A IMUNIDADE JURISDICIONAL DOS ESTADOS ESTRANGEIROS: Um estudo sobre a aplicação do princípio par in parem non habet iudicium

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A IMUNIDADE JURISDICIONAL DOS ESTADOS ESTRANGEIROS Um estudo sobre a aplicação do princípio par in parem non habet iudicium Cynara de Barros Costa12

Resumo: No âmbito das relações entre os Estados é, de longa data, pacífica a aplicação do princípio par in parem non habet iudicium, segundo o qual um Estado soberano não pode se submeter à jurisdição de outro Estado soberano contra a sua vontade. É a chamada “imunidade de jurisdição”, uma das garantias mais importantes do Direito Internacional Público e, consequentemente, das Relações Internacionais. Apesar de ser pacífica a aplicação do princípio, no entanto, são históricas as divergências acerca da sua amplitude e é sobre esse tema que se debruça o presente trabalho. Palavras-chave: Imunidade Jurisdicional; par in parem non habet iudicium; Atos de gestão pública; Atos de gestão privada; acta iure imperii; acta iure gestionis. Sumário: 1. Linhas iniciais; 2. Os privilégios e imunidades no âmbito das Relações Internacionais; 3. A imunidade jurisdicional do Estado; 3.1 Imunidade plena e Imunidade Relativa: Atos de império e atos de gestão; 3.2 A decisão paradigmática da Corte Internacional de Justiça no Caso Ferrini; 3.3 Decisões das cortes brasileiras; 3.4 A imunidade à execução: a Impenhorabilidade dos bens dos Estados; 4. Considerações Finais; Referências. 1. Linhas iniciais “Cooperação” e “integração” tornaram-se palavras de ordem no âmbito das Relações Internacionais. Os Estados, não obstante as suas divergências, tendem a aproximar-se mais e mais, estreitando relações diplomáticas e facilitando o intercâmbio entre os seus nacionais. Com o amadurecimento das relações políticas, crescem as relações comerciais, o turismo, os investimentos, as relações de trabalho e uma série de infindáveis desdobramentos. Com esses desdobramentos, no entanto, as relações entre os Estados, principalmente no âmbito do Direito Internacional Público, vêm se tornando cada vez mais complexas. É o que ocorre com os privilégios e imunidades conferidos aos Estados e a algumas Organizações Internacionais Intergovernamentais, principalmente a chamada “imunidade jurisdicional dos Estados”. Conquanto seja pacífica a aplicação do princípio par in parem non habet iudicium, que para muitos autores tem sua gênese na Idade Antiga, a sua amplitude ainda não é ponto pacífico e gera muitos debates interessantes, conforme se verá ao longo do presente trabalho. 2. Os privilégios e imunidades no âmbito das Relações Internacionais 1

Advogada; Mestra e Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Ex-Professora Substituta da UFPE; Professora da Faculdade Damas da Instrução Cristã. 2 Artigo publicado em 2014 em obra coletiva com as seguintes referências: COSTA, C. B.. A Imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros: um Estudo Sobre a Aplicação do Princípio do Par In Parem Non Habet Iudicium. In: Castro, Thales.. (Org.). Relações Internacionais Contemporâneas: Teorias e Desafios. 1ed. Curitiba: Editora Íthala, 2014, v. Único, p. 207-224.

No âmbito do Direito Internacional Público, os privilégios e imunidades se desenvolveram, inicialmente, com caráter religioso. Apenas com o advento do Estado de Direito é que passaram a constituir uma garantia de respeito aos princípios que norteiam as relações internacionais, principalmente a independência nacional, a autodeterminação dos povos e a não-intervenção. Constituem-se como um conjunto de normas convencionais, provenientes tanto dos costumes internacionais quanto de alguns tratados, destinadas a fornecer um mínimo de segurança jurídica à atuação dos Estados em território estrangeiro. Como exemplo desse conjunto de privilégios e imunidades pode-se citar os benefícios tributários, os privilégios consulares e as imunidades jurisdicionais. Segundo Paul Reuter3, existem dois grupos distintos de imunidades jurisdicionais, com origem e fundamentos diversos: de um lado as imunidades ligadas aos serviços diplomáticos e consulares, ao estatuto das tropas estrangeiras ocupando o território de um Estado e ao regime de navios de guerra estrangeiros em águas nacionais e territoriais; de outro lado as imunidades invocadas por um Estado contra o exercício da jurisdição dos tribunais de um Estado estrangeiro ou de procedimentos de execução desse Estado. Aqui Moll4 adverte que, conquanto ambos os sistemas tenham como titular máximo o próprio Estado estrangeiro, eles apresentam fundamento e finalidade distintos, pelo que não devem ser confundidos e não se deve tentar aplicar a mesma lógica para ambos. Assim, enquanto a primeira ordem de imunidades se destina a garantir isenção e independência às atividades de um Estado no território de outro Estado, a segunda ordem seria uma espécie de imunidade jurisdicional strictu sensu, a que o autor chama de “imunidade jurisdicional do Estado”, com fundamento na regra costumeira par in parem non habet iudicium. A primeira ordem visa a assegurar a inviolabilidade das missões diplomáticas e consulares – proteção que abrange não só os locais das missões, mas também a residência dos seus representantes e os bens e documentos nelas contidos – e está solidamente estabelecida em duas convenções, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, e a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 1963. No presente trabalho, no entanto, voltaremos nossas atenções para a segunda ordem de imunidades, a “imunidade jurisdicional do Estado”, abordando alguns desdobramentos dessa proteção, que teve seu âmbito de aplicação mitigado nos últimos anos, em virtude, principalmente, da atuação das cortes nacionais e internacionais . 2. A imunidade jurisdicional do Estado Antes de falar em imunidade jurisdicional, é necessário esclarecer o que se entende por “jurisdição”. De acordo com Daniel Assumpção5, a jurisdição pode ser entendida como a atuação estatal visando à aplicação do direito objetivo ao caso concreto, resolvendo-se com definitividade uma situação de crise jurídica e gerando, com tal solução, a pacificação social. Em outras palavras, a jurisdição é uma das formas de exercício da soberania interna de um Estado, que permite a aplicação das normas do seu ordenamento jurídico aos casos concretos trazidos ao crivo do Poder Judiciário. A partir dessa definição, pode-se facilmente perceber que a imunidade jurisdicional tem relação direta com a soberania estatal. Ela deriva, de acordo com Francisco Rezek 6, do costume internacional, que consagrou a regra par in parem non habet iudicium, também 3

REUTER, Paul apud MOLL, Leandro de Oliveira. Imunidades Internacionais: Tribunais nacionais ante a realidade das Organizações Internacionais. 2ª ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 23. 4 MOLL, Leandro de Oliveira. Imunidades Internacionais: Tribunais nacionais ante a realidade das Organizações Internacionais. 2ª ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 23. 5 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 4ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 3.

conhecida como par in parem non habet imperium. De acordo com essa regra, que ainda continua predominantemente costumeira, mas já foi ratificada em alguns tratados internacionais (como, por exemplo, a Convenção de Basiléia, de 1972), “entre iguais não há juiz”. Através dela, um Estado soberano não pode se submeter à jurisdição de outro Estado soberano contra a sua vontade. Ou seja, essa espécie de imunidade configura-se como o exercício negativo da jurisdição; uma exceção ao princípio da territorialidade, segundo o qual, dentro dos limites do seu território, o Estado é livre para exercer a sua soberania. De acordo com Antenor Pereira7, essa espécie de imunidade surge da imunidade que era conferida à pessoa do monarca, detentor máximo da soberania até o início da Idade Moderna. Não houve a criação de uma nova imunidade. Transferiu-se apenas a sua titularidade, já que deixa de ser atributo pessoal do governante, tido como soberano, e passa a ser atributo da pessoa jurídica do Estado. Assim, quando um Estado, pessoa jurídica de Direito Internacional, atua no território de outro Estado, a priori, ele não poderá se submeter à jurisdição daquele outro Estado, a não ser que esteja de acordo com essa submissão. Ocorre que essa aparente “liberdade” de atuação de um Estado em território alienígena sofre algumas restrições, conforme se verá a seguir. 2.1 Imunidade plena e Imunidade Relativa: atos de império e atos de gestão Com efeito, a disciplina da imunidade jurisdicional do Estado sofreu algumas alterações com o passar do tempo: passou da imunidade plena para a imunidade relativa, tomando emprestada a lição do Direito Administrativo, que divide os atos do Estado em duas categorias: atos de império e atos de gestão privada (ou tão somente “atos de gestão”). Numa rápida digressão cronológica, podemos afirmar que, em sua gênese, a ideia de imunidade jurisdicional do Estado abarcava os atos praticados pelo Estado de maneira ampla, sem quaisquer distinções quanto à natureza desses atos. Ocorre que, com a globalização e o estreitamento das relações negociais entre os Estados, essa visão começou a ser reformulada tanto por tribunais estatais quanto por cortes internacionais, principalmente no que tange a questões trabalhistas envolvendo Estados estrangeiros e trabalhadores contratados para atuar em missões diplomáticas e representações consulares. De maneira progressiva, então, os tribunais nacionais e algumas cortes internacionais passaram a entender que a imunidade jurisdicional do Estado não deve se estender a todos os atos por eles praticados, mas apenas àqueles que se refiram necessariamente ao exercício da soberania. Passou-se a distinguir os atos de gestão pública (actos jure imperii) praticados pelo Estado, dos atos de gestão privada (actos jure gestionis). Em outras palavras, é possível dizer que o Direito Internacional tomou emprestado do Direito Administrativo o conceito de “atos de império” (atos de gestão pública) e “atos de gestão” (atos de gestão privada), utilizando-os como fundamento para conferir à imunidade jurisdicional do Estado um viés relativo, distinto do absolutismo de outrora. Ocorre que, não obstante a doutrina majoritária aponte uma definição simplista para ambos os conceitos, ainda existe muita controvérsia no que tange ao tema da imunidade estatal. Isso porque quando se quer uma definição didática para distinguir os dois tipos de atos, é comum a doutrina afirmar que os atos de império são aqueles que o Estado pratica no exercício da sua soberania e os atos de gestão são aqueles em que ele se despe da sua condição de Estado soberano e atua como um particular. Não obstante, como dito, essa 6

REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 166 7 MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A renúncia à imunidade de jurisdição pelo estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 160.

definição didática nem sempre é de fácil aferição na prática, diante dos casos concretos que se submetem aos tribunais - quer nacionais, quer internacionais. Em virtude disso, segundo Moll8, desenvolveram-se dois critérios para aplicação prática dessa distinção: o da natureza do ato e o da sua finalidade. Segundo o autor, os Estados europeus e os Estados Unidos utilizam o critério da natureza do ato, enquanto os estados latino-americanos utilizam-se do critério da finalidade do ato. Para exemplificar essa controvérsia, que ainda é capaz de gerar muitas discussões, Dolinger9 aponta dois casos práticos bastante semelhantes que, em virtude do critério adotado, tiveram soluções distintas. Ora, suponhamos que um Estado estrangeiro firme um contrato de compra de suprimentos para o seu exército (tal como couro ou cigarros). Se o critério adotado for o da finalidade, aplica-se a imunidade, já que firmar um contrato de fornecimento a um exército constituiria exercício da função estatal; por outro lado, se for adotado o critério da natureza do ato, o contrato firmado não passaria de um contrato de compra e venda, típico exercício da gestão privada do Estado, ao qual não se aplicaria a imunidade. Hoje, para tentar evitar a insegurança jurídica decorrente da aplicação dessas expressões, os diplomas normativos mais modernos já evitam a sua menção pura e simples, determinando hipóteses em que o Estado pode se beneficiar com a imunidade jurisdicional, ou, ao contrário, definindo as hipóteses em que o Estado não pode invocar a imunidade. Esse é o caso, por exemplo, da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e de seus Bens10, de 2004, que, em sua Parte III, intitulada “Processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar imunidade”, elenca diversas situações em que o benefício não poderá ser aplicado. Como exemplo, têm-se as transações comerciais (art. 10º), os contratos de trabalho (art. 11º), os danos causados a pessoas e bens (art.12º), a propriedade, posse e utilização de bens (art. 13º) e a propriedade intelectual e industrial (art. 14º), dentre outros. A Convenção, contudo, ainda não entrou em vigor, uma vez que necessita da ratificação de no mínimo trinta Estados11. A previsão exemplificada acima, no entanto, é uma exceção. A maioria dos Estados ou ainda não é signatária de nenhum tratado que disponha sobre o tema, ou ainda não promulgou lei que discipline a esse respeito12. O Brasil vive uma situação atípica, pois embora não disponha de lei, ratificou um tratado que disciplina a questão, o Código de Bustamante. Ocorre que o referido diploma é quase centenário, já que foi assinado em 1928, e, por isso, está bastante defasado; além disso, o Código é bastante restrito e, no âmbito das imunidades, se aplica apenas a algumas situações específicas. É por isso que, nas últimas décadas, tem ganhado bastante relevo as decisões das cortes internacionais e dos tribunais nacionais, que muito auxiliam na construção de normas postas no ordenamento jurídico, uma vez que, como visto, as previsões normativas são, em sua maioria, engendradas pelo costume internacional, com o amparo da doutrina e da jurisprudência.

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MOLL, Leandro de Oliveira. Op. cit. p.83 DOLINGER, Jacob. A imunidade jurisdicional dos Estados. Revista de Informação Legislativa, ano 19, n. 76. Brasília: Senado Federal, 1982, p. 13. 10 ONU. Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens. Nova Iorque: 2005. Disponível em: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf? path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c325276593342734c576c75615668305a5867 76634842794d5441745743356b62324d3d&fich=ppr10-X.doc&Inline=true. Acesso em: 18.04.2013. 11 Recomenda-se, a esse respeito, o acompanhamento do trâmite da Convenção, disponível em: http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=III13&chapter=3&lang=en&clang=_en. Acesso em: 18.04.2013 12 Estados que já promulgaram leis disciplinando o assunto: Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá. 9

2.2 A decisão paradigmática da Corte Internacional de Justiça no Caso Ferrini Tendo em vista as limitações do presente trabalho, impossível seria analisar um apanhado de decisões das Cortes Internacionais sobre o tema da imunidade de jurisdição dos Estados. Por essa razão, optou-se por analisar a recente e paradigmática decisão da Corte Internacional de Justiça no Caso Ferrini, que bem demonstra a forma como as cortes internacionais vêm decidindo a respeito do assunto. Trata-se o “Caso Ferrini” de uma disputa envolvendo a Itália e a Alemanha, com intervenção da Grécia, relativa à reparação civil pela violação aos direitos humanos por parte da Alemanha durante a II Grande Guerra. No caso concreto, Luigi Ferrini, cidadão italiano, foi vítima de transferência compulsória13 para a Alemanha, durante o período da invasão alemã à Itália, onde foi compelido a realizar trabalhos forçados na indústria armamentista. O processo de reparação cível iniciou-se em 1998 e, seguindo os trâmites recursais, chegou à apreciação da Corte di Cassazione, a Corte Suprema italiana, que, decidindo a questão da imunidade alemã, declarou o Estado Alemão como parte legítima para responder ao processo, afastando, pois, a imunidade. A partir daí, diversos italianos passaram a buscar reparação judicial perante o judiciário italiano. O principal argumento de defesa alemão, em todos esses casos, era exatamente a imunidade de jurisdição. Além disso, a Alemanha também suscitava em seu favor o fato de que já teria reconhecido, em acordo celebrado com a Itália, em 1961, o dever de reparar as vítimas da ocupação durante a Segunda Guerra. Par a justiça italiana, no entanto, as medidas tomadas pelo Estado Alemão nesse sentido foram consideradas insuficientes, uma vez que não abarcavam todas as categorias atingidas pelos atos de violação. A Alemanha, a partir daí, tendo em vista o crescente número de ações contra ela impetradas perante a justiça italiana e objetivando ver reconhecida a sua imunidade em face dessa jurisdição, decidiu, em dezembro de 2008, submeter a questão a julgamento perante a Corte Internacional de Justiça, tomando por fundamento jurídico o art. 1º da Convenção Europeia para a Solução Pacífica de Controvérsias, de 1957 (European Convention for the Peaceful Settlement of Disputes)14: Article 1 The High Contracting Parties shall submit to the judgement of the International Court of Justice all international legal disputes which may arise between them including, in particular, those concerning: a. the interpretation of a treaty; b. any question of international law;

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Alguns autores falam em “deportação”. Essa, no entanto, não é a melhor denominação para o caso, uma vez que a situação descrita em nada se aproxima do instituto jurídico da deportação, que se dá quando um estrangeiro é compelido a deixar o território de um país pela ausência do justo título de permanência (geralmente o visto). 14 Council of Europe. European Convention for the Peaceful Settlement of Disputes. Strasbourg: 1957. Disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/023.htm. Acesso em: 19.04.2013

c. the existence of any fact which, if established, would constitute a breach of an international obligation; d. the nature or extent of the reparation to be made for the breach of an international obligation. 15

O caso foi aceito para julgamento, com base no artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça16, cuja redação praticamente incorpora o supracitado dispositivo da Convenção Europeia para a Solução Pacífica de Controvérsias: Artigo 36 1. A competência da Corte se estende a todos os litígios que as partes a submetam e a todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou nos tratados e convenções vigentes. 2. Os Estados partes neste presente Estatuto que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tratem sobre: 3. a interpretação de um tratado; 4. qualquer questão de direito internacional; 5. a existência de todo feito que, se for estabelecido, constituirá violação de uma obrigação internacional; 6. a natureza ou extensão da reparação que seja feita pela quebra de uma obrigação internacional. 7. A declaração a que se refere este Artigo poderá ser feita incondicionalmente ou sob condição de reciprocidade por parte de vários ou determinados Estados, ou por determinado tempo. 8. Estas declarações serão remetidas para seu depósito ao secretário Geral das Nações Unidas, que transmitirá cópias delas às partes neste Estatuto e ao Secretário da Corte. 9. As declarações feitas de acordo com o Artigo 36 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional que estiverem ainda em vigor, serão consideradas, respeito das partes no presente Estatuto, como aceitação da jurisdição da Corte internacional de Justiça pelo período que ainda fique em vigência e conforme os termos de tais declarações. 10. Em caso de disputa sobre se a Corte tem ou não jurisdição, a Corte decidirá.

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Numa livre tradução: Artigo 1º As Altas Partes Contratantes devem submeter ao julgamento da Corte Internacional de Justiça todas as controvérsias legais internacionais que possam surgir entre elas, incluindo, em particular, aquelas referentes a: a. A interpretação de um tratado; b. Qualquer questão de Direito Internacional; c. A existência de qualquer fator que, se estabelecido, constituirá violação a uma obrigação internacional; d. A natureza ou extensão da reparação a ser feita pela violação a uma obrigação internacional. 16

BRASIL, República Federativa do. Decreto n° 19.841, de 22 de outubro de 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm. Acesso em: 19.04.2013

O processo causou grande expectativa na comunidade internacional, tendo em vista os seus desdobramentos. Isso porque enquanto a Alemanha alegava ofensa a sua soberania, a Itália, ao se defender, decidiu reconvir, requerendo à Corte que se pronunciasse acerca da obrigação do Estado germânico de indenizar as vítimas em virtude das graves violações de direitos humanos17. Além disso, em 2011, a Grécia solicitou permissão para intervir no caso, com base no art. 62 do Estatuto da Corte, alegando interesse jurídico na solução da questão. Em seu petitório, a Grécia sustentou o interesse na questão, pois, segundo ela, também em seu território haviam sido impetrados alguns casos semelhantes, que ganharam força com o posicionamento da justiça italiana. Além disso, ela afirmava que ambos os Estados litigantes não teriam levado em conta as implicações do caso para terceiros Estados, já que a decisão poderia ser tomada como paradigma para novas decisões e, ainda, gerar reflexos executórios em território estrangeiro. Decidindo finalmente a questão em fevereiro de 2012, a Corte de Haia posicionou-se pelo reconhecimento da imunidade jurisdicional alemã, mesmo em face de reparação civil decorrente de graves violações a Direitos Humanos, em decisão quase unânime, na qual apenas o jurista brasileiro Cançado Trindade se posicionou contrariamente ao pedido 18. Ou seja, a Corte acabou confirmando o costume internacional de aplicação da imunidade jurisdicional com base na doutrina que diferencia os atos de gestão pública dos atos de gestão privada19: 60. The Court is not called upon to address the question of how international law treats the issue of State immunity in respect of acta jure gestionis. The acts of the German armed forces and other State organs which were the subject of the proceedings in the Italian courts clearly constituted acta jure imperii. The Court notes that Italy, in response to a question posed by a member of the Court, recognized that those acts had to be characterized as acta jure imperii, notwithstanding that they were unlawful. The Court considers that the terms “jure imperii” and “jure gestionis” do not imply that the acts in question are lawful but refer rather to whether the acts in question fall to be assessed by reference to the law governing the exercise of sovereign power (jus imperii) or the law concerning nonsovereign activities of a State, especially private and commercial activities (jus gestionis). To the extent that this distinction is

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ICJ. Case concerning jurisdictional immunities of the State (Germany v. Italy). Counter-memorial of Italy. The Hague: International Court of Justice, 2009. Disponível em: http://www.icjcij.org/docket/files/143/16017.pdf. Acesso em: 19.04.2013. 18 ICJ. Immunités Juridictionnelles de l’Êtat (Allemagne c. Italie ; Grèce (Intervenant)). The Hague: International Court of Justice, 2009. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/decisao-corte-internacionaljustica2.pdf. Acesso em: 19.04.2013. 19

ICJ. Op.cit. 2012, p.25

significant for determining whether or not a State is entitled to immunity from the jurisdiction of another State’s courts in respect of a particular act, it has to be applied before that jurisdiction can be exercised, whereas the legality or illegality of the act is something which can be determined only in the exercise of that jurisdiction. Although the present case is unusual in that the illegality of the acts at issue has been admitted by Germany at all stages of the proceedings, the Court considers that this fact does not alter the characterization of those acts as acta jure imperii. 61. Both Parties agree that States are generally entitled to immunity in respect of acta jure imperii(…)20. E essa, como se verá adiante, não é uma posição isolada das cortes internacionais, uma vez que nos tribunais superiores brasileiros, por exemplo, utiliza-se cada dia mais essa distinção. 2.3 Decisões das cortes brasileiras Conforme mencionado no tópico anterior, o Brasil vem seguindo a tendência internacional de relativização da imunidade jurisdicional dos Estados. Antes da Constituição da Républica de 1988, ainda sob a égide da Constituição de 1969, outorgada pela ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal (STF) seguia o costume internacional então predominante, pelo qual deveria ser reconhecida a imunidade absoluta dos Estados. Após a Constituição de 1988, no entanto, os tribunais brasileiros passaram a seguir a tendência internacional de flexibilização do benefício, principalmente no que tange a questões envolvendo matéria trabalhista. Para a construção desse entendimento, no entanto, foi de fundamental importância a atuação do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que, antes mesmo de o STF se posicionar, já vinha decidindo a favor dos reclamantes em diversas reclamações trabalhistas envolvendo Estados estrangeiros. Antes de expor alguma decisão exemplificativa, no entanto, é necessário esclarecer que tais decisões abarcam a relação de emprego existente entre o Estado estrangeiro e pessoas sem qualquer relação com o corpo diplomático desses Estados. Nesses casos, o Estado estrangeiro, em típico ato de caráter privado (acta iuris gestionis) firma com pessoa que não participe do seu corpo diplomático, um contrato de trabalho, como o faria qualquer outro empregador. É de 2003, por exemplo, a seguinte decisão do STF: 20

Numa livre tradução: “60. A Corte não foi invocada para tratar da questão de como o Direito Internacional lida com a imunidade do Estado em relação à acta jure gestionis. Os atos das forças armadas alemãs e de outros órgãos estatais que foram objeto de litígio nos tribunais italianos constituíram claramente acta jure imperii. A Corte observa que a Itália, em resposta a uma questão colocada por um membro do Tribunal, reconheceu que esses atos têm que ser caracterizados como acta jure imperii, não obstante o seu carácter ilícito. A Corte considera que os termos "jure imperii" e "jure gestionis" não implicam a licitude dos atos em questão, mas apenas que esses atos devem ser avaliados com base no Direito que rege o exercício do poder soberano (jus imperii) ou do Direito que rege as atividades não-soberanas de um Estado, especialmente as atividades de caráter privado e comerciais (gestionis cogens). Na medida em que essa distinção é importante para determinar se um Estado tem ou não direito à imunidade de jurisdição perante os tribunais de outro Estado em relação aos atos privados, ela tem que ser aplicada antes que a competência possa ser exercida; já a legalidade ou ilegalidade do ato é algo que pode ser determinado apenas no exercício dessa competência. Embora o presente caso seja incomum, uma vez que a ilegalidade dos atos em questão foi admitida pela Alemanha em todas as fases do processo, o Tribunal considera que este fato não altera a caracterização desses atos como acta jure imperii. 61. Ambas as partes concordam que os Estados têm, em geral, o direito de imunidade em relação a acta jure imperii (...)”.

“Os Estados estrangeiros não dispõem de imunidade de jurisdição, perante o Poder Judiciário brasileiro, nas causas de natureza trabalhista, pois essa prerrogativa de Direito Internacional Público tem caráter meramente relativo (...). A eventual impossibilidade jurídica de ulterior realização prática do título judicial condenatório, em decorrência da prerrogativa da imunidade de execução, não se revela suficiente para obstar, só por si, a instauração, perante Tribunais brasileiros, de processo de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar de litígio de natureza trabalhista” (Ag-RE 222.368-4-PE, Rel. Min. Celso de Mello, 14/02/03 – grifou-se)

Nesse sentido, a Emenda Constitucional N° 45/04, na esteira do pensamento acima explicitado, incluiu no art. 114 da Constituição o inciso I, que assim o dispõe: Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (grifou-se)

Ou seja, a Constituição passou, a partir de 2004, a prever a possibilidade de os Estados estrangeiros se submeterem aos tribunais pátrios quanto a questões envolvendo matéria trabalhista21. Desde então, o tema se tornou pacífico na jurisprudência dos tribunais brasileiros. Ocorre que, como os tribunais não decidem apenas matéria trabalhista envolvendo Estados estrangeiros e, conforme já mencionado, são escassos no ordenamento pátrio os diplomas normativos que tratam da imunidade jurisdicional dos Estados, os tribunais superiores brasileiros têm adotado, em geral, a regra que diferencia caso a caso os atos de gestão pública dos atos de gestão privada, aplicando a imunidade apenas aos primeiros, conforme é possível perceber das seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ): DIREITO INTERNACIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. BARCO AFUNDADO EM PERÍODO DE GUERRA. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE ABSOLUTA. 1. A questão relativa à imunidade de jurisdição, atualmente, não é vista de forma absoluta, sendo excepcionada, principalmente, nas hipóteses em que o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente civil, comercial ou trabalhista. 2. Contudo, em se tratando de atos praticados numa ofensiva militar em período de guerra, a imunidade acta jure imperii é absoluta e não comporta exceção. 3. Assim, não há como submeter a República Federal da Alemanha à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais por ter afundado barco pesqueiro no litoral de Cabo Frio durante a Segunda Guerra Mundial. 4. Recurso ordinário desprovido.

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“Entes de direito público externo”, conforme o art. 42 do Código Civil de 2002, estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público”.

são: “os Estados

(STJ - Recurso Ordinário nº 72 - RJ, Relator: Min. João Otávio de Noronha. Data de Julgamento: 18/08/2009 – grifou-se) CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO. AÇAO DE INDENIZAÇAO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ESTADO ESTRANGEIRO DEMANDADO. IMUNIDADE DE JURISDIÇAO. INAPLICABILIDADE, IN CASU . JUNTADA DE DOCUMENTOS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA. PRESCINDIBILIDADE, IN CASU , DE TRADUÇAO JURAMENTADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO À INSTRUÇAO DO FEITO. RESCISAO DE CONTRATO TÁCITO DE PRESTAÇAO DE SERVIÇOS. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS DA EXISTÊNCIA DO ACERTO. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A imunidade de jurisdição só abarca os atos praticados de jure imperii , daí excluídos, portanto, aqueles praticados de jure gestionis , vez que equiparados estes aos atos corriqueiros das vidas civil e comercial comuns. 2. Hodiernamente não se há de falar mais em imunidade absoluta de jurisdição, vez que se admite seja a mesma excepcionada nas hipóteses em que o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente trabalhista, comercial ou civil, como ocorre na hipótese dos autos, onde o que pretende o autor da demanda é obter reparação civil pelo suposto descumprimento de contrato verbal celebrado com o demandado para a elaboração de projeto para realização de exposição que se realizaria no Rio de Janeiro, sob a denominação de "EXPO MÉXICO - SÉCULO XXI". (...) Recurso ordinário a que se nega provimento. (STJ - Recurso Ordinário nº 26 - RJ 2003/0049144-3. Relator: Ministro Vasco Della Giustina. Data de Julgamento: 20/05/2010 – grifou-se). INTERNACIONAL, CIVIL E PROCESSUAL. AÇAO DE INDENIZAÇAO MOVIDA CONTRA A REPÚBLICA DE PORTUGAL. TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO E DEPORTAÇAO DE CIDADAOS BRASILEIROS POR INSPETORES DA IMIGRAÇAO EM DESEMBARQUE AEROPORTUÁRIO. DANOS MORAIS. DEMANDA MOVIDA PERANTE A JUSTIÇA FEDERAL DE PERNAMBUCO. IMUNIDADE DE JURISDIÇAO. POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇAO, POR VONTADE SOBERANA DO ESTADO ALIENÍGENA. PREMATURA EXTINÇAO DO PROCESSO AB INITIO . DESCABIMENTO. RETORNO DOS AUTOS À VARA DE ORIGEM PARA QUE, PREVIAMENTE, SE OPORTUNIZE AO ESTADO SUPLICADO A EVENTUAL RENÚNCIA À IMUNIDADE DE JURISDIÇAO. I. Enquadrada a situação na hipótese do art. 88, I, e parágrafo único, do CPC, é de se ter como possivelmente competente a Justiça brasileira para a ação de indenização em virtude de danos morais causados a cidadão nacional por Estado estrangeiro em seu território, desde que o réu voluntariamente renuncie à imunidade de jurisdição que lhe é reconhecida. II. Caso em que se verifica precipitada a extinção do processo de pronto decretada pelo juízo singular, sem que antes se oportunize ao Estado alienígena a manifestação sobre o eventual desejo de abrir mão de tal prerrogativa e ser demandado perante a Justiça Federal brasileira, nos termos do art. 109, II, da Carta Política.

III. Recurso ordinário parcialmente provido, determinado o retorno dos autos à Vara de origem, para os fins acima. (STJ - Recurso Ordinário nº 13 - PE 2001/0008276-9. Relator: Min. Aldir Passarinho Junior. Data de Julgamento: 19/06/2007 – grifou-se). DIREITO INTERNACIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. VÍTIMA DE ATO DE GUERRA. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE. 1 - O Estado estrangeiro, ainda que se trate de ato de império, tem a prerrogativa de renunciar à imunidade, motivo pelo qual há de ser realizada a sua citação. 2 - Recurso ordinário conhecido e provido para determinar a volta dos autos ao juízo de origem. (STJ - Recurso Ordinário nº 74 – RJ, Relator: Min. Fernando Gonçalves. Data de Julgamento: 21/05/2009 – grifou-se)

Como última observação digna de nota, as duas últimas decisões não foram trazidas aleatoriamente. É de se perceber que, em ambas, o tribunal menciona a possibilidade de renúncia voluntária à imunidade de jurisdição, previsão igualmente construída pelo costume internacional. Conforme disposto no início deste artigo, a regra par in parem non habet iudicium, ou par in parem non habet imperium significa que um Estado soberano não pode se submeter à jurisdição de outro Estado soberano contra a sua vontade. Ou seja, tendo em vista que o Estado é soberano, ele pode, num ato de soberania, renunciar a sua imunidade jurisdicional e se submeter, voluntariamente, à jurisdição de outro Estado. Essa renúncia será sempre individualizada (diante de cada caso concreto) e pode acontecer de duas formas: quando ele ingressa voluntariamente em uma demanda perante o Judiciário de outro Estado (como autor ou terceiro interveniente – aí a renúncia é tácita); ou quando ele, citado para responder a uma demanda proposta por um terceiro, expressamente renuncia à imunidade e aceita se submeter a julgamento no âmbito daquele processo. O tema da imunidade jurisdicional dos Estados, no entanto, não se esgota aí. Existe, ainda, um último fator agravante, que auxilia na complexidade do tema: a chamada “Imunidade à Execução”, tratada no tópico seguinte. 3.4 A imunidade à execução: a impenhorabilidade dos bens dos Estados A questão da imunidade à execução é ponto crucial do tema em análise, já que tem pertinência com a efetividade das decisões judiciais que, ao afastar a imunidade absoluta dos Estados, podem condená-los ao bem jurídico pretendido por quem se socorre do Judiciário. Explique-se. Segundo Eneas Torres22, é desalentadora a situação daqueles que possuem créditos judicialmente reconhecidos para receber de um Estado estrangeiro, como, p. ex. os ex-funcionários de missões estrangeiras que tiveram reconhecidos os seus direitos trabalhistas, em geral convolados em obrigações pecuniárias. Isso porque, segundo o mesmo costume internacional que flexibilizou a imunidade absoluta, os Estados estrangeiros gozam da chamada “imunidade à execução”. É que no âmbito do exercício da Jurisdição, outrora mencionado, a função do juiz não se limita apenas a dizer a quem cabe o Direito, sendo necessário, muitas vezes, tomar medidas coercitivas que garantam a efetividade das decisões. Por essa razão, a doutrina do Processo Civil cinde a atividade processual, em regra, em duas: o processo de conhecimento e o processo de execução. O primeiro se destina a dar

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TORRES. Eneas Bazzo. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro e problema da execução. Revista do TST. Vol. 78, n.01. Brasília, 2012, p. 78.

resolução à lide; já o segundo se destina a dar efetividade a essa resolução. Assim, por exemplo, se um ex-funcionário de uma missão diplomática, contratado para desempenhar serviços gerais naquela missão quiser receber as verbas indenizatórias que lhe são devidas em decorrência de demissão sem justa causa, ele primeiro deverá provar que possui direito a essas verbas para, só depois, de fato recebê-las. E, nesse caso, tanto poderia receber através do pagamento espontâneo da condenação por parte do Estado estrangeiro, quanto através da execução forçada da sentença – ao juiz, diante de cada caso concreto, foram conferidos poderes para determinar, mediante solicitação do credor ou, em raros casos, de ofício, medidas constritivas, tais como a ordem de bloqueio de contas bancárias, a penhora de bens, a imposição de multas e etc. Ocorre que, conforme mencionado acima, no Direito Internacional vigora a regra da imunidade à execução quanto aos Estados. Logo, no exemplo acima, se o Estado estrangeiro, condenado ao pagamento das verbas indenizatórias, não pagá-las voluntariamente, o ex-funcionário beneficiado pela decisão que reconheceu os seus direitos trabalhistas, ficaria “a ver navios”, já que o juiz não poderia, em virtude da referida imunidade, adotar as medidas constritivas necessárias para garantir o pagamento. Ainda de acordo com Torres23, tanto renomados internacionalistas quanto a própria jurisprudência têm adotado esse posicionamento, admitindo, na via da exceção, apenas a possibilidade de renúncia por parte do Estado executado, tal qual ocorre quanto à imunidade jurisdicional. Para o Direito das Gentes, então, embora a imunidade jurisdicional possa ser relativizada diante dos atos de gestão privada praticados pelos Estados, em regra, estes ainda se beneficiariam com a plena imunidade à execução. O fundamento jurídico desse argumento é o fato de que as medidas constritivas tomadas no bojo de uma execução dirigem-se ao patrimônio do Estado. Contudo, o patrimônio do Estado é patrimônio público, constituído de bens públicos e pertencente ao povo daquele Estado e não aos seus representantes. Logo, goza de impenhorabilidade e, por essa razão, não poderia sofrer as medidas executivas. Não obstante a relevância desse último argumento, muitas são as críticas dos estudiosos do tema, pois para muitos esse benefício torna completamente inócua a relativização da imunidade jurisdicional, já que de nada adianta proclamar o direito se não houver como garanti-lo. Por essa razão, alguns tribunais, inclusive os brasileiros, já vem decidindo também pela relativização dessa espécie imunizante ao afirmar que a imunidade à execução só deveria ser aplicada em relação aos bens diretamente ligados às atividades consulares ou diplomáticas do Estado devedor. Ressalte-se, no entanto, que essa última posição ainda é muito tímida e o entendimento predominante ainda é o de que a imunidade à execução é absoluta. 4. Considerações Finais A problemática que circunda o tema da imunidade jurisdicional demonstra com acuidade a complexa teia de relações que cercam o Direito Internacional Público moderno, tendo em vista que as Relações Internacionais entre os Estados se multiplicam e tornam-se cada dia mais plurais, envolvendo uma série de fatores que não se encontram presentes no âmbito interno, tais como a ausência de uma autoridade central e a ausência de hierarquia entre as suas fontes. É possível também aferir, através do tema, a crescente importância do papel da jurisprudência. As cortes, seja nacionais, seja internacionais, ganham cada vez mais relevância. Suas posições, além de criarem normas, influenciam a celebração de tratados e a 23

TORRES. Eneas Bazzo. Op. cit. p. 89.

criação de legislação interna – afinal, hoje são os tribunais que, em regra, dão a última palavra em termos de imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros. Discutir a regra do par in parem non habet imperium e sistematizar o seu estudo, como se pode notar, não é importante apenas para o profissional do Direito, uma vez que os reflexos do tema se fazem sentir a todos os que, direta ou indiretamente, lidam com Estados estrangeiros em seu dia-a-dia. E com a dinâmica peculiar das Relações Internacionais, é necessária constante atualização, já que, conforme foi visto ao longo deste trabalho, alguns aspectos ainda pendem de solução pacífica.

REFERÊNCIAS BRASIL, República Federativa do. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 17.04.2013. BRASIL, República Federativa do. Decreto n° 19.841, de 22 de outubro de 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm. Acesso em: 19.04.2013 COUNCIL OF EUROPE. European Convention for the Peaceful Settlement of Disputes. Strasbourg: 1957. Disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/023.htm. Acesso em: 19.04.2013 DOLINGER, Jacob. A imunidade jurisdicional dos Estados. Revista de Informação Legislativa, ano 19, n. 76. Brasília: Senado Federal, 1986. ICJ. Case concerning jurisdictional immunities of the State (Germany v. Italy). Counter-memorial of Italy. The Hague: International Court of Justice, 2009. Disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/files/143/16017.pdf. Acesso em: 19.04.2013. ICJ. Immunités Juridictionnelles de l’Êtat (Allemagne c. Italie ; Grèce (Intervenant)). The Hague: International Court of Justice, 2009. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/decisao-corte-internacional-justica2.pdf. Acesso em: 19.04.2013. MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A renúncia à imunidade de jurisdição pelo estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MOLL, Leandro de Oliveira. Imunidades Internacionais: Tribunais nacionais ante a realidade das Organizações Internacionais. 2ª ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 4ª ed. São Paulo: Método, 2012.

ONU. Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens. Nova Iorque: 2005. Disponível em: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf? path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c325276593342734c576c7 5615668305a586776634842794d5441745743356b62324d3d&fich=ppr10X.doc&Inline=true. Acesso em: 18.04.2013. REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. TORRES. Eneas Bazzo. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro e problema da execução. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Vol. 78, n.01. Brasília, 2012.

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