um mecanismo de repressão contra qualquer ideia incompatível com o “eu”.

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deixava de ser coisa “inteiramente alheia à natureza”, e sendo visto como algo de conteúdo mais profundo e mais relacionado à realidade. Friedrich Schlegel, em sua obra ​Fragmentos, de 1798, distingue o grotesco do arabesco, colocando-o como o contraste entre a forma e a matéria, com forças heterogêneas, ridículo e horripilante ao mesmo tempo. Com essa ampliação do termo temos no grotesco uma junção do disforme (que consiste em conexões imperfeitas entre as partes) e do onírico (conexões irreais), e houve uma mudança significativa no conceito de arte, abrindo caminho, então, para um novo tipo de percepção e abordagem do grotesco; o Romantismo tem relação, aqui, com essa nova percepção de grotesco. No Romantismo passa a pairar um interesse pelo cômico e pelo estranho, vistas nas manifestações populares de diversão. Mesmo sendo reconhecido como forma genuína de arte, porém, o arabesco ainda era relegado por alguns23, a um lugar inferior, uma base de uma arte sublime. Com o trabalho de Schlegel, muda-se a percepção do grotesco para o caos espantoso e ridículo, dando margem à concepção de tragicomédia. O grotesco e a tragicomédia passam a se associar intimamente, mostrando uma certa relação com o universo da ​commedia dell'arte. Percebe-se, então, como o grotesco está intimamente associado tanto ao trágico quanto ao cômico, tendo estabelecido uma forte relação com o teatro​ e com a corporalidade​. Provavelmente uma das reflexões mais importantes sobre o grotesco foi o prefácio da peça “Cromwell”24, de Victor Hugo. O fenômeno passa a se apresentar efetivamente como categoria estética com o escritor, no século XIX​. No Romantismo, o grotesco, o horrendo, o feio passaram a ser vistos como componentes da beleza total da obra, justamente pela importância dada para a dicotomia belo ​versus feio, e pelas novas conceituações das categorias estéticas “belo”, “grotesco”, “sublime”. Hugo coloca o grotesco como ponto central de suas análises sobre o drama. Em dado momento, enxerga-o em relação a outros elementos, e como meio de contraste, sendo o objetivo da arte a “união harmoniosa de ambos [sublime e grotesco]” (HUGO, 2010) em prol da beleza.

23 24

Como Goethe e Fiorillo. Publicado no Brasil como ​Do grotesco e do Sublime.

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Percebe-se em Victor Hugo uma forte intenção de unir o sublime, que seria para ele a expressão máxima de beleza e das qualidades do mundo, ao grotesco, que seria o cúmulo da decadência. Tendo-se em vista sua concepção - muito recorrente entre filósofos dos séculos XIX e XX - de se inspirar na natureza e na “verdade” para a criação de uma “autêntica” obra de arte, é muito significativo o fato de defender a necessidade do grotesco. Por mais questionáveis que sejam os conceitos de verdade e da autenticidade de uma obra de arte, é importante perceber como o grotesco passou de algo vergonhoso e medonho que deve ser escondido para uma existência natural do mundo - e que, como tal, deve ser representado. Esse processo, logicamente, já vinha ocorrendo desde de os séculos XVII e XVIII, e o que era a novidade durante o século XIX era a subjetividade do conceito de beleza e a coexistência, em uma mesma obra, de beleza e feiura. A arte sempre teve manifestações do belo e do feio, mas a relação entre eles, em grande parte, sempre foi de oposição, ou não recebeu uma análise mais atenta. O período romântico e a literatura gótica, revivendo e reinterpretando inúmeras concepções estéticas e temáticas ​da Idade Média, tiveram grande importância para o grotesco e sua difusão, por conta não apenas da estética das ruínas, mas também pela aceitação da possibilidade de prazer estético no horror, no medonho, no fantasmagórico. Há uma relação muito complexa entre Belo e Sublime, Belo e Grotesco e Grotesco e Sublime, principalmente no que concerne à arte - e principalmente em relação aos estudos teóricos desses fenômenos a partir do século XVIII. Um exemplo é a definição de sublime dada por Edmund Burke: ele associa fortemente o fenômeno do Sublime ao sentimento de terror, ao espanto absoluto e temeridade - este seria o causador, portanto, das mais fortes reações humanas.25 Kayser, ao tratar do Romantismo, fala de Edgar Allan Poe, destacando a importância do autor ter utilizado os termos “grotesco” e “arabesco” combinados em um de seus títulos. O interessante do ​Tales of the grotesque and arabesque é o fato O conceito foi pensado com profundidade em sua obra ​Pesquisa filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo, de 1759, e existiria quando grandes paixões, como o terror, se desencadeariam; seria, portanto, catártico, permitindo ao espectador a liberação de paixões aprisionadas. Se torna uma categoria estética importante no decadentismo, e propõe questionamentos sobre de que forma o horrendo pode ser deleitável, mantendo, assim, importante diálogo com o grotesco. 25

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de a palavra grotesco, diferentemente de até então, não ser posta num sentido pejorativo. No grotesco de Poe, que continha inúmeros elementos (mistura, deformação, fantástico, onírico etc.), havia a potencial irrupção do noturno e da ruína​. Poe colocava também muito a questão do repugnante, do horrível e do crime, que pode se associar com o ​disgusto fisiológico26 e a noção de crueldade. No século XX temos também Mikhail Bakhtin, que foi um grande estudioso e defensor do grotesco; o teórico realizou uma profunda pesquisa sobre o fenômeno, analisando teóricos que já o abordaram anteriormente, como Schneegans27 e obras literárias de caráter grotesco, como Gargântua e Pantagruel, de Rabelais. A partir disso, colocou críticas frente à incapacidade de perceberem a "ambivalência profunda e essencial do grotesco" (BAKHTIN, 1982: 265), somente vendo-o como parte da comédia, da sátira. Em muitos teóricos, o grotesco é transformado em uma mera subclasse do cômico ou do baixo-cômico, e tem na deformação ou repetição um exagero com claro objetivo. No entanto, Bakhtin contesta isso, sugerindo que o grotesco perderia completamente seu caráter caso se reduzisse a mera crítica, e defende uma complexidade e independência do grotesco enquanto fenômeno. Aristóteles defende que a verossimilhança é essencial para uma boa obra de arte: algo não precisa ter ocorrido, mas sim parecer que ocorreu; para ele, mesmo que um poeta use acontecimentos reais para sua obra isso não o torna menos criador. Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a definição de verossimilhança não é exatamente o que poderia ocorrer na vida real, mas a coerência, a “ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc (...), ainda que os elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto”. Logo, é uma conexão também dos elementos da própria obra, de acordo com sua necessidade, e não apenas entre obra e realidade. Também no Houaiss, uma das definições de grotesco o descreve como algo de “aspecto inverossímil, estapafúrdio (...)”. Assim, por ser inverossímil, e a arte, de

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Sodré e Paiva utilizam esse termo ao falar do gosto pela corporalidade que tomou forma em filósofos como Nietzsche. 27 Em seu ​História da sátira grotesca, de 1894, Schneegans divide o grotesco em três tipos: o cômico bufo, que seria o riso direto e ingênuo; o cômico burlesco, que conteria certa dose de malícia; e o cômico grotesco, malicioso e crítico, necessariamente. Para ele, também, a propriedade essencial do grotesco é exagerar “caricaturalmente um fenômeno negativo” - por ser algo que ridiculariza o que não deveria ser, o grotesco, então, seria necessariamente satírico.

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acordo com os preceitos clássicos, necessitar de verossimilhança, o grotesco é necessariamente repelido, pois não entraria em conformidade com a estrutura desejável de uma obra, caso ele não tenha um objetivo claro. No entanto, como toda criação fictícia tem origem na realidade, o grotesco também o tem - os produtos da imaginação só se constroem a partir do contato com elementos da realidade e ordenação desses elementos​. Profundamente associado a um universo onírico, quimérico, irreal, o grotesco assume um aspecto de algo que parece fora da realidade. Em diversos estudos que abordam o tema do grotesco na arte, vê-se a questão da transformação e da metamorfose. Victor Hugo fala das inúmeras faces do feio em contraposição à unicidade do belo; Wolfgang Kayser mostra como a metamorfose está presente no tema; Baltrusaitis, em ​Aberrações, aborda a questão da fisiognomonia. A transformação é inesperada; ela está associada diretamente com a estranheza do grotesco e sua capacidade de tirar o espectador de sua zona de conforto. Antes de mais nada, é importante deixar claro que o grotesco está presente em qualquer âmbito cultural, do considerado mais “elevado” ao considerado mais “baixo”. Kayser escreve que “o grotesco é justamente contraste indissolúvel, sinistro, o-que-não-devia-existir”. O grotesco é temível porque anula toda e qualquer grandeza da natureza.

1.3.2. Manifestações do grotesco ao longo da história

Não é possível separar efetivamente o desenvolvimento do termo do conceito em si - ambas as coisas estão interligadas, as definições e significados dialogam com as manifestações artísticas, e as manifestações, por sua vez, desenrolam novos significados e conceituações. No entanto, para fins teóricos e didáticos, fiz uma breve separação, tendo explicado um pouco do desenvolvimento da palavra no tópico anterior e, no momento presente, exponho alguns aspectos que julgo essenciais; há, aqui, um aprofundamento das características já mencionadas, um debruçamento sobre o que seriam as características do grotesco e alguns exemplos existentes. 30

Antes de irmos para o tema do grotesco propriamente dito, julgo importante comentar um ponto: Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002) falam sobre como os mesmos elementos de uma obra combinados de formas diversas produzem diferentes efeitos artísticos. Nesse tipo de combinatória organizada percebe-se a importância da parte formal de um trabalho28 . Segundo essa visão dos autores, os elementos constituintes de uma obra (e o que auxiliaria colocá-la em determinada categoria estética) são o equilíbrio de forças (a relação entre os elementos; a estrutura geral), a reação afetiva (impressão de natureza emocional por parte do espectador), o valor estético (um determinado julgamento de valor que relaciona o equilíbrio e o ​ethos29 da obra) e a possibilidade de trânsito estético. Ao se levar o ​ethos em consideração, percebe-se a forma como a reação afetiva está ligada à categorização da obra. O elemento estético é um signo de comunicação, não um constituinte intrínseco ao objeto - o objeto por si só é neutro. Logo, o espectador é essencial para a categorização (ou seja, para definir se algo é belo, grotesco, ou qualquer outro valor estético), pois é a partir dele que as relações subjetivas se constroem. Entramos, também, em um outro aspecto essencial da atividade estética, que é a construção coletiva - algo que, conforme se perceberá ao longo deste tópico, é essencial na percepção de grotesco de Mikhail Bakhtin. O elemento estético, sendo signo de comunicação, possui esse forte significado no imaginário coletivo e nas relações do espaço social. Percebe-se a influência, por exemplo, do tabu nas representações artísticas: formas carnavalescas, o cômico e a quebra, mesmo que momentânea, de valores. O grotesco, portanto, é um tipo de sensibilidade que encontra sua forma de expressão no coletivo, principalmente. Ameaça as formas de representação demasiadamente idealizadas, tanto pelo riso quanto pela estranheza. O termo grotesco foi definido de diversas formas ao longo do tempo. No entanto, apesar dessa pluralidade de significados, há elementos comuns que estão presentes em todas as suas manifestações, e que o caracterizam enquanto categoria estética. Dentre esses elementos pode-se encontrar o desproporcional, o exagero, o estranho e a relação com o híbrido, a mistura, além da tensão entre o 28

E como, portanto, esses elementos devem ser abordados no ensino de artes. ​Ethos: seria a atmosfera afetiva da obra, que dependeria da relação entre o equilíbrio de forças (elemento objetivo) e da reação emocional (elemento subjetivo). 29

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homem e seu lado animalesco. Bakhtin escreveu em 1941 seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, em que faz uma análise detalhada da obra de François Rabelais, pontuando suas características principais, e nele defende que um dos aspectos mais significativos do grotesco é também a metamorfose e a corporalidade, a constante transformação e o diálogo do corpo e tudo o que nele é contido com o mundo externo. Juntamente com as concepções de beleza, todas as culturas possuem suas concepções de feiura. É complicado determinar com certeza essas noções: uma cultura diversa da nossa pode conter representações estéticas que nos pareçam malévolas e para aquela cultura seja benéfica, assim como esses padrões se modificam com as épocas. Na arte egípcia, por exemplo, via-se inúmeros exemplos de seres híbridos em representações de divindades; na mitologia hindu, idem; na mitologia japonesa, há os yokai30 , que muitas vezes são personificações de fenômenos naturais ou medos reais; na mitologia grega também é grande o número de seres híbridos ou desproporcionais, podendo tanto ser aterrorizantes, como o minotauro e as harpias, quanto cômicos, como o deus Príapo. São, portanto, inúmeros os exemplos do grotesco na arte desde a antiguidade, podendo este assumir diversas faces - seres monstruosos, humanos disformes, criaturas desconhecidas, acontecimentos inacreditáveis. Umberto Eco, em ​História da Feiura, fala dos portentos, os acontecimentos absurdos e prodigiosos que desafiam as leis naturais ou conhecidas. Dentro desses acontecimentos absurdos, que dão origem posteriormente à curiosidade científica e a uma espécie de “catalogação” dos fenômenos extraordinários (os códices da Idade Média, por exemplo), tem-se o monstro como um personagem muito presente; ele contém em si diversos elementos que definem o grotesco: a deformação, desmesurado, o desconhecido, o estranho, o fantástico e a animalidade. Há muita simbologia existente no universo do monstro também. Na Idade Média, o monstro e o diabo são muito presentes no imaginário popular, muitas vezes assumindo uma importância de representação maior que as outras; de certa forma, as criaturas híbridas desse período são uma tentativa de tomar controle e definir algo sobre a natureza através de seus “indícios misteriosos”. 30

Grosso modo, ​yokai poderia significar monstro.

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Interessante que apesar da rigidez moral, o interesse pelo monstro e pelo inferno é alto, despertando grande fascínio; nas catedrais góticas, as gárgulas encantavam seus fiéis; os quadros do inferno eram meticulosamente executados; mesmo a parte sobre o inferno em ​A Divina Comédia, de Dante, se mostra como a que mais desperta fascínio. Entram diversas questões, como o desconhecido, o medo e o fato de que o ser humano se atrai por tudo aquilo que, de alguma forma, o assusta. Mesmo ao se falar do mártir, em que há um claro interesse em propagar a fé e os sofrimentos de Cristo, por exemplo, percebemos o esmero na representação da dor - e um prazer na confecção da obra (afinal, artista e espectador não estão tão distantes assim - o artista também tem que ter uma atitude de apreciação frente à obra que constrói). No Renascimento surge a preocupação com a forma, por conta, dentre outros motivos (como o pensamento científico), da difusão da ​Poética, de Aristóteles.

Tem-se uma preocupação com a catarse e a verossimilhança, ligando a forma fortemente a isso. Nasce então uma tensão entre essa formalidade erudita e as manifestações populares (embora seja possível observar o grotesco presente em diversas obras de grandes artistas, como nas caricaturas de Da Vinci)​.

O

popularesco, como as apresentações da ​commédia dell' arte, se mostra como um movimento de contracultura. Tem-se também a noção de disgusto italiano, ou seja a possibilidade de ter prazer estético com o abjeto ou qualquer coisa que cause aversão segundo preceitos clássicos. O cômico e o grotesco possuem uma relação antiga: vemos em narrativas orais, divindades, existência de bobos-da-corte (principalmente na Idade Média). Ele acaba por se relacionar ao carnavalesco e popular31 . Para Bakhtin, só a relação com a cultura popular permite a plena compreensão do grotesco​; por isso, também, a forte relação com o carnaval. O carnaval é o popular, o caos, a alegria desmedida, o cômico, a relação entre a 31

Bakhtin defende que o gosto estético está inserido no grupo comunitário, só podendo funcionar plenamente numa coletividade. Este autor, por sua vez, por mais que compartilhe com Kayser a necessidade de desconstruir os paradigmas clássicos e possibilitar uma apreensão real do grotesco (coisa que, há tempos, não ocorria), dá prioridade à questão da cultura popular e do carnaval. O grotesco, aqui, não depende mais da obra de arte, ocorrendo, desse modo, o realismo grotesco. A principal simbologia proposta por Bakhtin em sua definição é o corpo grotesco - propenso, este, a transformações e mutações constantes (que se opõem ao fechado corpo clássico). Desse modo, ele defende o corpo grotesco não apenas como um corpo em transformação, mas como um corpo social, algo que está continuamente se renovando, indo em conformidade com a concepção de estética proposta por Baumgarten.

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humanidade e a bestialidade. “A partir da modelagem carnavalesca, entende-se porque o grotesco subverte as hierarquias, as convenções e as verdades socialmente estabelecidas” (SODRÉ e PAIVA, 2002: 59). Em conformidade com o carnaval, há uma valorização das partes baixas do corpo, fisicamente falando - logo, é associado a uma moral reprovável. Tanto o que é excrementício quanto o que é sexual - ou ligado às partes sexuais - tendem a causar repugnância no homem ocidental. Esse mal-estar se manifesta pelo senso de pudor, que varia de acordo com a cultura e com a época, e encontra seu oposto na obscenidade - que, por sua vez, consiste em exibir esses elementos execrados. Muitos comportamentos obscenos encontram seu lugar na comédia32 . É possível ver a força do cômico e do grotesco nas festas e personagens carnavalescas, muito presentes na Idade Média. Essa contradição é importante: ao mesmo tempo em que nos meios mais eruditos do mundo cristão o grotesco é associado ao riso infernal, desesperado e demoníaco, havendo uma associação do humor ao diabo e ao satânico, a liberação dos pudores entre a plebe trazia à vista tudo o que era considerado feio, obsceno ou proibido, derrubando certas ordens sociais (se percebe isso, por exemplo, na figura do bufão). “A população vingava-se alegremente do poder feudal e eclesiástico e tentava reagir, através de paródias dos diabos e do mundo infernal, ao medo da morte e do além túmulo, ao terror das pestes e das desgraças que imperava no decorrer do ano” (ECO, 2007). A comicidade era - e é - necessária àqueles que enfrentavam grandes dificuldades na vida33 . No Humanismo, por sua vez, vimos que houve uma tensão entre a formalidade e as manifestações populares. De modo geral34 , o cômico deixou de

32

A comédia, para Aristóteles, é apenas um dos tipos de feio, o feio sem desgraça nem dor, ao mesmo tempo em que pode ser uma quebra de cânones - tanto estéticos quanto morais -, e subversão ou revolta contra determinada opressão. Segundo Umberto Eco, o cômico seria uma “harmonia perdida e malograda”, o rebaixamento e a frustração de expectativas. Pode ser um ato tanto de ridicularização quanto de libertação. 33 Bakhtin fala do medo cósmico; nessa luta contra o medo, principalmente o medo do cosmos e do aniquilamento total, o grotesco assume o lugar de assimilação material do próprio homem. Essa relação com a materialidade é o que dá a segurança nesse mundo. Além disso, o grotesco também ajuda na superação desse medo por meio da piada. 34 Segundo Bakhtin, no século XV, na França, houve grande liberdade verbal, ao passo que no século XVI foram colocadas regras mais severas e maiores fronteiras entre a linguagem popular e a oficial.

34

fazer parte só do meio popular e passou a integrar a linguagem da corte, se tornando, assim, uma verdadeira revolução cultural. Nesse período, o homem passou a assumir grande importância, tornando-se natural, portanto, que o obsceno passasse a simbolizar essa preferência do humano em relação ao divino. A corporalidade se mostra como um dos elementos mais relevantes do cômico e do grotesco, tendo grande exemplo na obra de Rabelais, nos personagens Gargântua e Pantagruel35 . Bakhtin, conforme já foi visto, defende que o corpo é o elemento mais significativo do grotesco, juntamente com a questão da metamorfose. A obra de Rabelais tem todos os elementos do corpo grotesco com base na cultura cômica popular e no realismo grotesco. Juntamente com a associação entre morte e nascimento, temos o corpo procriador ligado à imortalidade histórica de um povo, à manutenção de sua memória coletiva. Daí compreende-se a razão de se priorizar tanto o coletivo e a transformação, e a necessidade de uma morte para ocorrer um nascimento - como o corpo está em constante movimento, há uma metamorfose, uma transformação, e essa transformação pode se dar através do sexo - comunhão de dois corpos distintos -, da velhice - o corpo reinventando a si mesmo -, ou do parto. A transformação ainda hoje

é vista como algo negativo, pois retira a

segurança na solidez do mundo, no eterno. Como o corpo grotesco em constante movimento, nem pronto nem acabado, ele tem a capacidade de construção, destruição, reconstrução, criação de algo novo. A essa questão do corpo amplamente abordada no Renascimento podemos relacionar a curiosidade científica pela aberração36 , pelos seres disformes e pelo surgimento de uma atitude analítica em relação a diversos fenômenos portentosos. Já no século XVI, é possível ver o surgimento da fisiognomonia, que, conforme visto, consistia

em utilizar

de certas

características físicas

das pessoas para

determinar-lhes disposições de personalidade e caráter: o formato do crânio, por exemplo, supostamente diria suas inclinações para a criminalidade. A fisiognomonia Personagens das obras ​Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos Dipsodos, filho do grande gigante Gargântua e ​A vida mui horrífica do grande Gargântua, pai de Pantagruel. Há nessas histórias corpos gigantescos e muita escatologia. Pantagruel, por exemplo, era tão monstruosamente grande que matou sua mãe ao nascer - essa morte, no entanto, se manifesta de forma carnavalesca e necessária. 36 Por aberração podemos compreender tudo aquilo que é considerado uma anomalia ou imperfeição. 35

35

animal tomou corpo na mesma época, principalmente graças a Giambattista Della Porta. Segundo ele, todo animal teria um caráter predominante, todo homem se associaria fisicamente a um animal e, consequentemente, todo homem possuiria o caráter desse animal. Figura 4. Páginas de ​De humana physiognomonia libri IIII, por Giambattista Della Porta.

Fonte: Site Public Domain Review 37.

Essas duas teorias ganharam popularidade no século XIX,

tomando

proporções perigosas: por associar certos traços de personalidade ou inteligência a características físicas, pensamentos racistas tomaram forma. A demonização do inimigo, que sempre esteve presente na história da humanidade, ganhou justificativas pretensamente científicas e deterministas: quem é mau possui algum defeito ou deformidade física. O problema é que algo que se colocasse fora de determinado padrão

de beleza poderia ser considerado também feio e,

consequentemente nocivo. Os ​freak shows eram comuns, e se percebe neles o 37

Disponível em: .

36

diálogo entre a curiosidade científica, o riso e a zombaria. O riso pode se colocar muitas vezes como uma forma de desumanizar o outro e tornar a crueldade contra ele justificável. Posteriormente, certos temas antes risíveis se tornaram parte do drama romântico, como se vê no personagem Quasímodo, da obra ​O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, e sua aparência disforme - ao mesmo tempo em que ele provoca o riso em seus contemporâneos, é capaz de promover um sentimento de piedade no leitor. O século XIX mostrou, dessa forma, grande interesse pela figura do monstro e do desgraçado - personagens fisicamente ou moralmente horrendos e seres infelizes. Victor Hugo, além de utilizar esse elemento em sua obras também fez a defesa do grotesco no já mencionado prefácio da peça ​Cromwell. Desse modo, o grotesco passou a ser utilizado como categoria estética efetivamente, e uma nova abordagem do feio foi feita, se tornando, assim, um elemento estético desejável. O resgate romântico do feio se deu em grande parte por conta da filosofia do sublime - e as paixões avassaladoras a ele relacionadas - e das novas reflexões sobre o belo - este já no século XVIII parou de se relacionar meramente às regras que compõem um objeto e passou a dizer a respeito aos efeitos que produz no espectador. Além dessa mudança do objeto para a percepção, passou a ser constante a ideia de que o horrendo pode se tornar deleitável na arte - pois estaria em um lugar em que não poderia fazer efetivamente mal para o espectador38 -, modificando-se, desse modo, a impressão que se tinha do feio. As ruínas passam a fazer parte da literatura e das artes visuais, assim como o herói danado e o diabo . Vimos Quasímodo como um dos representantes da criatura condenada pela própria deformidade; a feiura da doença também encontra seu lugar, principalmente na época do Decadentismo39 e do avanço da tuberculose.

38

O horror na ficção, seja ela literatura, cinema ou videogame: o deleite existe quando o perigo não é real. No entanto, no vídeo “Why are we morbidly curious?”, do canal VSauce do youtube, é abordada a questão sobre como esse tipo de situação prepararia o corpo para confrontos reais: o que entra, também, na ideia de catarse, Aristóteles, ​que seria a purgação da alma através de uma grande descarga emocional. 39 O Decadentismo foi uma reação da elite artística à modernização das cidades e consequente massificação dos produtos culturais. Em meio à desilusão cultural da elite artística frente à revolução industrial e à massificação, surgiu o que Umberto Eco chama de religião estética, a busca incansável pela beleza. Para isso, procurou-se estímulos nas mais variadas fontes, inclusive na feiura e nos “abismos do mal”, retomando-se, por exemplo, caminhos do sadismo e satanismo.

37

Com as vanguardas artísticas do século XX as noções de beleza e feiura tomaram proporções ainda maiores: Umberto Eco, em História da Feiura, estabelece uma diferenciação entre o que ele chama de “feio em si”, que seriam excrementos, corpo em putrefação, ou vômito, por exemplo, e o “feio formal”, que consistiria na desproporção, seja de um corpo ou de um objeto - seja na arte ou na natureza. Os artistas das vanguardas desconstruíram não apenas as temáticas de suas obras como havia sido feito no século XIX -, mas também as formas de representação, pretendendo subverter as noções vigentes e chocar o gosto burguês. O feio é, dessa forma, posto orgulhosamente nas novas estéticas, e os novos movimentos buscavam uma ruptura no “esquema perceptivo institucionalizado” (ECO, 2007). Apesar de ter sido amplamente trabalhado e refletido durante o século XIX e de possuir bastantes representações no século XX, com as vanguardas e sua desconstrução canônica, as teorizações sobre o grotesco enquanto conceito acabam em dado momento sendo postas de lado, retornando em duas sérias reflexões apenas após a 2ª Guerra Mundial: ​A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais 40, de Mikhail Bakhtin, e ​O grotesco, de Wolfgang Kayser, ambas já mencionadas anteriormente. Esses estudos são mencionados por Sodré e Paiva em ​O império do grotesco, e segundo eles o grotesco não precisa se limitar a uma mera categoria estética, mas pode se expandir a um “outro estado de consciência”, permitindo a percepção do mundo de modo completamente diverso e promovendo uma desconstrução constante, marcada principalmente pelo conflito entre cultura e corporalidade. Principalmente o grotesco crítico escancara certos aspectos sociais e morais vigentes, dando possibilidades de mudança. No que se refere à relação entre grotesco e contemporaneidade, esses autores falam sobre esteticidade difusa. Para Mario Perniola41, na arte deve haver a instauração do belo convulsivo - ideia que se via fortemente em Andre Breton: “A beleza será convulsiva, ou não será”. Nesse tipo de visão, percebe-se que há uma necessidade de metamorfose, movimentação quase política - é preciso tirar a sociedade de seu atual estado letárgico, e o grotesco entraria aqui como estética inerente à arte e ao pensamento contemporâneos. O grotesco não está presente 40

Bakhtin o escreveu nos anos 30, mas sua difusão maior foi após os anos 50. Filósofo e professor de estética italiano. Ele é mencionado por Sodré e Paiva em ​O Império do Grotesco. 41

38

apenas na obra de arte, mas participa “igualmente da estesia social” (SODRÉ, PAIVA, 2002), da capacidade humana de sentir. O gosto mudou; a partir do século XX, o feio e o grotesco passaram a fazer parte da arte, a ser um de seus componentes mais expressivos, e isso se vê tanto nas artes visuais quanto em outras mídias, como o cinema. Sodré e Paiva, ao falarem do cinema, mencionam de que forma o grotesco sempre esteve ligado a jogos cênicos, destacando novamente a relação com a corporalidade, e mostrando como o ser humano lida com um corpo “deformado” ou diferente do seu (vimos isso na abordagem do diferente como inimigo). Tod Browning, diretor do filme ​Freaks, entraria no chamado grotesco teratológico e crítico, e teria afirmado que a “repugnância com que vemos o anormal, o disforme e o mutilado é resultado de um longo condicionamento por nossos antepassados” (SODRÉ, Paiva, 2002:97). Essa relação com o corpo e o feio é, portanto, dúbia: existe a repugnância e o fascínio concomitantemente. Jung defendia que o gosto está sempre atrasado em relação ao novo, ou seja, para ele aquilo que hoje é considerado feio ou desagradável poderá ser

apreciado

como

grande

arte

futuramente.

Vemos

nas

produções

contemporâneas, assim, um forte movimento de mudança na percepção, como dito acima, embora ainda haja certa resistência por parte do público. Os conceitos estão sempre em transformação, e o feio nunca se apresentou da mesma forma como agora, tão intrínseca à arte: há uma celebração do feio, assim como há questionamentos, enfrentamentos ou rupturas, mas não no mesmo sentido das vanguardas do século XX. Enquanto estas provocavam muito pelo caráter formal, em sua maioria, as obras contemporâneas o fazem muito mais pelo questionamento de conceitos, inclusive quanto ao valor da própria arte. Cabe a reflexão de se a fronteira entre belo e feio realmente desapareceu, ou se apenas o modo de percebê-los e representá-los está diferente. Eco questiona, ao final de História da Feiura, se as representações de feio que vemos na arte e na mídia são na realidade manifestações de uma feiura mais profunda e mais difícil de ser ignorada pela humanidade, e fala da necessidade de compreensão da “deformidade como drama humano”. Independentemente da resposta, e justamente por essa possibilidade indagadora, o grotesco se mostra tão necessário à arte e, conforme veremos, à educação. 39

Capítulo 2. Arte, grotesco e educação

Foi mostrado no capítulo anterior um panorama geral do grotesco na história da arte ocidental, destacando características, aspectos e efeitos que julgo primordiais para a compreensão do fenômeno em sua manifestação e importância. Tendo-se colocado considerações sobre o grotesco na arte, é necessário agora abordar a arte no contexto da educação e, então, analisar mais profundamente a necessidade do grotesco na educação estética ou artística.

2.1. A importância da educação artística

“Esta é a tese: a arte deve ser a base da educação”. É com essa frase, colocada logo no início do primeiro capítulo de ​Educação pela Arte, que Herbert Read inicia o pensamento que permeia um de seus livros mais importantes referentes à educação e à psicologia da arte. Essa é também a crença primeira pela qual se guia o presente trabalho, e este capítulo destina-se a uma abordagem breve dessa ideia. Primeiramente, creio ser importante destacar de que forma Read coloca a arte. Ele não a enxerga como algo metafísico (como grande parte das teorizações do século XIX, que muitas vezes utilizavam até Arte com “A” maiúsculo), mas sim como algo objetivo, como uma linguagem efetivamente, “profundamente envolvida no real processo da percepção, do pensamento e das ações corpóreas” (READ, 2001). Destaca dois elementos principais que a comporiam: a cor e a forma, sendo a forma algo sempre existente na natureza e reproduzido pelo homem, e a cor, associações subjetivas através das sensações que desperta. Neste ponto é abordada a questão da empatia (no caso, seu uso aplicado à estética): grosso modo, o espectador identifica certos elementos na obra que relaciona aos próprios sentimentos e repertório. A partir do momento em que descobre essa subjetividade, cria uma relação com o objeto, e torna-se capaz de observar suas qualidades objetivas e concretas. Parece um tanto paradoxal, mas faz sentido na medida em que deve haver um certo laço afetivo do espectador com a obra. 40

Segundo Eduard Spranger (​apud READ, 2001), os sentimentos que nos tomam ao ver uma obra de arte não são sentimentos percebidos, mas sim sentimentos projetados, associados, de empatia. Os elementos de construção são concretos, e a partir deles sofremos efeitos psíquicos. A subjetividade é do sujeito, e ela se expande para o objeto contemplado. Pode-se inferir, dessa forma, que se algo nos atrai em uma obra é porque esse algo existe em nós - e veremos uma relação entre a educação artística e o grotesco no próximo tópico, em que abordaremos o conceito freudiano de estranho, aquilo que é familiar, mas retorna. - importância do aspecto subjetivo da arte. A imaginação é essencial ao aspecto subjetivo da arte, e o reconcilia à natureza objetiva. Nem a mente nem o objeto contemplado estão isolados; quando o olho percebe algo, o cérebro revive certas impressões anteriores, colocando o objeto percebido em certos padrões. A percepção é, até certo ponto, um ato de discriminação e de retomada. Existe a sensação, que seria a reação motora, mas também há uma resposta afetiva. A essa resposta afetiva, Read dá um sentido estético, visto que para ele mesmo a necessidade de auto preservação depende de um padrão coerente: sem esteticidade, a ação pode ser inefetiva e custar nossa vida. Dewey também vê em toda experiência uma característica estética, ou ela não poderia ser vivenciada com êxito. Depreende-se, portanto, que a atividade estética é de suma importância para a vivência humana. Associada à atividade estética temos a imaginação, que mostra a complexidade

da

mente

humana,

que

necessita

criar

novos

símbolos

constantemente. Para Read, só seria possível perceber a maturação de um ser humano a partir de sua produção de símbolos, e a arte intensifica - ou melhor, possibilita efetivamente - a produção desses símbolos, tornando-se assim, essencial para o desenvolvimento do homem e de sua capacidade de comunicação e produção de novos conhecimentos. Sobre a imaginação, Vigotski42 diz justamente que esta é possibilidade de combinação de vários elementos da realidade, sua reorganização e a criação de um produto que ao mesmo tempo é novo e não é. Distingue no homem dois tipos básicos de impulsos: o reprodutor (ou reprodutivo) e função criadora (ou combinadora). O reprodutor está vinculado à memória e à 42

​La imaginación y el arte en la infancia, 1996.

41

repetição de impressões anteriores., enquanto a atividade criadora é a reordenação dessas impressões. É justamente essa atividade criadora que permite ao homem sua adaptação ao ambiente e sua capacidade de planejamento. A atividade criadora não é algo próprio aos gênios, mas é possível de ser vista em toda e qualquer atividade cotidiana, e se manifesta de forma muito forte na infância, sendo inerente ao desenvolvimento da criança. Em relação à educação estética, Vigotski43 destaca aspectos que acredita serem problemáticos no ensino artístico moderno: primeiramente, não há clareza, para a maior parte dos educadores, da importância dessa área, e menos ainda de seus métodos e objetivos. É extremamente comum esperar que o ensino de arte e de estética, especialmente o voltado para crianças, tenha um objetivo moralizante. Esse tipo de atitude não apenas minimiza as qualidades do próprio fazer artístico como subestima a capacidade da criança - ora, a inteligência dela só tem alcance se for para interpretar alguma regra moral? Além disso, existe um outro erro que acaba prejudicando a educação estética: o estudo dos elementos sociais através das obras de arte. Embora em algum momento essa junção tenha sido importante, atualmente só prejudica tanto a disciplina estética quanto a social. A obra de arte (e isso deve ser entendido bem claramente), embora seja influenciada por pelo contexto histórico, social e cultural pois, afinal, é produzida por um ser humano -, não é um retrato fiel da realidade, mas uma elaboração complexa de elementos desta com muitas outras simbologias, muitas delas particulares de seu produtor - seja ele um grupo ou uma pessoa. Com esse tipo de abordagem, portanto, arrisca-se tanto a ter uma concepção falsa da realidade quanto a esquecer-se totalmente dos elementos estéticos propriamente ditos. Logo, Vigotski defende a importância da obra de arte enquanto tal, sem reduzi-la a um meio, a um intermediário - abordando ensinamentos morais ou estudos sociais, esquece-se a simbologia complexa que nela existe e reduz a possibilidade dessa educação enquanto formadora de linguagem. Ele enxerga a imaginação como parte essencial do desenvolvimento humano, e a arte como parte essencial do desenvolvimento da imaginação, pois esta propicia construção e 43

​Psicologia Pedagógica, capítulo XIII ​Educação estética.

42

ressignificação de conceitos. Read, por sua vez, defende uma educação libertária, eliminando ideias de uniformidade e possibilitando a atividade criadora e a transformação do indivíduo. Este TCC acredita que ambas as abordagens são coerentes e necessárias. Além de todas as dificuldades que o ensino da arte apresenta, temos na mente da criança um dos maiores desafios do educador. Não é possível determinar em que ponto e com que intensidade começam suas influências. Do mesmo modo, o mundo moral é completamente relativo: bem e mal, por exemplo, são conceitos totalmente humanos, surgindo da relação entre homens conscientes de si e de sua própria cultura. O objetivo do educador, portanto, é incentivar o desenvolvimento das qualidades provindas dessa consciência moral e o desenvolvimento integral do indivíduo. ​ 2.2. Estética e grotesco na arte/educação Tem-se associada ao grotesco a noção de ​unheimliech, do inquietante, do estranhamente conhecido. Esse conceito surgiu em um artigo de Freud de 1919 e consiste no estranho que provém do familiar, dividindo-se basicamente em dois tipos: o retorno de medos infantis e o retorno de crenças ancestrais. É interessante tê-lo em mente ao considerar e analisar a relação do grotesco com a educação estética, visto sua característica psicanalítica e a forma como ele pode se relacionar com o tabu, aquilo que é deliberadamente esquecido e recalcado. Portanto, percebe-se a importância psicológica do grotesco - inclusive a catarse que se desenrola nesse processo de enfrentamento de uma obra de cunho, temática ou algum elemento grotesco. Foi possível perceber a força com que a área artística afeta o desenvolvimento humano e, consequentemente, a educação. Foi visto, também, de que forma o grotesco se manifestou ao longo da história da arte, o modo como sempre esteve presente em todas as épocas e movimentos, e o grau de destaque que assumiu em determinados períodos, como o Romantismo e a arte contemporânea.

43

A imaginação é a associação de diversos elementos do real, de suas partes. O grotesco é o exemplo perfeito do ​modus operandi da imaginação, por conta da forma como seus elementos podem ser colocados e organizados. Isso possui relação, inclusive, com a ornamentação grotesca, que são seres existentes que se reorganizam de forma aparentemente caótica - mas que depende de uma atividade organizada, uma racionalização para esses elementos se juntarem. Associa-se também os tipos de grotesco que, de certa forma, têm relação com o abismal - os aspectos do subconsciente e os efeitos desagradáveis que isso pode causar - pois se mexe com algo que quer se deixar silenciado. Além disso, há também a necessidade de desconstrução e reconstrução de imagens e conceitos, tendo como exemplo toda a modificação de conceitos de beleza e feiura nos movimentos de vanguarda. Existe, portanto, essa importância psicanalítica, artística e de linguagem44. O grotesco mantém o pensamento dinâmico, permitindo seu desenvolvimento constante; mexe com o obscuro, movimentando-o e afetando-o; cria diálogos e questionamentos, tanto estéticos quanto morais. O grotesco, assim como Bakhtin o disse, é a metamorfose: ele necessita de e promove mudanças, sendo a forma artística perfeita a ser usada em um processo educacional, visto que a educação também precisa de e ativa a transformação. No que diz respeito à criança, essa importância apenas aumenta, tanto por suas capacidades imaginativas quanto por causa de seu repertório. O grotesco é uma temática constante no universo infantil, seja por meio de contos de fadas, de histórias orais direcionadas a crianças ou de produções em massa de desenhos animados, histórias em quadrinhos e jogos de videogame. Elementos característicos do grotesco que encontram plena representação no universo infantil. Nessas produções voltadas ao público infantil em que há a presença marcante do grotesco, este está associado muitas vezes à vilania, como as bruxas de contos de fadas. É muito comum que personagens aterrorizantes ou bizarros sejam mais lembrados e conquistem mais simpatia do que os que não possuem essas características; há inúmeras situações, por exemplo, em que o vilão é mais

44

Modificação da linguagem e remodelagem constante do vocabulário e do repertório, mantendo vivos e ativos o raciocínio e o pensamento

44

interessante do que o próprio herói da história, como no caso de Scar, do filme Rei Leão, da Disney. Em muitas produções contemporâneas, porém, se tem visto a presença do grotesco, da deformidade e do abismal em seres que não necessariamente maus. Animações de Hayao Miyasaki contém personagens ou situações em si grotescas (ou seja, disformes, absurdas e que causam desconforto), mas que não estão associadas ao mal. Um grande tabu que encontra raízes na sociedade ocidental é a crueldade infantil45 . Schiller46 observa ser algo da natureza humana sentir-se atraído profundamente pelo que é terrível ou mesmo repugnante. Michael Stevens, apresentador do canal do ​youtube VSauce, fala em seu vídeo “Why are we morbidly curious?” justamente sobre a existência da curiosidade mórbida e de sua importância tanto para nossa sobrevivência enquanto espécie quanto para o desenvolvimento da empatia. É extremamente comum, nesta época de novas mídias, a procura na internet pela ​deepweb47 e pelas ​creepypastas48 , que nada mais são, na realidade, do que a necessidade de exploração e a modernização do gosto por histórias de terror e lendas urbanas49. Muito embora muitos dos consumidores desses conteúdos possam vir a ser de fato pessoas mentalmente doentes e/ou criminosas, em grande parte dos casos essa procura se dá por curiosidade. Não é o caso, em absoluto, de incentivar esse consumo - ainda mais considerando suas questões éticas e legais -, mas de compreender que essa necessidade existe e tentar, a partir daí, com o auxílio da arte e dos diversos repertórios disponíveis, naturalizar certos temas e aceitar o grotesco - e, dentro dele, o terror - como categoria estética e gênero interessante para os jovens, e equilibrar as formas de um consumo saudável. Abordar somente obras com representações ou modelos considerados belos ao longo da história da arte é contribuir com a disseminação de um padrão

45

Há inúmeros preconceitos concernentes à criança, e esse é um fortíssimo, tanto quanto a sexualidade infantil. 46 ​Sobre a arte trágica, 1792 ​apud Umberto Eco, ​História da Feiura, 2007. 47 É a parte da internet inacessível pelos sites de busca padrão. 48 Lendas urbanas e histórias de terror que circulam pela internet. 49 É importante ter em mente que, embora esse gosto exista, as situações e os motivos que os contêm são diferentes dependendo do período histórico. Em Pandemonium and Parade, Michel Dylan Foster, ao abordar o conceito de estranho de Freud assume que essa visão vale somente para se referir ao ser humano ocidental dos séculos XX ao XXI

45

excludente de beleza, além de enfraquecer as possibilidade estéticas. A difusão de um estilo específico é uma forma de determinar uma supremacia estética e, consequentemente, algum tipo de controle cultural. Tem-se, conforme já visto no capítulo 1, a animalidade e o popularesco vistos como algo inferior; tem-se o grotesco associado à animalidade e ao popularesco; tem-se o grotesco rebaixado em relação às outras categorias estéticas. A admissão do grotesco no campo educacional não é apenas uma forma de expansão de conhecimento teórico e de desconstrução de conceitos estéticos hegemônicos, mas também é a aceitação de aspectos considerados negativos nas produções dos próprios estudantes: como a violência, por exemplo, muito vista em desenhos animados e videogames. A questão do corpo no grotesco é muito forte. Considerando-se que há desde a Idade Média uma forte moralidade vigente em relação aos instintos, além de um culto ao lado anímico, espiritual do homem (seja ele voltado para a racionalidade ou para a emoção), é de se esperar que essa rejeição ao fenômeno seja forte. Há aqui um controle corporal, moral e, principalmente, cultural muito intenso - ainda mais se relembrarmos que o sublime é algo associado aos sentimentos da alta cultura e o grotesco, às depravações da baixa cultura. O presente trabalho crê que alguns pontos do grotesco devem ser bem pensados e abordados: a deformação, seja esta física, mental ou moral, choca sim. Causa asco, causa repulsa. Por mais degradante ou desagradável que seja admitir isso, é necessário admiti-lo e abordar a questão para então realizar a desconstrução desses conceitos. A deformação, então, deve ser representada como tal, para então haver uma naturalização de fato, uma aceitação dessa natureza. É óbvio que se entra num conflito ético; representação, no entanto, não é sinônimo de apologia. Apreciar algo moralmente “condenável” não nos torna pessoas terríveis, e o objeto estético exerce uma influência e um fascínio muito maiores do que a “lição de moral” contida atrás. Como dito por Vigotski (nota: “A educação estética” capítulo XIII de Psicologia Pedagógica), a necessidade de moralização dá em muitas obras uma estética grosseira, mal construída, de aparência falsa que, além de tudo (ou justamente por sua falsidade) pode causar o efeito oposto do que se esperava. É bom esclarecer que Vigotski não é contra histórias ou obras moralizantes, mas contra aquelas que colocam a moralização 46

acima da construção estética - ora, se não há preocupação primária com a estrutura não é uma obra estética. Ele não critica, também, necessariamente os artistas que produzem essas obras, mas como os educadores as utilizam - a parte efetivamente pedagógica da coisa. De certa forma, a tentativa de se moralizar crianças através da arte ou de julgar sua ética através de escolhas estéticas (por exemplo, supor que uma criança que joga videogame de luta necessariamente é violenta em sua vida cotidiana), além de ser hipocrisia dos adultos, é prejudicial por conta das amarras conceituais, morais e estéticas. A moralidade é algo que colocamos após uma primeira leitura da obra de arte. Na cultura ocidental, como vimos acima, existe uma tentativa muito forte de preservação da infância - ou melhor, da imagem idealizada que se tem da infância. Como podemos perceber ao simplesmente ver as primeiras versões de vários contos de fadas hoje amplamente contados - como Chapeuzinho Vermelho ou Bela Adormecida, para citar dois dos mais conhecidos -, as histórias originais possuem elementos extremamente violentos e sexuais. Isso porque a realidade social era diversa, e a ideia de criança que hoje ainda existe de forma ampla no imaginário geral - a de um ser de profunda pureza e inocência - só foi surgir por volta do século XIX, com a profunda Revolução Industrial, a separação entre o ambiente familiar e o de produção, e o reconhecimento dos direitos da criança. Como qualquer movimento de reação - no caso da revolução, uma resposta a uma situação extremamente penosas para as crianças, e que precisava modificar-se urgentemente -, pode-se afirmar que houve um contraponto exagerado, levando a criança de um adulto em miniatura ao patamar de anjo recém caído do céu - ou seja, negando-se sua humanidade. Felizmente essa noção de pureza e bondade tem sido contestada por teóricos da educação e psicólogos50, o que possibilita uma abertura nas formas de se trabalhar com a criança - tanto na sala de aula como em casa -, e dá espaço à introdução do objeto que aqui nos interessa. Desenvolver o gosto estético no sentido de ampliá-lo, e aceitar novas formas autênticas de representação pode proporcionar, pela catarse e pela sublimação, um entendimento muito maior do fenômeno trabalhado do que uma inclusão forçada

Um exemplo são Diana e Mário Corso, autores do livro ​Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis. 50

47

deste - além de, claro, desenvolver inúmeros aspectos da atividade estética. O grotesco quebra com os paradigmas porque propõe uma experiência estética e mental que tende a ser reprimida no imaginário das pessoas; por quebrar esses paradigmas, repensa a própria função de arte. Ao fazer isso, repensa também o papel da arte na própria história e na educação. O grotesco é também uma possibilidade de democratização do ensino artístico, pois além de aceitar e possibilitar novas reflexões acerca de cânones possibilita a abordagem do repertório do estudante.

Capítulo 3. Relatos e análises sobre manifestações do grotesco em minhas experiências educativas Creio

ser de grande

importância, em um projeto de licenciatura,

principalmente da área artística, uma abordagem da motivação pessoal. Para isso, trago breves relatos acerca de minha relação com o diferente e o início de minha relação com o grotesco, além de histórias acerca de minhas experiências enquanto educadora.

3.1. O corpo diferente Todo trabalho surge em menor ou maior grau de alguma vivência pessoal. O tipo de reflexão que deu origem ao presente projeto data de quando tive meu primeiro contato mais forte com algo que estava distante do que costumava experimentar na vida cotidiana. Em 2002 eu contava com 10 anos de idade, e minha mãe iniciou seu trabalho em um empresa ​home care51, sendo que grande parte de seus pacientes eram crianças neuropatas. A neuropatia é basicamente uma patologia que atinge as terminações nervosas, ou qualquer parte do sistema nervoso. No caso, os pacientes neuropatas dos quais minha mãe cuidava possuíam síndromes genéticas que eram responsáveis por sua condição, e que afetavam sua estrutura óssea - causando malformações -, seu desenvolvimento motor, mental e

Serviço ​home care consiste no atendimento médico e de enfermagem na casa do próprio paciente. O nome da empresa não será divulgado por questão de preservação. 51

48

intelectual, e os tornavam completamente dependentes de sua família e seus cuidadores. Houve em mim, ao entrar em contato com aquelas crianças, um misto de repulsa e compaixão. A condição deles tornava sua vida algo muito diferente da minha vivência. Era necessário a seus responsáveis estarem sempre atentos, exercendo cuidados constantes, por exemplo, de higiene: dar banho, trocar fraldas, aspirar a traqueia, limpar a saliva, sendo que neste último, em algumas ocasiões pude auxiliar​. Eu não compreendia como essas crianças viviam - muitas não escutavam e não enxergavam, e para mim era impossível inferir como se dava a percepção de mundo delas, como sua sensorialidade funcionava. Dentre os pacientes que eram cuidados por minha mãe, alguns deixaram uma impressão mais forte em mim, sendo importante citá-los. São eles: - V.52 : possuía uma doença genética rara que fez seu corpo nascer atrofiado e o manteve cego e surdo. Por não enxergar nem escutar ele não possuía o contato com a realidade que eu possuía, e eu imaginava de que forma ele imaginaria as coisas; ele diferenciava as pessoas pelo toque, tendo uma reação diferente pra cada pessoa. - B.: a conheci quando ela tinha 10 anos. Não era cega nem surda, e ela falava, embora não muito bem. Seu corpo, embora atrofiado, estava em desenvolvimento por conta da puberdade, e eu, ao ficar sabendo que ela ia à escola, perguntei à minha mãe o que aconteceria se ela se apaixonasse por algum menino. A resposta me foi frustrante ao ser dito que muito provavelmente ela não seria correspondida, ​e hoje em dia isso me traz muitas reflexões acerca de nossos preconceitos e nossas questões éticas. - F.: ele tinha cerca de 8 anos de idade quando o conheci. Foi, de todos, o que mais me impressionou, pois o julguei muito inteligente53 . Não era cego, mas não conseguia falar nem se mexer, e tinha o corpo atrofiado também - inclusive suas gengivas e arcada dentária. Para se comunicar utilizava os olhos - apertar era sim, e fechar com força era não.

52

Os nomes de todas as crianças aqui mencionadas serão preservados. Neste ponto é importante destacar que houve uma atitude preconceituosa de minha parte, pois o fato de eu ter me surpreendido com sua inteligência se deve a eu tê-lo subestimado de início. 53

49

Essas crianças mencionadas causaram uma impressão muito forte em mim por conta, principalmente, da aparência de seus corpos. Tive de lidar com inúmeros preconceitos e passar por desconstruções, o que me ocasionou - e ainda ocasionam - questionamentos. Não eram apenas os contatos diretos com as crianças que modificavam a minha percepção. Eu possuía, através desses contatos, muitas dúvidas, e graças a isso mantinha um diálogo constante com minha mãe acerca de seus pacientes. Minha mãe Angela, seja por princípio ou por profissão, nunca se negou a tratar de qualquer assunto comigo, desde tenra idade - sendo, inclusive, criticada por ter me levado ao enterro de minha avó quando eu tinha 3 anos de idade. Havia uma confiança dela em minha inteligência e capacidade de compreensão, e essa confiança é a que tenho tentado constantemente exercitar com as crianças com as quais trabalho. Todos esses pacientes serviram para me fazer confrontar minha repulsa e meu medo, e iniciar a criação de uma nova forma de perceber a realidade ao meu redor. Essas pessoas existem. Elas possuem sua própria forma de sentir o mundo e uma aparência que a princípio afugenta os olhares. Elas remodelam a vida de seus pais, readequam as pessoas ao redor a necessidades específicas. Elas são inegavelmente seres humanos, e ao mesmo tempo não o são como em geral enxergamos um ser humano. Muitas não possuem uma linha de pensamento ou uma forma de vivenciar o mundo como os seres sem sua condição, e essa diferença causa estranhamento. Pode parecer um tanto cruel colocar a situação dessa forma, mas acho necessário para compreender a forma como eu, enquanto pessoa totalmente leiga e afastada desses pacientes, os percebia. Acabei, obviamente, por criar laços afetivos com essas pessoas, o que possibilitou meus questionamentos e minha necessidade de compreendê-las. Percebe-se, portanto, de que forma entrar em contato com o disforme tem o poder de modificar pontos de vista. Devemos abrir a possibilidade de aceitar o elemento grotesco e refletir sobre ele e sobre suas implicações

50

3.2. A criança e o grotesco Além das experiências pessoais que me levaram a repensar as questões acima abordadas, minhas experiências educacionais também me auxiliaram a moldar este trabalho da forma como ele hoje está. Também é interessante compreender de que modo o tema deste trabalho se insere no repertório infantil. Dessa forma, o presente tópico se destinará a abordar brevemente os desenhos animados - vistos por mim como uma das maneiras de trabalhar o grotesco com a criança - e a relatar certas experiências minhas enquanto educadora. Diversas questões que existem no grotesco, como a corporalidade, a escatologia, a menção às partes baixas do corpo e ao instintivo, a metamorfose, a hipérbole e o exagero entram no repertório da criança, e é muito comum ver esses elementos inseridos nos desenhos animados. Para uma melhor compreensão, mencionarei brevemente algumas animações, sejam séries ou filmes, e me focarei em obras da época em que eu era criança e que, portanto, auxiliaram em minha formação atual54. Um dos exemplos que gostaria de mencionar é A Vaca e O Frango, que possui piadas e personagens altamente escatológicos e roteiro ​nonsense: são uma vaca e um frango irmãos biológicos, filhos de dois humanos que não possuem a parte de cima do corpo; além disso, alimentam-se de traseiro de porco e são atormentados por uma representação de Satanás chamada Bundifora. Outro exemplo é Coragem, o Cão Covarde, que possui outro aspecto do grotesco, que é o abismal, tendo presente o sobrenatural, o monstro impalpável, o estranho, a situação absurda. Coragem, a despeito de sua covardia, se depara com inúmeras criaturas bizarras, e embora seja uma obra para crianças, várias partes dão medo, sendo o medo, como vimos, algo importante na vida das pessoas.

54

Não haverá um debruçamento na análise dessas animações, apenas explicações breves para se compreender de que forma o grotesco se insere nessa mídia

51

Figura 5. Cena de​ Coragem, o Cão Covarde.

Fonte: Site Gurl55.

Além desses desenhos animados já mencionados há um mais recente chamado Steven Universe. Essa obra tem sido um dos grandes destaques da emissora Cartoon Network por várias inovações: trata de questões consideradas polêmicas, como temáticas LGBT, conceitos de família, a abordagem da morte, do envelhecimento, da culpa e do fracasso. Logo, Steven Universe é um desenho que creio ser muito rico em exemplificações, pois prova que é possível abordar os mais diversos temas com as crianças - temas que geralmente nós adultos relutamos em abordar. É muito comum, nas escolas, por exemplo, que os professores evitem falar sobre certos assuntos com as crianças - seja por preconceito pessoal, seja por repressão dos pais dessas crianças ou por uma ação opressora do próprio sistema educacional ou da escola -. Existe uma cultura muito forte de proteção a uma infância idealizada56 , uma falsa noção de inocência pura, quando temos consciência de que isso não é verdade: a criança é um ser complexo, possuindo em si, também, maldade e crueldade, como podemos ver não só em pesquisas como na convivência com crianças, e em memórias nossas enquanto infantes (nós cometíamos certas 55

Disponível em : 56 Quando me refiro a proteção à infância é no sentido de proteger a noção idealizada de infância, propagada principalmente pelo cristianismo e pelo Romantismo, de que a criança seria um anjo imaculado - essa noção nociva ao desenvolvimento e à complexidade infantis. É óbvio que a infância enquanto direitos humanos das crianças deve ser preservada.

52

pequenas maldades sabendo que eram maldades, por exemplo). A maldade na infância é um assunto muito polêmico. Retornando a Steven Universe, nesse desenho animado, além de ter alguns desses temas polêmicos, que são colocados de uma maneira muito delicada e bem construída, mostrando ser possível conversar sobre essas coisas com as crianças, temos a presença do grotesco enquanto elemento construtivo. No roteiro, existem as Gems, que são alienígenas capazes de mudar de forma e fundirem-se umas às outras - ou seja, elas são capazes de se transformar em novos seres, e isso dialoga muito com o que Bakhtin dizia sobre o corpo, e o corpo se juntando um ao outro, a metamorfose, a transformação de um ser em outro ser. Há um paralelo também com o nascimento e a morte: assim como a mãe de Pantagruel morre no parto (por ele ser gigantesco), a mãe de Steven, uma Gem, desaparece no nascimento dele, terminando sua vida para poder dar origem à existência dele. Essa morte simboliza a origem do novo, algo que deixa de ser para se transformar. Figura 6. Sugilite, uma das fusões de ​Steven Universe.

Fonte: ​Printscreen de vídeo do Youtube57 .

Muitos outros desenhos animados podem nos auxiliar a enxergar de que forma o grotesco se coloca no imaginário geral, como filmes do Miyazaki, do Studio Ghibli, tendo como exemplo A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado. A Viagem 57

Disponível em: .

53

de Chihiro possui diversos exemplos marcantes do grotesco, dentre eles o momento em que os pais da protagonista se transformam em porcos: tem-se aqui o tema da metamorsofe, da comilança (relação com a escatologia), do porco - um ser com forte simbologia negativa na arte. Há também na figura do Sem-Face o motivo da máscara e do ser disforme, corrompido e misterioso. Figura 7. Cena dos porcos, ​A Viagem de Chihiro.

Fonte: Site Warriors Geek58

Figura 8. Sem-Face,​ A Viagem de Chihiro.

Fonte: Site Boca do Inferno59.

O Castelo Animado, por sua vez, possui três figuras muito fortes: Howl, Sophie e a Bruxa do Nada. A verdadeira forma de Howl é fluida, aparentando por vezes um homem e por vezes uma quimera com corpo disforme, quase uma harpia 58 59

Disponível em: . Disponível em: .

54

mitológica, possuindo toda uma complexidade que dá à história seu caráter. Na figura de Sophie também temos a metamorfose: seu corpo passa da juventude à velhice em um piscar de olhos. Na figura da bruxa tem-se dois momentos de feiura: sua face disforme e sua maldade latente e o momento em que ela é acometida da velhice extrema, que a torna inofensiva. Todas essas características são o que tornam esses personagens e o roteiro fascinantes e extremamente ricos. A parte gráfica e artística é muito detalhada, mostrando esses aspectos das personagens de uma maneira muito bem feita. São filmes que atraem as crianças, por conta dos temas e da construção estética: mexe com o imaginário e a inventividade, e são construídos com maestria e boa técnica. Miyazaki trabalha muito a questão do monstro e do fantástico especificamente no imaginário japonês, mas o monstro também existe nas sociedades ocidentais, sendo muito presente no imaginário da criança. Figura 9. Howl e Sophie.

Fonte: Site Cosplay Research60.

60

Disponível em: .

55

Figura 10. As duas versões da Bruxa do Nada.

Fonte: Blog Adventures in Backstory61.

Além

desse

repertório,

que

fazem

parte

do

consumo

infantil

e,

consequentemente, de sua formação, há também nas crianças a necessidade de produzir, criar obras que tenham em si o elemento grotesco. Uma das experiências mais significativas para mim a nível educacional foi o trabalho como estagiária no Sesc Curumim62 . Eram duas turmas, e na função que ocupava, tive a oportunidade de trabalhar tanto com o grupo da manhã quanto com o grupo da tarde, tendo experiências positivas e muito ricas em ambos os períodos, e lidando com crianças de

diferentes

vivências

familiares

e

escolares,

condições

psicológicas,

personalidades e com os mais variados gostos e repertórios. No entanto, embora eu tenha criado laços afetivos com várias crianças de ambos os períodos e vivenciado com elas experiências que muito acrescentaram para minha ocupação de educadora e minha percepção da arte e da educação, foi no período da tarde que pude entrar em contato com acontecimentos que se relacionam com a temática do grotesco. Essas crianças eram mais críticas, e traziam trabalhos e referências que eram constantes em suas vidas, seja de desenhos animados ou de videogames.Com elas desenvolvemos diversas atividades que mostram como

foi relevante acolher e

trabalhar esse repertório. 61

Disponível em: . 62 O Programa Curumim existe desde 1987, e foi criado pelo Sesc com o intuito de proporcionar diferentes vivências educativas e culturais. De modo geral, o programa consiste em receber crianças de 7 a 12 anos para atividades que envolvam artes visuais, música, teatro, esportes e demais vivências culturais, como culinária. Antes das atividades se iniciarem, eu e os demais educadores tínhamos como tarefa, além de preparar algumas atividades prévias do projeto, de inscrever os interessados no programa. Essa inscrição contava com perguntas como nome e ocupação dos pais, escola, e observações sobre a personalidade, problemas pessoais e possíveis problemas de saúde, física ou mental.

56

Antes de mencionar essas atividades, no entanto, é necessário abrir espaço para uma pequena observação sobre a percepção que as pessoas possuem das crianças. Percebi, enquanto trabalhava lá, um fenômeno que a mim, que tanto carinho sentia por elas, era desagradável. A maioria das pessoas, tanto público quanto trabalhadores do Sesc, tinha certa reserva com os Curumins, muitas vezes antipatizando com eles, ou mesmo hostilizando-os. Em diversas ocasiões isso se devia a certos comportamentos específicos de algumas crianças mais agitadas, como barulho ao pegar o elevador. No entanto, não é possível negar que mesmo em situações completamente controláveis essa antipatia persistia, e que havia uma rivalidade quase imediata. Reflito que isto se deve à insubordinação contra as regras vigentes que havia por parte dos Curumins. A criança é a subversão, e a subversão incomoda. Isso nos faz pensar no significado que a infância e a criança podem ter, no que se espera delas e em como, enquanto adultos, lidamos com elas e com nossa própria noção de infância. Enquanto educadores, tínhamos - e temos - o dever de acolher e defender essas crianças. Por estarmos tão próximos delas, percebíamos sua complexidade e individualidade, e procurávamos desenvolver sua criatividade e possibilidades expressivas. Um dos trabalhos desenvolvidos teve como tema base o quadrinho. O universo dos quadrinhos também é muito comum na vivência infantil: a partir de uma demanda dos próprios Curumins, fizemos o projeto HQ Coletiva, em que cada criança colaboraria para uma revista com uma história. Primeiramente, levamos exemplos dos mais diversos estilos de quadrinhos para eles, abordamos que tipos de materiais poderiam ser utilizados para a confecção de uma história em quadrinhos, de que modo eles poderiam construir o roteiro; deixamos o tema livre, inclusive liberando o uso de violência nas narrativas. Saíram, obviamente, muitas histórias com base em situações cotidianas, com inspiração em contos de fadas (ambas muito importantes); mas houve também a necessidade de se colocar elementos como o sombrio e o animalesco. As crianças possuem agressividade. Suas atitudes de crueldade e violência podem se manifestar entre elas e com seus professores. Existe uma atitude de desafio à autoridade, de querer quebrar as barreiras, de subverter as regras; essa atitude estará presente na criança, pois é própria dela. É assim que ela questiona os 57

valores, vai atrás de novas respostas e se comunica com o mundo - esse questionamento de valores, propondo, com isso, novas soluções, é algo muito constante no grotesco. O grotesco traz novas questões e novas perspectivas tanto quanto a criança. Apesar de todo o tabu sobre a agressividade e crueldade infantis, é possível perceber que esse lado mais obscuro da infância é atrativo para as pessoas - assim como o estranho e sombrio de forma geral. Em abril de 2016 a Revista Mundo Estranho, da Editora Abril, lançou uma edição especial chamada “O lado sombrio da infância”, que reunia 8 reportagens acerca do “lado obscuro” das histórias infantis tanto contos de fadas quanto desenhos animados. Na introdução consta a seguinte passagem: “Diferentemente do que muita gente pensa, a ​MUNDO ESTRANHO não é uma revista para crianças (a maior parte dos nossos leitores, hoje, está acima dos 20 anos). Mas, curiosamente, o tema ​infância sempre fez sucesso com nosso público. Especialmente quando mostrávamos que esse período supostamente “mágico” e “puro”, de que todos se lembram com muito carinho, nem sempre foi tão inocente assim.” (NADALE, Marcel, O lado sombrio da infância, Especial Mundo Estranho, Editora Abril. - São Paulo: Abril, 2016.)

Dentre as reportagens que compõem a edição, uma se chama “A origem sangrenta dos contos de fadas”, e discorre brevemente sobre como eram os roteiros originais de histórias como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Iara e Negrinho do Pastoreio. Embora seja uma abordagem informal e a nível de curiosidade, é bom para perceber o quanto essa temática proporciona uma forte atração para o público, e o quanto o fascínio que exerce demonstra o modo como a infância é idealizada versus os elementos que contém na realidade. Vimos que existe uma romantização da infância, e é necessário desconstruí-la; essa idealização é quase religiosa, e muitas vezes se mostra nociva até mesmo para o bem-estar da criança, como negar sua sexualidade - que não é a mesma que a do adulto - e sua agressividade e crueldade. Cabe relatar, aqui, um caso do Curumim que foi muito significativo para a minha percepção de crueldade e da relação da criança e do horrível. Uma das atividades que propusemos foi passar o filme A menina que roubava livros, baseada no livro homônimo, que conta a história de uma menina alemã em plena Segunda 58

Guerra Mundial. Em uma das cenas do filme há um bombardeio violento, em que morrem muitas pessoas, e as crianças, nessa parte do filme, desataram a rir. Em frente a essa situação, eu e meu colega resolvemos conversar sobre isso, pois consideramos uma reação imprópria para a gravidade da cena. Como professores fomos tomados, portanto, por essa noção de que deveria existir uma atitude correta (numa obra estética, no caso). Acreditar que existam atitudes corretas por parte da criança é muito comum no adulto, e deveríamos tentar evitá-lo, aceitando as atitudes das crianças e pensando através delas. Tentamos, na situação descrita, fazer isso. Após o primeiro momento, decidimos discutir com elas a respeito, e descobrimos coisas que não esperávamos descobrir - uma das crianças respondeu "Ah, é que quando a gente tá nervoso a gente dá risada". Conforme visto no capítulo 2, Vigostski não crê que a moralização através da arte seja benéfico para a educação estética. Essa resposta da criança,

muito sábia e perspicaz, nos mostra duas

coisas: primeiro, não podemos esperar da criança uma atitude moral, e não devemos julgá-la moralmente pela atitude que tomou. Também mostra que, em certas situações, o cômico se torna uma forma de se livrar de um incômodo, virando um instrumento catártico. Além desse caso, é importante mencionar um dos resultados do projeto de histórias em quadrinhos, anteriormente mencionado. Quando o fizemos, saíram as mais diversas histórias, inclusive muitas histórias de violência. Percebemos nelas influências de animes, filmes de ação, filmes de terror, além de necessidades de pesquisas estéticas por parte das crianças. Na história de um Curumim chamado G., por exemplo, se vê muita influência dos filmes de ação, sendo dois aspectos muito interessantes a violência e a parte estética também. Ele construiu a narrativa muito bem; os materiais eram majoritariamente grafite e caneta vermelha, dando um efeito muito forte e mostrando o cuidado com que esse efeito foi construído. Nesse e em outros casos é possível perceber que existe uma preocupação com a estética, um cuidado artístico. Por isso devemos abordar estética com crianças; por elas serem muito sensoriais, elas precisam manifestar artisticamente e se preocupam com a qualidade de seu produto.

59

Figura 11. Trecho da história de G.

Fonte: Arquivo pessoal.

Ao verem sua história, muitos adultos supuseram que ele era uma criança perturbada e violenta. Frente a isso​, algumas considerações sobre G. são relevantes: ele possui um histórico familiar e psicológico complicado, sendo muito hiperativo e difícil de lidar em diversos momentos. Embora tivesse seus problemas, porém, G. era uma das crianças mais atenciosas, criativas, sensíveis e empáticas do programa: sempre se preocupava com os outros, tinha momentos de grande maturidade e era capaz de solucionar problemas artísticos com maestria, sendo um exímio diretor de curtas com seus colegas. O fato de ele ter feito uma história contendo violência não infere que ele será violento, mas que é necessário dar vazão a esse aspecto que existe dentro de si. Ele ser uma criança extremamente carinhosa

60

comprova que uma produção artística (seja um desenho, uma história ou uma letra de música) não define a personalidade ou caráter de um ser humano, e desqualifica a noção de ser ruim trabalhar esse tipo de temática com as crianças. Podemos depreender, portanto, que a associação entre a produção e o consumo dessas crianças e seu comportamento e crenças não estão diretamente relacionados, e isso deve ser levado em consideração ao abordarmos qualquer tipo de temática com elas.

Quanto à sua questão com a subversão, há nelas a

curiosidade e a necessidade de romper limites - limites tanto corporais, quanto sociais e morais. Até que ponto, no entanto, podemos interferir? É lógico que é necessário haver uma mediação, diálogo e discussão para impedir que o bem estar e as integridades física e psicológica das outras pessoas seja prejudicada. No entanto, quando acontece a orientação e a partir de quando começa uma castração - castração de criatividade, desenvolvimento e direitos? Nosso papel enquanto adultos responsáveis por seu desenvolvimento - seja como família ou como educadores - é questionarmos e pensar em estratégias acerca da educação dessa criança, tendo em vista a necessidade de aceitar o repertório grotesco. Considerações finais Inúmeras reflexões foram feitas ao longo da execução deste trabalho: reflexões acerca de que fenômenos poderiam ser considerados grotescos ou não, quando ele poderia ser considerado parte da estética de determinada época (a exemplo da estética contemporânea), suas possibilidades de uso, até que ponto o grotesco e o feio estão de fato separados da beleza. Creio que as considerações ao longo do texto sejam capazes de responder a essas questões, mas acredito que, embora tenha havido breves momentos de separação entre o belo e o feio, de maneira geral a arte sempre apresentou os dois em simbiose um com o outro, em íntima relação. Atualmente, o grotesco é parte inseparável da arte: o próprio conceito de arte se mostra muito difuso, e ela não representa mais somente aquilo que é agradável aos sentidos. Dentro dessa estética contemporânea, em que belo e grotesco não apenas se confundem mas carecem um do outro e se fazem necessários em muitas obras, 61

surgiu também uma relação fora do âmbito elitista da arte, na cultura midiática e de massa, e um retorno, como defendem Sodré e Paiva, ao popularesco. Além disso, existe todo um fascínio pelo grotesco que já foi abordado, o qual facilita a identificação com o fenômeno. O grotesco, portanto, seria uma maneira de aproximar o público infanto-juvenil, público-alvo deste trabalho, do universo artístico. Ele apela ao repertório dessas pessoas, principalmente da cultura popular e midiática, e apela ao seu interesse pelo mórbido, o disforme e o abismal, por exemplo. É necessário criar uma identificação entre essas crianças e a arte, para que elas se sintam à vontade, para que elas se tornem consumidoras e produtoras de arte. Mostrando-se tão intrínseco às produções culturais e ao repertório de nossos estudantes, é essencial que o grotesco seja abordado em todas as áreas que trabalhem arte e cultura, incluindo as escolas. Diversas barreiras se colocam, no entanto, ao abordar essa temática. A primeira é a barreira cultural geral, que, conforme vimos, reproduz inúmeros tabus relacionados à moralidade e à corporalidade, principalmente. Além disso, tem-se uma falsa ideia de infância e subestima-se a capacidade infantil de compreender conceitos e criar defesas, além de um problema referente à educação geral, que nada mais é do que o reflexo de uma cultura conservadora. ​A educação atual é engessada; ela não ocorre de maneira orgânica, a não ser em locais muito específicos, como educativos não formais ou escolas com diferentes visões pedagógicas - e, mesmo nessas condições, muitas vezes a mudança se opera apenas na teoria, pelos mais diversos motivos. Não há aqui qualquer pretensão de se propor uma solução definitiva para o sistema educacional; acredito que a educação deve ser inclusiva e democrática, e o mestre, tal como o diz Rancière63, deve assumir não o papel de detentor do conhecimento, mas de questionador, daquele que propicia condições para que seus aprendizes busquem e produzam conhecimento por conta própria. Talvez seja necessário adequar essa crença à nossa realidade educacional enquanto um novo modelo de pensamento não se configura;

creio,

portanto,

ser o

grotesco um potencial mediador desse

conhecimento. E, muito importante, vimos que dialoga com o repertório dos

63

​O mestre ignorante. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2002.

62

estudantes; possibilitamos, através dele, uma maior participação do estudante na construção de seu próprio conhecimento. Este trabalho defende que o objetivo do educador é ser capaz de reconhecer o fenômeno do grotesco, aceitá-lo como parte integrante da arte, reconhecer o repertório dos estudantes, aceitar esse repertório e permiti-lo dialogar com o conteúdo programático. O conteúdo programático é algo que, desejando-se ou não, é necessário; existe um planejamento que em algum momento deve ser seguido. Esse planejamento e os tópicos nele abordados podem ser modificados ao longo do tempo, mas, independentemente de qual seja, nós, educadores, devemos ser capazes de fazer esse conteúdo dialogar com a vivência dos estudantes - devemos criar pessoas críticas e pensantes, adultos funcionais nas mais diversas linguagens, e para isso a arte é necessária e sua produção também. Tendo algo que os atraia, essa produção será mais genuína, espontânea e caprichada. Além disso, é muito importante no ensino de arte não apenas uma mera reprodução da parte histórica, mas também uma produção dos alunos. Por haver um almejo de seres produtores de linguagem, é necessário incentivar a criatividade dos estudantes. E a produção deles muitas vezes terá a ver com esse grotesco, como pudemos facilmente perceber através de seus trabalhos criados; aceitando o grotesco como parte da arte, e suas diversas manifestações, aceitaremos as produções dessas crianças. Especialmente em momentos em que a arte está desacreditada é que devemos quebrar brutalmente as convenções e trazer o pensamento crítico e o questionamento à tona - e que maneira melhor de fazer isso, em uma faixa etária tão perceptiva e sensorial, do que a partir de uma quebra estética? ​A estética é um dos elementos mais atraentes do ensino, ela leva o estudante à ânsia de procurar saber mais. O grotesco mantém o pensamento dinâmico, permitindo seu desenvolvimento constante; mexe com o obscuro, movimentando-o e afetando-o; cria diálogos e questionamentos, tanto estéticos quanto morais. O grotesco, assim como Bakhtin o disse, é a metamorfose: ele necessita de e promove mudanças, sendo a forma artística perfeita a ser usada em um processo educacional - visto que a educação também precisa de e ativa a transformação. 63

A minha hipótese no início do processo era de que o grotesco é um aspecto importante da arte e da educação estética, devendo ser abordado na educação com crianças. Ao longo da execução, percebi que além dele estar presente em grande parte das manifestações artísticas ao longo da história da arte, é uma forma de aproximar o público leigo desse universo, sendo seu ponto de identificação. Ao longo do trabalho, ao ler e estudar sobre o grotesco, e pesquisando a respeito das opiniões de determinados autores sobre como a educação artística funciona, também pude relacionar esses conteúdos às observações que fiz com as crianças com as quais trabalhei. Percebi mais claramente as formas como a imaginação pode se manifestar, a ligação do grotesco com a inventividade e o onírico, e como a imaginação se relaciona à criança, sua criatividade e à produção artística no geral. Desse modo, eu reforço minha hipótese inicial, usando tanto os estudos teóricos já mencionados quanto minhas análises dos desenhos animados e da atividade da HQ Coletiva com os Curumins. Pretendo dar continuidade a este trabalho, não apenas no âmbito teórico e de pesquisa, aprofundando-me na parte conceitual, mas também na prática, desenvolvendo atividades em sala de aula e em educativos. Há diversas formas de se trabalhar o grotesco e a estética com a criança, e é necessário explorá-las e aplicá-las.

64

Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. ​A imagem grotesca do corpo em Rabelais e suas fontes, em ​A cultura popular da Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987. BALTRUSAITIS, Jurgis. ​Fisiognominia animal, em ​Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas. Tradução: Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. DEWEY, John. ​Ter uma experiência, em ​Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. ECO, Umberto. ​A História da Beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014. ECO, Umberto. ​A História da Feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. HUGO, Victor. ​Do grotesco e do sublime. Tradução de Célia Berrettini. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. KAYSER, Wolfgang. ​O grotesco. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009. READ, Herbert. ​A educação pela arte. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. SODRÉ, Muniz. PAIVA, Raquel. ​O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Editora MAUAD, 2002. VARGAS, Antonio et al. ​Considerações sobre o grotesco como estética contemporânea. Revista Digital Art&, Ano VII, nº11. 2009. ​Disponível em: . Acesso em 04/06/2016. VIGOTSKI, L.S. ​La imaginación y el arte en la infancia. Madrid: Akal Ediciones, 1996. VIGOTSKI, L.S. ​A educação estética, em ​Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. VSAUCE. Why are we morbidly curious? Disponível em: . Acesso em 08/06/2016. 65

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