A importancia historica da cultura independente no Brasil e o circuito fora do eixo

May 26, 2017 | Autor: Rubens Benevides | Categoria: Autonomia, Música Independente, Circuito Fora do Eixo
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II ENCONTRO SBS CENTRO-OESTE SEMINÁRIOS DAS LINHAS DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DA UFG SEMINÁRIO TEMÁTICO ST 2: Cultura, Representações e Práticas Simbólicas

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA CULTURA INDEPENDENTE NO BRASIL E O CIRCUITO FORA DO EIXO

RUBENS DE FREITAS BENEVIDES FCS/UFG

06 a 09 DE DEZEMBRO DE 2016 GOIÂNIA – GO

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA CULTURA INDEPENDENTE NO BRASIL E O CIRCUITO FORA DO EIXO Rubens F. Benevides A rede Circuito Fora do Eixo (FDE) enfrentou pelo menos três grandes momentos críticos mais amplos na última década, cada um com seus seguimentos nos diversos contextos de enunciação e campos de práticas em que se fazia presente. Mas aparentemente há um padrão de rejeição crescente ao circuito e a suas práticas que foi se configurando à medida que elas imprimiam também ideias e concepções divergentes da norma social estabelecida nas distintas esferas de ação na sociedade brasileira. O primeiro momento, mais interno ao campo musical, mas que já dizia respeito a toda a movimentação independente na música em um momento de articulações com os setores públicos, principais financiadores das atividades culturais no país; o tema principal do debate iniciado pela conquista de financiamento para festivais independentes girou em torno da questão do pagamento dos artistas visto pelo iniciador do debate na Internet, o músico João Parahyba, como a parte mais frágil e explorada de toda a chamada Cadeia Produtiva da Música, econômica e politicamente. O músico em sua carta se esqueceu apenas de que a prática, tradicional, de exploração do trabalho musical surgiu em concomitância com a indústria fonográfica e da música em geral e, portanto, não abordou a exploração como uma circunstância histórica que deveria ser superada. O segundo momento crítico, em 2011, com a série de escritos do blog PassaPalavra tematizando o circuito e a forma da sua participação na Marcha da Liberdade, ao que se seguiu a saída de 13 festivais da Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN). Este momento marcou a trajetória do Circuito na medida em que coincidiu com a abertura da Casa Fora do Eixo São Paulo (CAFESP) e com a ampliação dos horizontes sócio-culturais, econômicos e políticos de atuação da rede. Em São Paulo, a partir do debate com o blog Passa Palavra tanto a esquerda paulistana como a direita, representada pelos artigos do colunista cultural do Jornal Folha de São Paulo (FSP) Alvaro Pereira Jr., passaram a criticar direta ou indiretamente o FDE. Este momento era também de enorme produção a partir do circuito cultural em todo o país, que proporcionava grande visibilidade à rede, o que lhe permitia, por sua vez, avançar sobre a própria produção cultural paulistana, ocupando espaços e atraindo a atenção de diversos setores da sociedade. Daí que a mistura de crítica e visibilidade resultou em desconfiança e ruptura nas práticas da música independente com o racha da ABRAFIN. A terceira onda de

críticas e mais ampla de todas eclodiu em 2013 logo ao final das Jornadas de Junho tendo como estopim a participação de dois integrantes da rede no programa de entrevistas RodaViva que gerou uma verdadeira devassa sobre as práticas do circuito, com diversas entradas da rede em diversos programas televisivos e de rádio. O texto que é agora apresentado procura explorar apenas o primeiro momento, cujo evento de maior destaque foi a publicação da Carta aos Músicos e Artistas por João Parahyba em 2010. Mas cada um desses momentos de debate público foram amplamente divulgados e envolveram, direta ou indiretamente, o Circuito Fora do Eixo. Eles remetem para questões de fundo significativas para o conjunto da sociedade brasileira. Ainda que tais questões não sejam muitas vezes verbalizadas nos termos utilizados pelos participantes das discussões que, ao contrário, tenderam a fugir das questões que estavam colocadas pelo desenvolvimento das cenas independentes, preferindo optar pelo posicionamento de especialização setorial. Contudo, as questões que emergiram dos debates vão bem além dos assuntos da produção especializada. Consideramos, portanto, como a principal dessas questões a revelação de um posicionamento político gerado pela emergência da cultura independente no país, no sentido do escândalo democrático conforme a formulação de Jacques Rancière. A cultura independente brasileira constituiu-se no ambiente social propício para a emergência e o desenvolvimento de um universo de práticas nos campos econômico, estético e político que chocam a opinião pública midiática. O choque gera o escândalo da opinião estabelecida que não tinha em conta sequer a possibilidade de uma prática divergente e instaura assim uma disputa política pelo direito de afirmação de motivações e interesses próprios. De modo exemplar, um dos principais aspectos da significação da cultura independente para a sociedade brasileira encontra-se no desenvolvimento e na utilização de tecnologias de economia solidária nos empreendimentos coletivos, especialmente no campo da produção cultural, nas cenas independentes. Evidentemente que o FDE não é o único responsável pelo enorme desenvolvimento que a cultura independente teve no país nos últimos anos, contudo, é claramente uma rede orientada, por princípio, para esse objetivo. Conforme o Programa Fora do Eixo de Cultura 2012 “se, por um lado, fazemos parte do panorama complexo de novos movimentos sociais, somos também gestores de um circuito que está estruturando um mercado viável para a cultura independente brasileira” (FORA DO EIXO, Programa Fora do Eixo de Cultura, 2012). E, mais ainda, a lógica colaborativa da produção musical sempre esteve presente nas cenas independentes, pois o

uso da economia solidária não é de modo algum uma invenção do FDE. O circuito, ao contrário, atuou na elevação do nível de consciência e auto-consciência dos produtores culturais sobre o modelo produtivo das cenas independentes, o que ademais contribuiu fortemente para o modo de circulação artística atualmente existente nas cenas. Há registros de comunidades musicalizadas no país desde o final do período ditatorial no final dos anos 1970 em São Paulo a partir da movimentação no teatro Lira Paulistana e a grande referência do festival Punk “O começo do fim do mundo” em 1986. Em Goiânia/GO há registros de bandas de punk e pós-punk realizando shows já durante quase toda a década de 1980. Em todas elas o princípio da “brodagem” esteve presente. A “brodagem” se constitui na lógica de produção colaborativa das festas e eventos das cenas underground há muito tempo praticada nas comunidades musicalizadas da juventude brasileira. Isto se comprova pela prática dos punks, mas também dos metaleiros e dos integrantes de outros estilos pessoais ligados a gêneros musicais, não apenas de colaboração nos eventos, com bandas se apresentando gratuitamente, mas de trocas entre esses produtores de materiais diversos, desde CDs até camisetas e merchandising das bandas. Estes e diversos outros cenários de aparecimento de coletividades musicalizadas a partir da adoção de estilos diversos se espalham pelo país, assumindo frequentemente um caráter de resistência cultural, étnica e estilística. Vicente (2001) indica, referindo-se a algumas dessas comunidades de estilo, a existência de “circuitos autônomos” já na década de 1990 em diversas regiões do país. Estes circuitos funcionavam ainda tendo em vista o objetivo do sucesso comercial. Interessa-nos nos circuitos musicais da década de 1990, não os seus índices de autonomia, posto acreditarmos que ainda atuavam sob altos índices de heteronomia, mas a própria definição de circuito como formato organizativo da produção musical independente. Conforme Vicente (2001) nos anos 90, ser independente deixou de ser apenas uma possibilidade de sobrevivência econômica para artistas e bandas que queiram se manter fora das majors: tornou-se, também, praticamente o único modo de acesso ao grande mercado, emprestando à ideia de independência um sentido bastante diferente daquele que usualmente lhe conferimos (VICENTE, 2001, p. 187).

Os circuitos, portanto, foram o modo privilegiado de organização de uma diversidade de atores que se encontravam à margem das estratégias das grandes gravadoras. O desenvolvimento das cenas independentes, a partir da movimentação de produtores, músicos e demais atividades se deu tendo como base, principalmente, a

realização de festivais. O ininterrupto crescimento e interação no campo dos festivais possibilitou o desenvolvimento de um setor produtivo. A noção de cadeia produtiva da música sofreu constante crítica a partir da Carta aos Músicos, ali o tema circulou entre o modelo produtivo colaborativo e solidário de produção musical e o modelo industrialmidiático. A crítica que se fazia ao primeiro apontava para a não-remuneração dos artistas. Os agentes do primeiro modelo, ao mesmo tempo, indicavam como resposta uma crítica à popularidade como índice da valorização mercantil e da fetichização da música. Mas, além disso, a prática destes agentes apontava também para uma crítica da indústria fonográfica, em crise devido à mudança tecnológica, mas em cujo modelo os artistas pouco recebiam de seus direitos. De qualquer modo, como um resultado dos enfrentamentos realizados contra as estruturas dominantes na música brasileira pelos agentes das cenas independentes, com o protagonismo do FDE, é possível afirmar que com a cultura independente a esfera cultural brasileira, pela primeira vez, se autonomizou. Do ponto de vista histórico, o processo de autonomização da esfera artística ocorreu juntamente com o processo de modernização que levou a uma afirmação da produção cultural como prática independente dos poderes estabelecidos. A literatura parece ter tido protagonismo nesse processo, a partir da produção de Baudelaire e Flaubert no século XIX na França. A arte passa a produzir valores universalizantes “que transcendem as exigências morais, econômicas e políticas as quais ela estava submetida” (ORTIZ, 1994 [1988], p. 22). Mas é com a fotografia e as novas e múltiplas formas de reprodutibilidade da arte que se desenvolvem a partir do seu advento que um novo princípio da produção artística será difundido, a exposição. Importa assentar sobre esse aspecto a compreensão de que no Brasil, no entanto, não havia acontecido ainda tal processo de autonomização da produção artístico-cultural. Segundo Ortiz (1994), “entre nós as contradições entre uma cultura artística e outra de mercado não se manifestam de forma antagônica” (p. 29). Os desenvolvimentos da esfera cultural na modernidade produziram um campo de produção e circulação restrita e outro campo de circulação ampliada de artefatos culturais, nas sociedades avançadas. Os últimos foram estudados na primeira metade do século XX pelos autores da Teoria Crítica da Sociedade sob, principalmente, o conceito de indústria cultural. Os primeiros aparecem na obra de Bourdieu, especialmente na análise do campo artístico francês. Os campos de produção e circulação restrita, ou subcampos, possuem elementos que se desenvolvem nas frestas da indústria cultural, através de uma lógica rizomática ou em rede. Os subcampos em luta por afirmação da produção musical

possuem duas características: 1) direcionam-se para a autonomização da esfera artística, especialmente no que se refere ao conteúdo universalizante das regras de produção do campo de circulação restrita; e 2) possibilitam a emergência e expansão de um público consumidor de produtos culturais restritos. Subcampos de produção cultural autônomos podem, ainda, levar ao desenvolvimento de abordagens críticas da industrialização e do progresso na cultura e nas artes modernas. Para os agentes culturais (músicos, produtores, comerciantes, etc.) esta crítica é particularmente interessante, uma vez que abre espaço para o desenvolvimento de um modelo produtivo alternativo na cultura, relativamente fora do mercado comercial e fundado em práticas colaborativas. As duas características dos campos de produção cultural restrita estão presentes no desenvolvimento da cultura independente no Brasil. Primeiramente se desenvolveu um campo de circulação restrita com pretensões universalizantes para os artefatos culturais independentes, que denominamos cenas independentes; em segundo lugar, houve a ampliação das cenas independentes, tanto em número de participantes quanto em quantidade de cidades em que passaram a se organizar, gerando um público consumidor de produtos culturais independentes. Ao conjunto dessas características temos denominado de Mercado Intermediário para a Música e a Cultura no Brasil. O conceito de mercado intermediário utilizado aqui pretende indicar a circulação das expressões e artefatos culturais cujos regimes de produção e fruição não são pautados exclusivamente pelas lógicas massificadoras e mercantilizadoras dos mercados estritamente capitalistas. Das cenas independentes, portanto, emergiu, de modo cada vez mais organizado e articulado, desde a segunda metade da década de 1990, um campo de circulação restrita de artefatos culturais no país. Isto se deu, com grande impacto, a partir do momento em que os agentes dessas cenas começaram a se articular e organizar em associações como a extinta Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN) e em redes como o Circuito Fora do Eixo (FDE). A criação dessas duas organizações em 2005 constituiu a culminância de um processo de acumulação de experiências de 10 anos, pelo menos, com os festivais independentes, pois orientavam suas ações para o incremento das dinâmicas de circulação de artistas, agentes culturais, saberes, informações, etc., que vinham ocorrendo entre os produtores culturais de cidades antes fortemente marginalizadas da circulação cultural brasileira. A incorporação dessas localidades talvez seja o primeiro dos deslocamentos provocados pelas cenas e suas entidades nos sedimentos políticos, culturais e sociais do

país, pois, alguns dos principais festivais independentes do país ocorrem em cidades do interior sem maior tradição cultural, como Goiânia/GO, Uberlândia/MG e Cuiabá/MT, que em volume passaram a revelar a enormidade da produção musical no país, tradicionalmente restringida e monopolizada por São Paulo e Rio de Janeiro. Conforme o produtor Pena Schimidt em comentário publicado na ocasião da discussão suscitada pela Carta aos Músicos de João Parahyba: É muito fácil vir agora nomear os primeiros possíveis beneficiários do primeiro possível movimento em prol de estruturar a música. Acontece, justiça seja feita, que estes são os que tiveram tino para se organizar de um novo jeito, sem depender de ninguém, à sua maneira, e já faz muito tempo isso. Por isto, e só por isto, por mérito de seu trabalho realizado, conseguiram se colocar em posição de serem vistos como interlocutores pelas prefeituras, pelas secretarias, pelos órgãos governamentais, depois de um longo período num longo processo que aparentemente culmina agora. Menos, bem menos nas críticas a eles. Voltando ao início, cobrem seus cachets, é simples. A competição continua, e torcemos para que hajam cada vez mais contratantes. E fiquemos de olho porque isto é saudável, ajuda a manter na linha. (sic) (http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-musicos-e-artistas/)

Trata-se de um tipo de deslocamento territorial ou estrutural, mais duro, principalmente pelo seu caráter inicial, em que os sedimentos organizados em torno, principalmente dos polos de distribuição da indústria fonográfica tradicional, são deslocados tanto pelos processos de inovação sócio-tecnológica que desestruturam as dinâmicas produtivas na música quanto pelos novos atores que surgem nas frestas deixadas pela produção cultural massiva. Jogam aqui um papel fundamental as inovações informáticas e suas aplicações nas tecnologias de comunicação que possibilitaram uma verdadeira ocupação de um setor produtivo por agentes que se encontravam completamente excluídos dele. Pode-se adiantar que as entidades da música independente e os festivais com seus produtores organizados em rede a partir de coletivos ou empresas, formaram e continuam formando um público para artefatos culturais não totalmente mercadológicos em diversas cidades brasileiras, dos interiores e capitais. O quantitativo desse público não está disponível, contudo pode-se avaliar seu significado em termos do aumento do número de festivais. Apenas os festivais ligados direta ou indiretamente ao FDE e, mais recentemente, à Rede Brasil de Festivais Independentes passaram de 4 em 2005 para 107 em 88 cidades em 2012, conforme os dados da divulgação da Rede Brasil, fazendo circular 6 mil artistas (REDE BRASIL DE FESTIVAIS INDEPENDENTES, Rede Brasil de Festivais independentes Apresenta: Circuitos Regionais 2012, 2012). Não possuímos elementos para identificar formas extremas de autonomização no campo de produção restrita no Brasil, como ilustra o exemplo de Baudelaire para o

campo artístico francês. Mas pode-se estipular formas avançadas de autonomia através da construção da relação da produção cultural com a noção de direito cultural. É sob esse aspecto que identificamos a importância cultural dos festivais independentes, pois são a partir dos embates travados pelos agentes culturais independentes pela criação de um campo de produção cultural restrita que se abrem as possibilidades da emergência de uma cultura independente e de um mercado intermediário. Sob o aspecto da história dos festivais independentes no país é necessário a observância das situações de luta que seus produtores enfrentaram, especialmente pela afirmação cultural de contextos produtivos comunitários, frente as estruturas locais, nacionais e internacionais da música, da política e da economia. Formas culturais novas parecem sempre estar em situações de embate e luta. Na formulação da autonomia como luta pelo direito à produção cultural e à Cultura, estas possuem um caráter eminentemente político. Por hora deve bastar afirmar que os artefatos artístico-culturais independentes são produzidos com altos níveis de autonomia em relação ao mercado massificado e ao poder estatal, pois o critério de julgamento do valor estético da produção cultural não passa apenas, ou principalmente, pelo valor adquirido pela obra no mercado. Este último é medido pela popularidade da obra, mas o julgamento do público das cenas independentes, principalmente dos festivais, consiste em outro tipo de atribuição, não mercadológica, à obra. Resulta disso que o sucesso do artefato cultural independente não se relaciona estritamente com seu poder de venda, mas antes com valores, não econômicos, mas frequentemente comunitaristas das audiências. Pode-se dizer, ainda, que muito do melhor que foi produzido na música brasileira nos últimos anos emergiu das cenas independentes. O produtor cultural Miranda dá indícios sobre isso em comentário publicado na ocasião da discussão gerada pela Carta aos Músicos do músico João Parahyba: “confesso que hoje as coisas estão bem boas para o novo artista, muito melhor que em qualquer momento que eu já tenha vivido. Muito mais liberdade e disponibilidade de meios para realizar e divulgar seu trabalho. Junto a isso muito

mais

responsabilidade”.

(http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-

musicos-e-artistas/) Cenas independentes são comunidades Segundo Barry Shank (1994) as cenas musicais locais são “comunidades de significados superprodutivas” (p. 122). onde muito mais informação semiótica é produzida do que pode ser racionalmente analisada. Tais cenas retém uma condição necessária para a produção do excitamento da música

rock’n’roll, capaz de mover sobre a mera expressão de valores culturais e desenvolvimento genérico significativos localmente. – isto é, para além da permuta estilística – em direção a uma interrogação das estruturas dominantes de identificação e do potencial de transformação cultural. O traço constitutivo de cenas locais de música e performances ao vivo é a sua exposição evidente de disrupção semiótica, sua potencialmente perigosa superprodução e troca de signos musicalizados da identidade e da comunidade. Através desta exposição de mais do que pode ser compreendido, encorajando a radical re-combinação de elementos humanos em novas estruturas de identificação, as cenas locais de rock’n’roll produzem transformações momentâneas no interior dos significados culturais dominantes (SHANK, 1994, p. 122).

Cenas independentes são, dessa forma, marcadas pelas formas como a arte, de modo geral, inscreve sentido nos territórios. Este sentido se traduz na diversidade de práticas, bem como nos processos de troca simbólicas e materiais que aí tem lugar. Cenas são figuras de comunidade estabelecidas pela inscrição de sentido através das expressões artísticas. Em função da sua abertura à diversidade e ao novo, os signos mobilizados pela música independente produzem estados de ansiedade produtiva que estimulam os processos de troca simbólica e material que consistiram nos fundamentos do enorme crescimento da gravação, circulação e visibilidade dos artistas independentes no Brasil. A forma de arte cujas interfaces com as coletividades possuem maior visibilidade é a música, ainda que não exclusivamente. Interfaces representam as formas como o modo de vida e a arte se imbricam, mas também como as relações estabelecidas nas cenas musicais possuem um importante componente político. O discernimento do componente político na produção musical independente pode ser indicado a partir da obra de Jacques Rancière (2009). Este autor afirma a existência na modernidade de dois regimes principais de produção artística, o regime da representação e o regime estético. Ambos realizam recortes no mundo sensível, nos modos como os indivíduos experienciam a vida, no seu cotidiano, na medida em que os discursos culturais e estéticos produzem processos de identificação e, portanto, exercem efeitos nas tomadas de decisão dos atores sociais. No regime representativo, por um lado, “é a noção de representação ou de mimesis que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar” (RANCIÈRE, 2009, p. 31), não se trata de um procedimento artístico, mas de um regime de visibilidade das artes que é, “ao mesmo tempo, o que autonomiza as artes, mas também o que articula essa autonomia a uma ordem geral das maneiras de fazer e das ocupações” (RANCIÈRE, 2009, p. 31-32). A representação nas artes produz uma analogia global com uma hierarquia das ocupações . No regime representantivo, conforme Rancière (2009), “o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros segundo a dignidade dos seus temas, e o próprio primado da arte da palavra, da palavra em ato,

entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade” (p. 32). Mudanças no regime discursivo que norteia “o fazer” dos artistas são processos políticos na medida em que representam alterações nos modos em que as experiências individuais são percebidas, isto é, indivíduos que estavam anteriormente excluídos dos modos de fazer da arte podem agora considerar-se artistas na medida em que passam a se ver como partícipes da comunidade formada pelos novos recortes da experiência sensível e integrados nas novas ordenações dos significados compartilhados por estas comunidades. O regime estético é o resultado de uma revolução nas formas de conceber a arte, ele “é, antes de tudo, a ruína do sistema da representação, isto é, de um sistema em que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos gêneros da representação (tragédia para os nobres, comédia para a plebe; pintura de história contra pintura de gênero etc)” (RANCIÈRE, 2009, p. 47). A arte é, aqui, tomada como atividade singular, mas, ao mesmo tempo, livre de qualquer regra formal, critério de classificação, “de toda hierarquia de temas, gêneros e artes” (p. 33–34). Assim, a revolução estética faz da arte “antes de tudo a glória do qualquer um – que é pictural e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica” (p. 48). No entanto, aquela ordem geral dos modos de fazer e ocupações, isto é, o comum, continua determinando o produto artístico. É o comum que favorece a vigência do anônimo nas artes, “que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas também depositário de uma beleza específica, é algo que caracteriza propriamente o regime estético das artes” (RANCIÈRE, 2009, p. 47). Através do anônimo a arte passa a ser produtora de sentido em uma diversidade de comunidades antes invisíveis, uma vez que a produção artística pode agora ser pulverizada por toda a sociedade, mas, também, por ser produzida nas diversas localidades e nas mais diversas condições estabelece “partilhas do sensível”, interfaces políticas; como afirma Jason Toynbee, em outro contexto, a “criação [artística] musical pode representar formações sociais em luta” (TOYNBEE, 2000, p. 36). Rancière ataca, assim, as compreensões afirmativas sobre as funções representativas da arte que dominavam o regime representativo. Para Rancière “O regime estético das artes é, antes de tudo, a ruína do sistema da representação, isto é, de um sistema em que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos gêneros da representação (tragédia para os nobres, comédia para a plebe; pintura de história contra pintura de gênero etc)” (RANCIÈRE, 2009, p. 47). As maneiras de fazer da arte possuem no comum sua fonte de materiais e

experiências. Rancière indica como a arte expressa o comum ao afirmar que “a lei do “profundo hoje”, a lei da grande parataxe, consistem em que não exista mais medida, apenas o comum. É o comum da desmedida ou do caos que doravante confere à arte sua potência” (RANCIÈRE, 2012, p. 55). A medida do comum resulta do choque dos heterogêneos, dos poderes distintos, cuja capacidade está em encadear a escrita da história “diretamente com o seu exterior”, rechaçando a homogeneização de temas, formas e superfícies e dando lugar a uma “potência de comunidade disruptiva”. (p. 66). O choque dialético faz “aparecer um mundo por trás de outro”, pois, “trata-se de organizar um choque, de pôr em cena uma estranheza do familiar, para fazer aparecer outra ordem de medida que só se descobre pela violência de um conflito” (p. 67). O estabelecimento da medida do comum também pode ser operada pela analogia simbolista e na forma do mistério, que não opõe mais os mundos, mas que põe em cena, “pelos meios mais imprevistos, um copertencimento. E é esse comum que dá a medida dos incomensuráveis” (p. 68). O mistério pode ser expresso por um sentido de continuidade. Ambos, choque e continuidade, ou “o espaço do choque e o do contínuo podem ter o mesmo nome, História, de fato, a História pode ser duas coisas contraditórias: a linha descontínua dos choques reveladores ou o contínuo da copresença” (p. 70). A característica dupla da História permite que uma metáfora possa ser ao mesmo tempo a expressão da continuidade das práticas de determinada comunidade e/ou, (ao mesmo tempo), produzir um choque dialético entre os campos sociais. Metáfora possui para o autor o sentido de equivalência: ”se uma palavra/enunciação construir essa equivalência. Construir a equivalência é instaurar a solidariedade de uma prática e de uma forma de visibilidade” (RANCIÈRE, 2012, p. 93). A palavra “construir” indica aqui que nem a metáfora nem a equivalência são dadas de antemão nas obras de arte, exigindo esforços interpretativos para saírem à luz. Essa solidariedade construída entre os modos de fazer e os modos de sua visibilidade indica não apenas um caráter artístico das obras, mas o traço da comunidade nelas. Este traço deve equivaler ao traço político das obras de arte. Formas de equivalência encontram-se nas obras mais marginais e nas grandes obras de uma época. Estas, que indicam tanto a continuidade como a diferença, inserem-se na categoria das “Mercadorias visuais” ou “imagens dialéticas” ou “imagens de pensamento”, elas são: a cesura no movimento do pensamento. Naturalmente, seu lugar não é arbitrário. Em uma palavra, ela deve ser procurada onde a tensão entre os opostos dialéticos é a maior possível. Assim, o objeto construído na apresentação materialista da história é ele mesmo uma imagem

dialética. Ela é idêntica ao objeto histórico e justifica seu arrancamento do continuum da história (BENJAMIN, 2006, p. 518).

Quando falamos de autonomia pode-se entendê-la como algo que nasce da práxis produtiva e possui uma conexão íntima com as formas de subjetivação do trabalho autônomo. O capital busca permanentemente impor bloqueios às formas de trabalho vivo, mas o domínio do capital sobre o trabalho vivo só pode ser exercido indiretamente. Daí a necessidade do poder de valorização dos mais diversos campos de produção social, pois, a autonomia não se restringe ao “mundo do trabalho”. A fábrica, o local de trabalho, deixam então de ser o principal terreno do conflito central. A frente de batalha estará ali onde a informação, a linguagem, o modo de vida, o gosto, a moda são produzidos e modelados pelas forças do capital, do comércio, do Estado, da mídia ali onde, dito de outro modo, a subjetividade, “a identidade” dos indivíduos, seus valores, as imagens que fazem de si mesmos e do mundo são perpetuamente estruturadas, fabricadas, moldadas (GORZ, 2004[1997], p. 53).

A autonomia do sujeito social requer para Gorz (2004) o domínio de saberes diversos por parte dos trabalhadores dos campos culturais, morais, políticos e criativos. A ausência dessas condições em situação de intensificação e fragmentação do trabalho podem trazer consequências dramáticas, especialmente em países como o Brasil de democracia recente. É, portanto, no acesso que a força de trabalho conquista às capacidades comunicacionais, relacionais, cooperativas, criativas, as quais não podem ser comandadas e, por isso, implicam a autonomia do sujeito. Isto decorre do fato de que estas capacidades devem ser desenvolvidas em “virtude de iniciativas vinda do sujeito” (GORZ, 2004[1997], p. 53), que podemos indicar um índice social de autonomia. Assim, Gorz (2004 [1997]) indica que: Teoricamente, quanto mais se amplia a autonomia, mais deveria radicalizar-se a recusa da heteronomia. A autonomia do trabalhado requerida pela empresa tenderia a afirmar-se independentemente da necessidade da empresa e a ganhar terreno em todos os planos. O trabalhador independente, no trabalho e pelo trabalho, tenderia cedo ou tarde a recusar sua redução à função produtiva. Deveria, finalmente, questionar tudo o que subtrai a seu poder os motores e os objetivos, a origem e o destino de seu trabalho, as decisões econômicas e políticas que o condicionam (GORZ, 2004[1997], p. 50). (...) A autonomia no trabalho é irrelevante se não for acompanhada de uma autonomia cultural, moral e política prolongando-a além dela mesma; tampouco provém da própria cooperação produtiva, mas da atividade militante e da cultura de insubmissão, de rebelião, de fraternidade, de livre debate, de questionamento radical (aquele que vai à raiz das coisas) e de dissidência que produz (GORZ, 2004[1997], P. 52).

Como figuras de comunidade as expressões artísticas independentes também estão implicadas nos processos de identificação, pois, os significados expressos nas obras e performances ao recortarem o mundo sensível exercem um efeito inclusivo que pode ser identificado no processo de surgimento e desenvolvimento das cenas independentes como comunidades musicalizadas. Há toda uma discussão na Sociologia da Música, na

Etnomusicologia e na Musicoterapia sobre as formas diversas como a música produz vínculos entre os indivíduos e com espaços sociais. Nas cenas independentes brasileiras estes processos ocorreram em torno da produção dos festivais independentes. No entanto, em situações de revolução passiva, como é o caso de parte de nossos países do Sul Global, o que temos em relação a produção musical independente é uma situação próxima daquilo que Gorz (2004[1997]) denomina de “autonomia no interior da heteronomia”. Esta condição enfatiza os limites da autonomia no contexto das sociedades pós-modernas no sentido de apontar para os aspectos limitantes das formas de produção musical e as formas de luta encetadas contra eles. Além disso, há a questão da exigência de intercâmbios como uma característica da circulação estética na modernidade, isto é, a questão de condições gerais de visibilidade dos artefatos artístico-culturais. A questão da visibilidade coloca, para além da criação artística que sustenta desde Baudelaire que a única regra válida é a desmedida, o imperativo à produção artística da ação segundo as regras do mercado. Coloca em relação, portanto, dois impossíveis. Os festivais, de certa forma resolveram essa impossibilidade ao concatenarem as duas demandas. Em primeiro lugar estabeleceram, conforme a exigência do regime estético, espaços democráticos para a apresentação artística sem qualquer hierarquia de temas, gêneros ou artes, e, ao mesmo tempo, possibilitaram condições de visibilidade para os artistas não profissionais sem necessariamente situar os artefatos artísticos sob o princípio de valorização econômica. Isto se deve à utilização de práticas de compartilhamento e colaboratividade na produção dos festivais e das práticas de produção musical, que sintetizamos sob a categoria de economia solidária. Os festivais, desta forma, desencadearam um processo de visibilidade dos novos artistas, que deslocou os artistas estabelecidos das posições que ocupavam nas artes no país. Trata-se de um deslocamento estético que, por sua vez, produziu deslocamentos políticos e institucionais. Pena Schimidt publicou em seu blog, Peripécias do Pena, em fevereiro de 2014, o resultado da pesquisa realizada com 39 listas de melhores CD’s. Interessa-nos o quantitativo de bandas, a cauda longa do setor musical, isto é, o campo de produção restrita. De um total de 359 artistas indicados pelas listas analisadas, que, assim, encontram-se no panorama musical brasileiro, 90 tiveram indicação de 3 ou mais listas, compondo para os participantes da pesquisa, o quantitativo do que poderíamos chamar profissionais. Os 269 restantes “com menos de três indicações. Gente boa que não atingiu o tom em 2013, muita brodagem e carreiras artísticas em formação. A notícia boa é o total de

artistas que entra nessa lista das listas. Temos 359 artistas no panorama, que riqueza, que variedade, que fartura! Agradecemos ao Senhor os próximos anos de vacas gordas para a Música” (SCHIMIDT, 2014). Considerações finais Nas cenas independentes brasileiras os modos de fazer e de fazer ouvir-ver da música foram dependentes dos festivais que implementaram deslocamentos territoriais, estéticos, econômicos e políticos no Brasil. Além disso, a democratização e a forma de visibilidade que proporcionaram à produção musical independente no país, levaram ao aparecimento de obras artísticas caracterizadas pelos critérios do choque e da analogia revelando os erros de contagem e, portanto, os danos e estabelecendo os litígios que marcaram suas trajetórias. Seja sob um ou outro critério de produção artística no mercado intermediário a criação musical independente esteve presente nos palcos dos festivais que determinaram a autonomia como sua característica fundamental, seja no sentido da criação artística seja no das lutas econômicas e políticas empreendidas. Mas é fundamentalmente frente às formas de “polícia”, ou gestão, concentracionista da indústria fonográfica que as formas de produção e circulação musical independente brasileira através dos festivais indicam o movimento independente como demonstração do direito, como manifestação do justo do ponto de vista da parcela reivindicada pelos sem-parcela, ou seja, do litígio pela definição do que é a música como direito. Essa trajetória dos festivais independentes no país que como se pretendeu mostrar proporcionou as condições para o aparecimento de uma grande quantidade de artistas e bandas conforme a análise das listas musicais indica é o que não foi explicitamente tematizada pela Carta aos Músicos e Artistas de João Parahyba. Ainda que a carta possa ser vista a partir de uma ambivalência constitutiva variando entre o depreciamento das novas formas de produção musical e cultural e um tom acertivo que conota certa concordância com as possibilidades abertas pelas novas práticas produtivas na música. Parahyba, um músico estabelecido que atuou como percussionista com artistas renomados da MPB como Jorge Ben Jor e Ivan Lins, aponta o défice dos festivais quanto ao ressarcimento ao trabalho dos músicos frente a uma situação de conquista de financiamento público para os eventos. Contudo, ele desconsidera em primeiro lugar o papel que os festivais tiveram na proliferação de bandas independentes que competiam por visibilidade nos contextos locais tendo em vista serem escaladas para aqueles eventos. A ampliação do numero de bandas, por sua vez, produziu a proliferação de festivais nas mais

diversas cidades – dos interiores e das capitais – que passaram a ser apoiados por instituições como prefeituras (diretamente ou através de Leis Municipais de apoio à cultura), universidades, empresas (como a Petrobrás, a Vivo, entre outras), pelos governos estaduais (em geral através das Leis estaduais de incentivo à cultura) ou governo federal (Lei Rouanet, etc.). O posicionamento de Parahyba, neste aspecto, perde de vista que a diversidade artística cria também modos distintos de ressarcimento do trabalho musical, de forma que artistas iniciantes devem, em geral, percorrer determinado percurso para adquirirem o status dos artistas mais experientes e se situarem como aptos a receberem quantias maiores pelo seu trabalho. Esse processo foi acompanhado, em segundo lugar, pela tendência de participação política direta de seus agentes através da criação de associações e redes que começaram a participar das câmaras e dos conselhos municipais de cultura, bem como dos conselhos estaduais e nacionais, das discussões no contexto das conferências municipais, estaduais e nacionais de cultura, tendo em vista a elaboração do Plano Nacional de Cultura que passaria a determinar as políticas culturais no país, especialmente as políticas de distribuição de recursos públicos aos produtores culturais, historicamente monopolizados pelos artistas mais estabelecidos ligados às grandes gravadoras e às majors. A carta de Parahyba perde de vista o horizonte apontado pela participação política dos agentes da música independente de enfrentamento da monopolização dos recursos públicos e privados pelos artistas/bandas estabelecidos e, neste sentido, de abertura para os artistas independentes (em que se incluem as expressões culturais tradicionais e dos interiores do país) das possibilidades de financiamento de suas atividades. Além disso, é preciso enfatizar em terceiro lugar o papel desempenhado em todo o processo pela mudança tecnológica seja nas formas de gravação e distribuição de fonogramas com a utilização do formato MP3 seja na ampliação do acesso às tecnologias digitais de produção musical e comunicação. Dessa forma, os artistas/bandas passaram a ter a possibilidade de, eles próprios gravarem, as vezes em suas próprias casas, portanto, sem a necessidade de selos e gravadoras, e distribuirem os fonogramas de forma ampla em sites especializados como o MySpace e outros. Além das possibilidades de divulgação de apresentações através de redes sociais como o Facebook. Contudo, aparentemente não apenas Parahyba, mas também amplos setores da sociedade brasileira permanecem presos às formas midiáticas tradicionais de comunicação social com todas as suas formas de manipulação da opinião perdendo as possibilidades transformadoras da ampliação do

acesso à comunicação digital. Este aspecto ressalta as disputas discursivas existentes atualmente que passam pela definição ou abertura dos significados das coisas do mundo e giram em torno da ampliação dos repertórios culturais e políticos ou pela sua restrição. Em todo esse processo o papel exercido pelos coletivos de cultura organizados na rede denominada Circuito Fora do Eixo foi determinante. O FDE radicalizou as formas de produção cultural colaborativas e solidárias já utilizadas nas cenas locais produzindo tecnologias sociais que podiam ser utilizadas pelos agentes nas mais diversas localidades de forma a criar as condições, em especial, para a realização dos festivais. Conforme Savazoni (2014) No diagnóstico feito pela organização, as cenas musicais são compostas por amigos ou parceiros que agem como voluntários constituindo uma força solidária de trabalho, marcada pela informalidade e pela falta de recursos em espécie. É justamente para “minimizar os efeitos negativos das flutuações financeiras no fluxo de caixa” do coletivos que o Fora do Eixo passa a desenvolver um “mercado cultural baseado na troca de serviços” (POLJOKAN et al., 2011, p. 10). O card – a moeda social – entra para sistematizar essas trocas, garantindo assim que se organize um banco de relações mensuráveis. O modelo, escrevem eles, é uma substituição do esquema tradicional de brodagem (camaradagem) que ocorre quando as trocas são informais e assistemáticas.

O FDE tendeu a concentrar as críticas dos diversos setores da produção cultural no país, principalmente sob a acusação de ser um grande utilizador de recursos públicos e do não pagamento dos cachês aos músicos, pois alegadamente utilizaria os recursos para estimular a visibilidade da marca Fora do Eixo. Savazoni contesta essa visão indicando, como se segue, que as práticas do circuito são ao mesmo tempo complexas e não principalmente baseadas na captação de recursos públicos. Da forma como Garland descreve, a impressão é que o Fora do Eixo capta em moeda corrente recursos suficientes para remunerar diretamente todos os artistas que participam dos eventos de sua rede. Na grande maioria das atividades, no entanto, isso não ocorre. Justamente o que viabiliza a realização é a troca de serviços, nos termos acima descritos. Alguns eventos maiores obtêm recursos que são destinados, em larga escala, à manutenção do fluxo de caixa dos coletivos e da infraestrutura necessária para a sobrevivência dos indivíduos que atuam na rede. (SAVAZONI, 2014, p. 76)

Não há espaço neste texto para uma abordagem de toda a complexidade que caracteriza o desenvolvimento do mercado intermediário no Brasil, das cenas independentes e do Circuito Fora do Eixo. Resta-nos, contudo, como uma síntese do dito acima indicar que todo este processo ocorre diante de transformações mais amplas da sociedade brasileira marcadas pelo que diversos autores têm apontado a partir do surgimento de uma nova classe média no país, como resultado principalmente das políticas de redistribuição de renda dos governos trabalhistas do Partido dos Trabalhadores (PT). Assim, como referem Pierre Bourdieu (2008) e Mike Featherstone (1995), o aparecimento

de uma nova classe média produz as condições de surgimento dos chamados “novos intermediários culturais”, com a diferença que no Brasil isto ocorreu com um défice de mais de vinte anos em relação ao mesmo processo na Europa e nos EUA e que, entre nós, muitos destes novos produtores culturais se organizam como coletivos de cultura que operam a partir de lógicas colaborativas e solidárias que os distanciam das lógicas estritamente mercadológicas dos mercados capitalistas. É dentro destas condições que as cenas independentes efetivaram os deslocamentos territoriais, estético-políticos e institucionais indicados no texto. BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Editora UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo; Porto Alegre: Edusp; Zouk, 2008 DANTO, Arthur C.. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014 FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-modernismo. São Paulo: Livros Studio Nobel, 1995. GORZ, André. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1988. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. SAVAZONI, Rodrigo. Os novos bárbaros: a aventura política do fora do eixo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008 SHANK, Barry. Dissonant Identities: the Rock'n'Roll Scene in Austin, Texas. Hanover & London: Wesleyan University Press, 1994. SCHMIDT, Pena. Medindo reputações com listas de melhores do ano. Peripécias do Pena (blog), 2014. disponível em: http://penas.blogspot.com.br/2014/02/medindo-reputacoescom-listas-de.html. Acesso em: 03/12/2016. DOCUMENTOS UTILIZADOS. PARAHYBA, João. Carta aos Músicos e Artistas, 2010. Disponível em: http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-musicos-e-artistas/. Acesso em: 03/12/2016 FORA DO EIXO, Programa Fora do Eixo de Cultura, 2012. (online). REDE BRASIL DE FESTIVAIS INDEPENDENTES, Rede Brasil de Festivais independentes Apresenta: Circuitos Regionais 2012, 2012 (online).

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