A INEFICÁCIA DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

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11 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE DE DIREITO

A INEFICÁCIA DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

LÍVIA TEIXEIRA COSTA ZAMITH

RIO DE JANEIRO 2016 / 2º Semestre

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LIVIA TEIXEIRA COSTA ZAMITH

A INEFICÁCIA DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito, sob orientação da Professora Dra. Cristiane Brandão Augusto Mérida.

RIO DE JANEIRO 2016 / 2º Semestre

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LIVIA TEIXEIRA COSTA ZAMITH

A INEFICÁCIA DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Monografia de final de curso, elaborada no âmbito

de

graduação

em

Direito

da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Dra. Cristiane Brandão Augusto Mérida.

Data de aprovação 12/12/2016.

Banca Examinadora: ________________________________________________ Profa. Dra. Cristiane Brandão Augusto Mérida

________________________________________________ Membro da Banca ________________________________________________ Membro da Banca

RIO DE JANEIRO 2016 / 2° Semestre

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LÍVIA TEIXEIRA COSTA ZAMITH

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Zamith, Lívia Teixeira Costa Ineficácia da Criminalização do Aborto no Brasil / Lívia Teixeira Costa Zamith. -Rio de Janeiro, 2016. 138 f. Orientadora: Cristiane Brandão Augusto Mérida. Trabalho de conclusão de curso (graduação) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, Bacharel em Direito, 2016. 1. Aborto. 2. Direito Comparado:Aborto Como uma Questão Global. 3 Brasil e o Aborto. I. Augusto, Cristiane Brandão, orient. II. Título.

CDD 341.55621

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AGRADECIMENTOS

A mim. Pode soar estranho, mas esse momento nunca se realizaria se a menina que entrou na faculdade em 2009.2, nesse meio tempo até então, não tivesse crescido, amadurecido e se tornado uma mulher que, quando as coisas saíram do seu controle, respirou fundo e (re)começou. Se eu pudesse colocar este trabalho em uma cápsula do tempo e enviar à mim mesma há uns anos, mandaria junto com um bilhetinho falando que tudo ficaria bem. Agradecer a qualquer outra coisa seria menosprezar a minha força de vontade que me fez chegar até aqui. Aos meus pais, Gisele e Alberto, que sempre me deram apoio incondicional. Ao perceber que as coisas dariam certo, respeitaram o meu tempo e proveram o ambiente favorável para que esse tão esperado momento, o primeiro passo de uma vida, fosse dado da forma mais plácida possível. Vocês são meus exemplos e espero que, assim como eu aprendi com vocês, eu possa retornar com todo conhecimento e experiência que adquiri e irei apreender a partir de agora. Aos meus irmãos, Daniel e Thaís, que sempre estiveram do meu lado em todos os momentos. Minha mãe sempre disse que não há amigo na vida maior que um irmão e eu sempre corrigi, irmãos são diferentes de amigos. São eles que vivem e convivem com você, aprendendo e errando juntos. Espero que vocês consigam se encontrar, mas saibam que haverá um porto seguro em mim sempre que estiverem à deriva. À minha Maia, tão esperada e tão companheira. Realização de um sonho de infância que finalmente chegou para harmonizar e dar todo amor incondicional que só um ser como um cachorro é capaz de prover. À minha grande família. Primeiramente aos meus avós maternos e paternos, Carlos Alberto, Anna Maria, Antônio Carlos e Suely (in memoriam). Vocês foram meus segundos pais, quando meus não podiam estar em casa. São todos um exemplo de vida, capazes de construir uma enorme família, dedicando sempre ao bem-estar de todos. Meus tios e primos,

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especialmente Simone, Elaine, Fabiano e Paula (muito mais que uma prima). Obrigada por tudo. Aos meus amigos. Aqui creio ser um dos agradecimentos mais representativos, pois vocês fazem dos meus dias melhores, e mesmo quando tudo parece ruim, sempre dão uma palavra ou um gesto de apoio para que eu consiga continuar. Primeiramente àqueles que eu conheci na minha primeira infância e trago comigo até hoje: Fernanda, Alexandre e Alessandra - que a nossa amizade continue fazendo parte das nossas histórias. Em Brasília conheci Juliana e Larissa, que ainda levo com muito carinho, apesar da distância. Não consigo nem mensurar a alegria de ter nos meus dias, para todos os momentos (mesmo) pessoas como Pri, Flávia, Marcella, Zé, Pri Gomes, Ana, Giu, Cabelo, Ruan, Bibi, Caio, Jonas, Panaro, Nininha, Camilinha, Thiago e Raphael. Espero continuar com o apoio de vocês na minha vida, indispensável para essa conquista, nas novas fases que virão. Dos persistentes grupos do Whatsapp às noites viradas nos mais diversos contextos, amo vocês - A todos aqueles que eu não poderei individualizar nominalmente que, por algum momento na vida já mandaram boas energias para mim. Obrigada e continuem mandando! Às minhas séries, filmes, livros e musicas. Eu não seria eu se não tivesse crescido lendo Harry Potter, sempre bom lembrar, por mais bobo que pareça. É desse estarte cultural que eu pude abrir a minha cabeça à toda sorte de nova informação, sempre disposta à conhecer mais. Obrigada JK, George Lucas, Disney, Marvel, Sandy e Junior, Taylor Swift, George R. R. Martin e quem mais chegar para agregar! À Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), seus docentes, discentes (principalmente das turmas 2009.2 e 2012.2 Noite) e funcionários, pela oportunidade de dar os primeiros passos na vida acadêmica - bem como me mostrar que o mundo é bem mais complexo do que o que eu conhecia. Entrei uma menina e saio um ser humano, uma mulher ainda em formação, em busca de mais conhecimento. Obrigada. À minha orientadora, Prof.ª. Cristiane Brandão Augusto Mérida, pela disposição em aconselhar e ajudar, com toda tranquilidade, nesta reta final. Obrigada.

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À Deus, Deusa, Buda, Alá, Maomé, Ghandi, Iemanjá, Jeová, Tupã, Jesus ou o Deus da tribo da Polinésia - Fé é algo que existe para dar força e unir.

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É comum a gente sonhar, eu sei Quando vem o entardecer Pois eu também dei de sonhar Um sonho lindo de morrer. Vejo um berço e nele eu me debruçar Com o pranto a me correr. E assim chorando acalentar O filho que eu quero ter. Chico Buarque

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RESUMO O presente trabalho monográfico visa estudar e realizar uma crítica ao instituto do aborto no Direito Penal Brasileiro, trazendo uma compilação de um amplo conhecimento sobre o aborto nos campos médico, jurídico e social. Diferente do movimento que ocorreu na maioria dos países ocidentais, que alteraram suas leis e descriminalizaram o aborto, no Brasil a prática ainda é crime, não punível apenas nos casos em que a gravidez é consequência de violência sexual, quando a mulher corre risco de morte ou nos casos de fetos anencéfalos. Na esteira do ultrapassado Código Penal vigente desde 1940, milhares de mulheres adquirem o status de clandestinas ao realizarem abortos ilegais todos os anos - uma realidade para qual sociedade insiste em fechar os olhos em prol dos seus valores eivados de hipocrisia. Os que ainda se mantém contrários à descriminalização da conduta se pronunciam enfatizando a defesa à vida do feto, indiferentes aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, cuja autonomia é praticamente ausente no debate. Desta forma, o presente trabalho visa demonstrar que o melhor caminho é retirar o manto da criminalidade das mulheres, que leva muitas à morte, legitimando às gestantes que interrompam a sua gravidez através de um sistema que combine prazos e um atendimento multidisciplinar dentro do sistema de saúde - Finalizando com as considerações finais trazendo uma conclusão acerca do tema apresentado, bem como suas referências bibliográficas. Palavras-chave: Aborto; Abortamento; Descriminalização; Direito Penal; Mulher; Direito; Brasil.

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ABSTRACT The present paper has as its objective to study and make a critical analysis of the abortion institute in Brazilian Criminal Law, bringing an extensive knowledge on this subject in the medical, legal and social fields. Unlike what happened in most of occidental countries, that altered their punitive laws and decriminalized abortion, in Brazil the practice is still a crime, but not punishable in cases where the pregnancy is the result of sexual abuse, when the woman is at risk of death or in cases of fetuses with anencephaly. In the wake of the Criminal Code in force since 1940, thousands of woman acquires the status of clandestine when conducting illegal abortions - it has been a reality for which the civil society insists on turning a blind eye in order to the values full of hypocrisy. The ones that remain against the decriminalization given their opinion emphasizing security and guarantee of the life of the fetus and with an indifference towards women, whose autonomy is almost absent from the debate. In this way, the present paper aims to demonstrate that the best way is remove the cloak of criminality of women, that leads a lots of them to death, legitimizing the pregnant women to terminate their pregnancy through an system that combines established deadlines and a multidisciplinary care within the healthcare system - finishing with concluding remarks on the subject, together with the detailed references to the published literature. Key words: Abortion; Miscarriage; Decriminalization; Criminal Law; Women; Rights; Brazil

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AADS ADEF ADPF ADI ANADEP Art. CNBB CNJ CNS CF CNDM CNTS CP HC IML PAISM PNDH PEC STF SUS

Ações Afirmativas em Direitos e Saúde Associação em Defesa da Família Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Ação Direta de Inconstitucionalidade Associação Nacional dos Defensores públicos Artigo Confederação Nacional dos Bispos do Brasil Conselho Nacional de Justiça Conselho Nacional de Saúde Constituição Federal Conselho Nacional dos Direitos da Mulher Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde Código Penal Habeas Corpus Instituto Médico Legal Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher Programa Nacional de Direitos Humanos Proposta de Emenda a Constituição Supremo Tribunal Federal Sistema Único de Saúde

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 13 1 - O ABORTO ................................................................................................................................... 15 1.1. Conceitos de Aborto........................................................................................................... 15 1.1.1. Na Medicina........................................................................................................................ 16 1.1.2. Sigilo Profissional e Código de Ética ................................................................................ 17 1.1.3. Legislação Brasileira.......................................................................................................... 18 1.1.3.1. Constituição Federal ....................................................................................................... 18 1.1.3.2. Direito Civil: Noções ....................................................................................................... 21 1.1.3.3. Direito Penal .................................................................................................................... 24 1.2. Criminalização ................................................................................................................... 28 1.3. Aborto Legal ....................................................................................................................... 31 1.3.1. Estupro................................................................................................................................ 32 1.3.2. Risco de vida da mulher .................................................................................................... 34 1.3.3. Feto Anencéfalo .................................................................................................................. 35 1.4. Direito à Vida x Direito da Mulher .................................................................................. 39 1.4.1. O que é o Direito? .............................................................................................................. 39 1.4.2. Feto e Mulher: O conflito .................................................................................................. 43 2 - DIREITO COMPARADO: ABORTO COMO UMA QUESTÃO GLOBAL......................... 47 2.1. O Aborto na América do Norte ........................................................................................ 49 2.1.1. Estados Unidos ................................................................................................................... 49 2.1.2. Canadá ................................................................................................................................ 52 2.1.3. México ................................................................................................................................. 54 2.2. O Aborto na América Latina ............................................................................................ 55 2.2.1 Argentina ............................................................................................................................ 55 2.2.2 Chile .................................................................................................................................... 57 2.2.3 Cuba .................................................................................................................................... 59 2.2.4 Uruguai: Um Paradigma ................................................................................................... 61 2.3. O Aborto na Europa .......................................................................................................... 62 2.3.1 Reino Unido ........................................................................................................................ 62 2.3.2 França ................................................................................................................................. 64 2.3.3 Alemanha ............................................................................................................................ 65 2.3.4 Rússia .................................................................................................................................. 68 2.3.5 Itália .................................................................................................................................... 69 2.3.6 Espanha............................................................................................................................... 71 2.3.7 Portugal............................................................................................................................... 72 3 - BRASIL E O ABORTO................................................................................................................ 76

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3.1. Um Breve Histórico do Aborto no Brasil......................................................................... 76 3.2. A (I)Legalidade do Aborto no Brasil................................................................................ 82 3.2.1. O Serviço de Aborto Legal no Brasil ............................................................................... 82 3.2.2. ADPF nº 54 ......................................................................................................................... 85 3.2.1.1. Uma Conquista................................................................................................................... 88 3.2.1.2. Um Desafio.......................................................................................................................... 92 3.2.3. Brasil: Um País de Clandestinas....................................................................................... 95 3.3. Existe Solução?................................................................................................................. 104 3.3.1. Descriminalização x Despenalização .............................................................................. 104 3.4. Polarização em torno do aborto ..................................................................................... 105 3.4.1. Projetos de Leis ................................................................................................................ 105 3.4.2. Direito à vida .................................................................................................................... 107 3.4.3. Ciência e o Início da vida ................................................................................................ 109 3.4.4. Religião ............................................................................................................................. 112 3.4.5. Moralidade: Em defesa da família tradicional brasileira ............................................ 114 3.4.6. Opinião Pública ................................................................................................................ 116 3.4.7. Uma questão de Saúde Pública ....................................................................................... 117 3.4.8. O Feminismo e o controle da mulher sobre si ............................................................... 119 3.4.9. HC 134.306/RJ: Um novo precedente ............................................................................ 121 CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 127 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. .......................................................................................... 129

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho de conclusão de curso tem como tema a ineficácia da criminalização do aborto no Brasil. O debate sobre o tema é bastante controvertido, pois, em regra, confrontam-se diversas perspectivas, tais como médicas, jurídicas, morais, religiosas, humanitárias, políticas, econômicas e culturais. Polarizam-se os grupos a favor, defendendo o direito das mulheres e, de outro lado, existem as posições contrárias, que alegam ser indisponível a vida do feto a partir da concepção, alguns chegando a comparar a prática à assassinato. O resultado prático da criminalização do aborto no Brasil é a enorme quantidade de abortos clandestinos, praticados por milhares de mulheres todos os anos. Esta clandestinidade desdobra-se em reflexos alarmante no que tange à saúde das mulheres, sendo urgente a necessidade de medidas imediatas em relação à esta realidade, para que se possam evitar mortes de mulheres e outras consequências do ato ilegal. Neste diapasão, o presente trabalho objetiva analisar os principais conceitos, pontos de vistas, entendimentos, visões e interpretações sobre o tema, verificando-se em que medida a descriminalização do aborto seria a única medida viável para começar uma transformação, contribuindo na redução das práticas clandestinas de interrupção de gravidez, bem como todas às consequências conexas à elas. No primeiro capítulo serão abordados os conceitos de aborto para a medicina e para o direito brasileiro, analisando sob a luz da Constituição Federal de 1988, Código Civil e Código Penal – tendo como lastro os principais doutrinadores do direito – distinguindo os tipos de aborto considerados legais e ilegais, bem como ponderando a principal dicotomia que envolve o debate acerca da interrupção da gravidez: o Direito da mulher versus direito à vida do feto. O segundo capítulo examina o aborto em um âmbito global, analisando as abordagens sobre o tema na sociedade ocidental, verificando a evolução histórica sobre o tema e como o direito é praticado na maioria dos países das Américas do Norte, Central e Sul, bem como no

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continente europeu. Foram levantados os resultados das políticas de criminalização ou legalização do aborto nessas regiões, com a proposta de traçar um paralelo entre as realidades, tentando encontrar perspectivas que possam nortear uma imprescindível mudança no Brasil. No terceiro capítulo é proposto um enfrentamento da realidade do aborto no país, onde o procedimento é uma prática tolerada, pois, apesar de ser um crime, mulheres que interrompem voluntariamente as suas gestações raramente são punidas. No entanto, oficialmente é negada a autonomia às mulheres sobre seus próprios corpos, com base em concepções e valores, principalmente religiosos, que, apesar de não serem uníssonos, são impostos mesmo a quem não os compartilha. “O direito ao aborto, especialmente, confronta a idealização da maternidade, que é um modo de representação de um papel compulsório como se fosse tendência natural e desejo comum de todas as mulheres”1. Diante das limitações do legislativo brasileiro em debater o tema de forma prática, da precariedade das condições com que as mulheres que resolvem abortar legal e ilegalmente e, da importância do debate para concretização dos direitos das mulheres e do reconhecimento delas enquanto cidadãs, se faz de suma relevância a reflexão sobre as perspectivas possíveis para o desenvolvimento de uma política mais eficiente no Brasil.

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BIROLI, Flávia Et. al. Feminismo e Política: Uma Introdução. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 123.

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1 - O ABORTO

Antes

de

adentrarmos

na

profunda

discussão

sobre

os

questionamentos

multidisciplinares que envolvem o aborto no Brasil, bem como as suas consequências práticas, é de suma importância a compreensão sobre os reais significados desta palavra e motivo dela causar tantas reações nos mais diversos setores da nossa sociedade. A primeira ideia que surge ao suscitar-se é que o conflito entre o direito à vida do feto e a autonomia da mulher sobre seu corpo, bem como a observância dos seus direitos sexuais e reprodutivos, já que em linhas gerais, o abortamento é uma forma de interrupção da gravidez pela morte do feto. Desta forma, se faz mister entender as várias concepções de aborto para que possamos entender como este tema consegue se desdobrar em tantos aspectos, que se confundem entre quem sai em defesa ou critica a sua criminalização. É importante entender as definições puras, antes de nos aprofundarmos no debate sobre o tema no mundo e no Brasil, que pode vir a influenciar a realidade sobre o aborto no país. 1.1.

Conceitos de Aborto Aborto traz consigo a ideia de privação de nascimento, interrupção voluntária da

gravidez, com a morte do produto da concepção. Há uma corrente que defende que defende o termo correto para a ação que resulta no aborto seja “abortamento”. Do ponto de vista médico aborto é interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 g ou meça 16,5cm2; para a Igreja Católica o aborto é “a morte deliberada e direta, independente da forma como venha a ser realizada, de um ser humano na fase inicial de sua existência, que vai da concepção ao nascimento”3. Fragoso leciona que o “aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do feto”4.

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UFRJ. Obstetrícia e Abortamento. Maternidade Escola. Disponível em: . Acesso em 21 nov 2016. 3 JOÃO PAULO II, Carta encíclica Evangelium vitae n. 58: AAS 87 (1995), p. 467. 4 FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 28.

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Os primeiros registros etimológicos da palavra aborto remontam do século XVI, originando-se do latim abortus e o verbo abortar, do latim abortare, deriva de aboriri, que significa “põe-se o sol”, "desaparecer no horizonte", "morrer", "perecer". Origina-se do verbo oriri, “levantar-se”, “nascer”, acrescido do prefixo latim de afastamento ab-. 1.1.1. Na Medicina A Embriologia é o campo da ciência médica que estuda a formação dos órgãos e sistemas, desvendando o processo contínuo que tem início a partir do momento em que o ovócito de uma mulher é fertilizando pelo espermatozoide de um homem. Encadeia-se a partir uma série de modificações genéticas que, ao longo do tempo, transformam uma única célula, o zigoto, em um ser humano multicelular: Conforme ensina Benute, “o início da vida, no seu desenvolvimento natural, cobre um período particularmente delicado do ponto de vista da Bioética. Vai desde o encontro dos gametas masculino e feminino com a fusão dos núcleos (a singamia, consequente à penetração do espermatozoide no ovócito) até o nascimento” 5. A fusão dos núcleos masculinos e femininos marca o aparecimento de um novo genoma, algo completamente diferente dos dois outros que lhe deram origem: o embrião. Sob a ótica médica, o aborto é a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas, ou ainda consideram quando feto mede até 16,5 cm6. Este conceito foi formulado com base na viabilidade fetal extrauterina, sendo aceito mundialmente pela Organização Mundial da Saúde. Extrapolando-se ente tempo, havendo o óbito fetal intrauterino, a expulsão do feto é considerada parto de natimorto. Se o feto inviável nasce com vida, fala-se em parto prematuro. A ciência médica diferencia o aborto (produto conceptual expulso) e o abortamento (processo de abortar)7, que são estudados como síndromes hemorrágicas do 1ª trimestre da gravidez, em razão da sua principal característica clínica, ou seja, o sangramento. Cabe ressaltar que ao produto da concepção também estão inclusas a placenta, membranas amnióticas e cordão umbilical. 5

ASCENSÃO, José de Oliveira. O início da vida. Rev. EMERJ v. 11, n. 44, 2008, pp. 17-37. Ibidem, loc. cit. 7 BENUTE, Gláucia Rosana Guerra et al. Abortamento Espontâneo e Provocado: Ansiedade, Depressão e Culpa. São Paulo, Medical Express, Jun 2016, vol. 3, no. 3. Disponível em . Acesso em 21 nov 2016. 6

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Referente a esse tema, Keith L. Moore conceitua o aborto como uma interrupção prematura do desenvolvimento do embrião ou feto antes de se tornarem viáveis, suficientemente amadurecidos para sobreviverem fora do útero. Do ponto de vista clínico as principais modalidades de aborto, segundo Moore8 são: (i) ameaça de aborto, uma complicação comum que ocorre em cerca de 25% das gravidezes e que, a despeito de todos os esforços para impedir um aborto espontâneo, cerca de metade destas gravidezes acaba em aborto. Todos os términos de gravidez que ocorrem naturalmente, ou são induzidos antes das 20 semanas são considerados abortos; (ii) abortos espontâneos, onde cerca de 15% das gravidezes identificadas terminam em aborto espontâneo (i.e. ocorrem naturalmente), geralmente durante as primeiras 12 semanas; e (iii) abortos induzidos ou abortos eletivos, que geralmente são produzidos por drogas ou curetagem por sucção (evacuação do embrião e suas membranas por sucção uterina), sendo que alguns abortos são induzidos por causa da má saúde da mãe (mental ou física) ou para impedir o nascimento de uma criança com malformações graves (e.g. sem a maior parte do cérebro). À retenção do concepto no útero depois da morte do embrião ou feto dá-se o nome de aborto frustrado. O conceito médico não se confunde com o jurídico penal. A lei não estabelece limites para idade gestacional, isto é: aborto sendo a interrupção da gravidez com intuito de morte do concepto, desnecessária a existência da expulsão fetal. 1.1.2. Sigilo Profissional e Código de Ética O Código de Ética Médica9, quando trata dos princípios fundamentais da profissão, positiva o dever dos médicos e médicas guardarem sigilo acerca de informações que eles obtenham em razão do exercício do seu labor. Mesmo quando instado como testemunha perante uma autoridade, o profissional comparecerá diante desta para declarar-se impedido de expor seu paciente. Excetuam-se apenas os casos que forem observados (i) justo motivo; (ii) dever legal ou (ii) consentimento, por escrito do(a) paciente. Justo motivo é compreendido dentro daquilo 8

MOORE, Keith L., Et al. Embriologia Clínica. 8ª Edição. Elsevier, 2008, p. 7. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução. 1931/09. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 9

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que o Código de Ética explicita como tal, principalmente em situações que possam colocar em risco outros pacientes. Mesmo em casos de aborto, os médicos estão expressamente desautorizados de comunicar às autoridades competentes que tomaram ciência da conduta criminosa quando da prática da sua profissão se, em decorrência disso, a paciente for exposta à procedimento criminal, mesmo que ela seja menor de idade. Havendo transgressão à essas incumbências restará configurado o crime previsto no art. 154 do Código Penal10. Não obsta, porém, ao médico o direito de recusar-se a realizar atos médicos que, embora legais, sejam contrários à sua consciência11. Essa recusa recebe a nomenclatura de objeção de consciência, que jamais pode ser invocada quando da ausência de outro médico na instituição, caso de urgência ou emergência ou quando este posicionamento incorre em danos à saúde da paciente. Constatando-se omissão profissional, o médico poderá ser enquadrado no crime previsto no art. 13, § 2º do Código Penal12. 1.1.3. Legislação Brasileira 1.1.3.1.

Constituição Federal

A Constituição Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomeado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria “natalista”, em contraposição às teorias “concepcionista” ou da “personalidade condicional”). Quando se reporta aos “direitos da pessoa humana” e até dos “direitos e garantias individuais” como cláusulas pétreas está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa,

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Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. 11 Capítulo II, IX: É direito do médico: recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência (Resolução 1931/09 do Conselho Federal de Medicina) 12 Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (...) § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

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que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”13, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Latu sensu, a potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. A Constituição coloca em mesmo grau de importância o direito à vida e o direito à liberdade. Não bastasse o legislador constituinte colocá-los no caput do art. 5º, preferiu este também os inserir ao lado de outros tão fundamentais quanto, tais como a igualdade, segurança e propriedade. Nasce daí a dificuldade, pois, é inequívoco que a primazia que o legislador constituinte imprimiu ao direito à vida também se estende à liberdade. Ambos estão em pé de igualdade à frente dos outros, pedestal este que ocasiona uma polêmica controvérsia quando trazemos à luz a discussão sobre o aborto. A legislação infraconstitucional ampara de forma variada as etapas do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos que antecede o nascimento são chancelados pelo direito comum. O direito à vida não deve ser apenas à sobrevivência, mas também à vida digna, com plenas condições de se desenvolver e se realizar como pessoa e cidadã. O direito à vida deve se conectar aos outros direitos fundamentais, inclusive a própria liberdade. O direito à vida não é algo absoluto por si só – e, de certo modo, a liberdade é algo que decorre da vida digna e também não se apresenta de forma absoluta. O conflito está na dificuldade de convergir a vida e a liberdade, elegendo qual e em que momento um deve se sobrepor ao outro. É dever do Estado proteger os mais fracos, lhes garantir direitos que estes não são capazes de exercer pó si só ou quando estes confrontam com os de outras pessoas. Não só o nascituro carece de proteção. Quando uma concepção é desejada, ela já está protegida desde o início pela vontade da mãe. 13

Art. 5º, caput, da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

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O ponto de toda controvérsia, muito mais do que a chance de vida de um possível ser humano, está todo na carente proteção jurídica que atualmente é despendida a mulher que carrega em seu corpo uma gravidez indesejada, para que esta possa exercer o seu direito de liberdade, consciente e autônoma. Logo, está em jogo um dos princípios mais intrínsecos de qualquer sociedade: a dignidade da pessoa humana. Uma vida digna é, além do direito à vida e à liberdade, mas também a acessão de todos estes direitos. O Estado é a entidade capaz de garantir isso através de ferramentas como educação, saúde, segurança, justiça e todos os outros direitos, quais sejam verdadeiramente humanos, possibilitando assim o pleno alcance da cidadania. A Constituição Federal estabelece nos arts. 5º, VI, e 19, I a III, a máxima do Estado Laico

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onde, conforme conceitua Miranda15, há a “liberdade de crença compreende a

liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença”. Ocorre que um dos emblemas religiosos é o estigma da imoralidade do aborto, desdobrando-se em uma criminalização da conduta, pois os legisladores imprimiram as suas convicções ao texto legal. O conceito de Estado Laico e liberal nasceu no iluminismo, onde já se lia que a repreensão moral de um determinado comportamento não seria razão para haver a proibição jurídica do mesmo. O direito não é, ou não deveria ser, uma forma de reforçar a moral. Buscando uma reversão deste panorama, no condão legal, deve-se buscar uma relativização do Direito Civil, que protege o nascituro, bem como uma reversão do Direito penal, cuja finalidade básica é a proteção dos bens jurídico, que cuida do aborto como crime (salvo os permitidos no art. 128). Isto implicaria uma assunção da laicidade no Estado Brasileiro, que não trataria o aborto como uma questão proveniente de opiniões eivadas de pensamento religioso, mas sim como um tema jurídico. Não deveria uma mulher, não adepta de nenhuma religião, ser impedida de interromper uma gestação por causa da dificuldade do Estado em se separar destes dogmas. 14

Art. 5º, VI - É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Art. 19 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. 15 MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 119.

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O Direito, como conjunto de normas de regulação da vida em sociedade e construído a partir dos valores sociais, não pode ignorar a evolução da moral e do próprio direito em conformidade com as evoluções sociais16, razão pela qual as normas relativas à incriminação e à penalização do aborto, umas vez inscritas no ordenamento jurídico, devem ser interpretadas à luz da Constituição da República de 1988, com a aplicação do princípio da máxima efetividade da norma constitucional e harmonização do ordenamento jurídico, sempre levando em consideração a Dignidade da Pessoa humana como vetor axiológico que deve nortear os intérpretes e aplicadores do direito. O direito deve se reinventar à luz do que hoje é indicado como seu melhor fundamento, para que a sua aplicação o reflita da melhor maneira possível aos sujeitos subordinados a esse. 1.1.3.2.

Direito Civil: Noções

Legalmente, o aborto é entendido como a interrupção da gravidez antes do parto, podendo ser analisado sob as óticas do direito civil e penal. O Código Civil preceitua que a personalidade civil, a aptidão genérica de para adquirir direitos e contrair obrigações, se iniciam com o nascimento com vida17. Independentemente da viabilidade do ser nascido, a personalidade inicia-se com o nascimento com vida e termina com a morte da pessoa natural18. O nascimento com vida caracteriza-se pelo fato de o nascituro respirar. A personalidade é inerência do homem. Personalidade é atributo da dignidade do homem. É o que faz sua figura viva se distinguir da dos outros seres animados. É o que, no direito, atribui ao homem a condição de sujeito de direito e de deveres e obrigações. É o atributo que impede que o homem seja objeto de direito. As certidões de nascimento e de óbito fazem prova, respectivamente, do início e do fim da personalidade de uma pessoa19. O nascituro é pessoa por nascer, já concebida no ventre materno. Antes de nascer o nascituro não tem personalidade jurídica, mas tem natureza humana (humanidade), razão de 16

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2ª Ed. São Paulo, 2007, pp. 69-80. Art. 2° - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 18 Art. 6° A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. 19 NERY JUNIOR, Nelson et al. Código Civil Comentado. 11ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunas, 2014, p. 374. 17

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ser de sua proteção jurídica pelo Direito. Desde a concepção o nascituro é envolto em situações jurídicas de vantagem, a ele asseguradas pelo ordenamento jurídico. No entanto, somente adquirirá personalidade, qualidade de quem é sujeito de direito, se nascer com vida. O natimorto, aquele que nasceu morto, segundo o Código Civil, não adquiriu personalidade jurídica e, consequentemente, não se tornou sujeito de direito. Pelo Código Civil, para que um ente seja pessoa e adquira personalidade jurídica, será suficiente que tenha vivido por um segundo. O sistema positivo nacional adota, em sua ampla maioria, a concepção natalista, reconhecendo o início da personalidade o nascimento com vida, reservada para o nascituro uma expectativa de direito. Todavia, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascimento, isto é, daquele que está para nascer, mas que ainda não é uma pessoa. Diniz20 foi objetiva ao doutrinar sobre o tema, afirmando que os direitos do nascituro permanecem em estado potencial. O nascituro, pessoa por nascer, já concebida no útero materno, possui apenas uma expectativa de direito, em condição suspensiva, que lhe é assegurada se vier a nascer com vida. Apenas a partir deste momento a pessoa torna-se sujeito de direito, transformando-se em direitos subjetivos as expectativas que a letra da lei lhe atribui na fase de concepção. Para Wald21, o nascituro teria uma personalidade condicional. Os direitos da personalidade possuem os seguintes caracteres: a generalidade, a extrapatrimonialidade, o caráter absoluto, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade22. Bittar23, acrescenta serem os mesmos inatos, posto que aos direitos que transcendem o ordenamento jurídico positivo, porque ínsitos à própria natureza do homem, como ente dotado de personalidade. De outra vertente, Tepedino24 sustenta que os direitos da personalidade possuem natureza positiva, somente existindo na medida em que os concede a lei. Na mesma obra, o

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DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 15. WALD, Arnold, Curso de Direito Civil Brasileiro: Introdução e parte geral, 7ª ed. rev. e atual. v. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p 19. 22 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1999. p. 33. 23 BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 5ª edição revista, atualizada e aumentada. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1997. p.11 24 TEPEDINO, Gustavo. Op. Cit. p. 39 21

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autor25 sustenta que os direitos da personalidade não possuem o caráter inato, dependendo da lei positivada para nascerem. A característica de ser inato vem sendo superada pela doutrina moderna, que vê o nascimento dos direitos da personalidade na lei, no direito positivo, até como forma de resguardar e proteger os direitos do próprio homem. No Estado de Direito, a ordem jurídica serve exatamente para evitar abusos por quem, baseando-se em valores suprelegislativos, ainda que em nome de interesses aparentemente humanistas, viesse violar garantias individuais e sociais estabelecidas, por meio da representação popular, pelo direito positivo26. O nascituro tem proteção legal indispensável, baseada na acepção que ali existe uma potencialidade de vida humana, concretizado com o nascimento com vida – caracterizando-se pelo ato deste respirar. Na atualidade, a personalidade jurídica é a capacidade abstrata para possuir direitos e contrair obrigações na ordem civil, sendo indissociável da pessoa humana. Ela se dá com o nascimento com vida (representado pela respiração do recém nato). Os direitos de personalidade jurídica são necessários, essenciais ao resguardo da dignidade humana, portando, universais absolutos, imprescritíveis, intransmissíveis, impenhoráveis e vitalícios27. Antes do nascimento, o nascituro não possui personalidade jurídica, mas sim natureza humana (humanidade), razão pela qual o Código Civil o protege28. O Código Civil é expressamente convenciona o início da existência da pessoa humana. Por outro lado, o Código Penal protege a vida humana em que ela é apenas uma expectativa, ou seja, quando do feto; o ser nascente e o ser nascido, por meio de tipos penais que incriminam a interrupção voluntária da gestação.

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De resto, conforme leciona Pietro Perlingieri, o equívoco das escolas jusnaturalísticas está no fato de que mesmo os princípios da razão e da natureza apresentam-se como “noções historicamente condicionadas: (...) o direito natural (deve ser) é sempre condicionado pela experiência do direito positivo (ser). E prossegue: Os direitos do homem, para ter uma efetiva tutela jurídica, devem encontrar o seu fundamento na norma positiva. O direito positivo é o único fundamento jurídico da tutela da personalidade; a ética, a religião, a história, a política, a ideologia, são apenas aspectos de uma idêntica realidade (...) a norma é, também ela, noção histórica. 26 TEPEDINO, Gustavo. Op. Cit., p. 40 27 SOUZA, C.A.P. Calixto, Et. Al. – Os Direitos da Personalidade – Breve Análise da sua Origem Histórica. Disponível em . Acesso em 1 nov 2016. 28 JUNIOR, Nelson Nery Et. al. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. Editora Revista dos Tribunais, 2 ed. São Paulo. 2003. pp 8-9

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E quando esses direitos colidem com os direitos da mãe? Qual deve prevalecer? Uma mãe que, baseada na sua consciência, decide pela gravidez ou pela interrupção desta? Quais bens jurídicos devem ser tutelados? Vida e Liberdade? Além de não ser absoluto, o direito à vida comporta diferentes graus de proteção, à medida que o seu titular vai se desenvolvendo, desde a fecundação do óvulo, passando pela gestação, até chegar ao nascimento, como se infere, por exemplo, das penas cominadas aos delitos de homicídio e aborto provocado pela gestante, das quais se extrai a certeza de que o legislador confere uma maior proteção à vida extrauterina. 1.1.3.3.

Direito Penal

A finalidade básica do Direito Penal é de proteção aos bens jurídicos, inclusive a vida em suas diferentes fases, sendo previstos no Código Penal tipos para as diferentes fases da evolução humana – desde o ventre da mãe à velhice. A vida, porém, como já dito anteriormente não é protegida de forma absoluta e imperiosa, sofrendo algumas relativizações, como por exemplo, nos casos em que se mata alguém em legítima defesa29. A legislação penal brasileira data de 1940, publicada refletindo a cultura, costumes e hábitos dominantes da década de 30. Passaram-se mais de 70 anos e, nesse elástico período no qual se modificaram não apenas valores da sociedade, mas também houve avanços nos campos científicos e tecnológicos, que possibilitaram uma revolução na ciência médica. A Medicina contemporânea, como já traduzido no capítulo acima, tem condições de definir com absoluta precisão os estágios da gestação, bem como uma eventual anomalia do feto e, consequentemente, a inviabilidade de vida extrauterina. Partindo destas considerações é possível iniciar a análise das disposições penais no Brasil. Os tipos penais que protegem a vida como bem jurídico estão previstos no capítulo Dos Crimes Contra a Vida, da parte especial do Código Penal, sendo eles: homicídio, participação em suicídio, infanticídio e o aborto. Abrange o infanticídio morte provocada durante ou logo após o parto, protegendo a vida do ser que está nascendo, assim como do recém-nascido. O sujeito de direito nascido pode ser vítima de homicídio, infanticídio, participar de um suicídio, 29

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

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um feto pode apenas sofrer o crime de aborto. Assumindo-se desta forma que o Código Penal resguarda a expectativa da vida, abrangência que termina ao final da gestação, já que a partir deste momento o aborto não é mais possível. Vale notar então que o Direito Civil e o Direito Penal divergem sobre o tratamento destas realidades, pois, enquanto àquela considera como pessoa de direito apenas o indivíduo nascido com vida, este prevê tipos diferentes para responsabilizar a morte dada ao ser antes e depois de ter nascido com vida. Essa distinção fica mais patente quando se comparam às penas imputadas ao homicídio, infanticídio e aborto. O homicídio tem penas bem maiores que os outros tipos, restando evidente que a vida do ser que já nasceu foi mais valorizada pelo legislador do que o ser pendente de nascimento. Bem como o fato de, como será demonstrado ao longo deste trabalho, a vida da mulher, quando dos casos de abortamento por questões de sobrevivência ou estupro, sobrepões à do concepto. O Código Penal prevê também punições às pessoas que praticam ou auxiliam quando da realização de um aborto, considerando-se como bem jurídico protegido a vida do ser humano ainda em formação. Assim, como dito, observa-se que diferentemente do crime de homicídio, em que se protege a vida da pessoa humana, no crime de aborto resguarda-se a possibilidade de vida em formação no útero da mulher. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante. Os principais doutrinadores brasileiros têm posições distintas sobre qual é o bem jurídico tutelado pela tipificação do aborto no Código Penal. Conceitua Bittencourt que “o objeto, não é a pessoa humana que se protege, mas a sua formação embrionária; em relação ao aspecto temporal, somente a vida intrauterina, ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto”30, acompanham este entendimento também Capez31 e Sanches32. Greco33 distancia-se dessa diferenciação entre os conceitos de vida e disserta ser a vida humana objeto de proteção pelo direito penal 30

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos Crimes contra a Pessoa. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva 2012, p 393 31 CAPEZ, Fernando. Direito Penal Simplificado, Parte Especial. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93 32 SANCHES, Rogério. Código Penal para Concursos. 5ª Ed. Salvador: JusPodium, 2012, p. 224 33 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial, Vol. II, 12ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015, p 234.

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Dentre os diversos conceitos do crime de aborto encontráveis na doutrina, prefere o de Paulo José da Costa Júnior, que afirma ser o aborto “a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção”34. O autor refere-se de forma genérica ao produto da concepção e, ao enfatizar ser voluntária a conduta, dá ao termo um sentido mais delineado no que diz respeito ao conceito jurídico-criminal da conduta. Em tempo, alguns autores reduzem o objeto da ação à um dos produtos da concepção, “ovo”, enquanto outros obliteram que o crime de aborto somente configura-se a partir de ação dolosa, voluntária, dirigida à interrupção da gestação35. É possível a ocorrência do aborto desde o início da gestação, apesar deste momento ser bastante controvertido. Para alguns doutrinadores mais conservadores ela começa da nidação (a simples implantação do óvulo fecundado no útero). A polêmica em torno disso demonstra ser relevante, pois, esse estágio ocorre alguns dias depois da fecundação e há métodos legais para evitar a nidação, como a pílula do dia seguinte. Para os que consideram que a gravidez tem início na nidação, o medicamento não é abortivo, não obstante, o cenário muda para os que consideram que o momentum é a fecundação. A pílula do dia seguinte é permitida e distribuída pelo Ministério da Saúde36, com isso, as mulheres que a utilizem ou os médicos que a prescrevem não correm o risco de serem acusados por crime de aborto, já que, para os que entendem que a gravidez se inicia com a nidação, o fato é atípico, e, para os que acham que já existe gravidez com a fecundação, o uso constitui exercício regular de direito. A importância do debate reside no fato de que os defensores da tese de que a gravidez se inicia com a fecundação procuram convencer as autoridades de que a pílula do dia seguinte deve voltar a ser proibida por ser abortiva37. 34

COSTA JÚNIOR, Paulo José Et al. Curso de Direito Penal. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 265. Neste sentido, dentre outros, cita-se: Nelson Hungria (1942, p. 235); Aníbal Bruno (1976, p.162); Heleno Cláudio Fragoso (1976, p.128); Damásio de Jesus (2004, p.122); Pierangeli (2005, p.112); Régis Prado (2005, p.110), costa Junior (2005, p; 388) 36 MEDEIROS, Tainah. SUS passa a distribuir pílula do dia seguinte sem exigir receita médica. Drauzio Varella. 2 jul 2012. Disponível em . Acesso em 22 nov 2011. 37 SOUZA, Rozana Aparecida de, Et. al.. Marcos normativos da anticoncepção de emergência e as dificuldades de sua institucionalização nos serviços públicos de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1067-1086, 2009. Disponível em: . Aceso em 22 nov. 2016. 35

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Só se pode cogitar de crime de aborto quando uma mulher está grávida. Não constitui delito de aborto destruir embrião in vitro. Nem sempre o aborto é criminoso. Se for decorrente de causas naturais, como má formação do feto, rejeição do organismo da gestante, patologia etc., o fato será atípico. Também não haverá crime de aborto se tiver ele sido acidental, como queda, colisão de veículos, atropelamento etc. Em verdade, para a existência de crime de aborto, é necessário que a interrupção da gravidez tenha sido provocada pela própria gestante ou por terceiro, e que não se mostre presente quaisquer das hipóteses que excluem a ilicitude do fato (aborto legal). Em comentário as soluções legislativas com relação ao aborto, Fragoso observa que “as piores leis são as altamente restritivas, pois conduzem à realização de abortos ilegais perigosos. Tais leis não podem ser observadas nem impostas pela autoridade, levando o sistema penal ao descrédito”38. Atualmente, a pluralidade observada na sociedade ofende a consciência daqueles que não aceitam os valores retrógrados utilizados para justificar a criminalização da conduta. Essa política é que conduz às práticas de aborto clandestinas, o que “aumenta seus perigos, oculta seus males, desorienta a política social, desmoraliza a ameaça penal, prestigia a moral pratica que tolera e não considera desonesto o abortamento”39. Prado40 ressalta que mesmo que o legislador brasileiro tenha optado por incriminar o aborto voluntário, este também adotou um sistema de indicações, ensejando um conflito entre a vida intrauterina e os interesses da mulher, essa devendo ceder em favor daquela: De acordo com esse sistema, a vida do ser humano em formação não se encontra desprotegida em nenhuma de suas fases de desenvolvimento; a par disso, é possível atender certas necessidades ou interesses da mulher grávida. A vida do nascituro é um bem jurídico digno de proteção penal, o que justifica a criminalização inclusive do auto-aborto, do aborto consentido e do aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante.

Não obstante, estando presente conjuntura hábil a criar um conflito entre a vida do produto da concepção e determinados interesses da gestante, aquela cede em favor desta

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FRAGOSO. Heleno Cláudio. Op. Cit., p. 125. Ibidem, Loc. Cit. 40 PRADO, Luiz Regis et. al. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 118. 39

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última. Embora, independentemente das razões que serão expostas no presente que argumentam em favor da descriminalização do aborto, este está expressamente previsto no Código Penal Brasileiro e na maioria das legislações penais contemporâneas. 1.2.

Criminalização A criminalização do aborto encontra-se prevista no Código Penal Brasileiro no Capítulo

1, da Parte Especial da referida legislação, especificamente o capítulo que trata dos crimes contra a vida. Contemplam-se cinco modalidades de aborto, quais sejam: auto-aborto (art.124, primeira parte, CP), consentido (art. 124, segunda parte), não consentido (art. 125, CP), necessário ou terapêutico (art. 128, I, II CP) e sentimental (art. 128, II, do CP)41. Para que reste comprovada a pratica do aborto existe há necessidade de comprovação do estado de gravidez através de perícia, bem como o atestado de que o aborto foi provocado e não natural. Ou seja, não basta a morte do embrião ou testemunhas que afirmem que a mulher praticou a conduta descrita no artigo, devendo haver lastro probatório afirmando que feto estava vivo no momento em que o aborto foi realizado, sendo ele o motivo da interrupção da gravidez. Em caso de dúvidas sobre o que causou a morte do feto, a mulher não pode ser responsabilizada pela pratica em questão. Pune-se o aborto somente à título de dolo, consistente na consciente vontade de interromper a gravidez ou consentir para tanto42. Nelson Hungria também admite o dolo eventual, exemplificando com o caso da mulher que, sabendose grávida, tenta suicidar-se, resultando o aborto43.

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Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 42 SANCHES, Rogério. Op. Cit., p 225. 43 Ibidem, p. 290.

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Inicialmente, o art. 124 da legislação penal versa sobre aborto (i) provocado pela gestante ou com o seu consentimento, (ii) auto-aborto quando a própria gestante pratica a conduta e, (iii) aborto consentido quando esta consente validamente que terceiro pratique a conduta. O sujeito ativo, ou seja, quem viola a legislação é a própria mulher - sendo a pena de um a três anos. A despeito disso, “o terceiro que contribuir para o auto-aborto, fornecendo o instrumental necessário ou auxiliando diretamente nas práticas abortivas, responderá pelo mesmo crime”44. Quaisquer meios utilizados: orgânicos, mecânicos ou tóxicos enquadram-se neste artigo. O art. 125 do Código Penal versa sobre o aborto provocado sem o consentimento da mulher por um terceiro. Desta forma este tipo penal recebeu uma resposta mais dura do legislador, imprimindo como pena o período de três a dez anos. Aqui não há anuência da mulher ou ela é menor de 14 anos, ou ainda as outras hipóteses em que a pessoa não possui capacidade de conferir consentimento. Já o art. 126 alude o crime de aborto provocado por terceiro com o consentimento da mulher. Nesse diapasão, quem é o sujeito ativo da conduta é esta terceira pessoa, sendo ela punida com base no referido artigo, enquanto decai sobre a mulher a penalidade imposta no art. 124. Costa Junior lembra que a gestante não se limita a tolerar a prática abortiva, de forma que também coopera com ela e que a “mulher não permanece inerte, pois exercita os movimentos necessários e se coloca em posição ginecológica”45, ou seja, o consentimento da mulher faz parte do tipo penal. Apesar disso, por não ser capaz de dispor sobre a vida do feto, este resta inoperante. Conquanto, ainda no que tange o consentimento, este não precisa ser expresso, podendo ser resultado até da passividade da mulher, mas devendo ser válido para se adequar tipicamente na forma mais benevolente em relação à atuação do terceiro (art. 126) e não de forma mais grave (art. 125). No caso de a gestante ser menor de quatorze anos, incapaz, ou se o consentimento for obtido mediante fraude, o crime resta tipificado no art. 125, sem a anuência da mulher46. Esta 44

COSTA JUNIOR, Paulo José da. Código Penal Comentado. 8.ed. São Paulo: DPJ Editora, 2005, p. 390. Ibidem, loc. cit. 46 Ibidem, loc. cit. 45

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forma não consentida, a posição contrária da gestante pode ser deduzida ou até presumida, quando o ato que provoca o aborto é praticado sem o conhecimento da vítima. Finalizando o assunto no Código Penal está o art. 127 que prevê casos em que o aborto se desdobra em punições mais rigorosas. Aqui a pena do terceiro que provoca o aborto com ou sem o consentimento legal da mulher, acarrete lesão corporal de natureza grave, será aumentada em 1/3 - em caso de morte, esta é duplicada. Contudo, estas consequências mais graves (lesão ou morte) não poderão ser cogitadas nem desejadas pelo agente, ainda que de forma eventual. Havendo o dolo, este responde em concurso material pelos crimes de aborto, lesões ou homicídio. A pessoa que participa do no abortamento, ou seja, quem auxilia diretamente ou terceiro, mesmo que não participe fisicamente do fato, pode ser encaixada nos arts. 124, 125 e 126, porém não como autor e sim partícipe. A participação deve restar comprovada dentro do caso concreto, ou seja, falar abertamente sobre aborto não faz com que a pessoa seja penalizada por instigar a conduta. Existe um Projeto de Lei47 em trâmite, que será tratado a diante, criminalizando a instigação. A legislação atual não pune o posicionamento público em defesa da legislação ou criminalização do aborto, condutas que jamais podem ser consideradas como incentivo, induzimento ou auxílio à prática e muito menos enquadradas como participação. Caso contrário, os Direitos Fundamentais amplamente protegidos pela Constituição Federal, por tratados e convenções internacionais sofreriam um ataque direto, quais sejam, liberdade de expressão, pensamento, consciência e de crença. Além dos crimes previstos no Código Penal, existe a contravenção penal de “anunciar meio abortivo”48. Neste caso significa fazer anuncio, divulgação e publicidade de meios abortivos, bem como orientar publicamente as pessoas sobre a existência de substâncias abortivas. Esta conduta é uma contravenção, não sendo tipificada como crime, por ter sido 47

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 5.069/2013. Acrescenta o art. 127-A ao Código Penal, onde tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo, além de prever penas específicas para todo aquele que induz a gestante à prática do aborto. Disponível em: . Acesso em 22 nov 2016. 48 Art. 20. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto. BRASIL. Decreto Lei n. 3.688/1941. Lei das Contravenções Penais.

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entendida pelo legislador como de menor potencial ofensivo, in casu a punição se dá por pagamento de multa. (art. 20 do Decreto Lei n° 3.688/1941). O fornecimento e venda de meios abortivos pode ser emoldurado à luz do art. 27349 do Código Penal, que versa sobre a venda ou distribuição de medicamento sem autorização da Vigilância Sanitária ou de procedência duvidosa. Nesse caso a pena varia de 10 a 15 anos e multa. Há um entendimento jurisprudencial que encaixa esta prática de comércio de medicamentos abortivos como tráfico de drogas, onde a pena varia de 5 a 15 anos, sendo a conduta pautada conforme o art. 33 da Lei n° 11343/200650. Ainda há a possibilidade de encaixar a venda de medicamentos abortivos como participação no crime de aborto, prevista no art. 124 do Código Penal. Porém não há como solidificar um entendimento uníssono, já que cada juiz conduz os casos sobre a sua jurisdição da maneira que lhe couber. 1.3.

Aborto Legal No Brasil resta mais do que cristalino que aborto é considerado um crime contra a vida

humana, sendo tipificado na legislação penal, que obtém chancela no art. 5º, caput, da Constituição Federal e cláusula pétrea do nosso ordenamento, que determina que “todos são iguais perante a Lei, sem distinção, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residente no País a inviolabilidade do direito à vida”51, bem como mais adiante, em seu art. 227 repisa a sua garantia ao direito à vida quando positiva como "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta propriedade, o direito à vida”52. Apesar disso, o Código Penal Brasileiro permite a excludente de ilicitude no aborto nos casos de gravidez resultante de estupro (ético ou criminológico), gravidez onda haja risco à vida da mulher (aborto necessário ou terapêutico) ou quando o feto é anencéfalo (art. 128). 49

Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: I sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente. 50 Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. 51 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª Ed. São Paulo: Método, 2012, p. 25. 52 Ibidem, Op. Cit., p. 981.

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Nesses cenários, o acesso ao chamado Aborto Legal e seguro é um direito que deve ser garantido pelo Sistema Público de Saúde53. Essas são as duas hipóteses em que aborto seria permitido no Brasil, nada obstante, em 2004 a CNTS propôs a ADPF nº 54. Julgada apenas oito anos depois, em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não deve ser considerado crime de aborto a interrupção terapêutica induzida da gestação de feto anencéfalo. Esta decisão possui eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral, apta a produzir efeitos, independente de norma integrativa no âmbito infraconstitucional e também proporcionou uma interpretação menos restritiva do abortamento terapêutico (que além da vida, tutela a saúde física e mental da mãe) e eugenésico (quando se comprova que o feto nascerá com graves anomalias físicas ou psíquicas, que inviabilizam a sua vida extrauterina). 1.3.1. Estupro O aborto sentimental, também apontado como ético ou humanitário é o realizado para interromper gestação decorrente de estupro (art. 128, II). Segundo Hungria “nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida”54. Esta indicação tem como contexto histórico o período das Grandes Guerras, quando muitas mulheres engravidaram em decorrência de violência sexual praticada pelo contingente dos exércitos invasores. Além da concepção de uma criança nascida e um crime odioso, representando risco e humilhação da mulher, era grande a probabilidade de transmissão das características hereditárias do estuprador, tido como persona degenerada e anormal. Sobre isso, Costa Junior recorda em suas anotações que as legislações europeias acolheram o entendimento de legalizar o aborto, posicionamento acompanhado pela doutrina que defendeu esta hipótese de interrupção da gravidez por considerar “desumano constranger uma mulher, que já sofreu o dano da violência carnal, a suportar também aquele da gravidez,

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BRASIL. Sistema de Acesso à Informação. Informações sobre Aborto Legal. Disponível em . Acesso em 22 nov 2016. 54 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1942. vol. 7, p. 273.

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com vistas a um ser em formação que, não tendo vindo à luz, não é sujeito de qualquer direito”55. Essa espécie de aborto, conforme lucidamente se observa, decorre do entendimento claro “do direito da mulher à uma maternidade consciente”56. Logo, para realização deste procedimento se faz indispensável o consentimento da gestante, ou de seu representante legal, se incapaz. Mais do que um requisito, o consentimento é uma autêntica base da eximente, pois “é precisamente a conformidade do paciente que faz surgir o direito de agir do médico. E isso é assim porque, na verdade, todo tratamento médico implica ingerência em bens jurídicos do paciente, ingerência que só se justifica se o próprio lesado, ou seu representante legal, o autorizam”57. Entretanto, admite-se a relativização dessa interpretação quando a gestante se encontra em perigo de vida (estado de necessidade). Nesta modalidade de aborto, o mal causado é maior do que aquele que se pretende evitar. Conforme a teoria diferenciadora58, em matéria de estado de necessidade, que distingue os bens em confronto, haverá a exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa. O fundamento da indicação ética está no conflito de interesses entre a vida do feto e a liberdade da mãe, que recebe as cargas emotivas, morais e sociais que se desdobram da gravidez e maternidade, não sendo exigível outro comportamento do profissional59. Pelo nosso Código Penal não há limitação temporal para a estuprada-grávida decidir-se pelo abortamento60. Para realização do aborto em caso de gravidez decorrente de estupro, não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência, nem realização de exame pericial na mulher, nem autorização judicial, sendo exigência, por qualquer pessoa, o ato ilegal que tenha

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COSTA JUNIOR, Paulo José da. Op. Cit, p 383. PRADO, Luiz Regis et. al.. Op. Cit., p. 95. 57 COPELLO, Patricia Laurenzo. El Aborto no punible, Espanha: Editorial Bosch, S.A S.A. Bosch, 2002. p. 153 58 Capez preceitua que, de acordo com essa teoria deve ser feita uma ponderação entre os valores dos bens e deveres em conflito, de maneira que o estado de necessidade será considerado causa de exclusão de ilicitude somente quando o bem sacrificado for reputado de valor menor. 59 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral (arts. 1º a 120), 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 274. 60 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p 416. 56

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nexo de causalidade com a gestação provada com elementos sérios de convicção, bastando à declaração da vítima61. A mulher tem o direito de procurar um hospital, informar que a gravidez é consequência de estupro e que deseja proceder com o aborto, bem como manter sigilo sobre a seu quadro. O erro acerca do fato que fundamenta a causa seja pela indução do médico por gestante ou terceiro, é de tipo permissivo que, se inevitável, exclui dolo e a culpa. Atualmente a doutrina e jurisprudência admitem, por analogia, a utilização do aborto sentimental quando a gravidez é resultado de outro tipo de violência sexual, já que é comportamento tão repugnante quanto o estupro62. A semelhança das situações em que esses crimes aterrorizantes ocorrem, bem como as suas consequências pessoais e psicológicas, não seria justa a punição do médico pelo aborto ou desautorizá-lo ao seu procedimento por uma valorização técnica da legislação. 1.3.2. Risco de vida da mulher O aborto necessário (art. 128, II), tem como propósito de salvar a vida da gestante, na ausência de outro meio mais eficaz. Para Hungria, o aborto necessário é definido como “a interrupção artificial da gravidez para conjurar perigo certo, e inevitável por outro modo, à vida da gestante”63, e pode ser terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo). Argumenta ainda o autor que esta indicação ocorre em razão “estado da mulher ou de alguma enfermidade intercorrente” durante a gravidez, podendo-se desdobrar em “séria e grave complicação mórbida, pondo em risco a vida da gestante. Em tal situação, o médico assistente é o árbitro a quem cabe decidir sobre a continuidade ou não do processo de prenhez”64, comportamento chancelado pelos arts. 23, I, e 24. O principal critério para esta indicação é o estado de necessidade, excludente de ilicitude previsto na Parte Geral do Código Penal. Isto se dá pelo fato de o médico ter a obrigação de afastar o perigo mais atual, a morte, sendo a vida da gestante um bem jurídico 61

DELMANTO, Celso et. al. Código Penal Comentado. 8ª ed., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 217. REIS, Thiago. Brasil ainda tem 1 caso a cada 11 minutos. 9 out 2015. Portal G1. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2016. 63 HUNGRIA, Nelson. Op. Cit, pp. 271 e 272. 64 Ibidem, Loc. Cit. 62

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alheio, cujo sacrifício em prol da sobrevivência do produto da concepção, não é razoável exigir-se. A legislação penal brasileira tem caráter de valorização da vida humana extrauterina sobre à intrauterina: o homicídio simples é penalizado com reclusão de seis a vinte anos (art.121, caput, CP), enquanto o aborto praticado por terceiro sem consentimento da gestante é de três a dez anos (art. 125). Observa-se não haver um conflito entre bens jurídicos equivalentes. Esta modalidade de aborto independe do consentimento de familiares ou da gestante, bastando apenas a constatação do profissional médico de que não há outro meio para preservar a vida da gestante65. A defasagem temporal e técnica do Código Penal faz com que o aborto eugenésico, ainda não esteja legitimado positivamente, mesmo que o feto venha a nascer com deformidade incurável. Contudo, nestes casos a gestante que eventualmente provoque autoaborto ou consente que terceiro o faça, será indubitavelmente amparada pela excludente de culpabilidade e inexigibilidade de outra conduta66. 1.3.3. Feto Anencéfalo O julgamento da ADPF nº 54 acrescentou nova modalidade ao art. 128, II, excluindo hipótese de abordo quando se tratar de feto anencéfalo. Havendo constatação de anencefalia do feto restritamente pelo profissional de saúde, está garantida a mulher a interrupção da gravidez. Nessa direção, Maria Helena Diniz conceitua como anencéfalo o feto que: “por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltamlhes os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pendúnculos cerebrais)”67. A tese adotada pelo STF segue a linha de raciocínio adotada pela medicina, que considera o feto anencéfalo um natimorto cerebral. 65

PRADO, Luiz Regis et. al.. Op. Cit., p. 118. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 416. 67 DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 281. 66

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A legislação penal não obriga a gestante, mas lhe dá a faculdade de decidir sobre o prosseguimento da sua gravidez, sem ficar submetida aos rigores próprios da violação de norma jurídico-penal e suas consequências punitivas. Apenas, se preferir, a gestante poderá aguardar o curso natural do ciclo biológico, não sendo “condenada” a manter dentro de si uma promessa vazia e inviável de vida, que impacta diretamente no seu emocional e na sua saúde. A vida é um bem a ser preservado, mas, quando ela se torna inviável, não é justo que o Estado condene a mãe a meses de sofrimento, angústia e desespero. Nesta espécie de aborto, não há dúvidas que os avanços tecnológicos da medicina possibilitam o diagnóstico precoce e seguro de patologia grave ou incurável do feto, que impõe à grávida uma situação que atenta quanto a sua dignidade. Apesar de não se ignorar que, em patamar infraconstitucional, a regra geral é a punição irrestrita ao aborto. Embora o Direito seja produto de múltiplas influências sociais e, consequentemente, suas regras mereçam alterações para acompanhar as transformações da sociedade, os legisladores pátrios mantém uma postura de absoluta indiferença às evoluções da biomedicina, que hoje permite diagnosticar durante o pré-natal as mutações cromossômicas graves e outras patologias incuráveis. O Código Penal persiste apontando apenas as indicações terapêutica e ética como hipóteses que tornariam lícito o aborto praticado pelo médico, havendo ainda a lacuna positiva na razão da interrupção da gravidez quando inviável a vida extrauterina. Na hipótese de incidência do art.128 do CP não há crime por exclusão de ilicitude. A mesma ratio legis que permite, no inciso II do aludido dispositivo legal, o aborto de um feto saudável68, que é a proteção e preservação da vida e da saúde psicológica da mulher, recomenda sua aplicação analógica a outros casos que não estão previstos na legislação, em que não há alternativa para preservação da saúde psicológica da gestante senão a interrupção do processo gestacional fadado ao luto.

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HC 56.572/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 25.04.2006, DJ 5.05.2006, p. 27

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Há ainda o sofrimento decorrente de outras cerimônias penosas, como a necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos e o sofrimento decorrente da necessidade de bloqueio da lactação. As alterações nestas condições comportamentais e psicológicas da gestante podem ser reconhecidas independente de prova, segundo a óbvia regra do bom senso e experiência comum não se tratando de analogia in malam partem. Embora as normas penais sejam em sua maioria incriminadoras, a regra do art. 128 tem viés mais permissivo. Diante do princípio da legalidade do crime e da pena, pelo qual não se pode impor sanção pena a fato não previsto em lei, é inadmissível o emprego de analogias para criar ilícitos penais ou estabelecer sanções criminais. Entretanto, nada impede a aplicação da analogia de normas não incriminadoras quando se vise, em lacuna evidente da lei, favorecer a situação do réu. Conforme ensina Jesus69: De observar-se, porém, como o faz José Frederico Marques, que se a lei penal, quando define delitos e comina pena, não pode apresentar falhas e omissões, uma vez que a conduta não prevista legalmente como delituosa é sempre penalmente lícita – extensão campo sobra, mais além das regras penas incriminadoras, no conteúdo dos preceitos que disciplinam fatos de outra natureza, também afetos à regulamentação jurídica da norma penal. Assim, não possuem lacunas as normas penais incriminadoras em face do princípio da reserva legal. As normas penais não incriminadoras, porém, em relação às quais não vige aquele princípio, quando apresentam falhas ou omissões, podem ser integradas pelos recursos fornecidos pela ciência jurídica.

O principal objetivo do progresso científico é o benefício da humanidade. Entretanto, quando as instituições sociais não acompanham o progresso científico, ele perde de vista a sua função. Assim, a forma correta de aplicar a lei é aquela que revela a preocupação com as necessidades humanas onde o direito se insere, direcionando os avanços da ciência em favor da sociedade e do sujeito do direito. Logo, não há como persistir em aplicar a insuportável pressão psicológica e sofrimento desnecessário de obrigar a mulher de manter em seu ventre ser destituído de qualquer viabilidade, imaginando a todo tempo que este nascerá deformado e morrerá em seguida. No ordenamento jurídico brasileiro, a interrupção da gravidez é aceita como exceção, sendo uma verdadeira exclusão de ilicitude, amparando-se no art. 128, do Código Penal, tornando-se possível apenas se houver risco para a vida da gestante ou resultar, a gravidez, de estupro, os assim denominados abortos necessário e sentimental. 69

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 29ª ed., p. 21.

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O exemplo mais contundente deste entendimento, cuja repercussão social angariou defensores a favor e contra, diz respeito ao feto anencéfalo, que possui anomalia incompatível à vida extrauterina. A retirada do feto cuja vida é inviável não lesiona o bem jurídico tutelado. A emblemática decisão proferida pelo Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, que, na Medida Cautelar na ADPF nº 54, intentada pela CNTS, expressou: Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar – trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade 4 humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastar-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físicos, mental e social70.

Em posição diversa ainda está a falta de amparo legal ao aborto eugênico, porém a doutrina e jurisprudência já admitem a sua prática, quando restar demonstrada a inviabilidade da vida extrauterina natural. Destaca-se as palavras de Nucci71, nestes termos: O aborto eugênico tem, por fundamento, o interesse social na qualidade de vida independente de todo ser humano, e não o interesse em assegurar a existência de qualquer um desses seres e em quaisquer condições. O aborto eugênico traduz-se, como as demais hipóteses do sistema de indicações, em causa excludente de ilicitude.

Assim, prenunciada a falta de perspectiva concreta para a potencialidade de vida extrauterina, esvazia-se o móvel da proteção constitucional à vida, situação na qual a diretriz jurisprudencial tem sublinhado que não há que se submeter a gestante a sofrimento por diversos meses até o parto, “ainda mais quando se constata que há sérios riscos à sua integridade física e mental, além de, em casos que tais, ser impossível intervenção cirúrgica para viabilizar a sobrevivência dos fetos”72.

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BRASIL. ADPF n° 54 - DF. ADPF. Rel. Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 01/07/2008. Disponível em . Acesso em 22 nov 2016. 71 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, RT, 5ª Ed: Forense, 2006. p. 522. 72 Conforme pode ser observado no HC nº 0013332-44.2014, julg. em 25.03.2014, de relatoria da Des. Maria Sandra Kayat Direito, 1ª C. Crim. Do TJRJ.

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Logo, os fundamentos das diversas decisões judiciais em que se autorizou a interrupção da gestação do feto anencéfalo podem e devem ser acolhidos nas razões de decidir a inviabilidade de vida extrauterina e quais as consequências jurídicas de eventual indução antecipada do parto. 1.4.

Direito à Vida x Direito da Mulher

1.4.1. O que é o Direito? Este questionamento provoca debates há séculos, por toda sorte de estudiosos – ou não – do próprio direito ou dos outros campos do saber. Definir o direito é uma das tarefas mais árduas que existe e apesar do tempo empregado nesta reflexão, ainda não foi possível alcançar um consenso concreto que responda esta indagação. Dworkin propôs em sua obra73 a teoria do direito como integridade, onde ele desenvolveu perspectiva capaz de enfrentar o convencionalismo e o pragmatismo. O convencionalismo74 é visto como uma teoria do direito onde a coerção deve ter um limite, sendo utilizada em ocasiões onde uma decisão política anterior a autoriza. Essa autorização é uma consequência de convenções jurídicas ou de normas legais75. A premissa desta teoria é a subordinação da coerção à fatos de conhecimento universal, evitando que autoridades com diferentes critérios morais, tenham o controle exclusivo do poder coercitivo76. No dia-a-dia, quando não houver divergências sobre como o direito deve ser aplicado, o convencionalismo não encontra dificuldades, quando a norma é uma questão de fato77 e, logo após ser individualizada, ela será aplicada de qualquer forma, justa ou injusta, correta ou incorreta, salvo em algumas circunstâncias especiais. Aqui se escolhe aplicar a norma pois, mesmo que de imediato ela aparente ser negativa, a longo prazo ela se provará como a decisão mais acertada, fazendo com que o acesso às soluções seja facilitado. 73

DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. 6. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 11. 74 Conforme se pode ver da leitura relativa ao convencionalismo, Dworkin distingue entre o convencionalismo estrito e o convencionalismo moderado. Não obstante, tendo em vista que o próprio autor afirma que o convencionalismo moderado se identifica com uma forma “muito abstrata e subdesenvolvida de direito como integridade” a palavra aqui será utilizada apenas para indicar o convencionalismo estrito. 75 DWORKIN, Ronald. Op. Cit., pp. 141-142. 76 Ibidem, p. 145. 77 Ibidem, p. 11.

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Mas existem os hard cases78 onde o direito não regula uma situação que lhe é peculiar e que poderia desdobrar-se em violações na justiça e na isonomia; ou pode ser até que a norma exista, mas não abarque o caso concreto e até casos em que há mais de uma norma e persiste a dúvida sobre qual se deva aplicar. O convencionalismo então prova-se contraditório, já que admite a criação do direito pelo juiz para a resolução de um caso concreto, fazendo com que as os casos possam ter soluções e coerções individualizadas, dependendo do juiz e das suas ideologias, o que se opõe completamente ao que a teoria propões. No que diz respeito ao pragmatismo, os teóricos são céticos ante aos fundamentos do direito, entendendo que os entendimentos políticos do passado não justificam a coerção a posteriori do Estado, que se justifica na verdade em “alguma virtude contemporânea da própria decisão coercitiva”79. Independentemente das leis e precedentes não serem vinculantes, os juízes agem como se assim o fosse pois, a longo prazo, seria impossível a manutenção da civilidade, a menos que estas decisões fossem positivadas no processo legislativo. O pragmatismo propõe que os direitos são, na verdade, uma estratégia, um meio e não um fim, para produzir uma comunidade harmônica. Segundo Dworkin, há um ideal: a teoria axiomática utópica80, que é posta de lado pelo pragmatismo. Esse ideal indica a moralidade que se exige de um governo, quando este deve agir para que os ideais de justiça sejam aplicados a todos os cidadãos. Aqui a moralidade é uma virtude, podendo ser considerada uma forma de integridade política. Sendo uma virtude, entende-se que o Estado é uma entidade personificada, que independe dos seus cidadãos, bem como das suas divergências e portadora de um compasso moral, como se pessoa fosse. Em suma, o Estado deve se portar pautando-se em um conjunto principiológico, de acordo com as convicções que regem a vida em situações importantes81. Ao pragmatismo então falta este requisito, já que este não percebe a temporalidade da atuação do Estado.

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Casos não cotidianos, em que a decisão não pode ser tomada pela tradicional subsunção do fato à norma. DWORKIN, Ronald. Op. Cit., p 185. 80 Com a expressão, o autor buscou fazer menção à teoria política criada e, até certo ponto, compartilhada pelos clássicos da teoria política, todos eles utópicos, segundo o autor, ao trabalharem sob o ideal de um povo vivendo em estado de natureza, pré-político, e, portanto, segundo o ponto de vista de pessoas não comprometidas com qualquer ordem política. 81 DWORKIN, Ronald. Op. Cit., pp. 201-202. 79

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O direito como uma integridade, para Dworkin, é a via indicada quando da solução dos problemas. Afirma-se que o que caracteriza o direito é a sua coerência com seus princípios, como dito anteriormente, uma integridade principiológica consensual em uma comunidade e a qual o interprete do ordenamento jurídico deva perseguir. Neste diapasão, o Estado é uma entidade autônoma, única, com convicções e ideais próprios, aos quais deve coerência. Isso é um ideal de Estado que não se sobrepõe aos demais colocados pela teoria política utópica, igualmente imprescindíveis. Há a interação com a isonomia, justiça e com o devido processo legal82, ao passo que cada uma destas premissas sejam norteadas pela coerência e o compromisso com esta coerência para justificar suas ações83: Se aceitarmos a integridade como uma virtude política distinta ao lado da justiça e da equidade, então teremos um argumento geral, não estratégico, para reconhecer tais direitos. A integridade da concepção de equidade de uma comunidade exige que os princípios políticos necessários para justificar a suposta autoridade da legislatura sejam plenamente aplicados ao se decidir o que significa uma lei por ela sancionada. A integridade da concepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões de seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito. A integridade de sua concepção de devido processo legal adjetivo insiste em que sejam totalmente obedecidos os procedimentos previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar o correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de algum aspecto do direito, levando-se em conta as diferenças de tipo e grau de danos morais que impõe um falso veredito.

A interpretação extrai o momento de produção da prática jurídica que deu origem ao direito, sendo ela reconstruída à luz do que pode ser a melhor forma de fundamentar, dando ao direito a melhor aplicação possível. Essa interpretação sendo feita com a devida imparcialidade do juiz, que recebe a norma escrita e deve aplicá-la. Há dois princípios que permeiam o entendimento do Direito como uma integridade: O princípio da integridade da legislação e o princípio da integridade do julgamento, que são aplicados aos legisladores e aos juízes, respectivamente84. Haverá momentos, em especial nos hard cases, em que os ideias, justiça, isonomia e devido processo legal, vão se contradizer. Neste momento caberá ao intérprete buscar a maior coerência dentro do caso concreto.

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Ibidem, p. 200-201 Ibidem, loc. cit. 84 Ibidem, p. 202. 83

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Dworkin também levanta a questão do passivismo, conjuntura na qual divide os juízes como passivos e ativos. Os primeiros tendem respeitar as decisões das instituições democráticas, enquanto os outros declaram que tais decisões são incostitucionais85. Logo, nos hard cases, em que restar clara a divergência acerca do direito, os passivistas entendem não caber ao Judiciário intervir nas decisões, emendando a legislação, pelo fato deste não ter sido eleito em uma via democrática. Para os ativistas, o entendimento é completamente contrário, devendo eles solucionar o problema, mesmo que isso vá de encontro com o que está normatizado. Em diversas de suas obras o autor analisa a questão do aborto e a ADPF n° 54, que autorizou o Aborto Legal nos casos de fetos anencéfalos liga-se intimamente ao caso paradigma Roe vs. Wade86 que, em 1973, declarou inconstitucional nos Estados Unidos as legislações que criminalizavam o aborto de fetos não viáveis. O STF julgou procedente o pedido, concorrendo o direito constitucional do planejamento familiar87, o direito à vida digna dos pais88, o direito à saúde e à liberdade da gestante frente aos riscos da gravidez89, os princípios da igualdade e da proporcionalidade de distribuição do ônus, bem como precedentes do próprio STF. Nesta perspectiva, tipificar o aborto como um crime significa impor um ônus desproporcional às pessoas cujas convicções pessoais são em favor do aborto, algo que viola o princípio da igualdade, art. 5º, caput, da CF, e da proporcionalidade, algo que não aconteceria caso o aborto no caso o aborto fosse permitido, pois neste caso, o aborto poderia ser praticado por quem é a favor e os que são contrários, poderiam não realizar o procedimento.

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Ibidem, p. 442. UNITED STATES SUPREME COURT. Roe v. Wade, (1973). No. 70-18. Disponível em: . Acesso em 23 nov 2016. 87 Vide art. 226, §7°, da CF - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 88 Vide art. 1°, III, da CF - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III a dignidade da pessoa humana. 89 Vide art. 5º, da CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. 86

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Logo podemos perceber, que no caso da ADPF n° 54, o STF julgou improcedente o direito do feto à vida, o princípio da presunção de constitucionalidade das leis emanadas pelo legislativo, já que estas não foram capazes de regular o procedimento, o princípio da fraternidade, onde se defende os que não possuem meios para tal e, novamente, os posicionamentos do próprio Judiciário, que ainda afirma ser um direito infraconstitucional a proteção da vida humana anterior ao nascimento e que o produto da concepção merece proteção irrestrita, a despeito das vontades da gestante. 1.4.2. Feto e Mulher: O conflito A importância que é dada à vida do produto da concepção coloca de completamente de lado as mulheres como sujeitos da história e da política. Tiburi90 afirma que o discurso antiabortista se faz refletir dentro do mundo jurídico, ao passo que estabelece um cenário em que o feto transcende ao corpo da mulher: Inventa-se, a propósito, metafisicamente, a especialidade dessa pertença. O estatuto da pertença é considerado tão especial como a “vida” do embrião, nunca a vida de uma mulher é considerada no mesmo amplo sentido (potencialidade, direito, política) com que o embrião é revestido do conceito de vida. Argumenta-se na direção da potência do embrião como vida humana sem que se pense na vida da mulher.

Ao engravidar, a mulher perde a sua condição como indivíduo de direito e transforma-se em mãe, ou seja, o receptáculo responsável por prover e conceber um novo ser humano à sociedade. Isso contraria o conceito de dignidade da pessoa humana, em que ela deve sempre ser o fim e nunca o meio91. Adams92 explana em sua obra que apenas quem já vive pode pensar na ideia de si mesmo como pessoa, isto é, quem nunca existiu não possui meios de saber sobre a sua nãoexistência. Desta forma, apenas que está vivo, em sua existência, poderia afirmar que “não gostaria de ter sido abortado”, máxima dos que se opões à legalização da interrupção da

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TIBURI, Márcia. Aborto como metáfora. In: BORGES, Maria de Lourdes; TIBURI, Márcia (Org.). Filosofia: machismos e feminismos. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014, p. 163-176. 91 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de Federal de 1988. 2° Ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p 35. 92 ADAMS, Carol J. Neither Man nor Beast: Feminism and the Defense of Animals. New York: Continuum, 1994. pp. 69-70.

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gestação. Esse argumento pormenoriza algo que não existe, motivo filosófico pelo qual se afirma que o feto não poderá experimentar a privação da vida. A doutrina oscila entre os fundamentos da vida e da pessoa, apesar de não haver um conceito preciso os indivualizando. Dworkin93 explica existirem duas formas de objeção ao aborto: a derivativa e a independente. A primeira está relacionada aos direitos e deveres e, a última, trata do valor intrínseco, à santidade secular ou sobre a inviolabilidade da vida humana. Para o autor, para ter interesse próprio é imprescindível que se tenha (ou tenha tido) algum tipo de consciência, não bastando que se esteja apenas na expectativa de se tornar um ser humano. Os interesses são lastreados pela capacidade completa, bem como sentir prazer, dor, afeto, emoção, decepção e expectativa, tudo isso só surge em algum momento tardio da gestação, ou até depois do termo desta. Logo, um feto imaturo, um embrião, produto da concepção, não pode ter interesses. Aparentemente, os discursos que divergem acerca do aborto, quando não traçados pelos dogmas religiosos, polarizam-se, em sua maioria, nesta indagação Shakespeariana do feto ser ou não ser, para o qual o direito à vida teria começo da concepção ou, sendo considerado uma pessoa, o seu direito à vida deveria subjugar o direito da gestante94. Dworkin afirma que, embora os debater aparentem se instalar no âmbito da objeção derivativa, na verdade, eles estão no posicionamento da objeção independente. As pessoas que saem em defesa de que os fetos têm interesses e direitos, não poderiam admitir que, em alguns casos, o aborto é permissível. Por esse motivo, entende que elas baseiam suas afirmações na concepção de que a vida é sagrada e não em direitos, pois, até as religiões conseguem considerar algumas exceções95: A estrutura detalhada da maior parte da opinião conservadora sobre o aborto é na verdade incompatível com o pressuposto de que o feto tem direito já a partir de sua concepção, e a estrutura detalhada da maior parte da opinião liberal não pode ser explicada apenas com base no pressuposto de que tais direitos inexistem.

93

DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais.2ª Ed. São Paulo, WMF Marcos Fontes, 2009, p. 13 94 Ibidem, pp. 41-42. 95 Ibidem, loc. cit.

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Ponderado isso, considera que os debates sobre aborto devem centralizar-se no ponto filosófico tangente à frustração de uma vida e, desta maneira, evitar a frustração de uma contribuição a essa vida e a outras vidas96. Nessa perspectiva, podem ser encaixados posicionamentos que vão desde a permissão do aborto em que a gestação oferece riscos à vida da gestante até a moralidade da sua legalidade em outros cenários. Lançando mão de argumentos religiosos disfarçados de jurídicos, em um movimento de desconsiderar os direitos das mulheres, tramita no Congresso Nacional, um Projeto de Lei que objetiva uma suposta proteção ao nascituro, atribuindo-lhe a condição de “pessoa em desenvolvimento”97. Este Projeto de Lei também preceitua o nascituro como ser humano concebido, mas ainda não nascido, chegando ao ponto de incluir nesta consideração a fertilização in vitro, no momento em que o embrião ainda nem estaria dentro útero. Este projeto é mais um reflexo do discurso sexista antiaborto, em uma tentativa de elevar o feto à condição de pessoa, tentando se estender sobre a própria legislação penal vigente, que estabelece as possibilidades de aborto legal, como também no entendimento do STF no caso dos fetos anencéfalos, negando a gestante o atendimento pré-natal e psicológico, bem como impondo à mulher de manter uma gravidez consequente de estupro, já que prevê que o encaminhamento da criança à adoção e que, caso isso não aconteça, o estupradorgenitor preste alimentos para manter a consequência da agressão sexual após o nascimento. Retorna-se assim à problemática da falta de conceituação de pessoa pela doutrina jurídica, que em diversas ocasiões confunde-se com a ideia de ser humano. Por não haver uma diferença conceitual, não já nada que justifique solidamente priorizar o direito do feto em detrimento do direito de escolha e autonomia da mulher. A Filosofia versa que a definição de pessoa é um dos principais problemas enfrentados pela metafísica, a partir do momento que para isso se podem levar em considerações diversos aspectos, como personalidade, linguagem, consciência, razão etc98. Neste diapasão, Adams 96

Ibidem, pp. 130-131. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 478/2007, que altera o Decreto Lei nº 2.848 de 1940 e Lei nº 8.072 de 1990, Dispõe sobre Estatuto do Nascituro e dá outras providências. Disponível em . Acesso em 23 nov 2016. 98 BLACKBURN, Simon. The Oxford Dictionary of Philosophy. New York: Oxford University Press, 1996. p. 283. 97

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esclarece que a noção de personalidade não é neutra, já que nem sempre abrangeu à todos os seres humanos e é algo cultural. Ao falar do feto99, entende que o seu principal desdobramento está na maternidade forçada – neste sentido também se posiciona Tiburi100: A maternidade é, em nossa cultura, um código moral ao qual aquele que nasce com um corpo de mulher deve submeter-se. A escolha livre das mulheres precisa ser defendida contra a menorização das mulheres pelo discurso masculinista que as submete à maternidade compulsória. Se a mulher deve se submeter à maternidade, ou seja, ao embrião, por fim, ela deve submeter-se ao que Elisabeth Badinter (2010) chamou de “sistema maternalista” cujo cerne é a tirania do bebê. A insubmissão do embrião à falta de desejo de maternidade define a soberania do embrião contra a escravidão da mulher. No discurso masculinista, o embrião está no cerne da gravidez, e não a grávida, assim como o bebê está no cerne da maternidade, e não a mãe. O feminismo é a crítica dessa postura.

As pessoas que se colocam contrárias ao aborto colocam em posições equivalentes a personalidade do feto e a da gestante, mas basta observar que em países como os Estados Unidos, onde o aborto é legal no primeiro trimestre da gestação, as interrupções são feitas de 92% a 96% nas primeiras semanas, que existem padrões diversos para pensar sobre a personalidade101. O raciocínio para isso pode partir tanto da potencialidade, quanto os marcos clínicos sobre a atividade cerebral, argumento que também pode ser utilizado para determinar o fim da personalidade. Consoante este entendimento, a personalidade só é considerada depois de alguns meses de vida do bebê e, na outra extremidade, pode-se atribuir personalidade ao zigoto102.

99

ADAMS, Carol J. Op. Cit., p. 61. TIBURI, Márcia. Op. Cit., p. 171. 101 ADAMS, Carol J. Op. Cit., p. 61. 102 Ibidem, loc. cit. 100

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2 - DIREITO COMPARADO: ABORTO COMO UMA QUESTÃO GLOBAL

Em todo o mundo a problemática sobre o tratamento jurídico dispensado ao aborto é bastante controvertida, gerando sempre polêmica e reações que transcendem o campo do direito. O tema, sempre eivado de uma histórica beligerância, coloca em campos completamente opostos os que defendem o direito da escolha às mulheres e os que resistem à ideia pela garantia do direito à vida do nascituro. As divergências nos discursos beiram o abissal, abarcando argumentos que envolvem não só o campo legal, mas também a moralidade, religiosidade e saúde pública. No Brasil, como já claramente demonstrado, não teria como ser diferente, vigorando desde 1940 o Código Penal que optou em sua edição pela regra da criminalização, sendo as possibilidades em que a prática abortiva é criminalizada, tratadas como excepcionais. A relação da sociedade global com o Aborto, em uma escala macro, não é muito diferente do observado no Brasil. A criminalização do aborto empurra, anualmente, centenas de milhares de mulheres, principalmente as mais pobres, a procurar alternativas clandestinas e perigosas para a interrupção da gestação. Em contrapartida, nos países em que o aborto foi legalizado, não foi observado qualquer aumento significativo no número de procedimentos realizados103. O aborto, enquanto um fenômeno comporta em suas seis letras um imenso grau histórico, se levarmos em consideração a forma com que as mais diversas sociedades construíram seus entendimentos, em tempos que remontam da Idade Média até os dias atuais, onde se observa um fluxo pendular que ora aponta para a sua criminalização, ora tende para o sentido oposto. Contudo, é pacifico que o aborto é concebido por grande parte das legislações penais como uma conduta ilícita. Sem embargo, diversos Estados já encaram a interrupção da gestação sob a ótica da saúde pública, apresentando resultados animadores quanto à redução de mortes maternas decorrentes de procedimentos abortivos ilegais.

103

THE ALAN GUTTMACHER INSTITUTE, Sharing Responsability: Women, Society and Abortion Worldwide. Disponível em Acesso em 4 de nov. 2016.

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Em alguns países o aborto é completamente legalizado, ou permitido em alguns estados, como no caso dos Estados Unidos. Há também Estados que legalizaram o aborto por razões socioeconômicas, dando às mulheres acesso à meios seguros para interromper a gravidez. Outras nações exigem a permissão dos responsáveis legais ou até dos cônjuges para a realização do procedimento e, em alguns locais, inclusive próximos geograficamente ao Brasil, como no caso de El Salvador, as mulheres que abortam podem sofrer a condenação de uma pena de até 30 anos de encarceramento, pelo fato do aborto ser considerado crime análogo ao homicídio. Até o início da década de 60, as maiorias das legislações do mundo proibiam a realização do aborto, excetuando a essa regra os Códigos Russos de 1922 e 1926, que só puniam o aborto realizado sem o consentimento da mulher, ou executado por pessoa sem diploma ou qualquer conhecimento técnico para o mesmo. O Código Uruguaio vigente de 1933 a 1936, só penalizava o aborto realizado sem o consentimento da gestante. A década de 60 foi marcada pela eclosão da segunda onda104 do movimento feminista105, quando as mulheres passaram a reivindicar publicamente direitos iguais ao dos homens, bem como o direito de decidir sobre o seu corpo. Esse fator, conjugado com o avanço da laicização dos Estados, fizeram com que estes começassem a repensar os seus posicionamentos acerta da interrupção da gestação. Paulatinamente o aborto deixou de ser um crime análogo ao homicídio, passando a ser enfrentado sob uma nova ótica por legislações penais mais permissivas à conduta. Com isso, aproximadamente 70% das codificações vigentes permitem o aborto em situações específicas, excluindo a ilicitude da conduta, permitindo a escolha da mulher de

104

O movimento sufragista, no início do século XIX passou a ser conhecido como a primeira onda do feminismo, marcada pela busca ao direito ao voto e ao estudo. “Iniciou-se o sufragismo, enquanto movimento, nos Estados Unidos, em 1848. Denuncia a exclusão da mulher da esfera pública, num momento em que há uma expansão do conceito liberal de cidadania abrangendo os homens negros e os destituídos de renda”. A esse respeito: ALVES, Branca Moreira & PITANGUY, Jaqueline. O que é o feminismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 44. 105 “A partir da década de 60, o processo de emancipação da mulher e o avanço na laicização dos Estados, dentre outros fatores, desencadearam uma forte tendência à liberalização da legislação sobre o aborto”. A esse respeito: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. (Org.). Nos limites da vida: aborto, clonagem e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 7.

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interromper a gestação106. Enquanto outros ainda mantêm a postura inquisitorial perante a conduta da mulher de escolher sobre a continuidade ou não da sua gravidez. 2.1.

O Aborto na América do Norte

2.1.1. Estados Unidos Nos Estados Unidos, onde o sistema vigente é o Common Law107, a permissão do aborto não veio em decorrência de lutas feministas ou acordos políticos, mas sim por um decreto da Suprema Corte americana – que impôs seu posicionamento no sentido de que a escolha sobre a interrupção da gestação cabe a mulher. Ou seja, prevalecendo o direito da liberdade da mulher sobre seu corpo. Este posicionamento concretizou-se em 1972, quando o caso Roe vs. Wade108 foi julgado pela Suprema Corte, quando entendeu-se pelo direito à privacidade, reconhecido por àquele tribunal no julgamento do caso Grisword VS. Connecticut

109

(1965). Com base na

orientação de que a mulher teria o direito de decidir sobre a continuidade ou não da sua gestação, por 7 votos a 2, foi declarada a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas, conhecido reduto conservador, que criminalizava a pratica do aborto quando este não fosse realizado para salvar a vida da gestante. Vale destacar o seguinte trecho da decisão redigida à época pelo Juiz Harry Blackmun110: O direito de privacidade é amplo o suficiente para compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não sua gravidez. A restrição que o Estado imporia sobre a 106

MORI, Maurizio. A moralidade do aborto: sacralidade da vida e novo papel da mulher. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 26. 107 Common Law é um termo utilizado nas ciências jurídicas para se referir a um sistema de Direito cuja aplicação de normas e regras não estão escritas, mas sancionadas pelo costume ou pela jurisprudência. 108 A esse respeito, vide: 410 U.S. 113, 93 S.Ct. 705 (1973). Disponível em . Acesso em 20 nov. 2016. 109 Há vastíssima bibliografia sobre o debate constitucional envolvendo o aborto nos Estados Unidos. Veja-se, em especial, DWORKIN, Ronald. O Domínio da Vida. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003; TRIBE, Laurence. American Constitucional Law. 2 nd . Ed.. Mineola: The Foundation Press, 1988, pp. 1340-1362; NOVAK, John E. & ROTUNDA, Ronal D. Constitucional Law. St. Paul: West Publishing Co., 1995, pp. 809-861; GINSBURG, Ruth Bader. “Some Thoughts on Autonomy and Equality in Relation to Roe v. Wade”. In: 63 North Caroline Law Review 375-386, 1985; ELY, John Hart. “The Wages of the Crying Woolf: A Coment on Roe v. Wade”. In: 82 Yale Law Jornal , 920-939, 1973.) 110 SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. Revista Mundo Jurídico: 2005, p. 6.

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gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta. Danos específicos e diretos, medicamente diagnosticáveis até no início da gestação, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e metal podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e também o problema de trazer uma criança para uma família inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razão, para criá-la. Em outros casos, como no presente, a dificuldade adicional e o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos. O Estado pode corretamente defender interesses importantes na salvaguarda da saúde, na manutenção de padrões médicos e na proteção da vida potencial. Em algum ponto da gravidez, estes interesses tornam-se suficientemente fortes para sustentar a regulação dos fatores que governam a decisão sobre o aborto. Nós assim concluímos que o direito de privacidade inclui a decisão sobre o aborto, mas que este direito não é incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes interesses estatais.

Neste julgamento, a Suprema Corte Americana pautou os parâmetros que os Estados deveriam observar ao legislarem sobre o tema. O caso paradigma considerou que no primeiro trimestre da gestação o aborto deve ser de livre escolha da mulher e com acompanhamento médico. Na segunda semana, o aborto ainda seria uma escolha da mulher, porém o Estado poderia restringi-lo, caso isso fosse feito visando a preservação da saúde da gestante. Apenas a partir do terceiro trimestre, período no qual a medicina considera viável a vida extrauterina do feto, poderiam os Estados proibir o aborto em prol da potencial sobrevivência do nascituro, a não ser que a interrupção da gestação fosse imprescindível para resguardar a sobrevivência da mulher. Dworkin afirma que a Constituição dos Estados Unidos dá lastro ao entendimento do caso Roe contra Wade, eis que a base argumentativa foi pautada no princípio do processo legal justo e na 14ª emenda, que exige que o Estado seja racional sempre que estiver diante de uma possibilidade de restringir a liberdade. Argumenta ainda o jurista que, se a Constituição mantivesse uma postura frágil na proteção da liberdade das pessoas, dificilmente esta liberdade estaria garantida. Os Estados Unidos, por meio da Suprema Corte, transformou a liberdade de escolha da mulher sobre a sua gestação em um direito constitucional, ao qual os estados não podem fazer restrições, já

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que qualquer lei que proibisse o aborto nos dois primeiros trimestres da gravidez (antes do sétimo mês) era inconstitucional111. A partir desse momento teve início a Guerra do Aborto que, conforme o passar dos anos, só aumenta. A referida decisão provocou e ainda provoca uma enorme polêmica nos Estados Unidos.

Uma das principais objeções tem crítica a questionável legitimidade

democrática de um tribunal não eleito em decidir sobre questão tão controversa, supondo-se que o legislador tenha feito uma valoração pessoal, tendo em vista a lacuna constitucional acerca do tema112. Há também a intensa militância de grupos pró-vida, alguns dos quais organizados pela Igreja Católica, bem como a posição tomada por sucessivos governos Republicanos no sentido de promover uma revisão deste precedente que, em sua generalidade, ainda se mantém em vigor nos Estados Unidos. Em decisões posteriores, a Suprema Corte flexibilizou seus critérios temporais, passando a admitir proibições à pratica de aborto ao terceiro trimestre, se já caracterizada a viabilidade de vida extrauterina113. É válido ressaltar que a Suprema Corte, em 1976, reconheceu a inconstitucionalidade de lei que condicionava a realização do aborto à anuência do pai do nascituro. Nesta mesma oportunidade, entretanto, foi admitida a exigência de consentimento dos pais de gestante menor de idade para realização do aborto, mas apenas nos casos que a legislação condicionar este consentimento, uma vez que reste verificado que a 111

A Suprema Corte permitiu que os estados regulassem o aborto no segundo trimestre da gravidez, apenas com o objetivo de proteger a vida da mão – o que permitiu que os estados impusessem procedimentos que deixavam o aborto mais caro. No caso Simopoulos VS. Virgína, 462 US 506, por exemplo, o tribunal suspendeu a exigência estatal no sentido de que os abortos no segundo trimestre fossem realizados em instalações hospitalares licenciadas; e, em planned parenthood of central Missouri VS. Danfort 428 US 52 (1976), o tribunal convalidou a exigência de registros médicos, aplicável em qualquer etapa da gravidez, que o estado considerasse necessário a proteção da saúde da mãe. A esse respeito, consultar . Acesso em 20 nov. 2016. 112 Esta é a crítica levantada, dentre tantos outros, por ELY, John Hart, em “The Wages of the Crying Wolf”. Ronald Dworkin rebate esta objeção, que tem a ver com o chamado caráter “contramajoritário” da jurisdição constitucional, argumentando que, em matéria de tutela de direitos fundamentais, os juízes e tribunais devem estar autorizados a realizarem uma “leitura moral” da Constituição, interpretando construtivamente as suas cláusulas mais gerais, visando a proteção dos cidadãos em face do eventual arbítrio das maiorias legislativas. Para ele, esta atividade não seria antidemocrática, pois a democracia tem como pressuposto a garantia de direitos fundamentais. Veja-se, a propósito, DWORKIN, Ronald. “The Moral Reading of the Majoritarian Premise”. In: Freedom’s Law: the Moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, pp. 01-38. 113 11. 112 S.Ct. 2791. Vale notar que neste caso houve uma maioria mais “apertada” de 5 votos a 4 favorecendo o direito ao aborto e mantendo a orientação básica firmada em Roe v. Wade. Quatro juízes da Suprema Corte dispuseram-se a rever aquele precedente para negar a existência do direito de escolha da gestante à interrupção da gravidez. Veja-se, a propósito, NOVAK, John E. & ROTUNDA, Ronald D., op. cit., pp. 817- 822.

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gestante é madura para decidir sozinha ou que a interrupção da gravidez atende aos seus interesses114. A força desta orientação jurisprudencial foi prejudicada diante da decisão da Suprema Corte, firmada no caso Harris vs. McRae115 e reiterada em casos subsequentes, que desobrigam o Estado de realizar abortos gratuitos na rede pública ou arcar com custos do procedimento, mesmo quando se tratar de mulheres carentes e incapazes de suportar o ônus financeiro do aborto. Este posicionamento não está especificamente ligado ao aborto, mas sim à visão que predomina no país de que os direitos fundamentais são exclusivamente direitos de defesa contra Estado, mas não conferem ao cidadão o direito de reclamá-los ao poder público. Atualmente, nos Estados Unidos o aborto é legal e o limite de tempo para fazer o aborto varia por estado. Em alguns estados vai até 28 semanas de gravidez. Na Flórida e em Nova Iorque o limite é de 24 semanas. 2.1.2. Canadá O parlamento canadense baniu completamente a pena de prisão perpétua em 1869, e, também nos anos 60 iniciou-se uma maior pressão pela legalização do aborto, vindo à princípio de associações médicas e de justiça social, como o Humanist Fellowship of Montreal, presidido na época por Dr. Henry Morgentaler116, personagem central na quebra de paradigma sobre o tema – considerado um cruzadista sobre os direitos sobre o aborto. Em 1967, Pierre Trudeau, Ministro da Justiça, apresentou uma lei para a legalização do aborto no país, desde que representasse risco à vida da mãe, ainda sendo considerado crime, apesar de a mulher poder requisitar uma permissão especial ao chamado Therapeutical Abortion Commmitee (Comitê de Aborto Terapêutico). 114

Planned Parenthood of Central Missouri v. Danforth. 428 U.S.52. (1976). 13. Cf. NOVAK, John E. & ROTUNDA, Ronald D., op. cit., pp. 835-836.). Os procedimentos judiciais devem sempre ser sigilosos e céleres, para não prejudicar o direito da gestante de interromper a gravidez. 115 14 448 U.S. 297 (1980). 116 A esse respeito, vide: The Globe and Mail. Disponível em . Acessado em 7 nov. 2016.

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Esta junta era formada por três homens, que julgariam se o caso poderia ser considerado de vida ou morte. Essa lei foi considerada uma vitória do direito das mulheres, todavia sua aplicação era bastante questionável, o sistema não era inclusivo, pois apenas mulheres com acesso à educação e de classe média ou alta, moradora das grandes cidades do país conseguiam um relativo acesso ao serviço. Para as mulheres em geral não havia nenhum acesso ao aborto legal. Apenas em 1988, devido ao julgamento de Mongentaler117 por conta das suas declarações públicas sobre o tema, bem como o auxílio prestado na condução de mais de cinco mil abortos seguros. Na ocasião, a Suprema Corte Canadense declarou a antiga seção sobre aborto dentro do código criminal como inconstitucional, sob argumento de que a lei era injusta e impunha obstáculos desarrazoados às mulheres118: Forçar uma mulher, pela ameaça de sanção criminal, a levar uma gravidez até o fim, a não ser que se enquadre em certos critérios sem relação com suas próprias prioridades e aspirações constitui uma profunda interferência no corpo da mulher e, por isso uma violação da sua segurança pessoal.

A partir deste momento a interrupção voluntária da gestação foi legalizada, mesmo que posteriormente emendas constitucionais tenham sido criadas visando dificultar esta prática. No país, o acesso aos serviços de saúde é garantido pelo Canada Health Act119 e o aborto deveria ser gratuito. No entanto, os planos de saúde dependem das políticas territoriais e provinciais, que acabam sobrepondo-se às leis federais, fazendo com que a cobertura do procedimento varie em todo pai. Desta forma, o acesso pode não ser considerado amplo, já que o custo pode variar entre 450 e 900 dólares canadenses. No Canadá não há limite de tempo gestacional para realização do aborto120, mais de 90% das mulheres interrompem a gestação no primeiro trimestre, apenas de 2 a 3% são feitos

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Smoling and Scou v. The Queen. O relato do caso e os trechos mais importantes do acórdão encontram-se em JACKSON. Vicki C. & TUSHNET, Mark. Comparative Constitucional Law. New York: Foundation Press. 1999. pp. 76-113. 119 Disponível em . Acessado em 7 de novembro de 2016. 120 UNITED NATIONS. Dept. of Economic and Social Affairs. Population Division (2001). Abortion Policies: Afghanistan to France(em inglês) United Nations Publications [S.l.] p. 183). Segundo estatísticcas do Pro 118

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com mais de 16 semanas e, independente de não haver previsão, nenhum médico está pode realizar o procedimento em gestações com mais de 20 semanas, excerto por razões médicas ou genéticas. A taxa geral de aborto é de 16 a cada 1000 mulheres, quantidade bem reduzida se comparada aos outros países desenvolvidos. O aborto, apesar de legal no país, ainda encontra resistência e muitos obstáculos, seja por razões políticas, territoriais, médicas ou morais, porém, não obstante o aumento das manifestações e posicionamentos conservadores, o direito da mulher de interromper a sua gestação é ainda respeitado no ponto de vista legal. 2.1.3. México No México, o aborto também é uma questão que gera bastante polêmica e cuja legislação sobre o tema varia de acordo com a região. Na capital, Cidade do México, ele é oferecido para qualquer mulher que deseje interromper a gestação de até 12 semanas – quando é praticado e assistido em clínicas do estado com atenção médica e especializada mas o procedimento é vedado em mais de 18 das 31 constituições estaduais do país121. Alguns estados do país endureceram a sua legislação sobre o tema, mas isso ao impede o crescimento da quantidade de abortos realizados legal ou ilegalmente. Entre 2007 e 2011, estima-se que mais de 50 mil interrupções voluntárias da gestação tenham sido feito, tendo como contraste o pequeno número de mulheres condenadas penalmente em estados conservadores, como Guanajato, onde recaem penas de até 30 anos de detenção em decorrência da criminalização do procedimento122. O Código Penal Federal do México123 define o aborto como morte do produto da concepção em qualquer momento da prenhez, e punindo o médico que conduz o abortamento em até 3 anos de detenção, se feito com o consentimento da mulher – sendo a pena aumentada Choice Action Network. Disponível em: . Acesso em 7 de novembro de 2016. 121 GÓMEZ, Natalia. Realizan abortos legales sin regulacion. Disponível em . Acesso em 7 de nov 2016. 122 MALKIN, Elizabeth. Many States in Mexico Crack Down on Abortion. The New York Times, 22 set 2010. Disponível em: . Acesso em 7 de novembro de 2016. 123 MEXICO. Código Penal Federal. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016

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em até 6 anos, qual este faltar. Se o aborto for realizado mediante violência física e moral, a pena varia entre 6 e 8 anos. À mulher é designada pena de 6 meses à um ano de prisão pela interrupção voluntária da gravidez, quando esta tem “má fama”, o procedimento realizado para esconder a gestação ou que a concepção tenha se dado em decorrência de uma união ilegítima. Caso não se encaixe em nenhuma dessas possibilidades, a pena aumenta de um a 5 anos de prisão. O aborto de gestação proveniente de estupro ou feito para evitar o perigo de morte materna não é punido. 2.2.

O Aborto na América Latina Marcada pela tradição religiosa, herança das colonizações espanhola e portuguesa, a

maioria dos países latino-americanos ainda vê nos direitos reprodutivos das mulheres um grande tabu. No continente, apenas Cuba, Guiana Francesa e Uruguai legalizaram o aborto. 2.2.1 Argentina A legislação argentina equipara-se à brasileira, ainda sendo severamente punido, contemplando apenas dois casos em que esta punibilidade se exclui: quando a mulher se encontra com a saúde ou a vida em risco, ou quando a gestação é proveniente de estupro ou atentado ao pudor124. Apenas em 2012 esta última modalidade foi estendida à todas as mulheres pela Suprema Corte, já que antes ela se restringia apenas as incapazes, mediante autorização do representante legal125. A decisão deu apontamentos para a realização de uma política de saúde com enfoque nos direitos das mulheres126: O artigo 86.2 se aplica à todos os casos de violação, independentemente da capacidade mental da vítima, esta Corte Suprema considera oportuno e necessário ampliar as terminações deste pronunciamento. Isto se dá porque, em média, sobre a 124

MÉXICO. Código Penal Federal Mexicano. Disponível em: . Acesso em 7 de novembro de 2016. 125 Argentina Legaliza Aborto à Mulheres que Sofreram Estupro, Yahoo Notícias, 13 mar 2012. Disponível em . Acesso em 15 de nov 2016 126 Citado de la presentación de Gherardi N. El marco legal del aborto en Argentina: Aborto no punible y el caso FAL de la Corte Suprema de Justicia de la Nación. II Reunión de referentes para el fortalecimiento de la política pública de acceso al aborto no punible en Argentina. CEDES. Buenos Aires, 19 – 21 de set de 2012.

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matéria, um importante grau de desinformação têm levado os profissionais de saúde a condicionar a realização desta prática ao ditado de uma autorização judicial e este procedimento é o que obstaculiza a implementação dos casos de aborto não puníveis legislados em nosso país desde a década de 1920 (...). Desta forma, este Tribunal quer deixar expressamente declarado que sua intervenção se dá com efeitos de esclarecer a confusão reinante no que diz respeito aos abortos não puníveis, afim de evitar frustrações de direito por parte dos que peticionem para ter acesso à eles, de modo que tal configurem pressupostos de responsabilidade internacional (...) Assim, com a autoridade suprema do pronunciamento que deriva do caráter de intérprete último da Constituição Nacional e das Leis, que possui este tribunal, é suficiente para esclarecer quaisquer dúvidas que possam abrigar esses profissionais de saúde sobre a não punibilidade dos abortos que são praticados por àqueles que os reivindicam por serem vítimas de estupro.

Desde a sentença da Suprema Corte de Justiça, oito jurisdições aprovaram protocolos que correspondem com o estabelecido pelo Tribunal Máximo do país - Chaco, Chubut, Jujuy, La Rioja, Misiones, Santa Cruz, Santa Fe y Tierra del Fuego. Nove jurisdições não possuem protocolos - Catamarca, Corrientes, Formosa, Mendoza, San Juan, San Luis, Santiago del Estero y Tucumán. Oito jurisdições regulam com exigências que podem dificultar o acesso aos abortos não puníveis, como Buenos Aires (requisitos arbitrários estão suspensos por ordem judicial), Córdoba (atualmente suspendido parcialmente por ordem judicial), entre Ríos, La Pampa, Neuquén, Provincia de Buenos Aires, Río Negro y Salta. O Executivo argentino não cumpre o que foi disposto pela Suprema Corte. Atualmente o Ministério da Saúde, responsável pela política sanitária do país, não deu prosseguimento a resolução do Guia Técnico em Atenção Integral aos Abortos não Puníveis, passo inevitável para dar efetividade ao referido instrumento127. Em 2011, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas responsabilizou o Estado Argentino por não garantir o acesso ao aborto legal128: O Estado Parte deve modificar sua legislação de forma que a mesma ajude efetivamente às mulheres a evitar gravidezes não desejadas e que as mesmas não tenham que recorrer a abortos clandestinos que poderiam por em perigo suas vidas. O Estado deve igualmente adotar medidas para a capacitação de juízes e funcionários de saúde sobre o alcance do artigo 86 do Código Penal recomendando sua interpretação ampla, como é feito com outros tratados internacionais com rango constitucional. As interpretações amplas se baseiam, além disso, na Organização Mundial da Saúde (OMS), que define a saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não só a ausência de doença”. Enquanto não existir clareza 127

ASOCIACIÓN POR LOS DERECHOS CIVILES. Nuevo Informe de La ADC sobre El cumplimento de La sentencia de La suprema conte sobre aborto no punible, 2011. Disponível em: . Acesso em 15 nov 2016. 128 ONU.Inciso 13. Resolução do Comitê de Direitos Humanos, 98º período de sessões. Nova Iorque, 8 a 26 de março de 2010.

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em relação à não punibilidade de determinadas causas de aborto, estabelecidas no art. 86 do Código Penal, que data de 1921, desatualizado e gerador de distorções na sua interpretação, o debate se estende necessariamente à descriminalização ampla, até as 12 semanas, segundo o projeto de lei promovido por organizações feministas e de mulheres e que tem conseguido importantes apoios de diversos atores sociais.

Em 2013, um hospital em Buenos Aires se negou a realizar o aborto, se valendo de uma interpretação da lei, utilizada frequentemente por grupos conservadores. O Ministério da Saúde da província de Buenos Aires precisou intervir na ocasião para garantir o direito da mulher ao aborto. Tal como indicado no início desta seção, o Código Penal argentino tipifica o aborto como um delito contra a vida – neste sentido, as instituições de saúde constantemente entendem pela necessidade de realizar a comunicação às autoridades policiais, que em algumas circunstâncias se desdobram no processo judicial contra a mulher129. Recentemente, houve o polêmico caso de uma mulher que foi condenada a oito anos de prisão por um aborto que, segundo seus advogados, foi espontâneo e involuntário. A Corte Suprema da província de Tucumán, no norte do país, ordenou a sua libertação enquanto se aguarda a sentença sobre o caso, depois de uma intensa manifestação de grupos feministas pela liberdade da mulher130. Dados demonstram que as complicações no aborto são a primeira causa de morte materna na Argentina, representando 30% do total131. Até 2007 não se tinha noção da amplitude de abortos realizados no país, mas as autoridades sanitárias estimam um total de 500 mil por ano – o que representa cerca de 40% das gestações no país. Na maioria dos casos o aborto é feito na ilegalidade, sem condições técnicas ou clínicas132. 2.2.2 Chile

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POLÉMICA por La detencion de uma joven que llegó a La guardiã Del Fernandez com um aborto em curso, InfoBae.11 nov 2014 Disponível em . Acesso em 7 de nov 2016. 130 TUCUMÁN: liberaron a Belén, La joven presa por um aborto espontâneo. InfoBae. 8 ago 2016. Disponível em: . Acesso em 7 de novde 2016. 131 ROMERO M, Abalos E, Ramos S. La situación de la mortalidad materna en Argentina y el Objetivo de Desarrollo del Milenio. Hoja Informativa 8. Observatorio de Salud Sexual y Reproductiva de Argentina. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2016. 132 PANTELIDES, Edith. A & MARIO, Silvia. 2007. Morbilidad materna severa en la Argentina: módulo de estimación de la magnitud del aborto inducido. Buenos Aires: CEDES/ CENEP. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2016.

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No Chile, o aborto era tratado de forma extremamente rígida, não sendo até 2016 acessíveis nem mesmo em casos de estupro ou risco a vida da mulher133. O país é considerado um dos mais resistentes do mundo à relativização da prática abortiva134. A influência da Igreja Católica na política, apesar do Chile se colocar como um estado laico, é um dos maiores fatores para esta inflexibilidade diante do tema. O aborto terapêutico era permitido pelo Código de Saúde de 1931, abolido pelo regime militar em 1989, sob o argumento que diante do avanço da medicina, a prática do aborto não mais se justificava135. Ante esta proibição, a mulher que desejasse engravidar deveria solicitar aborto com o aval de dois médicos. Na legislação atual, o aborto está tipificado no capítulo que versa sobre ‘Crimes e Delitos contra a Ordem da Família, a Moralidade Pública e a Integridade Sexual’, punindo a interrupção da gestação pelo uso de medicamentos e até quando este se dá em decorrência de violência sofrida pela mulher. A pessoa que conduz o abortamento, com o consentimento da mulher também é punida. A Constituição Chilena pauta que a “lei protege a vida daqueles prestes a nascer”136. Em 2004, a ONU pediu que o Chile legalizasse o aborto nos casos de estupro e incesto e em 2007, o Conselho dos Direitos Humanos considerou serem indevidas as restrições legais que regulamentam o aborto no país, especialmente nos casos em que a vida da mulher estiver em risco – tal posição foi reiterada diversas vezes pela organização137. A proibição total que remonta a sombria era da ditadura de Pinochet foi questionada por doze projetos de lei apresentados desde 1991, todos rejeitados pela câmara do país. Apenas em 2016, após um caloroso debate, foi aprovado pelo poder legislativo um projeto apresentado pela presidente Michele Bachelet, descriminalizando o aborto em três situações: inviabilidade de vida extrauterina, risco de morte materna e estupro. O debate sobre o tema se ampliou depois que a gravidez de uma menina de 11 anos, decorrente de um estupro do seu padrasto, inflamou a sociedade e deixou clara a necessidade de uma mudança nas leis do país. 133

Pelo fato de serem recentes as discussões, não há ainda bibliografia atualizada sobre o tema, sendo as informações em sua maioria, provenientes de sites de informação. 134 CHILE: where abortion isn’t na option. The Guardian. 23 fev 2011. Disponível em Acesso em 7 de nov de 2016 135 CANO, Sonia., Aborto Terapéutico: Demanda de las mujeres, Punto Final. Disponível em . Acessado em 7 de nov de 2016. 136 CHILE. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016 137 La Tercera. Disponivel em . Acesso em 7 nov. 2016.

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Em um urgente apelo, fomentado por organizações feministas e de direitos humanos do país, centenas de milhares de pessoas ocuparam as ruas da capital para pressionar os deputados e senadores à aprovarem o projeto de Bachelet, que foi aprovado pela Comissão de Saúde do Senado em setembro deste ano, ainda pendente de discussão pelos senadores da Comissão de Constituição, Legislação, Justiça e Regulamento138. Não há muitos dados que quantifiquem as gestações resultantes de estupro no Chile. A especialista em ginecologia infantil e adolescente Andrea Huneeus139 ofereceu cifras reveladoras numa audiência parlamentar em 2015. Em entrevista à revista Paula, ela contou que “66% das grávidas por estupro são menores de idade, e 11% têm menos de 12 anos. Ou seja, são meninas”. Segundo a especialista, em 90% dos casos são engravidadas por algum familiar ou conhecido. “Pelas condições de vulnerabilidade que se apresentam entre as menores de idade grávidas por estupro, o ideal seria deixar sem limitação de tempo”, disse Huneeus à Paula. 140 2.2.3 Cuba Cuba é um dos poucos países da América Latina onde o aborto voluntário é permitido. Seus regulamentos internos e qualidade dos serviços médicos relacionados à saúde reprodutiva seguem as instruções da Organização Mundial de Saúde141 e o Programa da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994)142.

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PROJETO para descriminalização parcial avança no Chile, G1, 6 set 2016. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 139 SOLARI, Carola. Uma mirada experta sobre embarazo por violación, Paula, 23 ago 2015. Disponível em . Acesso 7 nov 2016. 140 MONTES, Rocío. Gravidez de menina estuprada aos 11 anos inflama debate sobre aborto no Chile, El País Internacional, 15 ago 2016, Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 141 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortamento Seguro: Orientação Técnica e de políticas para sistemas de saúde. 2ª edição. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 142 ALVES, J.A. Lindgren, A Conferência do Cairo Sobre População, DHNet, jun 1995, Disponível em . Acesso em 7 nov 2016

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Atualmente143, o aborto no país é permitido até a 12ª semana de gestação, nas seguintes condições: proteção à vida da mãe, preservação da saúde física e mental da mãe, em casos de estupro, defeitos do feto, em decorrência de fatores socioeconômicos e também caso seja desejo da gestante interromper a gravidez144. O governo de Cuba garante acesso aos serviços médicos de alto nível à sua população, incluindo o procedimento abortivo – o direito ao aborto voluntário é uma importante conquista das mulheres cubanas na jornada para diminuir as desigualdades de gêneros que foram pauta do programa da Conferência do Cairo, repisando a importância dos direitos das mulheres decidirem sobre o seu corpo e a reprodução. Vilma Espin145, fundadora da Federação de Mulheres Cubanas, declarou sobre o direito das mulheres e dos homens decidirem sobre a sua saúde reprodutiva e planejamento familiar: Para nós, o planejamento familiar significa dar à nossa população a possibilidade de decidir conscientemente e responsavelmente sobre o número de filhos e o momento de concebê-los; ou seja, planejar no sentido direto da palavra o tamanho da família; não deixar para casualidade, o descuido, essa questão tão importante, de tanta envergadura, que é ter um filho. Para cada casal poder ter acesso à um direito humano fundamental, que é decidir sobre ter ou não um filho, estamos obrigados à capacitá-los, a dar orientação sobre os mecanismos de reprodução humana e as possibilidades anticonceptivas que permitem evitar uma gravidez inoportuna. Também é necessário acompanhar este trabalho educativo e orientacional com uma ampla gama de diferentes métodos contraceptivos ao alcance de toda população, pois somente os conhecimentos cabais sobre as possibilidades contraceptivas e o abastecimento de toda população com os métodos existentes, podem formar a consciência necessária e disposição da população de fazer um uso razoável do planejamento familiar.

Desta forma, pode-se concluir-se então que na sociedade cubana o aborto é considerado como um dos muitos métodos contraceptivos que dispõe o cidadão para planejar a quantidade de filhos e, em qual tempo a mulher cubana deseja tê-los. Entre as principais consequências deste cenário está a queda da mortalidade materna e da taxa de fecundidade. A partir de 1965, quando se deu a legalização, a mortalidade materna declinou para 120 143

N da A. Pelo fato de serem recentes as discussões, não há ainda bibliografia atualizada sobre o tema, sendo as informações em sua maioria, provenientes de sites de informação. 144 HEREDERO, Liliet, Cuba: cuando El aborto es una alternativa al método anticonceptivo, 10 mar 2011, BBC World, Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 145 GUILLOIS, Vilma Espín, La mujer en Cuba. Familia y sociedad, Imprenta Central de las FAR, La Habana 1990, p. 57.

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óbitos a cada 100 mil nascimentos146. Estes números, no entanto, variam bastante de acordo com a fonte. O Word Factbook da CIA apurou, em 2015, que a mortalidade era materna do país é de 39 a cada 100.000 nascimentos147 e, o Escritório Nacional de Estatística de Cuba (ONE) levantou a quantidade148 de 24,8 óbitos maternos no mesmo universo, sendo apenas 16 em decorrência específica de abortamento. 2.2.4 Uruguai: Um Paradigma Fronteiriço ao Brasil, no Uruguai, desde o fim de 2012 o aborto não é mais crime. Sob a gestão presidencial de José Mujica, o país foi o primeiro país da América Latina com uma legislação realmente aberta a respeito da interrupção da gestação, superando as políticas de despenalização de países como Cuba, Guiana, Porto Rico e na Cidade do México. A Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez149 não criminaliza a conduta, esclarecendo o direito do aborto legal e seguro, determinando também que todas as instituições públicas e privadas de saúde conduzam o abortamento seguro em mulheres que solicitem o procedimento até as 12 semanas de gestação. A Lei estabeleceu algumas medidas obrigatórias à mulher que decida realizar aborto: ela deve ser cidadã uruguaia e, ao manifestar a sua vontade de interromper a gestação, ela passará por uma equipe interdisciplinar de ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais – os quais informarão os riscos e alternativas do aborto. Se, mesmo munida de toda informação a mulher optar pelo prosseguimento do aborto, à ela é garantida a realização na rede pública ou privada. Abortamentos que não respeitem os ditames da lei ainda são considerados ilegais. De acordo com o relatório anual do Ministério da Saúde do Uruguai150, divulgado recentemente, o número de mulheres que desistiram de interromper a gravidez após iniciar o 146

Aesse respeito, acessar a notícia disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 147 THE WORLD FACTBOOK. Central America and Caribbean: Cuba, CIA, Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 148 CUBA. Anuário Estatístico De Cuba 2015, Oficina Nacional de Estadísticas, Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 149 URUGUAI. Ley N°18.987 de 22 de octubre de 2012. Interrupción Voluntaria del embarazo (IVE). . Acesso em 7 nov 2016 150 URUGUAI. Anuário Estadístico 2015, Instituto Nacional de Estadística. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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processo de do aborto legal cresceu em 30%, exemplificando que a legalização não promove o aborto, mas a reflexão sobre ele. O acompanhamento das gestantes nas consultas obrigatórias com a equipe interdisciplinar mostra-se algo eficiente na conscientização das mulheres sobre o procedimento dando a elas a oportunidade de lucidamente exercerem o direito sobre os seus corpos. Em comunicado oficial151, indicou que o total de abortos legais subiu em 20% em relação a 2013, estando dentro do esperado para os primeiros anos de vigência da Lei. Falando ainda em quantidade, o órgão informou que ela obedece a razão de 12 para cada mil mulheres entre 15 e 45 anos, sendo porcentagens ainda abaixo dos níveis internacionais. Além disso, o estudo indica que 18% das mulheres que procuram o abortamento são menores de 20 anos e, que todas as interrupções realizadas na vigência da lei, nenhuma morte foi registrada. O único caso de óbito relacionado ao aborto foi de uma mulher que realizou o procedimento ilegalmente, chegando ao hospital em estado grave152. 2.3.

O Aborto na Europa

2.3.1 Reino Unido Enquanto a legalização continua sendo um tabu no Brasil, o Reino Unido decidiu sobre a questão há décadas. Lá – com exceção da Irlanda do Norte – a legalização se deu em 1967, com o Abortion Act153, ato do Parlamento que permitiu que o procedimento fosse realizado em hospitais e clínicas legalizadas. Na Inglaterra, Escócia e no País de Gales, é permitido até a 24ª semana de gestação. Todavia, a maioria dos procedimentos (cerca de 90%) é conduzida até a 13ª semana. Em extraordinários, quando houver risco de morte, é possível o abortamento depois da 24ª semana. 151

Interrupcion voluntaria de embarazo, Ministério de Salud, Uruguai, 28 mar 2015. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 152 REIS, Rafael. Uruguai: Quase 7 mil abortos seguros e nenhuma morte registrada. Pragmatismo Político. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 153 REINO UNIDO. Legislação sobre interrupção da gravidez. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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A Lei dita que nenhuma mulher será obrigada a levar até o final uma gravidez indesejada, caso seja atestado que a gestação será prejudicial à sua saúde física e mental. Menos de 16 anos podem pedir a interrupção, desde que haja participação dos seus responsáveis legais na tomada de decisão. Para dar início ao procedimento legal de aborto, o primeiro passo é procurar um centro de saúde do Serviço Nacional de Saúde, para consulta com um clínico geral. O médico fará testes iniciais e depois, encaminhará a gestante para um ginecologista de um hospital público. É necessário o aval de dois profissionais para que o abortamento seja conduzido. Além de hospitais públicos, há clínicas particulares autorizadas a realizar o abortamento, porém não de forma gratuita. Até a 9ª semana de gravidez, nestes estabelecimentos, a interrupção pode ser feita por intermédio de medicamento abortivo, custando cerca de 500 libras. Segundo dados oficiais do governo britânico, em 2014 foram realizados 184.571 abortos legais na Inglaterra e País de Gales, número 0,4% menor ao ano anterior. As idades das mulheres atendidas no sistema de saúde variam de 15 a 44 anos e, 92% dos procedimentos foram feitos até a 13ª semana de gestação. Deste total, 51% dos abortos foram feitos por meio de pílulas abortivas e 49% por procedimento cirúrgico. As justificativas médicas, em 98% dos procedimentos, se basearam na preservação da saúde mental das mulheres. No mesmo ano, os números de abortos feitos em hospitais e clínicas autorizadas, em mulheres não residentes na Inglaterra ou País de Gales foi de 5.521 – sendo em sua maioria irlandesas. Apenas 330 casos de complicações em decorrência do aborto foram registrados pelos hospitais e clínicas do Reino Unido, no universo de 184.571. Não consta no relatório o registro de mortes maternas154. Ali perto, na Irlanda do Norte, o Abortion Act não tem validade e o aborto continua sendo considerado crime. No país, o abortamento só é legal nos casos em que reste 154

REINO UNIDO, Abortion Statics, England and Wales: 2014, Department of Health. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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comprovado risco de morte das mulheres, nada impede, porém que as cidadãs do país viagem até a Inglaterra, Escócia ou País de Gales para interromper uma gestação indesejada sem sofrerem sanções. A legislação da Irlanda do Norte sobre o tema não é atualizada desde 1851, quando o aborto foi inserido na seção 58 do Ato de Ofensas Contra a Pessoa, que prevê até prisão perpétua para a mulher e quem a auxilia na prática do aborto. A Anistia Internacional considera a lei irlandesa155, a mais dura da Europa, adjetivandoa como draconiana e de urgente necessidade de reforma. A pena era aplicável até o final de 2015 nos casos onde a gravidez é fruto de estupro ou incesto e, até mesmo quando não há viabilidade de vida extrauterina. Em novembro do ano passado, a Corte Superior de Justiça da Irlanda do Norte considerou que a proibição do aborto, nestes casos, viola os direitos fundamentais da mulher grávida156. O Tribunal Máximo do país também se posicionou contra a atual legislação do país, estando essa em um profundo desacordo com a Convenção Europeia de Direitos Humanos. No país é crescente a manifestações sociais para revisão do tema. 2.3.2 França Na França, o debate constitucional sobre a legalização do aborto partiu do Legislativo e não do Judiciário. Em 1975 foi aprovada a Lei Veil, em homenagem à Simone Veil, então ministra da Saúde, que se pronunciou em um histórico discurso defendendo o projeto de lei. O cerne do seu argumento foi de que os médicos, servidores sociais e cidadãos já se viam compelidos a participar de “ações ilegais” para auxiliar mulheres que decidiam interromper a gravidez, não obstante o risco de penalizações: Eles sabem que, ao recusar conselho e apoio, estão abandonando [a mulher] na solidão e na angustia de um ato perpetuado nas piores condições e que periga deixála mutilada para sempre. Sabem que essa mesma mulher, se ela tem dinheiro, se ela 155

IRLANDA DO NORTE: a lei de aborto mais draconiana e dura da Europa, Anistia Internacional, 4 mar 2015. Disponível em . Acesso em 7 mar 2016. 156 PINHEIRO, Aline. Corte da Irlanda do Norte aceita aborto em caso de estupro e má formação do feto, 30 de novembro de 2015. Disponível em . Acesso em 7 mar 2016.

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sabe se informar, irá a um país vizinho, ou mesmo a certas clínicas na França, e poderá, sem correr risco nem ser penalizada, interromper sua gravidez157.

A Lei Veil suspendeu as penalizações legais quando o aborto é efetuado voluntariamente até a 10ª semana, por um médico, em estabelecimento público ou privado, que satisfaça as condições do código de saúde pública. Ela estabelece que a mulher será encaminhada à um estabelecimento de informação, onde lhe será atribuído um atestado de consulta, oportunidade em que ela receberá todas informações sobre aborto e planejamento familiar. Entre a comunicação da vontade da mulher de interromper a gravidez e a concretização do procedimento, deve ser respeitado o prazo de uma semana. Desde a sua implantação, a lei foi sendo reformulada a fim de melhor a sua aplicação. A partir de 1982, ela passou a garantir o reembolso pela interrupção voluntária da gravidez e desde 2001, o prazo legal para o abortamento aumentou de 10 para 12 semanas e se deixou de exigir a autorização dos representantes legais para abortos em menores de idade. No ano de 1974, cerca de 300.000 mulheres realizavam aborto na França e, em seu relatório mais recente feito governo, verificou-se que são realizados cerca de 220.000158 abortos por ano na França. Um número que não parece ter variado muito, mas que não reflete as melhorias significativas na distribuição de métodos contraceptivos, bem como do investimento na educação reprodutiva. Coexistem na França a maior taxa de natalidade da Comunidade Europeia, sendo uma exceção no continente, em torno de 12 nascimentos no universo de 1000 pessoas, e um dos mais altos índices de distribuição de contraceptivos, algo que o aborto legalizado não interfere. 2.3.3 Alemanha

157

FRANÇA. Loi Du 17 janvier relative à l’interruption volontaire de grossesse, Assemble Nationale, Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 158 FRANÇA, Evaluationdes politiques de prévention de grossesses non désirées et prise em charge dês interruption volontaire de grossesse suit à La loui Du 4 juillet 2001, Social Sante. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016,

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Foi editada em 1974, na Alemanha, Lei que permitia o aborto por vontade da mulher, desde que praticado por um médico, nas 12 primeiras semanas de gestação. Contra ela, foi ajuizada Ação Abstrata de Inconstitucionalidade, julgada em 1975159. Em uma famosa decisão, no caso que ficou conhecido como Aborto I, a Corte rejeitou a alegação de que o direito à vida se iniciava com o nascimento, afirmando que o feto era um “ser em desenvolvimento”, dotado de dignidade e aspirante à proteção constitucional, que teria início a partir da nidação. No mesmo julgamento, o Tribunal reconheceu a significância do direito à privacidade da mulher em relação às questões reprodutivas, mas afirmou que estes deveriam ser relativizados diante de ponderação, cedendo espaço para o direito à vida do veto, a não sem circunstâncias onde haveriam risco à vida da gestante, má formação fetal, gestação mediante estupro ou situação social dramática da mãe. Firmando esta premissa, ficou assentado que o legislador tinha como obrigação a proteção da vida do feto, não se operando a descriminalização da prática do aborto, sendo a lei considerada inconstitucional. Assim, em 1976, foi editada norma alterando o texto legal, proibindo e criminalizando o aborto, em regra. Não obstante, eram contempladas diversas relativizações, como nos casos em que patologias fetais inviabilizariam a vida extrauterina, violação, incesto e razões econômicas. Com a unificação alemã, no final dos anos 80, houve a necessidade de se confrontar novamente a matéria, visto que na antiga Alemanha Oriental o aborto era livre no primeiro trimestre de gestação. Desta forma, em 1992, uma nova lei foi realizada, mais uma vez permitindo o aborto nos três primeiros meses de gestação. Contudo, a norma dispunha que, antes de proceder com a interrupção, a mulher deveria submeter-se à um conselho interdisciplinar que lhe mostraria os prós e os contras da decisão, devendo-se aguardar então o período de três dias. A característica elementar desta nova codificação estava no fato de evitar aborto por organismos não opressivos, desenvolvendo medidas de caráter educativo, planejamento familiar, benefícios assistenciais, dentre outras

159

As partes mais relevantes da decisão estão reproduzidas em KOMMERS, Donald P. The Constitucional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2nd ed. Durham: Duke University Press, 1997, pp. 336-346.

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coisas, diligenciando para eliminar as causas materiais que levassem as mulheres a buscar pela interrupção na gravidez. Novamente, a legislação foi contestada na Corte Constitucional, que em 1993, proferiu decisão que ficou conhecida como Aborto II. Nesta ocasião, ela se repetiu em considerar inconstitucional a legalização do aborto na fase inicial da gestação, a não se em casos em que o prosseguimento desta representasse ônus excessivo à gestante. A mudança veio na proteção da vida do feto de forma não repressiva, não sendo necessariamente realizada por meio dos dispositivos do Código Penal, podendo-se aplicar sanções administrativas ou de caráter assistencial160. Da decisão, destaca-se o excerto: Os embriões possuem dignidade humana; a dignidade não é um atributo apenas de pessoas plenamente desenvolvidas ou do ser humano depois do nascimento... Mas, na medida em que a Lei Fundamental não elevou a proteção da vida dos embriões acima de outros valores constitucionais, este direito à vida não é absoluto... Pelo contrário, a extensão do dever do Estado de proteger a vida do nascituro deve ser determinada através da mensuração da sua importância e necessidade de proteção em face de outros valores constitucionais. Os valores afetados pelo direito à vida do nascituro incluem o direito da mulher à proteção e respeito à própria dignidade, seu direito à vida e à integridade física e seu direito ao desenvolvimento da personalidade. Embora o direito à vida do nascituro tenha um valor muito elevado, ele não se estende ao ponto de eliminar todos os direitos fundamentais das mulheres à autodeterminação. Os direitos das mulheres podem gerar situação em que seja permissível, em alguns casos, e até obrigatório em outros, que não se imponha a elas o dever legal de levar a gravidez a termo. Isto não significa que a única exceção constitucional admissível (à proibição do aborto) seja o caso em que a mulher não possa levar a gravidez até o fim quando isto ameace sua vida ou saúde. Outras exceções seio imagináveis. Esta Corte estabeleceu o standard do ônus desarrazoado para identificação destas exceções. O ônus desarrazoado não se caracteriza nas circunstâncias de uma gravidez ordinária. Ao contrário, o ônus desarrazoado tem de envolver uma medida de sacrifício de valores existenciais que não possa ser exigida de qualquer mulher. Além dos casos decorrentes de indicações médicas, criminológicas e embriopáticas que justificariam o aborto, outras situações em que o aborto seja aceitável podem ocorrer. Este cenário inclui situações psicológicas e sociais graves em que um ônus desarrazoado para a mulher possa ser demonstrado. Mas devido ao seu caráter extremamente intervencionista, o Direito Penal não precisa ser o meio primário de proteção legal. Sua aplicação está sujeita aos condicionamentos do princípio da proporcionalidade. Quando o legislador tiver editado medidas adequadas não criminais para a proteção do nascituro, a mulher não precisa ser punida por realizar um aborto injustificado, desde que a ordem jurídica estabeleça claramente que o aborto, como regra geral, é ilegal.

160

BverfGE 203. O acórdão está parcialmente reproduzido em língua inglesa em KOMMERS. Donald. op. cit.. pp. 349-356.

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Em 1995, foi editada nova lei em conformidade com a decisão da Corte. Neste novo diploma, fora as hipóteses de aborto legal, foram criminalizadas as interrupções ocorridas nas 12 primeiras semanas de gestação. Estabeleceu a lei um procedimento pelo qual uma mulher que deseje interromper a sua gestação deve se encaminhar à um serviço de aconselhamento, que então tentará demovê-la da ideia, na intenção de convencê-la levar a gravidez a termo. Depois deste procedimento, haveria de se esperar um intervalo de ponderação de três dias, para então submeter-se ao procedimento médico de interrupção da gravidez. Desta forma, pode-se afirmar que o aborto na Alemanha é tecnicamente permitido até o final do primeiro trimestre, com a necessidade de acompanhamento psicológico. 2.3.4 Rússia A Rússia foi o primeiro país do mundo a permitir o aborto até a 12ª semana de gestação em todas as circunstâncias, em 1920. Contudo, ao longo de todo o século XX, a legislação do país se modificou, voltando a interrupção voluntária da gravidez ser proibida entre os anos 1936 e 1954. Quase um século depois de liberar a prática pela primeira vez o debate sobre a proibição ou limitação dos abortamentos pacificamente normalizada na sociedade russa ressurgiu com força na última década. Após o patriarca da Cirilo I161, chefe da Igreja Ortodoxa, assinar uma petição proposta por ativistas conservadores, que já conta com mais de 300 mil assinaturas, o debate vem ganhando cada vez mais intensidade162. No documento, os ortodoxos pedem que os cidadãos do país “se pronunciem em favor de acabar com a prática de matar ilegalmente crianças antes do nascimento”163.

161

CIRILO I DE MOSCOU, WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2016. Disponível em: . Acesso em: 7 nov 2016 162 Descriminalizado há 100 anos, Rússia debate proibição do aborto, VEJA¸ 30 set 2016. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016. 163 EGOROV, Oleg. Russos voltam a debater a proibição do aborto. Gazeta russa, 30 set 2016. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016.

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Após a repercussão negativa, a assessoria da Igreja declarou que a demanda na verdade se refere à retirada do procedimento do sistema de saúde público, mas este claramente seria um primeiro passo para o um futuro mais rigoroso às mulheres no país. O Ministério de Saúde da Rússia posicionou-se contrário a ideia da proibição da prática do aborto ou removê-la da lista de procedimentos cobertos pelo sistema de saúde, por considerar a limitação um perigo para os direitos das mulheres, além da prioridade em se evitar um aumento na mortalidade infantil e materno, movimento observado em países onde a interrupção voluntária da gravidez é proibida. Segundo dados das ONU, a Rússia tem o maior número de abortos por mulheres em idade fértil do mundo164, entre 15 e 44 anos, cerca de 1,3 milhões de procedimentos são realizados anualmente – o equivalente à taxa de 53,7 abortos para cada mil mulheres. 2.3.5 Itália A Itália é um país onde a maioria da população é, e sempre foi intensamente ligada ao catolicismo. No país que abriga a autoridade pontífice, a discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez iniciou-se após a promulgação da Constituição depois da II Guerra Mundial, superadas então às leis fascistas que regulavam a vida dos cidadãos italianos165. O Código Penal Italiano punia nos seus arts. 545 a 556, pertencentes ao capítulo “delitos contra a integralidade e sanidade da estirpe”, quem interrompia a gestação de mulher não consciente, do terceiro que auxiliasse os procedimentos de gestante consciente, e penalizava a própria gestante que abortasse voluntariamente. Neste rol também estava incluso como crime a instigação de uma mulher para cometer aborto, sendo punidos inclusive quando a gestante permanecesse grávida. O aborto era também considerado crime nas causas que envolviam honra, impotência, publicação de métodos abortivos e doenças transmitidas na relação sexual166. 164

UNDATA. Abortion rate. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016. 165 GALEOTTI, Giulia. Storia dell’aborto: fasi um ideia. Milão: Il Mulino, Kindle Edition, 2010, location 1597 166 ALTADEX. Dei delitti contro La intefrità e La sanità della stirpe. Codice penale. Livro II, Titolo X, Diponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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Em 1975, a Corte Constitucional italiana declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 546, que punia o aborto sem considerar a possibilidade da realização dele em decorrência de dano ou risco à saúde da gestante. Em sentença proferida em fevereiro daquele ano, o Tribunal afirmou167: Considera a Corte que tutela o nascituro... tenha o fundamento constitucional. O art. 31, parágrafo segundo, da Constituição impõe expressamente a ‘proteção da maternidade’ e, de forma mais geral, o art.2 da Constituição reconhece e garante os direitos invioláveis do Homem, dentre os quais pode não constar...a situação jurídica do nascituro. E, todavia, esta premissa, que, por si, justifica a intervenção do legislador voltada à previsão de sanções penais, vai acompanhada da ulterior consideração de que o interesse constitucionalmente protegido relativo ao nascituro pode entrar em colisão com outros bens que gozam de tutela constitucional e que, por consequência, a lei não pode dar ao primeiro uma prevalência total e absoluta, negando aos segundos adequada proteção. E é exatamente este vício de ilegitimidade constitucional que, no entendimento da Corte, invalida a atual disciplina penal do aborto. Ora, já existe equivalência, entre o direito não apenas à vida, mas também à saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda deve tornar-se.

Diante desta decisão, o legislador editou em 1978 a Lei nº 194, que detalhadamente regulamentou o aborto. De acordo com ela, a gestante pode nos primeiros noventa dias de gravidez, requisitar o aborto em casos de: risco à sua saúde física ou psicológica, comprometimento das suas condições econômicas e sociais, em razão das circunstâncias pelas quais ocorreu a concepção ou em casos de má formação fetal. Nestes casos, um conselho interdisciplinar deve aconselhar a gestante para desdobrar possíveis soluções a quaisquer que seja o problema enfrentado, que podem vir a evitar a interrupção da gestação. Exceto nos casos de urgência, restou estabelecido intervalo de no mínimo sete dias entre a data da requisição e a realização do abortamento. Em contrapartida, a Lei autorizou a condução do aborto, em qualquer tempo, quando a gravidez ou parto demonstrarem riscos grave à vida gestante ou quando se verificar alguma patologia, dentre as quais anomalias, que representem riscos à saúde física ou psicológica da mulher.

167

ITÁLIA. Corte Constituzionale. Giurisprudenza Constituzionale, Ano XX, 1975, p. 117 et seq. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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Ao ser instada a se manifestar sobre a validade destas atualizações, a Corte Superior afirmou que a competência para despenalizar tais condutas está inscrito na competência do poder legislativo, reconhecendo a constitucionalidade do tema168. Em 1997, a mesma Corte não admitiu a proposta de referendo, que submeteria a possibilidade eliminação das normas que pautam o aborto nos primeiros noventa dias ao eleitorado. A razão deste posicionamento foi o entendimento se deu pelo Tribunal considerar que a simples revogação de todas as normas que disciplinam o aborto na fase inicial da gravidez é incompatível com o dever constitucional de tutela da vida do nascituro. 2.3.6 Espanha A Espanha aprovou em 1985 o projeto de lei que alterava o seu Código Penal, permitindo a interrupção da gravidez às gestantes, nas hipóteses de risco à vida, saúde física ou mental em qualquer momento – nas gestações consequentes de estupro, nas primeiras duas semanas; e, nos casos de má formação fetal, nas primeiras 22 semanas. Quando suscitada por opositores ao projeto, a Corte Constitucional, que, no exercício de controle de constitucionalidade, afirmou que ele não feria a constituição. Apesar disso, a Corte, no Acórdão 53/85169, declarou a inconstitucionalidade do projeto, considerando que ele foi falho por não exigir nos casos de aborto terapêutico um diagnóstico prévio dado por médico diferente do que iria realizar o abortamento. Neste acórdão, também foi adotada a premissa de proteção da vida do nascituro pela Constituição, mas não com a mesmo ímpeto da tutela à vida pós-nascimento. A Corte espanhola não considera haver um direito fundamental à vida do embrião ou feto, muito embora esta seja um bem jurídico constitucionalmente protegido. Deste ponto, o Tribunal concluiu pela ponderação entre a vida do embrião e os outros direitos da mulher que não a própria vida: Não podem contemplar-se tão somente desde a perspectiva dos direitos da mulher nem desde a proteção da vida do nascituro. Nem essa pode prevalecer 168

ITÁLIA. Corte Constituzionale. Giurisprudenza Constituzionale, Ano XXVI, 1981, sentenza 108, fasc. 06, p 908 et seq. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 169 ESPANHA. Boletín Oficial Del Estado. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016.

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incondicionalmente frente àqueles, nem os direitos da mulher podem ter primazia absoluta sobre a vida do nascituro. Por isso, na medida em que não se pode afirmar de nenhum deles (os interessem em conflito) seu caráter absoluto, o intérprete constitucional se vê obrigado a ponderar os bens e direitos, tratando de harmonizálos se isto for possível ou, em caso, contrário, precisando as condições e requisitos em que se poderia admitir a prevalência de um deles.

Nesta decisão, a Corte rejeitou a alegação de inconstitucionalidade por violação ao direito dos pais. Pelo projeto, estes não teriam de ser consultados antes do aborto. Para o tribunal, este fato não ensejaria qualquer inconstitucionalidade, por considerar “peculiar relação entre a grávida e o nascituro faz com que a decisão afete primariamente àquela”. Logo em seguida foi elaborada nova legislação, sanando o vício apontado pelo Tribunal Constitucional, repisando as possibilidades de interrupção voluntária da gestação da norma anterior, Lei esta que se encontra em vigor até hoje. Considera-se que a legislação espanhola seja elástica em relação aos outros Estados europeus. Em 2010, as possibilidades de abortamento foram estendidas, permitindo às adolescentes com170 idade entre 16 e 18 anos interrompessem a gestação, mesmo sem o consentimento dos responsáveis. Em 2013 houve a apresentação de um projeto de lei, elaborado pela oposição, que restringiria o aborto no país. Na prática, a conduta voltaria a criminalizar a interrupção da gravidez, exceto nos casos em que colocaria em risco a saúde da mulher. Devido a eclosão de manifestações e pressão da sociedade contra este retrocesso, que dificultaria o acesso das espanholas ao aborto legal, o governo retrocedeu depois da maioria da população sinalizar que rejeitava a alteração171. 2.3.7 Portugal Em Portugal, o Tribunal Constitucional reconheceu em 1984, no exercício de controle preventivo de constitucionalidade, a legitimidade de lei lusitana que permitiu o aborto em situações específicas: risco à vida ou à saúde física ou psicológica da mãe; feto com doença grave e incurável, e gravidez resultante de violência sexual.

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Espanha legaliza o aborto inclusive para adolescentes. Folha de São Paulo, 25 fev 2010. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016. 171 Governo espanhol desiste da reforma da lei do aborto e ministro da justiça demite-se. Público Portugal, 23 set 2014. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016.

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A norma objeto do Acórdão 25/84, foi impugnada em razão de suposta presunção de violação aos direitos do nascituro. Em sua decisão, o Tribunal afirmou que a Carta Magna portuguesa tutelava direito à vida do feto, mas não na mesma intensidade que salvaguarda o direito à vida de quem já nasceu. Aduziu-se desta maneira que a demanda de autorização legal do abortamento depende da ponderação entre o direito à vida do nascituro com os demais direitos fundamentais da mãe e, que buscar o equilíbrio de interesses constitucionais feito pelo legislador não deveria ser passível de censura. Da referida decisão vale destacar os respectivos trechos172: A ideia de capacidade jurídica apenas restrita do nascituro perde...o caráter chocante se considerar que o nascituro, enquanto já concebido, é já um ser vivo humano, portanto digno de proteção, mas enquanto ‘não nascido’, ainda não é um indivíduo autônomo e, nesta medida, é só um homem em devir...A matéria relativa à colisão ou situação conflitual que pode gerar-se entre os valores ou interesses do nascituro e os da mãe merece ser aprofundada mais um pouco...E assim, o conflito se desenhasse após o nascimento. Para demonstrar basta a tradição jurídica nacional que nunca equiparou o aborto ao homicídio. As concepções sociais dominantes são no mesmo sentido. Em todo caso, o sacrifício de uma em face da outra, embora devendo ser proporcional, adequado e necessário à salvaguarda da outra (...), pode ser maior ou menor, em face da ponderação que o legislador faça no caso concreto, sempre restando então uma certa liberdade conformativa para o legislador, dificilmente controlável pelo juiz do Tribunal Constitucional.

A questão relativa à existência de um direito à vida por parte do nascituro voltou a ser considerada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n. 85, proferido nem 1985, onde se lia: A vida intra-uterina não é constitucionalmente irrelevante ou indiferente, sendo antes um bem constitucionalmente protegido, compartilhando da protecção conferida em geral a vida humana, enquanto bem constitucional objectivo (Constituição, art. 24, n. 1). Todavia, só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais – pois não há direitos fundamentais sem sujeito – pelo que o regime constitucional de proteção especial do direito à vida, como um dos ‘direitos, liberdades e garantias pessoas’, não vale diretamente e de pleno para a vida intrauterina e para os nascituros. É este u, dado simultaneamente biológico e cultural, que o direito não pode desconhecer e que nenhuma hipostasiação de um ‘direito a nascer’ pode ignorar: qualquer que eja a sua natureza, seja qual for o momento em que a vida principia, a verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por isso ser directamente titular dos direitos fundamentais enquanto tais. A protecção que é devida ao direito de cada homem à sua vida não é aplicável directamente, nem do mesmo plano, à vida pré-natal, intra-uterina.

172

SARMENTO, Daniel. Op. Cit. pp. 15-16.

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Em 1998 o tema foi retomado, repercutido no Acórdão n. 288/98173, na ocasião estava em pauta o controle preventivo de constitucionalidade de uma proposta de referendo, que tinha como objeto a despenalização geral do aborto, por vontade da mulher, se realizado até a 10ª semana de gestação em estabelecimento oficial de saúde. No julgado, a Corte reiterou a sua posição de que a vida intrauterina é chancelada pela Constituição, mas não no mesmo grau da vida das pessoas que já nasceram. Desta forma, admitiu uma ponderação entre esta modalidade de vida e os direitos fundamentais das mulheres, levando em consideração que o tempo gestacional seria critério apropriado para solver o confronto de interesses constitucionais. Depreende-se do referido acórdão, in verbis: Esta tutela progressivamente mais exigente à medida que avança o período de gestação, poderia encontrar, desde logo, algum apoio nos ensinamentos da biologia, já que o desenvolvimento do feto é um processo complexo em que ele vai adquirindo sucessivamente características qualitativamente diferentes... Mas o que releva, sobretudo, é que essa tutela progressiva encontra seguramente eco no sentimento jurídico colectivo, sendo visível que é muito diferente o grau de reprovação social que pode atingir quem procure eventualmente 'desfazer-se' do embrião logo no início de uma gravidez ou quem pretenda 'matar' o feto pouco antes do previsível parto; aliás, esse sentimento jurídico colectivo, que não pode deixar de ser compartilhado por povos de uma mesma comunidade cultural alargada que encontra sua expressão na união Europeia, encontra-se bem reflectido na legislação dos países que a compõem.Ora, poderá acrescentar-se, a harmonização entre a protecção da vida intrauterina e certos direitos da mulher, na procura de uma equilibrada ponderação de interesses. é suscetível de passar pelo estabelecimento de uma fase inicial do período de gestação em que a decisão sobre uma eventual interrupção da gravidez cabe à própria mulher.

Contudo, apesar do referendo de ter sido considerado válido, a proposta da legalização incondicional do abortamento no estágio inicial da gravidez foi derrotada – havendo um considerável índice de abstenção, tendo votado apenas 31,9% do eleitorado174. O panorama mudou em 2007, quando outro referendo foi convocado, levando a seguinte questão ao eleitorado lusitano: “concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se

173

FACULDADE DE DIREITO - UNIVERSIDADE NOVA LISBOA. Acórdão nº 288/98. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016. 174 PORTUGAL. COMISÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES. Referendo de 28 junho 1998. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016.

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realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”175. Desta vez o resultado foi diferente: 59,25% “sim” (2.231.529 votantes) e 40,75% “não” (1.534.669 votantes). O comparecimento às urnas, porém, não foi bastante para tornar o referendo vinculativo. Nada obstante, o Parlamento português aprovou o projeto que legalizava o aborto também em 2007, em uma data emblemática, já que foi no dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher – que a ‘Interrupção Voluntária da Gravidez’ se tornou permitida às mulheres lusitanas, se conduzida até a 10ª semana em hospitais credenciados pelo sistema de saúde, depois de um período de reflexão de três dias antes da sua realização176. Desde então, até 2014, foram realizadas cerca de 135 mil interrupções voluntárias da gravidez. De acordo com dados oficiais da Direção Geral da Saúde, entre 15 de julho de 2007 e 31 de dezembro de 2014, registrou-se um total de 135.206 (IVG), uma taxa aproximada de 50 abortos por dia. A partir de 2011 foi observada uma diminuição dos abortos por opção da mulher, conjugando-se com a redução da natalidade no país. Em 2012, foram registrados 207 abortos à cada mil nascimentos, quantidade que decaiu para 195 em 2012. O perfil da mulher que recorre a IVG tem idade entre 20 e 24 anos, desempregada, residente na Grande Lisboa e que nunca antes havia realizado o procedimento. Analisando, em geral, as faixas etárias das mulheres que optam pelo aborto voluntário foram: 20 a 24 anos (22,9%), 25 a 29 anos (21,1%), 30 a 34 anos (19,6%) e 35 a 39 anos (17,1%). A faixa etária mais jovem, de 15 aos 19 anos, aparecem por último com 10,7%, correspondendo à 1.726 abortos.

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PORTUGAL. COMISÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES. Referendo de 11 de fevereiro de 2007. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016. 176 Portugal legaliza o aborto com voto do parlamento. Folha de s. paulo, 9 mar 2007. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2016.

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3 - BRASIL E O ABORTO

Debater o aborto no Brasil envolve diversas questões que têm como consequência um cenário onde a mulher vagueia na dicotomia de eventualmente ser declarada como criminosa ou vítima do sistema. O direito ao aborto é uma demanda permanente que provoca uma reação de imediata de polarização: aversão dos grupos conservadores, enquanto feministas, especialistas em saúde e direitos humanos resistem na defesa do direito de conceder autonomia da mulher sobre seu corpo, sendo a interrupção da gravidez uma agenda a ser tratada como um tema saúde pública e não para o Código Penal. 3.1.

Um Breve Histórico do Aborto no Brasil Assim como no mundo, os movimentos feministas também começaram a ganhar vigor

no Brasil a partir das décadas de 60 e 70. Até 1975, o aborto era tido como um drama social, derivado da pobreza, sendo encarado como uma questão de saúde pública177. A partir deste momento até 1988, as vozes para uma reforma da legislação punitiva da prática e, daí em diante, o debate começou a girar em torno saúde da mulher, em uma perspectiva dos direitos reprodutivos como direitos humanos. Tendo em vista o contexto do Regime Militar, temas que envolvendo a sexualidade não eram um ponto central do movimento feminista, que se encontrava em estágio incipiente no Brasil. Havia uma grande proximidade da Igreja Católica e dos grupos de esquerda na luta contra o endurecimento da repressão durante a ditadura, não sendo o aborto, algo que provocaria uma enorme cisão, uma pauta do início da atuação do feminismo no Brasil. Com o movimento de abertura do regime militar a promulgação da Lei da Anistia178, intelectuais anistiadas e influenciadas pelos movimentos feministas em outros países, puderam retornar ao Brasil - paulatinamente o aborto foi sendo elevado a tema central nesta pauta, onde se objetivava a quebra de um histórico tabu dentro da ampliação do espaço democrático, já que a descriminalização da interrupção da gravidez sempre se relacionou 177

ARDAILLON, Danielle. O lugar do intimo na cidadania na cidadania de Corpo inteiro. Revista de Estudos Feministas, v. 5, n. 2. 1997, p. 376-388. 178 BRASIL. Lei nº 6.683/1979. Disponível em . Acesso em: 14 de novembro de 2016.

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intrinsecamente com o avanço democracia, onde observou-se também um aumento da autonomia e cidadania das mulheres. Em 1983, o Ministério da Saúde criou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), tendo como essência o planejamento familiar, onde o controle de natalidade ainda era presente. Segundo Maria Isabel Baltar da Rocha179, “foram apresentadas algumas propostas legislativas, dentre elas constavam proposições voltadas diretamente para a questão do aborto e, em outras, o tema apareceria vinculado a projetos de lei sobre anticoncepção”. Os projetos de lei sobre o tema começaram a dispor sobre a descriminação e a ampliação dos permissivos legais, sendo isto um reflexo da tímida, porém importante entrada do movimento feminista no poder legislativo. Neste período de abertura política, os grupos feministas se desvincularam das alianças feitas para o combate da ditadura, sendo o aborto elevado à uma posição central dentro das reivindicações das mulheres, retirando as discussões sobre o tema da marginalidade, sendo ele incutido como demanda aos poderes públicos. Neste diapasão, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, fundamental durante a época da constituinte de 1988, apelidado de Lobby do Batom180. Este movimento elaborou a Carta das Mulheres181 à Assembleia Nacional Constituinte de 1987, cujas reivindicações incluíam acesso ao aborto legal: 5 - Será vedada ao Estado e às entidades nacionais e estrangeiras toda e qualquer ação impositiva que interfira no exercício da sexualidade. Da mesma forma, será vedada ao Estado e às entidades nacionais e estrangeiras, públicas ou privadas, promover o controle da natalidade. 6 - Será garantido à mulher o direito de conhecer e decidir sobre seu próprio corpo. (...) 9 - Garantia de livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez, sem prejuízo para a saúde da mulher. 10 - É dever do Estado oferecer condições de acesso gratuito aos métodos anticoncepcionais, usando metodologia educativa para esclarecer resultados, indicações, contraindicações, vantagens e desvantagens, alargando a possibilidade de escolha adequada a individualidade de cada mulher e, ao momento específico, de sua história de vida.

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ROCHA, Maria Isabel Baltar da. A discussão política sobre o aborto no Brasil: uma síntese. XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP, Anais... Caxambu, 2006 Disponível em . Acesso em: 14 nov. de 2016. 180 GRAZZIOTIN, Vanessa. A Bancada do Batom e a Constituição Cidadã. Congresso em Foco. Disponível em . Acesso em:14 de novembro de 2016. 181 Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. Disponível em . Acesso em 15 de novembro de 2016.

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A Carta acabou não sendo submetida à Assembleia, mas foi um marco da intensificação dos debates sobre os direitos das mulheres, bem como o confronto destes com a Igreja Católica, sendo estes os dois principais atores políticos e sociais envolvidos na discussão da questão do aborto182: No espaço político da Constituinte apareceu, de modo transparente, a séria controvérsia em relação a essa matéria, concernente à defesa da vida desde o momento da concepção ou, diferentemente, à defesa do direito de decisão sobre assunto; a primeira opinião inspirada pela visão oficial da Igreja Católica e pelas religiões de denominação evangélica, enquanto a segunda, inspirada pelo movimento feminista.

A partir de 1989 o Brasil começou a se reconfigurar como Estado. A Constituição de 1988 foi a conjunção oportuna para a realização de transformações a serem orquestradas pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e, a princípio, teria a sociedade civil a capacidade de possuir instrumentos de controle sobre isto. Essa nova fase da democracia brasileira viabilizou o debate sobre os direitos das mulheres, incluindo-se a problemática do aborto. Neste período também aconteceu a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo e a Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, em 1994 e 1995, respectivamente, contando com a participação do Brasil183: Em nenhuma hipótese o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar. Todos os governos e organizações intergovernamentais e nãogovernamentais são instados a reforçar seus compromissos com a saúde da mulher, a considerar o impacto de um aborto inseguro na saúde como uma preocupação de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, ampliando e melhorando os serviços de planejamento familiar. À prevenção de gravidezes indesejadas deve ser dada sempre a mais alta prioridade e todo esforço deve ser feito para eliminar a necessidade de aborto. Mulheres com gravidez indesejada devem ter pronto acesso a informações confiáveis e a uma orientação compreensível. Todas as medidas ou mudanças com relação ao aborto no sistema de saúde só podem ser definidas, no âmbito nacional ou local, de acordo com o processo legislativo nacional. Em circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, esse aborto deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes de aborto. Os serviços de orientação pósaborto, de educação e de planejamento familiar devem ser de imediata disponibilidade, o que ajudará também a evitar repetidos abortos.

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ROCHA, Maria Isabel Baltar da; NETO, Jorge Andalaft. A questão do aborto: aspectos clínicos, legislativos e políticos, p. 279. 183 PATRIOTA, Tânia. Relatório Final da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento = Plano de Ação do Cairo. Disponível em . Acesso em: 15 nov. de 2016.

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E conforme expõe Vlotti184: Considerando que o aborto sem condições de segurança constitui uma grave ameaça à saúde e à vida das mulheres, promover pesquisas com vistas a compreender melhor e a enfrentar com mais eficácia as causas e as consequências do aborto induzido, inclusive seus efeitos sobre a subsequente fertilidade e sobre a saúde reprodutiva e mental, e das práticas anticoncepcionais, além de pesquisas sobre o tratamento de complicações resultantes de abortos, e os cuidados pós-aborto; (...)Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas consequências. Ademais, a saúde das mulheres está exposta a riscos especiais de saúde, devido à inexistência ou inadequação de serviços para atender às necessidades relativas à sexualidade e à saúde. Em muitas partes do mundo, as complicações relacionadas com a gravidez e o parto contam entre as principais causas de mortalidade e morbidez das mulheres em idade reprodutiva. Existem, em certa medida, problemas similares em alguns países com economia em transição. O aborto inseguro põe em risco a vida de um grande número de mulheres e representa um grave problema de saúde pública, porquanto são as mulheres mais pobres e jovens as que correm os maiores riscos. A maioria dos óbitos, problemas de saúde e lesões podem ser evitados, mediante a melhoria do acesso a serviços adequados de atendimento à saúde, métodos de planejamento familiar eficazes e sem riscos e atenção obstetrícia de emergência, que reconheçam o direito de mulheres e homens à informação e ao acesso a métodos seguros, eficazes, exequíveis e aceitáveis de planejamento familiar, assim como a outros métodos lícitos que decidam adotar para o controle da fecundidade e o acesso a serviços adequados de atendimento à saúde, propícios a que a gravidez e o parto transcorram em condições de segurança e ofereçam aos casais as maiores possibilidades de ter um filho são. Esses problemas e os meios de combatê-los deveriam ser examinados à luz do relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, especialmente os parágrafos pertinentes do Programa de Ação da Conferência. Na maior parte dos países, a falta de atenção aos direitos reprodutivos da mulher limita gravemente suas oportunidades de educação e o pleno exercício de seus diretos econômicos e políticos. A capacitação das mulheres para controlar sua própria fertilidade constitui uma base fundamental para o gozo de outros direitos. A responsabilidade compartilhada pela mulher e pelo homem, no tocante às questões relativas ao comportamento sexual e reprodutivo, também é indispensável para o melhoramento da saúde da mulher. A prevenção da gravidez não desejada deve merecer a mais alta prioridade e todo esforço deve ser feito para eliminar a necessidade de aborto. As mulheres que engravidam sem o desejar devem ter pronto acesso a informação confiável e orientação solidária. Quaisquer medidas ou mudanças em relação ao aborto no âmbito do sistema de saúde só podem ser determinadas, em nível nacional ou local, de conformidade com o processo legislativo nacional. Nos casos em que o aborto não é ilegal, ele deve ser praticado em condições seguras. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de boa qualidade para o tratamento de complicações derivadas de abortos. Serviços de orientação, educação e planejamento familiar pós-aborto devem ser oferecidos prontamente à mulher, o que contribuirá para evitar abortos repetidos, considerar a possibilidade de rever as leis que preveem medidas punitivas contra as mulheres que se tenham submetido a abortos ilegais. A prevenção da gravidez não desejada deve merecer a mais alta prioridade e todo esforço deve ser feito para eliminar a necessidade de aborto. As mulheres que engravidam sem o desejar devem ter pronto acesso a informação confiável e 184

VLOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Relatório sobre a Declaração e Plataforma de ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher - Pequim 1995. Disponível em . Acesso em: 15 de novembro de 2016.

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orientação solidária. Quaisquer medidas ou mudanças em relação ao aborto no âmbito do sistema de saúde só podem ser determinadas, em nível nacional ou local, de conformidade com o processo legislativo nacional. Nos casos em que o aborto não é ilegal, ele deve ser praticado em condições seguras. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de boa qualidade para o tratamento de complicações derivadas de abortos. Serviços de orientação, educação e planejamento familiar pós-aborto devem ser oferecidos prontamente à mulher, o que contribuirá para evitar abortos repetidos”, considerar a possibilidade de rever as leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que se tenham submetido a abortos ilegais. (Grifou-se)

No que tange o Executivo, quando da gestão de Fernando Henrique Cardoso (19952002) depois da reestruturação da saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o aborto entrou em pauta no âmbito das Conferências Nacionais de Saúde, do Conselho Nacional de Saúde e da Área Técnica de Saúde da Mulher, destacando-se a norma sobre prevenção e tratamentos referentes a violência sexual contra a mulher, onde aplica-se o disposto no art. 128 do Código Penal185 e a implementação da norma técnica de Prevenção e tratamento de agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes186, que versa sobre os procedimentos necessários e imprescindíveis para a realização do aborto legal pelo SUS. Esta norma, voltada para os profissionais da área da saúde, mitiga como deve ser o atendimento às mulheres, bem como os requisitos legais para interrupção da gravidez dentro da legalidade. Em 2002, foi apresentado o Programa Nacional de Direitos Humanos II187, onde lia-se uma posição favorável aos alargamentos permissivos para a prática do aborto legal188, este programa assemelha-se à uma carta de intenções, resultante do diálogo entre a sociedade e o Estados. As diretrizes apresentadas podem ser consideradas metas para ações do governo no que tange o aborto. No âmbito Legislativo, durante a fase de redemocratização, observou-se também uma intensificação do debate dentro do Congresso Nacional, bem como uma interdisciplinaridade sobre o tema com os poderes Executivo e Judiciário. Com o aumento da participação de atores políticos e sociais em prol de uma reforma na legislação, claramente inspirados no 185

Art. 128 - Não se pune aborto praticado por médico: Aborto necessário, I - se não há outro meio de salvar a gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro. II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 186 Secretaria de Política de Mulheres. Prevenção e tratamento de agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Disponível em . Acesso em 14 de novembro de 2016. 187 Ministério da Justiça. Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Programa Nacional de Direitos Humanos II (2002). Disponível em . Acesso em 15 de novembro de 2016. 188 Ibidem, p. 16

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movimento feminista, também houve uma reação de viés contrário, daqueles que ainda influenciados por valores religiosos e retrógrados, se colocaram em oposição ferrenha à quaisquer mudanças. A principal mudança originária do processo de redemocratização foi, principalmente, a maior visibilidade dada a questão do aborto, não se desdobrando em mudanças significativas na legislação, no que tange a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez. Nada obstante, a edição de normas técnicas e a idealização de serviços para garantir o aborto legal foram conquistas importantes, se levarmos em consideração a tensão dentro do parlamento - onde a enorme polarização faz com que eventuais propostas fiquem paralisadas, não apresentando avanços ou retrocessos. O Judiciário, no entanto, se coloca como a principal via para garantir o acesso da mulher à concretização dos seus direitos - implicando também em uma judicialização excessiva frente a inércia do legislador. Durante governo Lula, o debate sobre o aborto foi ampliado, principalmente por conta de manifestações das Organizações Unidas que repreendiam o caráter punitivo do Código Penal189 e a edição do PNDH3190, que considerou o aborto como "tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde". Durante as eleições de 2010 o aborto foi tema bastante presente nos debates dos candidatos a ocupar a presidência depois de 08 (oito) anos de governo Lula, bem como um forte posicionamento dos movimentos sociais feministas e da Igreja Católica. Desde então vem se observando um apego à políticas e posicionamentos conservadores, em prol da manutenção da imagem perante a sociedade brasileira, que vê o aborto como uma realidade e como um tabu.

189

BBC Brasil. Voz da ONU sobre o aborto é mais alta que a de milhares de mulheres. 2016. Disponível em . Acesso em 15 de novembro de 2016. 190 Ministério da Justiça e Cidadania Secretaria Especial de Direitos Humanos. Plano Nacional de Direitos Humanos PNDH-3. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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3.2.

A (I)Legalidade do Aborto no Brasil O Código Penal Brasileiro estabelece191, em seus arts. 124 a 128, o crime de aborto.

Desta forma, ele é criminalizado quando provocado pela gestante ou quando esta consente pela sua realização (art. 124) e se provocado com ou sem o consentimento dela (art. 125 e 126). A legislação permite o abortamento em dois casos: o aborto necessário, quando não há outro meio de salvar a vida da mulher (art. 128, I) e o aborto humanitário, nos casos em que a gravidez é decorrente de estupro (art. 128, II). Em 2012, foi acrescentado a este rol o aborto legal, quando o Supremo Tribunal Federal - na apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54192, decidiu pela legalidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Em síntese, estas três modalidades são classificadas como aborto legal e a mulher teria o direito de conseguir realizar o abortamento em qualquer estabelecimento de saúde, sem necessidade de decisão judicial ou boletim de ocorrência. 3.2.1. O Serviço de Aborto Legal no Brasil A regulação nacional do aborto legal foi editada em 1999, com a publicação da Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes193, com as prerrogativas e parâmetros para o serviço de abortamento dentro da legalidades pelos profissionais e estabelecimentos de saúde - recebendo atualizações em 2005 e 2011, a norma isenta a mulher de apresentar Boletim de Ocorrência ou laudo do IML como condições para a realização do abortamento, sendo apenas necessária a autorização por escrito da mesma194:

191

Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Decreto Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União 1940. 192 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 [internet]. Diário da Justiça Eletrônico n. 78/2012. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 193 BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Políticas de Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. Brasília: MS; 1999 194 BRASIL Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed. atual. e ampl. Brasília: MS; 2011. p. 71.

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A realização do abortamento não se condiciona à decisão judicial que sentencie e decida se ocorreu estupro ou violência sexual. A lei penal brasileira também não exige alvará ou autorização judicial para a realização do abortamento em casos de gravidez decorrente de violência sexual. O mesmo cabe para o Boletim de Ocorrência Policial e para o laudo do Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal, do Instituo Médico Legal. Embora esses documentos possam ser desejáveis em algumas circunstâncias, a realização do abortamento não está condicionada a apresentação dos mesmos. Não há sustentação legal para que os serviços de saúde neguem o procedimento caso a mulher não possa apresentá-los. Segundo o Código Penal brasileiro é imprescindível o consentimento por escrito da mulher para a realização do abortamento em caso de violência sexual, que deve ser anexado ao prontuário médico.

O atendimento às mulheres cujo a alternativa de aborto é prevista em lei é feita em unidades de saúde consideradas como referência no Serviço de Aborto Legal195, sendo apenas 65 serviços de referência públicos para o aborto legal no país, a maioria localizada nos grandes centros metropolitanos, de acordo com o Mistério da Saúde196. Apesar de podermos considerar esses aspectos como um avanço, as mulheres ainda continuam enfrentando muitas dificuldades para o acesso aos serviços, uma vez que muitos profissionais de saúde ainda creem na necessidade de apresentação de BO, autorização judicial ou outro tipo de documento para a realização do aborto legal197

198

. Além disso, a

palavra da mulher quando esta relata ter sofrido estupro é contestada, sendo na maioria das vezes insuficientes199 para garantir a interrupção da gestação. Mas o principal óbice para a organização dos serviços de aborto legais é a resistência dos profissionais de saúde em assistir os procedimentos os casos permitidos pela lei. Isso se dá pelo estigma histórico que acompanha o aborto, pela insegurança diante da possibilidade de processos, quando o aspecto psicológico se desdobra em uma culpa normativa, já que a incerteza sobre os parâmetros pode ocasionar equívocos, penalizando-os com sanções civis e administrativas e, nos casos mais graves, suspensão do exercício da profissão, multa e 195

DINIZ, D. Objeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública. Rev Saúde Pública 2011; 45(5):981-5. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n5/2721.pdf>. Acesso em 7 nov 2016. 196 DINIZ S. Materno-infantilism, feminism and maternal health policy in Brazil. Reprod Health Matters 2012; 20(39):125-132. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 197 COLÁS O, Aquino NMR, Mattar R. Ainda sobre o abortamento legal no Brasil e o conhecimento dos profissionais de saúde. Rev Bras Ginecol Obstet. 2007, pp. 299:443-445. 198 FAÚNDES A, Duarte GA, Osis MJD, Andalaft-Neto J. Variações no conhecimento e nas opiniões dos ginecologistas e obstetras brasileiros sobre o aborto legal, entre 2003 e 2005. Rev Bras Ginecol Obstet. 2007;29(4):192-9. 199 DINIZ D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét 2014; 22(2):291-298.

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pagamento de danos. O aborto é algo ainda considerado como um risco profissional, mesmo que legal. O médico também pode alegar objeção de consciência diante de uma situação onde o aborto é legalmente possível, desde que não o faça por suposta desconfiança sobre a palavra da mulher quando esta relatar um estupro. Esta recusa deve ser norteada por princípios morais, religiosos, éticos e até psicológicos, e é um princípio fundamental da profissão200. A norma técnica também traz em seu texto o direito de objeção de consciência dos médicos quando diante de um aborto, mas para evitar maiores complicações, regulamenta os estabelecimentos especializados no primeiro atendimento de vítimas de violência sexual, que devem garantir, em tempo hábil, o atendimento ou recondução da mulher para outros profissionais ou instituições. O direito de objeção de consciência só não é aceito quando não houver disponibilidade de profissionais, risco de morte ou danos201. A realidade dos serviços de aborto legal já foi objeto de inúmeras pesquisas que apontam a má distribuição deles pelo território nacional202. Em Roraima, estado onde há o maior índice de ocorrência de estupros por habitantes não há nenhum estabelecimento de referência, um cenário muito diferente da região sudeste - que registra taxas mais baixas de violência sexual contra a mulher e concentram a maioria dos serviços de atendimento ao aborto legal. Minas gerais possui 10; São Paulo, 5 e Rio de Janeiro, apenas um. Percentualmente falando, a região recebe 70% dos encaminhamentos registrados no país203. A jornada da mulher que tem o direito legal de interromper a sua gravidez encontra obstáculos geográficos, institucionais, burocráticos ou nos próprios profissionais de saúde, 200

O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. BRASIL. Código de Ética Médica. Resolução CFM n° 1.931/09. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 201 BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed. atual. e ampl. Brasília: MS; 2011. 202 O Globo. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 203 TALIB, R, Citeli MT. Serviços de aborto legal em hospitais públicos brasileiros (1989-2004). Dossiê. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir; 2005. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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que por motivos pessoais, podem se recusar a conduzir um procedimento seguro. Isso faz com que muitas acabem recorrendo às inúmeras possibilidades de Aborto Inseguro204, realidade da maioria absoluta das que tem o direito legal, ou não, de interromper a gestação. 3.2.2. ADPF nº 54 Em 2004, a Confederação dos Trabalhadores de Saúde do Brasil ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 54)205, solicitando que o Supremo Tribunal Federal interpretasse o Código Penal à luz da Constituição, declarando em síntese, que o aborto de fetos anencéfalos não fosse considerado um crime. Objetivamente, a ADPF cuidava apenas da antecipação terapêutica dos fetos cuja viabilidade extrauterina era impossível, em decorrência da sua condição anencefálica, não visando suscitar acirrado debate sobre a interrupção das gestações viáveis - o aborto eugênico. A anencefalia é uma má-formação congênita que, por um defeito do tubo neural durante a gestação, o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico206. A ação, assinada pelo notório constitucionalista Luis Roberto Barroso, tinha como argumentos a falta de condições da sobrevivência extrauterina do feto; o prolongamento desnecessário do sofrimento da mulher durante os meses de gestação e, à rigor legal, esta interrupção afastaria qualquer designação de aborto - pois, interromper a gestação de um feto anencéfalo não ensejaria um aborto, já que condição vulgarmente conhecida como ausência de cérebro iria de encontro à Lei n. 9.434/1997207, que versa sobre a aferição da morte quando

204

Aborto inseguro é definido como um procedimento, para pôr fim a uma gravidez indesejada, executado ou por pessoas a quem falta a necessária competência ou num ambiente carente dos mínimos padrões médicos ou ambas as coisas (baseado em The Prevention and Management of Unsafe Abortion, da Organização Mundial da Saúde, relatório de um Grupo de Trabalho Técnico, Genebra, abril, 1992 (WHO/ MSM/92.51). 205 BRASIL. ADPF n 54. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 206 RICHARD. E. Behman, Robert M. Kliegman e Hal B. Jenson, Nelson. Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777. 207 Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos

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da constatação de morte cerebral. Ou seja, apenas uma gestação com potencialidade de gerar vida extrauterina, expectativa de direito protegida pela Lei - poderia sofrer um aborto. Em julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio concedeu a liminar pretendida na ADPF, reconhecendo precariamente o direito constitucional208 das gestantes que voluntariamente desejassem interromper suas gravidezes nos casos que o feto apresentasse a condição de anencefalia, caçada três meses depois. Teve início então uma longa discussão. A partir do momento da propositura pela CNTS, oito longos anos se passaram até que a ADPF chegasse ao plenário. Considerando a relevância do tema, outros setores da sociedade - principalmente a Igreja Católica posicionaram-se de forma completamente contrária a esta possibilidade de aborto dos fetos anencéfalos. Diversas entidades pronunciaram-se em quatro dias de intenso debate em 2008, nos quais falaram representantes do governo, geneticistas, entidades religiosas e da sociedade civil. Estavam completamente polarizados os defensores dos direitos das mulheres de autonomia sobre seu corpo e do outro, uma parcela que intercedia pela incolumidade da vida, mesmo se tratando de um feto sem cérebro e sem qualquer possibilidade de vida. A Confederação dos Bispos do Brasil chegou a pedir para inserir-se na apreciação da ADPF como amicus curiae209, algo prontamente rechaçado pelo Relator210, bem como diversas outras organizações como Associação Pró-Vida e Pró-Família, Católicas Pelo Direito de Decidir, Associação de Desenvolvimento da Família -ADEF, também tiveram seus pedidos negados. Todas, porém, participaram das sessões que ocorreram nos dias 26 e 27 de agosto e 4 e 16 de setembro de 2008. definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. BRASIL. Lei 9.434/1997. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 208 Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da carta da república, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se-ão não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie. 3. Ao plenário para o crivo pertinente. (dje02.08.2004) 209 Expressão utilizada para designar instituição que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais, oferecendo-lhes base para questões relevantes e de grande impacto. STF. Glossário Jurídico. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 210 Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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Nos dias 11 e 12 de abril de 2012, a matéria que o Ministro Marco Aurélio considerou ser uma das mais importantes analisadas pelo tribunal foi à plenário. O relator compilou muito bem a ADPF em seu voto211: A questão posta em julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, Senhor Presidente, a resposta é desenganadamente negativa.

Ao defender a descriminalização, o Relator afirmou que a incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobrevive ao parto, o é por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. Para ele, seria inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição. Na ocasião, por 8 votos à 2, o STF decidiu pela declaração de inconstitucionalidade da interpretação que criminalizava a interrupção do feto anencéfalo, tipificando como conduta nos arts. 124, 126 e 128 do Código penal. Acompanharam o voto do Relator os Ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Luiz Fux, Carmem Lucia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Restaram vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso. Dias Toffoli declarou-se impedido e não votou. ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO. INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. MULHER. LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA. SAÚDE. DIGNIDADE. AUTODETERMINA- ÇÃO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME. INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal (ADPF 54, Relator: Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013).

211

BRASIL. STF. Voto do Ministro Marco Aurélio na ADPF 54. Disponível . Acesso em 7 nov 2016.

em

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A ADPF não instituiu um novo permissivo legal, mas demonstrou que a situação clínica da anencefalia não se enquadraria no tipo penal do aborto. Uma vez que a realização do aborto por anencefalia não se encaixa nas definições jurídicas do Código Penal. O posicionamento definitivo da ADPF n° 54 deu combustível ao debate sobre a concretização das conquistas dos direitos das mulheres no Brasil. Apesar de ser uma importante conquista, comemorada no que tange a questão de proteção à dignidade da mulher como pessoa humana, a decisão também se coloca como um desafio, pois ao ser construída em cima de posicionamentos pontuais - que não entraram muito no âmbito de questões de gênero - acabou não sendo determinante para o debate dos direitos reprodutivos das mulheres. A decisão é um importante precedente histórico, mesmo que ainda restrito 3.2.1.1.

Uma Conquista

Depois de quase uma década chegou ao fim a discussão que garantiu o direito da mulher em escolher, quando da gestação de feto anencéfalo, sobre voluntariamente interrompê-la. Apesar da ADPF 54 versar apenas sobre essa condição, não é incomum ver no Judiciário - a principal via para as mulheres tentarem concretizar seus direitos - decisões que aplicam analogamente o que ficou decidido na Suprema Corte à casos onde a chance de viabilidade extrauterina é quase nula. Não há amparo legal ao aborto eugênico, mas os tribunais pátrios vêm permitindo a sua prática quando restar comprovada a inviabilidade e de vida do feto. Guilherme Nucci cita Alberto Silva Franco em sua obra212, fazendo a seguinte consideração: O aborto eugênico tem, por fundamento, o interesse social na qualidade de vida independente de todo ser humano, e não o interesse em assegurar a existência de qualquer um desses seres e em quaisquer condições. O aborto eugênico traduz-se, como as demais hipóteses do sistema de indicações, em causa excludente de ilicitude.

Esse entendimento é consonante com o que entende os movimentos em prol dos Direitos Humanos, como bem assevera Alexandre de Moraes213:

212 213

NUCCI, Guilherme. Código Penal Comentado. RT. 5ª Edição. p. 522. MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 91.

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Entendemos em relação ao aborto que, além das hipóteses já permitidas pela lei penal, na impossibilidade do feto nascer com vida, por exemplo, em casos de acrania (ausência de cérebro) ou, ainda, comprovada a total inviabilidade de vida extrauterina, por rigorosa perícia médica, nada justificaria sua penalização, uma vez que o direito penal não estaria a serviço da finalidade constitucional de proteção à vida, mas sim estaria ferindo direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos: liberdade e dignidade humanas. Dessa forma, a penalização nesses casos seria de flagrante inconstitucionalidade.

Este comportamento jurisprudencial traduz uma relativização cada vez maior dos juízes em decidir de acordo com o que se entende como proteção constitucional do direito à vida, que carrega um recorte dúplice aliar duas facetas - o direito à existência e o direito à um adequado nível de vida214. Desta falta, a mulher demonstrando a falta de um adequado nível de vida, como outras condições que não a anencefalia, para alguns, já é motivo suficiente para conceder-lhes acesso ao aborto legal. Progredindo com esta ótica, vale assinalar o posicionamento de Mirabete215, onde se lê: Não prevê a lei a exclusão da ilicitude do aborto eugênico (ou eugenésico, ou eugenético, ou piedoso), que é o executado ante a prova ou até a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves ou fatais (anencefalia ou acrania, p. ex.), embora haja movimentos, a nosso ver totalmente justificados, em favor da legalização dessa prática. Já há precedentes jurisprudenciais no sentido de que, provada a anomalia grave, o aborto deve ser autorizado, mas os alvarás concedidos ainda não encontram apoio nem no direito material nem no direito processual.

Resta cristalina então qual o tratamento jurídico dado à essa matéria e, mesmo que os Alvarás sustentem a realização de uma prática abortiva por condição diversa da anencefalia, em regra, não encontram apoio legal e sim na interpretação dos próprios juristas diante do caso concreto. O Superior Tribunal de Justiça acompanha este entendimento, como muito bem se observa no posicionamento do ex-presidente da Corte, Raphael de Barros Monteiro Filho, em um caso 216onde o feto apresentava a síndrome de Meckel-Gruber217: 214

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 387. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 803 216 STJ. HC 51.982/SP. Min. Relator Arnaldo Esteves Lima. Quinta Turma. Dje 22.06.2006. 217 Síndrome proveniente de desordem genética, onde dentre muitas outras condições, comprometimento do sistema nervoso e funções hepáticas, fenda palatina, anomalias nasais, lígua lobulada, fenda de epiglete, dentição neonatal, coração com defeitos atriais e ventriculares, estenose da válvula aórtica e etc. A expectativa de vida é curta. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 215

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Deixando de lado toda a discussão religiosa ou filosófica, e também opiniões pessoais, a questão toda gira em torno da inviabilidade de vida do feto fora do útero materno e de proteção à saúde física e psicológica da mãe, bem jurídico este também tutelado pelo legislador constitucional e ordinário, no próprio artigo 128, inciso I, do Código Penal, que não pode ser menosprezado pelo Poder Judiciário.

Em uma rápida pesquisa nas jurisprudências dos Tribunais pátrios, não é difícil encontrar decisões, ainda que em sua maioria em 2ª instância - onde a realização do aborto terapêutico é autorizado em casos onde sejam vistas similaridades práticas com os casos de interrupção decorrentes de anencefalia, levando-se em consideração principalmente a identidade entre as consequências destas gestações para a mulher, bem como a baixa probabilidade de sobrevivência do feto após o parto. A decisão do STF tem característica vinculante a todos os órgãos do Poder Público218, e a jurisprudência vem aplicando-a analogicamente às hipóteses de doenças como por exemplo Gemelaridade Imperfeita, Acrania Fetal, Síndrome de Edwards, Agenesia Renal Bilateral, Síndrome de Limb-Body-Wall, Síndrome de Patau, Síndrome Banda Amniótica219 etc, sempre que reste comprovado, de forma indubitável, por laudos de experts da área médica, a impossibilidade da vida do feto no termo da gestação. Este posicionamento jurisprudencial vem desde antes da ADPF, onde os magistrados vêm relativizando a atribuição do direito à vida, diferenciando o ser humano, embrião, no tocante ao indivíduo-pessoa, sujeito de direitos e deveres, cujas características emanam da Constituição.

218

BRASIL. Lei nº 9.882/99, artigo 10, § 3º. A esse respeito, vide: 0023285-95.2015.8.19.0000-TJRJ. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016; 1.0686.09.235524-3/0011-TJMG. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016; 100043-72.2014.8.09.0175-TJGO. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016; 035633196.2015.8.19.0001-TJRJ. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016; 0032267-35.2014.8.19.0000-TJRJ. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016; 0033540-79.2013.8.11.0041-TJMT. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016; 0000410-73.2014.8.26.0000-TJSP. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 219

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O direito à vida não é absoluto, sendo graduando-se proteções diferentes do indivíduo saudável até o feto sem viabilidade de vida extrauterina, que porta uma condição insuperável, que faz com que venha à óbito logo depois do parto, ou que isso se dê até antes do termo da gestação, sendo causa de grande dor e sofrimento à mulher, quando esta não arca com as consequências clínicas de uma gravidez de risco. Os direitos das mulheres já são destacados nos casos de violência sexual, inclusive quando esta tem como consequência gestação de feto saudável. Joaquim Barbosa já se manifestou de maneira consonante em seu voto no Habeas Corpus 84.025/RJ220: Em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extrauterina, uma interpretação que tipifique a estará sendo flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou de interromper a gravidez, nos casos previstos no Código Penal. Em outras palavras, dizer-se criminosa a conduta abortiva, para a hipótese em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja portador de anomalia grave e incompatível com a vida extrauterina está obrigada a manter a gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já elencadas na legislação como excludente de aborto, especialmente porque estas se referem à interrupção da gestação de feto cuja vida extrauterina é plenamente viável. Seria um contrassenso chancelar a liberdade e a autonomia privada da mulher no caso de aborto sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de estupro, em que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de malformação fetal gravíssima, como a anencefalia, em que não existe um real conflito entre bens jurídicos detentores de idêntico grau de proteção jurídica.

Os juízes vêm então decidindo os casos concretos de acordo a analogia, já que pelo que versa o art. 5º, XXV da Constituição Federal, bem como o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, não poderá dar cabo da lide sem a devida solução, afirmando inexistência de regra positivada, sob risco de recusa de jurisdição, além de risco de prejudicar a concretude de direitos fundamentais. A análise jurisprudencial deixa claro que os operadores do direito, as vezes até afastam-se da aplicação das normas em prol de realizar a justiça perante os casos concretos. Assim, mesmo em situações diferentes ao objeto da ADPF n° 54, casos congruentes devem ser estudados com cautela máxima, diante da complexidade e repercussão do tema na vida das pessoas que buscam socorro na justiça. A partir do momento em que o Judiciário se despe de eventuais valores e sentimentos, mais correto e de acordo com o direito das mulheres 220

Brasil. STF. HC 84.05/RJ, Relator Min. Joaquim Barbosa, J. 4.03.2004. Sj. 25.06.2004. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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ele estará. Nestes casos, os conflitos de interesses da sociedade em geral não podem subjugar a integridade física e psicológica da mulher. 3.2.1.2.

Um Desafio

Entre uma decisão judicial, por mais que do STF, a concretização dos direitos no Brasil ainda é dificultada por diversos fatores. Algo que, por ser legal, deveria ser tão acessível quanto prevê a norma técnica do Ministério da Saúde, torna-se de eficácia limitada. Algo que desconstrói todo o cenário otimista instalado por decisões progressistas do Judiciário, que ainda não se refletem na realidade das mulheres que buscam por autorizações às vezes até exacerbadas, já que dependendo do caso nenhum desses certames é necessário para realizar o abortamento. Essa dificuldade de concretizar um direito vaga da desinformação dos profissionais de saúde, no tocante ao atendimento e os procedimentos, bem como a falta de funcionários responsáveis por administrar os locais onde - à princípio - deveriam encontrar-se centros de referências para a realização do aborto legal. Por mais que já tenham se passado mais de 4 anos da histórica decisão do STF, ainda existe muita dúvida na prática do que pode ser considerado um aborto legal (art. 128 alterado pela ADPF n° 54). Muito disso se liga à permanência dos valores patriarcais na sociedade, onde as mulheres lutam contra a marginalização, em uma luta diária para concretizar os seus direitos, bem como conseguir acesso a outros que continuam lhe sendo negados. Assim leciona Pimentel221: O acesso por parte das mulheres ao Judiciário ainda é incipiente, apesar das garantias constitucionais e legais conquistadas. Um dos grandes obstáculos, ainda, é a falta de conscientização por parte da mulher acerca de seus direitos. Mas é inegável que, considerando-se a atuação do Poder Judiciário, este ainda não se tem revelado suficientemente sensível e preparado para tratar das questões em que a mulher é parte interessada. Em outras palavras, este ainda não se tem revelado sensível à questão de gênero. É necessário que os profissionais da Justiça, cujo principal papel constitucional é salvaguardar os Direitos Humanos fundamentais, bem como todos os operadores do Direito, não reproduzam os mitos que envolvem a ideia de inferioridade feminina. Esses mitos são responsáveis pela subordinação social da mulher e, consequentemente, pela discriminação e violência que a vitimiza. 221

PIMENTEL, Silvia. A Superação da Cegueira de Gênero: mais do que um desafio - um imperativo. Revista Direitos Humanos, n. 2, junho de 2009. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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Todos os operadores devem realizar estudos e participar de análises e debates críticos em relação às condições de existência femininas, desiguais e injustas. Considerando a dignidade humana das mulheres e que elas são metade do mundo, é necessário repensar os papéis masculinos e femininos na sociedade – sobre a base da equidade – para tornar possível a afirmação de uma justiça embasada no gênero.

Em recente pesquisa publicada, foi afirmado que “o direito precisa ser efetivo, conhecido e aplicado pela sociedade, neste caso, pelas mulheres grávidas de fetos anencéfalos”222 algo que não acontece na prática em âmbito social. Hospitais que oferecem o serviço de aborto legal, por si só já constituem de ambiente onde a maioria das mulheres que procuram pelo procedimento estão vulneráveis e são hipossuficientes. Um cenário que infelizmente é lugar comum de quem procura os serviços públicos autorizados no país à conduzir o abortamento nos casos legais, onde mulheres com maiores probabilidade de não terem conhecimentos acerca dos seus direitos circulam todos os dias. Como já dito anteriormente, o maior inimigo à concretização dos direitos é a inobservância do que está posto nas normas técnicas, representando um risco não só às mulheres, mas também aos médicos - que, apesar de nestes centros haja um maior comprometimento, cabe ressaltar que há a mesma dificuldade de estrutura já intrínseca ao sistema de saúde pública no país. O fato constatado na referida pesquisa é que, toda essa conjuntura impede a efetivação dos direitos das mulheres, bem como o pleno exercício profissional de médicos e enfermeiros que, atualmente, já chegam ao mercado com a formação onde todas essas temáticas são amplamente debatidas. O mau funcionamento de equipamentos essenciais, operados por profissionais capacitados são fundamentais, algo quase utópico em um país onde ainda não se conseguiu mitigar os discursos de poder e o patriarcado223. Ademais, foi divulgada na referida pesquisa que “há de se ter em mente o fato que apenas 65 hospitais foram habilitados pelo Ministério da Saúde para realização de abortos legais até 2012, com meta de ampliação para 95 até o fim

222

SIMÕES, Clarissa Mortari; MILITÃO, Ana Clara de Oliveira; PEDROSO, Gabriela Campos; SILVA, Yasmin de Melo. ADPF 54: A (In)eficácia Social da Decisão do STF sobre o Aborto de Anencéfalos na Cidade no Rio de Janeiro.Revista da EMERJ. v. 19, n. 73, abril/maio/junho de 2016. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 223 Ibidem.

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do mesmo ano, dado que não se confirma após grande pressão conservadora acerca do tema e as restrições orçamentárias”224. As contradições envolvendo a ilegalidade do aborto, além de todas as consequências danosas que ainda serão tratadas no presente, infectam não apenas a vida e a saúde das mulheres, como também atendimento das possibilidades previstas em lei. Para Soares225 as maiores dificuldades para o bom funcionamento dos serviços de atendimento ao aborto legal tem sido a de identificar profissionais de saúde para atuar: Isto se dá devido: a) desconhecimento dos profissionais de saúde inseridos nos serviços de referência, em relação à legislação vigente sobre o aborto legal; b) temor em relação às complicações judiciais sentido pelos profissionais devido ao receio de serem punidos legalmente e culpabilizados pela realização do aborto mesmo ao realizar procedimentos permitidos por lei; c) forte influência dos valores éticoreligiosos destes profissionais que na maioria das vezes não conseguem desvencilhar a prá- tica profissional de suas concepções e valores pessoais; e d) repúdio ao estigma de aborteiros.

A maior parte dos serviços de saúde não está apta à atender as mulheres que procuram pelo Aborto Legal. A lei dispensa a apresentação de qualquer documento como Boletim de Ocorrência, Laudos periciais ou autorização judicial, mas ainda persistem a exigência destes para a condução dos abortamentos. Fato que condiz com o medo dos profissionais de sofrerem sanções na justiça ou perante o conselho profissional. Ainda é difícil quantificar quantidade de Abortos Legais realizados no Brasil. Em Consulta ao Portal de Acesso a Informação do Governo Federal226, em resposta à solicitação feita no portal de consulta questionando quantidade de abortamentos legais entre os anos de 2000 e 2015. Em resposta dada em março de 2016 aponta que neste período, a partir dos registros de Aspiração Manual Intrauterina e curetagem227 pós abortamento por razões médico e legais, 224

Ibidem. SOARES, G. Profissionais de saúde frente ao aborto legal no Brasil: desafios, conflitos e significados. Cad Saude Publica 2003; 19(2):399-406. 226 BRASIL. Portal de Consulta. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 227 BRASIL. Portal de Acesso à Informação. Dados de AMIU e Curetagem pós abortamento - Dados Extraídos em 08.03.2016. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 228 BRASIL. Portal de Consultas da CGU. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 229 DINIZ, Débora. Aborto e saúde pública 20 anos de pesquisas no Brasil. p. 9 . Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2016. 230 A esse respeito, consultar o portal de notícias G1. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 231 A esse respeito, consultar o portal de notícias G1. . Acesso em 7 nov 2016.

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Carneiro saiu de casa em Paraíba do Sul, ainda de madrugada para fazer o aborto na capital. Ela chegou de ônibus à Rodoviária Novo Rio, em São Cristóvão, pela parte da manhã. Apenas o namorado e uma amiga sabiam da gravidez. Além das duas clínicas, há uma casa de repouso para onde as pacientes são encaminhadas após o aborto. A quadrilha era formada por oito pessoas, incluindo médicos, que foram soltos após três meses na cadeia. Um dos médicos tem 80 anos e 18 registros criminais232. A polícia civil desmontou nesta terça feira um grande esquema de clínicas de aborto no Rio de Janeiro. Foram presas até o momento 57 de 75 pessoas, que tiveram mandado de prisão expedidos pela justiça, na operação batizada de Herodes. Em média, clínicas faturavam cerca de R$ 300 mil por mês. Alguns praticavam abortos a mais de 50 anos, como Aloísio Soares Guimarães cuja primeira anotação criminal data de 1962. Outra médica, Ana Maria Barbosa, já tinha sido indiciada em 2001 por 6352 abortos em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. O médico Carlos Roberto Silva, trabalhava normalmente na cidade paulista de Cruzeiro e vinha ao Rio apenas para realizar abortos. Na casa de um dos envolvidos foi encontrado um extrato de uma conta na Suiça com milhões de reais depositados. Além de médicos há envolvimento de policiais civis, militares, bombeiros e até um soldado do exército, além de falsos médicos, olheiros, enfermeiros, olheiros, seguranças, captores e até advogados. Além do crime de aborto vão ser indiciados por corrupção passiva, prevaricação (no caso de agentes públicos), exercício ilegal da medicina, associação criminosa para o tráfico de drogas, corrupção ativa e associação criminosa armada. Os abortos eram cometidos, de acordo com a polícia em verdadeiros açougues. Nos casos de abortos com crianças de até sete meses de gestação os investigadores acreditam que os bebês eram jogados no lixo. As sete clínicas lucravam muito com o negócio. Só uma clínica em bom sucesso, teria faturado R$ 2,7 milhões nos últimos dois anos. "A demanda é maior que a oferta. Alguns médicos chegavam a limitar o número de mulheres atendidas por dias a dez" disse o delegado. O esquema envolvi sete núcleos, que funcionavam em Copacabana, Botafogo, Campo Grande, Rocha, Guadalupe, Bonsucesso e Tijuca. Foram apreendidos carros de luxo, cofres com dólares e joias, além de farta documentação. A polícia conseguiu estabelecer uma tabela de preços que variava da idade da paciente (menores pagavam mais) e do tempo de gestação (quanto maior o tempo, mais caro). Procedimentos com crianças com até 7 meses de gestação chegavam à custar R$ 7500. A polícia detectou procedimentos realizados em uma menina de 13 anos233. A polícia descobriu uma suposta clínica de aborto no centro da capital nesta manhã de sábado. A médica responsável foi detida e uma paciente que estava sendo atendida confirmou que estava ali para fazer aborto. Outras seis mulheres estavam na sala de espera quando a polícia chegou. Os militares estiveram no local e prenderam a médica de 70 anos, responsável pelo atendimento. A paciente que estava sendo atendida tem 27 anos e confirmou que iria fazer o aborto ali. Ela já está no terceiro mês de gestação e contou que queria tirar a criança porque estava estudando, namorando a pouco tempo e que a gravidez iria atrapalhar a vida dela. A mulher disse ainda que ficou sabendo da clínica por uma amiga, que já fez o procedimento no local, com a mesma médica. O valor cobrado seria de R$ 7 mil, e a paciente contou que tinha R$4.500 para pagar a médica. O procedimento seria feito por meio de sucção ou medicamento. A médica, de 70 anos, disse que é ginecologista há 35 anos e que mantém o consultório há 25234. 232

A esse respeito, consultar o portal de notícias IstoÉ. . Acesso em 7 nov 2016. 233 A esse respeito, consultar o portal de notícias Terra . Acesso em 7 nov 2016. 234 A esse respeito, consultar o portal de notícias O Tempo. . Acesso em 7 nov 2016.

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Como sabem amplos círculos da zona sul carioca mais endinheirada, os bairros de Botafogo (na própria Zona Sul) e Barra da Tijuca (Zona Oeste com pinta de zona sul) sediam duas das clínicas clandestinas de aborto mais frequentadas pelas mulheres de classe média para cima (aquelas que os sociólogos classificam com classe A). Alarmadas com operações policiais contra estabelecimentos dedicados ao aborto, as duas clínicas tomaram iniciativa de fecha as portas, ao menos por um tempo. Com as duas clínicas desativadas, muitas moradoras do Rio têm ido até outros estados para interromper a gestação. Em São Paulo, não apenas a capital. Uma clínica de Campinas tem recebido cariocas. Em agosto e setembro, os serviços clandestinos de aborto provocaram a morte de uma mulher em Campo Grande (zona oeste) de nome Jandira, ela pagaria R$ 4.500 pelo procedimento. Desde então a polícia promoveu operações de repressão contra o mercado do aborto. A ilegalidade favorece médicos e carniceiros de toda ordem que não oferecem condições hospitalares dignas para as pacientes. O aborto é questão de saúde pública, tal sua dimensão. Mas as mulheres continuam a ser tratadas como criminosas e a correr riscos graves. As mais pobres não têm como ir à uma clínica clandestina: adotam métodos muito mais perigosos. As que podem têm saído do Rio para abortar. E outras vão morrendo, a maioria sem sair no Jornal235. Uma mulher de 28 anos morreu ao ser submetida à um aborto em uma clínica clandestina em Benfica, na Zona norte do Rio. O corpo da vítima, grávida de cinco meses, foi encontrado naquela noite, com um corte na barriga, em uma rua deserta na Favela Parque Senhor do Bonfim, na Cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a cerca de 20 quilômetros da clínica. Caroline de Souza Carneiro saiu de casa em Paraíba do Sul, ainda de madrugada para fazer o aborto na capital. Ela chegou de ônibus à Rodoviária Novo Rio, em São Cristóvão, pela parte da manhã. Apenas o namorado e uma amiga sabiam da gravidez. Além das duas clínicas, há uma casa de repouso para onde as pacientes são encaminhadas após o aborto. A quadrilha era formada por oito pessoas, incluindo médicos, que foram soltos após três meses na cadeia. Um dos médicos tem 80 anos e 18 registros criminais236. Elizângela Barbosa, 32 anos, foi encontrada morta na noite deste domingo, na Estrada de Itioca, bairro com mesmo nome, em Niterói. Segundo parentes da vítima, a mulher saiu para fazer um aborto no sábado e não voltou mais para a casa. Moradora de Engenho Pequeno, São Gonçalo, Elizângela tinha 3 filhos e não queria o quarto. Elizangela saiu de casa por volta de 8h da manhã de sábado, com R$ 2.800 para realizar o aborto no bairro Sapê237. Grávida morta no em clínica clandestina de aborto torna-se símbolo no Rio. O caso de Jandira Magdalena dos Santos Cruz revelou a cruel realidade nas clínicas clandestinas de aborto no Rio de Janeiro. No dia 26 de agosto, a auxiliar administrativa foi desapareceu após realizar o procedimento ilegal. O corpo da jovem foi encontrado mutilado e carbonizado no dia seguinte ao crime. Jandira, 27 anos, mãe de duas meninas e que decidiu interromper a terceira gestação no quarto mês. Jandira foi vista pela última vez na rodoviária de Campo grande, Zona oeste do Rio. O ex-marido levou a mulher até o local, onde a motorista da clínica clandestina a buscaria junto com outras grávidas. Ela teria pago pelo aborto R$ 4.500. De acordo com a polícia, Jandira morreu após passar pela cirurgia. O corpo, sem digitais e sem arcada dentária, foi encontrada dentro de um carro, em Guaratiba,

235

A esse respeito, consultar o Blog do Mário Magalhães. . Acesso em 7 nov 2016. 236 A esse respeito, consultar o portal de notícias IstoÉ. . Acesso em 7 nov 2016. 237 A esse respeito, consultar o portal de notícias Extra. . Acesso em 7 nov 2016.

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Zona Oeste do Crime. Foi preciso um exame de DNA para comprovar a identidade238. (grifou-se)

É um enorme desafio tentar calcular a magnitude do aborto no Brasil, já que os dados dificilmente são fiéis à realidade, além das mulheres que omitem a indução do aborto. Os estudos sobre os abortos provocados são de suma importância, tanto para a saúde pública quanto para a demografia, afastando a prática mais uma vez do contexto penal. Os abortamentos ilegais envolver uma complexa teia de aspectos políticos, sociais e culturais, os quais não são fáceis de graduar e individualizar. Em torno de 850 mil mulheres recorrem à métodos caseiros ou atendimentos em clínicas ilegais239, o que aumenta o risco de complicações, às vezes fatais.

Os riscos

envolvidos nos procedimentos clandestinos vão desde laceração do colo uterino pelo uso de dilatadores, perfuração do útero com consequências no intestino, bexiga e trompas. É comum a ocorrência de hemorragias uterinas, onde há o quadro de grande perda de sangue e endometrite (inflamação) depois do abortamento, tudo isso podendo deixar a mulher estéril ou até mesmo levá-la ao óbito. Estas clinicas se disseminaram por causa da proibição do aborto no país, bem como o alto valor de dinheiro que circula, já que os procedimentos oferecidos geralmente são caros. Por não respeitarem as normas sanitárias, são comuns os relatos de precariedade nas condições, bem como a falta de profissionais habilitados para conduzir os abortamentos. Muitas mulheres, em atos desesperados, procuram estas clinicas, onde os funcionários geralmente passeiam pelo Código Penal, envolvendo-se com crime organizado, tráfico de drogas e, obviamente, lavagem de dinheiro. De tempos em tempos notícias sobre novas (ou não) clínicas sendo desmanteladas pela polícia correm na mídia, deixando indicado como estas funcionam e a sua intrincada logística

238

A esse respeito, consultar o portal de notícias R7. . Acesso em 7 nov 2016. 239 STF. Aborto, uma questão social além da controvérsia. Fórum de cortes supremas do Mercosul. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2016.

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A história do aborto no país é marcada pelos contrastes. Drauzio Varella, um dos médicos mais conhecidos e respeitados do país, retrata bem o cenário da clandestinidade do aborto no Brasil240: Desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil. Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele. Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente. A técnica desses abortamentos geralmente se baseia no princípio da infecção: a curiosa introduz uma sonda de plástico ou agulha de tricô através do orifício existente no colo do útero e fura a bolsa de líquido na qual se acha imerso o embrião. Pelo orifício, as bactérias da vagina invadem rapidamente o embrião desprotegido. A infecção faz o útero contrair e eliminar seu conteúdo. O procedimento é doloroso e sujeito a complicações sérias, porque nem sempre o útero consegue livrar-se de todos os tecidos embrionários. As membranas que revestem a bolsa líquida são especialmente difíceis de eliminar. Sua persistência na cavidade uterina serve de caldo de cultura para as bactérias que subiram pela vagina, provoca hemorragia, febre e toxemia. A natureza clandestina do procedimento dificulta a procura por socorro médico, logo que a febre se instala. Nessa situação, a insegurança da paciente em relação à atitude da família, o medo das perguntas no hospital, dos comentários da vizinhança e a própria ignorância a respeito da gravidade do quadro colaboram para que o tratamento não seja instituído com a urgência que o caso requer. A septicemia resultante da presença de restos infectados na cavidade uterina é causa de morte frequente entre as mulheres brasileiras em idade fértil. Para ter ideia, embora os números sejam difíceis de estimar, se contarmos apenas os casos de adolescentes atendidas pelo SUS para tratamento das complicações de abortamentos no período de 1993 a 1998, o número ultrapassou 50 mil. Entre elas, 3.000 meninas de dez a quatorze anos. Embora cada um de nós tenha posição pessoal a respeito do aborto, é possível caracterizar três linhas mestras do pensamento coletivo em relação ao tema. Há os que são contra a interrupção da gravidez em qualquer fase, porque imaginam que a alma se instale no momento em que o espermatozoide penetrou no óvulo. Segundo eles, a partir desse estágio microscópico, o produto conceptual deve ser sagrado. Interromper seu desenvolvimento aos dez dias da concepção constituiria crime tão grave quanto tirar a vida de alguém aos 30 anos depois do nascimento. Para os que pensam assim, a mulher grávida é responsável pelo estado em que se encontra e deve arcar com as consequências de trazer o filho ao mundo, não importa em que circunstâncias. No segundo grupo, predomina o raciocínio biológico segundo o qual o feto, até a 12ª semana de gestação, é portador de um sistema nervoso tão primitivo que não existe possibilidade de apresentar o mínimo resquício de atividade mental ou consciência. Para eles, abortamentos praticados até os três meses de gravidez deveriam ser autorizados, pela mesma razão que as leis permitem a retirada do coração de um doador acidentado cujo cérebro se tornou incapaz de recuperar a consciência. Finalmente, o terceiro grupo atribui à fragilidade da condição humana e à habilidade da natureza em esconder das mulheres o momento da ovulação, a necessidade de adotar uma atitude pragmática: se os abortamentos acontecerão de qualquer maneira, proibidos ou não, melhor que sejam realizados por médicos, bem no início da gravidez. Conciliar posições díspares como essas é tarefa impossível. A simples menção do assunto provoca reações tão emocionais quanto imobilizantes. Então, alheios à tragédia das mulheres que morrem no campo e nas periferias das cidades brasileiras, optamos por deixar tudo como está. E não se fala mais no assunto. A questão do aborto está mal posta. Não é verdade que alguns sejam a favor e outros contrários a ele. Todos são contra esse tipo de solução, principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente por não enxergarem alternativa. É lógico que o ideal seria instruí-las para jamais engravidarem sem desejá-lo, mas a natureza humana é mais complexa: até médicas ginecologistas ficam grávidas sem querer. Não há princípios morais ou filosóficos 240

VARELLA, Drauzio. A Questão do Aborto. Revisado em Abril de 2015. Disponível em . Acesso em 14 de novembro de 2016.

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que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente.

A mortalidade materna é um perfeito indicador da desigualdade social, pois é elevada em áreas subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, geralmente mais carentes de políticas de saúde pública, quando comparada com os números de áreas desenvolvidas, onde também são observadas diferenças entre as diferentes castas socioeconômicas241. Isso influencia intimamente nos desdobramentos dos casos de aborto - afinal, nem a lei e nem os valores morais e religiosos da sociedade impedem as mulheres que realizá-los, porém às que possuem recursos se veem obrigadas a realização de práticas de alto risco, obviamente mais suscetíveis à complicações que podem resultar, inclusive, em morte. Um estudo revelou que o risco de morrer por abortamento é muito mais elevado em mulheres negras e pardas do que quando em grávidas brancas242. “As mulheres negras são mais vulneráveis. Não têm recursos para ir a clínicas clandestinas e usam métodos perigosos de aborto, que aumentam os riscos de complicações”243, destaca o pesquisador Mário Monteiro, um dos autores do trabalho. “Os resultados nos fazem refletir que a criminalização do aborto está condenando mulheres negras à morte”, diz Margareth Arilha244, diretora executiva da Comissão de Cidadania e Reprodução do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, realizadora do seminário sobre Mortalidade Materna e Direitos Humanos no Brasil. Enquanto a classe média para cima consegue pagar por condições razoáveis para a realização do aborto, mulheres pobres recorrem às pílulas abortivas de procedência duvidosa no mercado negro, acabam em clínicas rudimentares ou até empregam experimentos caseiros 241

A esse respeito, confira: Ruy Laurenti; Maria Helena Prado de Mello Jorge; Sabina Léa Davidson Gotlieb. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev. bras. epidemiol. vol.7 no.4 São Paulo Dec. 2004 242 MONTEIRO, Mario. Mulheres Negras e Mortalidade Materna no Brasil. 2009. Disponível em p. 43-45. Acesso em 14 de novembro de 2016. 243 Ibidem. 244 Relatório do Seminário Mortalidade Materna e Direitos Humanos no Brasil. 2009. Disponível em . Acesso em 14 de novembro de 2016

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com consequências inimagináveis245. Vale lembrar que aproximadamente 200 mil mulheres246são internadas todos os anos por complicações dos abortos clandestinos. Esses números são inerentes à criminalização do aborto, que se relaciona diretamente com a grande incidência de abortos inseguros247. A não ser que façam parte do seleto grupo que recebe boas indicações diretamente de um médico para a condução de um aborto seguro, e, é claro, o dinheiro para realizar o procedimento, as mulheres no Brasil acabam precisando confiar na propaganda informal e feita por debaixo dos panos. Não há maneira de se encontrar esse tipo de informação além de se conhecer alguém que teve uma amiga que fez um aborto ilegal. Em sites como o da ONG Woman on Web, organização sem fins lucrativos que oferece aconselhamento e medicamentos às mulheres do mundo todo, também é possível encontrar meios de conseguir acesso ao abortamento mais seguro possível. Grande parte dos abortamentos ilegais no Brasil são feitos com substâncias medicamentosas, resguardando-se as mulheres a procederem com esta dolorosa decisão muitas vezes sozinha em casa. O Jornal Internacional de Obstetrícia declarou em um relatório de 2014248que 50% das mulheres que já abortaram no Brasil utilizaram alguma pílula abortiva, sendo o mais comum o Misoprotol e o Cytotec, vendidos ao lado da maconha e cocaína pelos traficantes de drogas brasileiros, o valor de cada comprimido varia entre 1 e 30 dólares, segundo o relatório. A mulher deve comprar pelo menos 12249comprimidos de 200 microgramas de Misoprostol para poder ter a chance de algum efeito abortivo. Esta dificuldade de conseguir o acesso aos remédios abortivos aumenta ainda mais a aura de criminalização da mulher que procura por um método seguro para o aborto. Buscar comprimidos junto ao tráfico de drogas fazem com que elas corram risco até de serem presas 245

A esse respeito, acessar o portal de notícias Jornal Novo Hamburgo. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 246 TIME. Abortions in Brazil, Though Illegal, Are Common. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 247 HADDAD, Lisa. Unsafe Abortion: Unnecessary Maternal Mortality. 2009. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 248 Instituto Guttmacher. Higher Levels of Education Associated With Greater Access to safe abortin in Brazil. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 249 Woman on Waves. Onde posso obter o Misoprostrol? . Acesso em 7 nov 2016.

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em batidas policiais, por envolvimento com o tráfico de entorpecentes. Adquirir os produtos on-line, caso rastreadas, podem fazer recair sobre a mulher acusação de contrabando. Segundo o site Woman on Web, as autoridades brasileiras costumam a fazer operações de rotina para apreensão dos remédios que fogem às regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Mesmo se os comprimidos chegarem às mãos das mulheres, elas ainda correm o risco de sofrer com os golpes de depositar suas esperanças em um medicamento de procedência duvidosa. Muitas vezes as drágeas comercializadas como o Misoprostol250 são feitas de farinha ou açúcar, inócuas para o abortamento. O Brasil voltou para o centro dos debates com a eclosão do surto de Zika, que afetou aproximadamente 1,5 milhão de pessoas251, resultando até agosto de 2016 em 8.890252 casos confirmados ou sob suspeita de bebês com microcefalia - em sua maioria em famílias de baixa renda e residentes no Nordeste253. Diante de toda repercussão negativa sobre a inércia do Governo Brasileiro em perceber a gravidade da situação, o Ministério da Saúde chegou a sugerir que as mulheres evitassem a gravidez. Isso em uma realidade onde é notória a dificuldade de acesso à métodos contraceptivos, especialmente das classes mais pobres, pela falta de políticas públicas sobre educação sexual e planejamento familiar254.

250

GYNUITY. Choices for Medical Abortion Introduction in Brazil, Colombia, Mexico e Peru. Disponível em . Acesso em 7 nov. 2016. 251 REUTERS. USA, Brazil Researchers Join Forces to Battle ZikaVirus. 2016. Disponível em: . Acesso em 14 de novembro de 2016. 252 Ministério da Saúde. Informe epidemiológico nº 38 – Semana Epidemiológica (SE) 31/2016 (31/07/2016 a 06/08/2016) – Monitoramento dos casos de microcefalia no Brasil. Disponível em: . Segundo os dados do boletim epidemiológico n. 38, 389 dos 8.890 casos notificados de microcefalia e/ou outras alterações do sistema nervoso central evoluíram para óbito fetal ou neonatal até 23 de julho de 2016. Desses 389 óbitos fetais ou neonatais notificados, 122 foram confirmados para microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central sugestivos de infecção congênita e 198 permanecem em investigação. Acesso em 16 de novembro de 2016. 253 Reuters. Brazil says confirmed and suspected microcephaly cases rise to 5.131. 2016. Disponível em . Acesso em 14 de novembro de 2016. 254 Sexo é para amadores, gravidez é para profissionais', diz ministro da Saúde. Disponível em: . Acesso em 16 nov 2016.

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Mais uma vez a postura do Estado Brasileiro diante da saúde reprodutiva da mulher foi criticada, desta vez em um parecer de pesquisadores de Yale255: Assim como a epidemia de HIV/AIDS, combater efetivamente o Zika exigirá que o governo brasileiro trabalhe dentro de um contexto cultural e social diverso para avaliar as necessidades das populações vulneráveis e expandir a disponibilidade dos 67 recursos de saúde a essas populações. O Protocolo [de Atenção à Saúde e Resposta à Ocorrência de Microcefalia] reconhece adequadamente a importância do uso de contraceptivos, assim como o papel do homem na gravidez. Contudo, ele não reflete uma compreensão do contexto social adequada para fazer face à epidemia de Zika de uma maneira que ofereça suporte ao compromisso do Brasil com as metas de saúde pública e direitos humanos. Especificamente, o Protocolo ignora as realidades complexas associadas às decisões reprodutivas da mulher. Ele não explica os desafios práticos que muitos indivíduos, principalmente mulheres pobres, enfrentam ao obter e usar métodos contraceptivos, nem faz qualquer menção ao aborto, disponível legalmente ou não. Para melhorar a saúde pública e os direitos humanos, o protocolo deve estar enraizado nas experiências de vida da mulher em vez de somente em soluções teóricas. Além do mais, a exclusão de opções abrangentes de saúde reprodutiva pelo Protocolo demonstra a negligência do governo brasileiro com suas obrigações internacionais de proteger a saúde da mulher.

A gravidade da zika foi reconhecida pela OMS como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em fevereiro de 2016. Em outubro de 2016, o Brasil ainda permanecia no centro desta crise global256, bem como, sem surpreender, A população em maior risco para a epidemia são mulheres, pretas e pardas da região Nordeste a área menos desenvolvida do país, que têm sido obrigadas a conviver com o Aedes aegypti, o principal vetor do vírus zika, devido a falhas no controle de vetores, no saneamento básico e no acesso à água tratada257. A repercussão foi tanta que Rodrigo Janot, Procurador Geral da República, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal parecer258, em que entende pela legalidade do aborto nos casos

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The Guardian. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 256 BRASIL. Ministério da Saúde. Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 37, 2016. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. BRASIL. Ministério da Saúde. Informe epidemiológico nº 48 – Semana Epidemiológica (SE) 41/2016 (09/10/2016 a 15/10/2016) – Monitoramento dos casos de microcefalia no Brasil. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 257 MAISONNAVE, F. Oito em cada dez bebês com danos do zika nascem de mães negras. Folha de S. Paulo, 12 set. 2016. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 258 BRASIL. STF. Parecer da PGR na ADI 5.581. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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de Microcefalia - no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI n. 5.581259, proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos. No referido documento, entende na consonância da microcefalia com a decisão da ADPF n° 54, devendo as mesmas prerrogativas valerem nos casos em que a zika atentar contra saúde física ou psicológica da mulher - "Ocorre violação do direito fundamental à saúde mental e à garantia constitucional de vida livre de tortura e agravos severos evitáveis." A ADI deve reacender o debate no Judiciário acerca da interrupção voluntária da gravidez da mulher, vide a repercussão internacional, bem como a visibilidade da Zika e suas consequências em um âmbito global, que fizeram o mundo atentar para a parca abordagem das políticas de educação sexual e diretos de reprodução, principalmente no que tange os direitos das mulheres. A ADI cumulada com ADPF n. 5581, proposta pela ANADEP, aborda as a conduta limitada Estado brasileiro em resposta à epidemia da Zika e as suas consequências. A ADI n. 5581 está sistematizada de algumas demandas envolvendo políticas de saúde reprodutiva, dentre as quais o acesso a políticas de planejamento familiar e saúde reprodutiva de acordo com parâmetros internacionais e consensos médicos quanto aos métodos contraceptivos disponíveis mais eficazes; e, para mulheres grávidas infectadas pelo vírus zika e em sofrimento mental, o direito de escolha pela interrupção da gestação como forma de proteção a sua saúde mental. O Supremo começará a apreciar o tema no dia 7 de dezembro de 2016. 3.3.

Existe Solução?

3.3.1. Descriminalização x Despenalização Descriminalizar o aborto seria retirá-lo do Código Penal Brasileiro, deixando esta conduta de ser tipificada como crime e um atentado contra a vida, como atualmente a prática pela mulher é vista, o que dificulta bastante o acesso à métodos seguros de interrupção da gestação já que recai sobre elas o estigma de criminosas, bem como sobre quem tem o conhecimento técnico para conduzi-lo.

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STF. Andamentos da ADI 5.581. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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A atual conjuntura do aborto afronta todos e quaisquer direitos da mulher sobre a sua autonomia, aos direitos fundamentais das mulheres e aos seus direitos reprodutivos e sexuais. Falar em descriminaliza sugere o simples recuo do Estado em deixar de considerar a tipicidade da conduta, não significando qualquer compromisso deste em fornecer procedimentos de suporte aos envolvidos. Ao se articular a expressão legalização à descriminalização de uma conduta, significa falar no dever do Estado em fornecer todo aparato necessário para que seus cidadãos, no caso, principalmente mulheres, posam ser atendidas com qualidade na rede pública, chanceladas por campanhas de esclarecimento, acompanhamento multidisciplicar e tendo no Ministério da Saúde o principal agente regulador do tema. Afim de assegurar os direitos das mulheres, que sofrem com a constante insegurança jurídica e prática em torno do abortamento, deve o Estado se pronunciar sempre, instado ou não. Somente uma atitude efetiva do Poder Legislativo poderia concretizar o acesso de meios seguros para realizar o procedimento. Contudo, atualmente, a não descriminalização e a não legalização do aborto são bastante custosas para o Estados, também considerando os aspectos, já que clínicas clandestinas e o comércio informal de medicamentos abortivos movimentam altas somas de divisas, sem nunca arcar com os encargos legais sobre esses montante; bem como as mulheres que buscam socorro em decorrência de complicações nas interrupções ilegais da gestação, acabam também representando uma considerável despesa ao já onerado sistema de saúde pública. O Brasil, porém, encontra-se em um verdadeiro cabo de guerra ideológico, onde as forças conservadoras lutam pelo endurecimento da legislação, enquanto os movimentos sociais que representam os direitos humanos e das mulheres propõe um debate mais amplo e relativizado sobre as tutelas fundamentais do Direito. O Brasil da pequenos passos em direção à efetivar o direito da mulher à interrupção voluntária da gravidez, passos estes retardados pela oposição que se aproveita do movimento de crescimento do conservadorismo para puxar quaisquer avanços para trás. 3.4.

Polarização em torno do aborto

3.4.1. Projetos de Leis

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Em outubro de 2015, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou por ampla maioria o Projeto de Lei 5069/2013260, de autoria do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. A proposta apresentada visa acrescentar o art. 127-A, tipificando como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo, prevendo penas específicas para quem induz a gestante a prática de aborto. O projeto, proveniente da bancada evangélica pretende mudanças intrínsecas que atingem diretamente as garantias dos direitos sexuais e reprodutivos que foram conquistados nos últimos anos. A lei brasileira considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida, a PL de Eduardo Cunha postula que apenas as práticas que resultarem comprovadamente em danos físicos e/ou psicológicos serão considerados nesse sentido. Atualmente não há necessidade de apresentação de Boletim de Ocorrência ou autorização judicial para realização de Aborto legal até a 20ª semana ou se o feto pesar até 500g. A PL condiciona o ao registro de ocorrência e realização de corpo delito. Caso seja levado a diante, haverá também o comprometimento no atendimento das mulheres que desejam realizar o procedimento nos hospitais idôneos para sua realização, já que não lhes incorrerá mais a obrigação de prestar o atendimento emergencial, integral e interdisciplinar às vítimas de violência sexual. O programa da PL também prevê a criminalização de quem induzir instigar ou auxiliar a mulher a abortar, nem como anunciar meios abortivos, por mais que essa conduta seja resultado de tentativa para redução de danos à mulher, a pena varia de 6 meses à dois anos de detenção e, caso seja um profissional de saúde, pode chegar até 3 anos. Ainda aguardando o parecer do Relator na CCJC está projeto de lei também proposto pela bancada evangélica da câmara. Recebeu a alcunha de "Estatuto do Nascituro" ou "Bolsa Estupro"261, também trazendo insegurança aos insuficientes direitos já conquistados pelas mulheres no que tange a sua sexualidade. A moção pretende considerar o nascituro como um ser humano, plenamente sujeito aos direitos fundamentais, algo que geral muito debate na questão de controle de 260

BRASIL. Congresso Nacional. Tramitação da PL do Cunha Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 261 Carta Capital. Quando a Vítima se torna criminosa. . Acesso em 7 nov 2016.

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constitucionalidade, já que tal chancela não encontraria abrigo no texto constitucional. Outro ponto controverso é a instituição de um auxílio financeiro que fomentaria às mulheres prosseguirem com a sua gestação proveniente de violência sexual - utilizando em seu texto a nomenclatura de genitor ao homem que perpetra o estupro, dessa forma há uma clara relativização do direito real da gestante interromper a sua gravidez ao ser constrangida com a identificação e obrigação do estuprador cumprir seus deveres legais para com o produto deste crime. 3.4.2. Direito à vida Este discurso argumenta pela importância de defender a vida – do feto. Aqui a expectativa de vida ou vida que está sendo gerada deve ser protegida acima de tudo e o aborto seria um atentado quanto a esse bem jurídico. A construção desta percepção baseia-se em diversos recortes, como religião, legislação e ciência. Alguns alegam que a vida existe desde a concepção, ou seja, do momento em que óvulo é fecundado e outros repisam que o art. 5º da Constituição fala em inviolabilidade do direito à vida como direito fundamental. Essa posição considera o feto como criança ou recém-nascido, sendo a favor dos direitos do nascituro. A visão geral é de que a mulher pode e tem o direito de prevenir a gestação, mas se não o faz, é como se a partir deste momento ela se despisse dos seus direitos, encontrando apenas obrigações. Os que levantam o direito a vida não admitem a ponderação com outros direitos que estão em jogo, apresentando uma intransigência em favor da ‘pessoaembrião’ em detrimento da mulher. Este discurso tenta retratar o feto ou o embrião como pessoa, para que seja possível falar em direitos262. Outra disposição dos que julgam o aborto um atentado ao direito a vida é aproximar o procedimento de um assassinato, pena de morte ou violência, perpetuada pela mãe sobre o feto que seria uma criatura inocente, a vítima de toda situação.

262

MACHADO, Lia Zanotta. Os novos contextos e os novos termos do debate contemporâneo sobre o aborto. A questão de gênero e o impacto social das novas narrativas biológicas, jurídicas e religiosas. Série Antropologia, vol. 419, Brasília: DAN/UnB, 2008. Disponível em . p. 23. Acesso em 16 de novembro de 2016

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Em 2005, o Deputado Adelor Vieira disse na câmara “O aborto, ainda que facultativo, não deixa de ser um assassinato. É um ser humano inocente que morre, é uma vida que se vai!”263. Em 2011 o deputado Roberto Lucena tratou do assunto em seu discurso como “O aborto é também uma forma de violência e agressão. Vamos dizer “não” ao derramamento de sangue e vamos todos dar as mãos na construção da cultura da paz e da nossa posição de respeito à vida”264. Observa-se uma associação simplória entre aborto e morte, colocando mãe e feto em campos opostos, como uma assassina tentando matar um inocente. O pressuposto em embasa toda essa perspectiva é a ideia de que o feto já é uma pessoa de direitos; “de um lado, a viabilidade da vida extrauterina, certa autonomia do feto em relação ao corpo da mãe, conferida pelos saber e tecnologia médicos, e de outro, a autonomia da mulher, relativa a seu próprio corpo, configurada pelo movimento pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”265. A mulher neste caso é apenas um casulo necessário ao desenvolvimento do feto. Para Diniz266, a vida também é um valor importante no Estado laico, e está presente no ordenamento jurídico brasileiro. O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável por razões religiosas. Logo, essa questão pode estar relacionada não apenas com valores religiosos, apesar destes permeares os discursos de quem se posiciona sobre, já que a vida humana é algo considerado sagrado. A maioria dos parlamentares que se posicionam contra o aborto são de bancadas religiosas, cabendo ressaltar que, apesar disso, estes não apresentam propostas para defender políticas de proteção à criança ou com as condições precárias que elas possam vir a tem em decorrência da falta de recursos dos pais. Conforme leciona Biroli267, resta cristalino que 263

Adelor Vieira (PMDB/SC). Diário da Câmara dos Deputados. Ano LX, n. 35, p. 6971, 17 mar. 2005. Roberto de Lucena (PV/SP). Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXVI, n. 147, p. 45220- 45221, 26 ago. 2011. 265 MENEZES, Rachel Aisengart. Aborto e Eutanásia: dilemas contemporâneos sobre os limites da vida. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, vol. 18, n. 1, p. 77-103, 2008. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 266 DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado: Obstinação terapêutica em crianças. Caderno de Saúde pública. Vol. 22. N. 8. Rio de Janeiro. Agosto 2006. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 267 BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 62. 264

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argumentar em prol do direito à vida do feto é algo feito em detrimento do direito da mulher ao controle e autonomia do seu corpo: Faz toda diferença, para este debate, se a vida é concebida como algo sagrado e que está fora do arbítrio humano porque toda a vida é criação divina, se é uma abstração que engloba toda e qualquer vida humana independentemente da consciência e da vontade – posição que tem sido mobilizada em conjunto com a primeira –, ou se o valor da vida se define no respeito aos seres humanos como indivíduos concretos, como sujeitos corporificados de projetos e interesses, como sujeitos que têm relações afetivas e são capazes de refletir sobre elas e sobre sua posição (e as consequências das suas ações) em relação às outras pessoas.

3.4.3. Ciência e o Início da vida O momento inicial da vida humana envolve, mais uma vez, aspectos científicos, culturais e religiosos. Apesar de ir contra a maioria dos entendimentos da medicina moderna, há quem sustente que o feto já é capaz de experimentar sensações. Isso se dá por não haver um consenso uníssono da ciência quanto ao momento exato em que a vida se inicia. O feto é obviamente um dos estágios iniciais da vida humana, porem toda problemática remonta a dificuldade de perceber o momento em que ele se torna pessoa de direitos, já que o desenvolvimento embrionário conta com cerca de 20 etapas que são passíveis de serem consideradas como marcos iniciais da vida humana268. O primeiro dele é a fecundação269, quando o espermatozoide e o óvulo encontram-se gerando um novo código genético. Há quem se posicione pelo início da vida na 3ª semana de gravidez, pois até este momento o embrião ainda pode sofrer mitose, originando dois ou mais gêmeo. Ainda há a corrente que afirma que o feto só pode ser considerado uma pessoa a partir do momento em que começa a produzir ondas cerebrais, algo que ocorre a partir da 8ª semana para alguns e 20ª para outros. Finalizando, há os que apontam para a 24ª semana gestação, quando há a completa formação dos pulmões do feto, quando ele já passa a ter condições de sobreviver fora do útero.

268 MOORE K L., PERSAUD T.V.N. Embriologia Clínica. 9ª Edição. Elsevier, 2012. 560p. 269 Superinteressante. Vida: O Primeiro Instante. 31 de outubro de 2016. . Acesso em 7 nov 2016.

Disponível

em

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Para Coutinho, Maia e Silva270, apesar dos avanços significativos da ciência, não há um consenso sobre o tema. A maioria dos cientistas é cética à conceituar a vida, acreditando que esta busca representa apenas uma especulação em detrimento do que seria mais relevante, os fatos das pesquisa empírica. Nas diferentes áreas da Biologia os significados para a vida podem variar. “A única conclusão que se pode afirmar categoricamente é que a própria Biologia, a ciência dedicada ao estudo dos seres vivos, não nos apresenta um único e definitivo conceito de vida”271. Dificuldade essa também observada no campo político, já que é bastante difícil atender à diversidade cultural e complexidade da sociedade, afim de manter a dignidade das pessoas – principalmente das mulheres. Sarmento272 defende a valorização progressiva no tempo da vida intrauterina, ao passo que o embrião sofre transformações até que seja capaz de sobreviver fora do corpo da mãe. O ordenamento jurídico distingue de forma clara a vida dentro e fora do útero, quando a pena para aborto varia de um a três anos e a de homicídio simples pode chegar a 20 anos, “como vida humana, e como projeto de pessoa, merece já o nascituro a proteção do ordenamento e da Constituição. Não, porém, o mesmo grau de proteção que se confere à pessoa”273. Logo, apesar de ser indubitavelmente um procedimento doloroso física e psicologicamente, não há como compará-lo à morte da pessoa já nascida. A ciência fundamenta quase que pacificamente que antes da formação de córtex cerebral, é impossível o feto sentir ou apresentar algum tipo de raciocínio. Os manifestantes pró-vida defendem que o embrião já é uma forma de vida humana, desde a fertilização. Mesmo quando não se fala em religião, é impossível não observar a influência dos dogmas destes valores nos discursos destas pessoas, já que ele remete à valores transcendentes. “Para os grupos antiabortos, a vida é dom supremo que merece respeito,

270

COUTINHO, Francisco Ângelo; MAIA, Mônica Bara; SILVA, Fábio Augusto Rodrigues. A polissemia do conceito vida. In: MAIA, Mônica Bara. (Org.). Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 25. 271 Ibidem. 272 SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. In: CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Org.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 145146. 273 Ibidem.

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excluindo qualquer possibilidade de escolha”274. A decisão do STF sobre a interrupção de fetos anencéfalos, já amplamente debatida neste trabalho, influenciou bastante nos debates sobre o direito à vida depois da sua publicação em 2012. Durante as audiências públicas, participaram grupos religiosos contra e a favor da legalização (CNBB e Associação Médico-Espírita do Brasil e; IURD e Católicas pelo Direito de Decidir, respectivamente). A polêmica girou em torno do feto anencéfalo ter ou não status de ser humano vivo, sujeito ou não de direitos. Os grupos contrários à ADPF 54 posicionaram-se pela indisponibilidade da vida, equiparando a anencefalia à uma deficiência física e, que permitir a interrupção da gestação nestes casos seria eugenia. A vida do feto seria sagrada, possuindo ele todos os direitos que um ser humano capaz possui. “Nesse sentido, a gestante é englobada pelo feto que ela porta: é uma “unidade feto-placentária” doente”275. No Parlamento Brasileiro, apesar da Laicidade do Estado, é dado amplo espaço para argumentos religiosos sobre o tema, apesar de nos projetos de lei estes não estarem explícitos. Existe uma contraditoriedade ao se negar o aspecto religioso nos discursos contrários ao aborto, como por exemplo, na fala do Deputado Alberto Filho276, que afirma que “é a ciência (e não a religião) que demonstra que ele é um ser vivo, em desenvolvimento, dependente da mãe para sua nutrição, mas totalmente diferenciado dela. Tem a sua própria carga genética, irrepetível, estabelecida na sua concepção”. Até mesmo parlamentares que se identificam como religiosos, adotam a estratégia de negar isso quando conveniente, como Luiz Bassuma e Angela Guadgnin que se posicionaram no sentido de que “isso não é assunto religioso, mas alguns tentam usar esse pano de fundo, distorcendo a questão”277 e que “as questões religiosas são realmente de foro íntimo. Continuo debatendo que as razões mais importantes para impedir o aborto são as constitucionais, legais, éticas e científicas na defesa do direito inviolável à vida”278. 274

LUNA, Naara. Aborto e células-tronco embrionárias na Campanha da Fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, pp. 91-105, out. 2010. 275 Ibidem. 276 Alberto Filho (PMDB/MA). Diário da Câmara dos Deputados, Ano LXVIII, n. 38, p. 4262- 4263, 12 mar. 2013. 277 Luiz Bassuma (PT/BA). Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXII, n. 69, p. 17189, 18 abr. 2007b. 278 Angela Guadagnin (PT/SP). Diário da Câmara dos Deputados, Ano LX, n. 215, p. 59692, 8 dez. 2005.

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3.4.4. Religião Os argumentos religiosos são quase uma unanimidade nos discursos contrários ao aborto. A Igreja Católica é, historicamente, a maior opositora da interrupção da gravidez, mas também há uma grande mobilização das religiões evangélicas279, que elegem quantidade expressiva de parlamentares, que são os principais responsáveis pelos retrocessos dos direitos sexuais e reprodutivos no País, que afetam principalmente as mulheres, apesar de não serem os únicos que colocam dificuldades aos avanços destes últimos. Por não ser um grupo heterogêneo280, os evangélicos possuem posições mais complexas sobre o aborto281. Por exemplo, a Igreja Presbiteriana é contra a interrupção, exceto quando não haja outra forma de garantir a sobrevivência da gestante. A Igreja Metodista é mais flexível, admitindo aborto nos casos de risco à mulher, estupro e inviabilidade de vida extrauterina. A Igreja Universal do Reino de Deus, além de apoiar o aborto nestas situações, tem discurso consonante à interrupção da gestação por razões econômicas. É inquestionável o protagonismo dos católicos no movimento pró-vida, que alia argumentos religiosos a outros discursos. Dentro da doutrina da religião, é possível afirmar concretamente a cronologia da vida, essa se iniciando no momento da fecundação, leia-se, momento em que o espermatozoide consegue vencer o invólucro do óvulo, sendo qualquer ato contra esta vida em formação um assassinato. Logo, as manifestações articulam282 aspectos biológicos, quando asseveram o momentum inicial da vida, como jurídicos, ao presumir que o produto da concepção já pode ser considerado sujeito de direito.

279

A esse respeito, consultar o portal de notícias G1. . Acesso em 7 nov 2016. 280 O Tempo. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 281 MACHADO, Maria das Dores Campos. Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 7, p. 25-54, jan./abr. 2012. 282 FAÚNDES, J. M. M.; DEFAGO, M. A. P. ¿Defensores de la vida? ¿De cuál “vida”? Un análisis genealógico de la noción de “vida” sostenida por la jerarquía católica contra el aborto. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 15, dez. 2013.

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Os católicos nem sempre defenderam a vida com tanto vigor quanto na atualidade283, posto que passagem bíblicas e importantes teólogos, como Tomás de Aquino, defendem a possibilidade de matar uma pessoa em prol da proteção da vida ou da nação. Esse posicionamento mudou por causa dos contextos históricos que estabeleceram a vida como um direito humano inalienável, merecedor de proteção do direito. As intervenções do Vaticano, no fim da II Guerra Mundial, começaram a apresentar o discurso contrário a interrupção da gestação, utilizando o termo “direito à vida” em suas pregações284. Em 1974, a diocese editou a Declaração Sobre o Aborto285, onde afirmou que o recém-nascido tem os mesmos direitos de um homem formado, devendo haver o máximo respeito à vida humana desde a sua geração. Mais recentemente, a Igreja Católica vem aliando a genética moderna em uma tentativa de desenvolver uma verdade impassível de ser questionada. Foucaut286 afirma que o discurso é o meio de propor uma verdade da qual o mundo é significado, supondo verdades que funcionam através de formas disciplinares específicas, no caso, direito e biologia, como forma de integrar o mundo. Apesar de aparentarem serem verdades universais, travestidos de neutralidade, os discursos não passam de imposições de sentidos que se alteram no tempo287. Vale ressaltar que o fato da Igreja utilizar a ciência não significa que instituição acredite nas descobertas científicas, lançando mão destas apenas quando lhe é conveniente, já que a ciência da clínica médica já se posicionou mais de uma vez a favor do aborto em casos em que a religião faz oposição ferrenha.

283

Ibidem. Papa Pio XII. Apostoicae Sedis 43. 1951. Primeira vez que o Termo “Direito a vida é empregado”. Disponível em: . Acesso em 7 nov 2016. 285 Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Sobre aborto provocado. 1974. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 286 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 287 FAÚNDES, J. M. M.; DEFAGO, M. A. P. ¿Defensores de la vida? ¿De cuál “vida”? Un análisis genealógico de la noción de “vida” sostenida por la jerarquía católica contra el aborto. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 15, dez. 2013. p. 25. 284

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Para Gomes288, a máxima de a vida ser um “dom de deus”, transcendental, é a base de qualquer discurso de cunho religioso, que une as alas evangélicas e católicas da sociedade em uma verdadeira guerra contra o aborto. A contenda argumentativa é construída sobre uma sorte de discursos, onde a afirmação que Deus é responsável por conceder e tirar a vida, sendo ela pertencente a ele, sagrada. Pode acontecer de pessoas que se denominam religiosas apresentem posições mais liberais quando problematizam a questão do aborto. É fácil manter uma posição de acusação à mulher e ser contra o aborto, mas propor ações para evitar as consequências do aborto ilegal de forma responsável e prática está em outro nível de debate. 3.4.5. Moralidade: Em defesa da família tradicional brasileira Argumentos morais, que não religiosos, são aqueles que valoram a prática do aborto, sem entrar no âmbito religioso. Um exemplo é a grande maioria da população, bem como seus representantes políticos, que consideram o aborto algo errado e que têm o direito de impor esta opinião à toda sociedade. Os argumentos variam entre considerar a interrupção da gravidez um homicídio de um inocente à um atentado contra a instituição da família. Os argumentos morais se relacionam intimamente ao conservadorismo, não só em relação ao aborto, mas como a manutenção dos valores tradicionais de gênero, família, LGBT, prostituição, drogas etc. Em suma, são uma idealização da sociedade, que não tolera certas práticas, entre elas o aborto289: Estamos numa época em que a moral está indo ao lugar mais profundo do poço da sociedade. Deputado Severino Cavalcanti, queremos dizer a V. Exa. que este assunto deve unir as famílias do Brasil em defesa da vida. Imagine que, ao se oficializar o aborto, a prostituição neste País vai ficar tão descontrolada que marcharemos para um verdadeiro caos, especialmente nos hospitais públicos. Aquelas que desejam participar desta imoralidade pública, que já o praticam, ficarão sabendo que podem contar com a proteção da lei e que, se ficarem grávidas, podem ir ao hospital, fazer sua justificativa e praticar o crime mais hediondo que existe: matar um inocente indefeso.

288

GOMES, Edlaine de Campos. A religião em discurso: a retórica parlamentar sobre o aborto. In: DUARTE, Luiz Fernando dias... [et al.] (Org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: 208 a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. pp. 45-69. 289 Philemon Rodrigues (PTB/MG). Diário da Câmara dos Deputados, Ano LII, n. 194, p. 34332, 28 out. 1997.

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Estes discursos jogam com os temas, relacionando-os mesmo quando não há qualquer nexo entre eles. Os que defendem o aborto, geralmente pertencentes aos grupos da esquerda, são classificados como comunistas, drogados, bandidos etc. Um delírio argumentativo para desclassificar posições concretas e razoáveis em favor do aborto. Os discursos geralmente são altamente eivados de preconceito, como a fala do deputado Costa Ferreira que afirmou que os homens gays são a favor do aborto por serem concorrentes das mulheres e, quanto mais mortes destas, melhor290. Tanto os temas que envolvem os direitos das pessoas LGBT, quanto a prostituição, aborto, política de drogas são consideradas uma afronta à família tradicional brasileira, logo assuntos que se conseguirem concretos avanços supostamente também resultariam na degradação da sociedade em que vivemos. O principal aspecto dos argumentos moralistas leva em consideração a preservação da família tradicional, àquela cujo o núcleo consiste em homem, mulher, casados, e filhos, algo cada vez mais difícil de se observar na realidade da sociedade, tanto no Brasil quanto no mundo. Os papeis da mulher e do homem já estão pré-estabelecidos e qualquer mudança nesta ótica vai de encontro aos interesses da tão defendida família tradicional brasileira291: Aquelas tentativas, por meio de linguagens circunvolutivas e pernósticas, de impor à sociedade brasileira o impedimento de que o menino seja educado como menino e a menina seja educada como menina no seio da família, é uma monstruosidade. Isso não representa de modo algum um direito colocado em qualquer tratado, acordo ou convenção internacional ou na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não existe esse direito, isso é uma distorção que não é patrocinada. As agressões, a desfiguração da família, o casamento homossexual, a união civil entre homossexuais também atenta contra os fundamentos da Constituição da República.

A Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida292, agrega parlamentares de diferentes religiões, e têm como atual presidente o deputado Magno Malta, defensor do projeto do Estatuto da Família293, que supostamente defende a manutenção dos valores tradicionais, que estão “ameaçados” pelas campanhas pelo reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalização do uso de drogas e aborto. 290

Costa Ferreira (PFL/MA). Diário da Câmara dos Deputados, Ano LII, n. 53, p. 08521, 3 abr. 1997. Paes de Lira (PTC/SP). Diário da Câmara dos Deputados, Ano LXV, n. 9, p. 1300, 5 fev. 2010a. 292 Agência Senado. Relançada Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e Apoio à vida. 2015. . Acesso em 7 nov 2016. 293 Carta Capital. O que é o Estatuto da Família? 2015. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 291

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Segundo Vital e Lopes294, o maior motivo para o ingresso dos evangélicos na vida pública é a defesa dos valores institucionais e morais. “Sendo assim, na perspectiva que defendem, eles precisariam se organizar para atuar contra ativistas homossexuais e feministas, bem como contra os defensores da umbanda e do candomblé”. Os discursos que associam o aborto à destruição da família não são exclusivos da classe evangélica, mas a defesa da família tradicional formada por um casal heterossexual aparentemente o é. 3.4.6. Opinião Pública A opinião pública é mais um argumento que se relaciona residualmente à religião, vide o fato da maioria da população brasileira ser de religião cristã, logo, contra o aborto. Entretanto, este cenário se repete em outros países como Portugal e Espanha, onde o a interrupção voluntária da gravidez é uma realidade. Em recente consulta no site do Senado295, mais de 204 mil pessoas votaram a favor da regulação da interrupção voluntária da gravidez296, dentro das 12 primeiras semanas de gestação, pelo Sistema Único de Saúde; enquanto aproximadamente 192 mil votaram contra. A pesquisa mais recente do Datafolha297 apontou 58% dos brasileiros avaliam que mulheres grávidas que tiveram zika não podem optar por interromper a gestação voluntariamente, contra 32% que defendem este direito, 10% não quiseram opinar. A rejeição ao aborto legal se mantém, inclusive, em casos confirmados de microcefalia – neste cenário, 51% foram contra o direito ao aborto, face 39% a favor. O instituto também apontou que a rejeição ao aborto legal nos casos de Zika é maior entre as mulheres, quando 61% se opõem ao direito ao aborto nesses casos, contra 53% dos homens e, mesmo com a 294

VITAL, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Instituto de Estudos da Religião (ISER), 2013. p. 41. 295 SENADO FEDERAL. Consulta Pública. Sug. N15/2014. Disponível em https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=119431. Acesso em 16 nov 2016. 296 SENADO FEDERAL. Proposta de Ideia Legislativa sobre regulamentação do aborto. Dezembro de 2014. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 297 Folha de São Paulo. Maioria dos brasileiros desaprova aborto mesmo com microcefalia. 29 de fevereiro de 2015. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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comprovação de microcefalia, a rejeição ainda é maioria, com 56% das mulheres se opondo à interrupção da gestação, contra 46% dos homens. O Datafolha, contudo, sinalizou uma alteração nestas quantificações quando comparadas à pesquisa feita em 2015: Na ocasião, 67% das pessoas consultadas defendia manter a punição às práticas abortivas de modo geral, contra16% a favor para ampliação do direito ao aborto legal para mais situações e 11% que defendiam a prática do abortamento para qualquer hipótese. É importante ter cautela quanto às considerações acerca da opinião pública. As formas de realização das pesquisas, bem como a questão da influência das religiões nos meios de comunicação, influenciam o resultado. Como muito bem examina Boltanski298, apesar de ser algo oficialmente condenado, o aborto é algo tolerado por baixo dos panos. Nada impede que pessoas que interrompem ou interromperiam a gestação, ou apoiam mulheres quando da sua realização, afirmar que discordam da prática quando indagas à instar as suas opiniões publicamente, tendo em vista o estigma que a palavra carrega. 3.4.7. Uma questão de Saúde Pública Como já amplamente debatido no presente trabalho, o argumento mais utilizado nos discursos que se postam a favor do aborto legal é que o procedimento é uma questão imprescindível de saúde pública. Esse discurso é amplamente levantado pelos movimentos feministas e de direitos humanos, objetivando exaltar que não só a vida do feto deve ser considerada quando feita a análise crítica do aborto, mas também o fato de que ao criminalizar mulheres que pretendem fazer o abortamento não as impedem de realizar a conduta com práticas clandestinas, colocando a própria vida em risco.

298

BOLTANSKI, Luc. As dimensões antropológicas do aborto. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 7, p. 205-245, jan.-abr. 2012.

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Vieira299 aponta três perspectivas relevantes ao pensamento do aborto como um tema de saúde pública: sua dimensão, a taxa de mortalidade e as possibilidades de prevenção. Como já demonstrado, a quantidade de abortos no Brasil pode atingir facilmente a casa do milhão, bem como este é um dos principais motivos de mortalidade materna no país300. Todo esse cenário poderia ser amenizado se o Estado garantisse acesso à informação sobre métodos contraceptivos e educação sexual, pois, além de ser um problema de Saúde Pública é também um problema para a Saúde Pública, já que os custos financeiros, sociais, emocionais e físicos de 250 mil internações hospitalares anuais de mulheres poderiam ser evitados ou ao menos minimizados se a prevenção da gravidez indesejada estivesse acessível a todos. Por ser praticamente realizado clandestinamente, é impossível precisar quantidade e o número de mulheres realmente afetadas pela ilegalidade do aborto, restando apenas estimativas empíricas, que indicam que 20% das mulheres em idade reprodutiva já realizaram aborto; seja com medicamentos obtidos no mercado negro em procedimentos realizados em condições precárias, já que a maioria delas fazem parte das classes mais baixas. Metade das mulheres que abortam procuram socorro por complicações nos hospitais brasileiros301. Este é o argumento que mais se aproxima da realidade do aborto no país, bem como representa a tendência mundial para o tratamento do tema. Apesar do direito à vida ser um direito fundamental, ainda não há consenso científico e legal sobre o início da mesma, restando à mulher vulnerável as arbitrariedades do sistema. Ao proceder com abortos inseguros, as gestantes colocam a própria vida e saúde em risco, logo, se o direito à vida do feto ainda é questionável, o mesmo não pode se dizer de uma conduta considerada como trivial, que mutila e mata mulheres todos os dias, pelo simples fato de o abortamento não ser acessível pelos meios legais e seguros.

299

VIEIRA, Elizabeth Meloni. A questão do aborto no Brasil. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p. 103-4, mar. 2010. 300 Em 2006, o índice de mortalidade materna no Brasil foi de 77,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos, enquanto países como Canadá, França, Inglaterra e Japão têm uma taxa de 10 óbitos por 100 mil nascidos vivos. 301 DINIZ D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét 2014; 22(2):291-298.

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Apesar da indiscutível realidade, quando ela é levada para o debate político, os parlamentares, em sua maioria homens, insistem em fechar os olhos para os números monstruosos, bem como questionar estatísticas, por mais confiáveis que sejam as suas fontes, leia-se organismos oficiais de saúde e direitos humanos, como a ONU, OMS e Anistia Internacional. 3.4.8. O Feminismo e o controle da mulher sobre si O feminismo defende os direitos da liberdade individual da mulher, onde ela possa ter autonomia e controle do próprio corpo, com o consequente direito de interromper a sua gestação à qualquer tempo, voluntariamente. As concepções liberais entendem pela sustentação do aborto como direito inerente à autodeterminação, da soberania do indivíduo – mulher –sobre o seu corpo. A campanha pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é uma pauta constante do movimento feminista em um âmbito global. Assim, desde que as feministas começaram a se organizar em suas reivindicações, o aborto sempre mobilizou uma grande parte do grupo social. Desta forma, agenda pelo acesso aos direitos reprodutivos é considerada de suma importância não só para as mulheres, como para toda a sociedade, pois há um inerente caráter igualitário na pauta que defendem os direitos das mulheres, já que os abortamentos realizados por mulheres com dinheiro, são materialmente opcionais e realizado, em regra, com boas condições; enquanto mulheres pobres se veem encurraladas à métodos desumanos em abortos de necessidade. A liberdade sobre o seu destino é imprescindível à autodeterminação do ser humanos, com os direitos sexuais e reprodutivos relacionando-se diretamente com o acesso à saúde. “O acesso à um serviço de saúde que assegure à informação, educação e meios, tanto para o controle da natalidade, como para a procriação sem riscos à saúde302.

302

PIOVESAN, Flávia e PIROTA, Wilson Ricardo Buquetti. “A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no direito interno” In: PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 167-168

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É intrínseco ao direito à saúde a faculdade de desfrutar de uma vida sexual plena e satisfatória, assim como aceder o direito de reprodução quando for este o plano e não um caso de imposição do Estado, devendo este, ao invés de criminalizar e punir a conduta, alocar recursos e políticas públicas para a conscientização da sociedade sobre os direitos e os métodos de contracepção. A proibição do aborto não traz nenhum reflexo positivo, além da satisfação dos desejos da ala mais conservadora da sociedade, formada basicamente por homens de meia idade, completamente fora do escopo das pessoas que necessitam da legalidade dos abortamentos para concretizarem o seu acesso aos direitos plenos à saúde. Esta coibição protege uma expectativa de direito do feto e marginaliza a vida da mulher, condenando-as à pôr a vida em risco em prol de uma chance de planejar os seus futuros de acordo com as suas expectativas. No Manifesto das 343303, escrito por Simone de Beuvoir, símbolo do movimento feminista, 343 mulheres assinaram em 1971 a confissão de já terem feito aborto, expondo-se voluntariamente à processos criminais, posto que o aborto era proibido na França naquela época. No texto lia-se: Um milhão de mulheres da França têm um aborto por ano. Condenado ao sigilo, eles têm acontecido em condições perigosas, sendo que este procedimento, quando realizado sob supervisão médica, é um dos mais simples. Essas mulheres são veladas em silêncio. Eu declaro que sou uma delas. Eu tive um aborto. Assim como nós exigimos o acesso ao livre controle de natalidade, exigimos a liberdade de ter um aborto.

O manifesto ensejou uma reação em 1973, em que 331 médicos declararam apoio ao aborto, in verbis304: Queremos liberdade de aborto. É inteiramente a decisão da mulher. Rejeitamos qualquer entidade que a obriga a defender-se, perpetua o clima de culpa, e permite abortos subterrâneos para persistir.

303

BEAUVOIR, Simone. Manifeste dês 343. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016. 304 A esse respeito, consultar a declaração de apoio ao aborto. Disponível em . Acesso em 7 nov 2016.

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Tal manifesto pode não servir mais para França, que legalizou o aborto, mas cabe perfeitamente a realidade do Brasil. A necessidade de descriminalizar o aborto no país é essencial para consolidar a Laicidade do Estado, aperfeiçoar a democracia e estimular a promoção dos direitos das mulheres, bem como a posição isonômica dela para com os homens. A realidade das mulheres brasileiras é marcada por gravidezes contrarias às suas aspirações, o que leva gestantes de todas as idades, religiões, cores e classes sociais à fazer uso do perigoso aborto clandestino. O movimento encontra apoio no CFM, principal órgão da classe médica no país, já se posicionou publicamente defendendo a autonomia da mulher para a prática de aborto voluntários até a 12ª semana de gravidez. O parecer da entidade foi enviado para a Comissão do Congresso que cuida da reforma no Código Penal Brasileiro. Um Estado democrático e Laico como o afirma ser o Brasil em seu texto constitucional, deve prezar pela valorização das liberdades individuais em todos os seus âmbitos – devendo-se garantir as condições propícias para qualquer sujeito do direito as condições efetivas para as suas tomadas das suas decisões. Mulheres bem informadas e esclarecidas têm condições de decidir sobre o seu próprio destino, devendo a sociedade respeitar as decisões que esta tome em prol da sua vida. 3.4.9. HC 134.306/RJ: Um novo precedente No julgamento do Habeas Corpus nº 134.306/RJ pelo STF, foi afastada a constitucionalidade da decretação de prisão preventiva pela interrupção da gestação no primeiro trimestre, in verbis305: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são 305

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 134.306/RJ – Distrito Federal. Relator: Ministro Marco Aurélio. Ementa disponibilizada em 29 de novembro de 2016.

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primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.

Passados quatro anos do julgamento da ADPF n. 54, em 29 de novembro de 2016, a Primeira Turma do STF abriu o que pode ser um precedente favorável à descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação no Brasil, quando foram revogadas prisões preventivas de cinco médicos e funcionários flagrados em uma clínica de aborto no Rio de Janeiro. O julgamento do Habeas corpus nº 134.306/RJ306 do caso teve inícioem agosto, quando o Ministro Relator Marco Aurélio revogou a medida preventiva por motivos processuais, considerando inexistir risco às investigações, novos crimes ou possibilidade de fuga na constância da liberdade. Na sessão que ocorreu no final de novembro, porém, o Ministro Luis Roberto Barroso, que havia pedido vista logo depois da concessão da ordem, proferiu voto irretocável 306

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Consulta processual. Disponível em: . Acesso em 29 nov. 2016.

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acrescentando seu entendimento de que, segundo sua interpretação da Constituição Federal, o aborto conduzido até o terceiro mês da gestação não configura crime. Barroso definiu este critério de tempo observando o regramento aplicado em outros países, bem como na violação universal dos direitos das mulheres, in verbis307: É preciso examinar a própria constitucionalidade do tipo penal imputado aos pacientes e corréus, já que a existência do crime é pressuposto para a decretação preventiva. Para ser compatível com a Constituição, a criminalização de determinada conduta exige que esteja em jogo a proteção de um bem jurídico relevante, que o comportamento incriminado não constitua exercício legítimo de direito fundamental e que haja proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal. No caso aqui analisado. O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído no primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. O aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que se pretende é que ele seja raro e seguro. É dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis na dignidade humana. A mulher que se encontre diante desta decisão trágica – ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente. Coerentemente, se a conduta da mulher é legítima, não há sentido em incriminar o profissional de saúde que a viabiliza. Torne-se importante aqui uma breve anotação sobre o status jurídico do embrião durante a fase inicial da gestação. Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um lado os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno. Não há solução jurídica para a sua controvérsia. Ela dependerá de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nessa fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe. Essa premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que se seguem. Violação à autonomia da mulher. A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana. Todo indivíduo – homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm direito de interferir. Quando se trata de uma mulher, um aspecto central da sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões à ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça, um juiz de direito – impor à uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a 307

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. BARROSO, Luis Roberto. Voto-vista no HC nº 134.306/RJ – Distrito Federal. Proferido em 29 nov 2016. Disponível em . Acesso em 29 nov. 2016.

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termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida? A criminalização afeta a integridade física e psíquica da mulher. A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma benção transmuda-se em tormento quando indesejada. A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Ter um filho por imposição do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica da mulher. A criminalização viola, também, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que incluem o direito de toda mulher decidir se e quando deseja ter filhos, sem discriminação, coerção e violência, bem como de obter maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vida ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque cabe à mulher o ônus da gravidez, sai vontade e seus direitos devem ser protegidos com mais intensidade. O tratamento dado ao tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada. E mais: prejudicada sua saúde reprodutiva, aumentando índices de mortalidade materna e outras complicações relacionas à falta de acesso à assistência de saúde adequada. A nova repressiva traduz-se, ainda, em quebra de igualdade de gênero. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como respeito à diferença. A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade econômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas de identidade feminina e do seu papel social. Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres. Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não. A propósito, como bem observou o Ministro Carlos Ayres Britto, valendo-se de frase histórica do movimento feminista, “se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta”. A tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito. A criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis. No próximo capítulo, procede-se, de todo modo, a um teste de proporcionalidade, para demonstrar que, também por esta linha argumentativa, a criminalização não é compatível com a Constituição. Na verdade, o que a criminalização de fato afeta é a quantidade de abortos seguros e, consequentemente, o número de mulheres que têm complicações de saúde ou que morrem devido à realização do procedimento. Trata-se de um grave problema de saúde pública, oficialmente reconhecido. Sem contar que há dificuldade em conferir efetividade à proibição, na medida em que se difundiu o uso de medicamentos para a interrupção da gestação, consumidos privadamente, sem que o Poder Público tenha meios para tomar conhecimento e impedir a sua realização. Na prática, portanto, a criminalização do aborto é ineficaz para proteger o direito à vida do feto. Do ponto de vista penal, ela constitui apenas uma reprovação “simbólica”

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da conduta. Mas, do ponto de vista médico, como assinalado, há um efeito perverso sobre as mulheres pobres, privadas de assistência. Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro. Em temas moralmente decisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um. Portanto, a criminalização do aborto não é capaz de evitar a interrupção da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para a tutela da vida do feto. É preciso reconhecer, como fez o Tribunal Federal Alemão, que, considerando “o sigilo relativo ao nascituro, sua impotência e sua dependência e ligação única com a mãe, as chances do Estado de protegê-lo serão maiores se trabalhar em conjunto com a mãe”, e não tratando a mulher que deseja abortar como uma criminosa. Em relação à necessidade, é preciso verificar se há meio alternativo à criminalização que proteja igualmente o direito à vida do nascituro, mas que produza menor restrição aos direitos das mulheres. Como visto, a criminalização do aborto viola a autonomia, a integridade física e psíquica e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, e produz impacto discriminatório sobre as mulheres pobres. [...] ainda que se pudesse atribuir uma mínima eficácia ao uso do direito penal como forma de evitar a interrupção da gestação, deve-se reconhecer que há outros instrumentos que são eficazes à proteção dos direitos do feto e, simultaneamente, menos lesivas aos direitos da mulher. Uma política alternativa à criminalização implementada com sucesso em diversos países desenvolvidos do mundo é a descriminalização do aborto em seu estágio inicial (em regra, no primeiro trimestre), desde que se cumpram alguns requisitos procedimentais que permitam que a gestante tome uma decisão refletida. É preciso reconhecer, porém, que o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação avança e que o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto. Sopesando-se os custos e benefícios da criminalização, tornase evidente a ilegitimidade constitucional da tipificação penal da interrupção voluntária da gestação, por violar os direitos fundamentais das mulheres e gerar custos sociais (e.g., problema de saúde pública e mortes) muito superiores aos benefícios da criminalização”. (Grifou-se)

Acompanharam o entendimento de Barroso, os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio, que não manifestaram seus respectivos posicionamentos acerca da descriminalização do aborto, apesar de concordarem com a concessão de ordem à liberdade dos médicos308. A decisão não é vinculante, mas pode ser considera um passo importante rumo à relativização da tipificação do aborto no Código Penal. Como era de se esperar, a reação das bancadas conservadoras foram quase imediatas à publicização do entendimento da Colenda Turma. O presidente da Câmara dos Deputados afirmou em plenário, durante a madrugada subsequente, que irá instalar comissão especial 308

JUNIOR, Reynaldo Turollo. Aborto até o terceiro mês não é crime, decide turma do Supremo. Folha de São Paulo. 29 nov 2016. Disponível em . Acesso em 30 nov 2016

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para rever a decisão tomada pelo STF – Rodrigo Maia afirmou que com essa posição pretende policiar um eventual embaraço da separação dos poderes, evitando que a Corte Suprema legisle no lugar do Congresso309.

309

BRAGON, Ranier. Maia instala comissão para rever decisão do Supremo sobre aborto. Folha de São Paulo. 30 nov 2016. Disponível em . Acesso em 30 nov 2016.

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CONCLUSÃO

Milhares de abortos ilegais são conduzidos anualmente no Brasil, apesar da tipificação da conduta no Código Penal, comprovando-se um verdadeiro factoide. A criminalização do aborto, além de desproteger as mulheres, privando-as dos seus direitos mais fundamentais – como a autodeterminação e o acesso à saúde de qualidade – aumenta ainda mais o abismo que existe na sociedade brasileira. Enquanto as mulheres que possuem condições abortam em clínicas com estruturas, as mais pobres submetem-se a qualquer tipo de circunstâncias, muitas vezes desumanas, que se desdobram em consequências graves que levam muito à morte. A criminalização da prática abortiva não inibe a condita, perpetuando a desigualdade social. As mortes consequentes dos abortos clandestinos ainda não se provaram um fato relevante o suficiente para sustentar uma mudança significativa na legislação penal, que data dos anos 40, apesar de, como demonstrada em toda extensão deste trabalho, a discussão ser uma constante, em todos os setores da sociedade. Garantir a interrupção das gestações de forma segura às mulheres que não desejam a gravidez é uma forma de afirmar a autonomia destas, assim como a suas liberdades e status de cidadã. Se todos os indivíduos, à princípio, tem o direito sobre às rédeas dos seus destinos, negar isso às mulheres é assumir que elas possuem um menor valor humano. Muitos negam o direito ao aborto por imputarem às mulheres a responsabilidades de contracepção. Por todo o exposto neste trabalho, se faz absolutamente necessário buscar um meio de começar a tratar as consequências do aborto clandestino e ilegal no Brasil com seriedade e menos hipocrisia, evitando-se fechar os olhos para a realidade, onde milhares morrem todos os anos, ou submetem-se à procedimentos inseguros, provendo conscientização e esclarecimento, auferido a elas o livre exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como à autodeterminação.

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Se faz mister avançar na concretização do debate da interrupção voluntária da gravidez, se realizada até a 12ª semana de gestação, como fazem a maioria dos países do mundo e, como orientam organizações fidedignas como as Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde, Anistia Internacional, Conselho Federal de Medicina e etc. Não só a descriminalização da conduta, conjuntamente à regulamentação e a implementação de políticas multidisciplinares, podem contribuir para o enfrentamento deste problema real de uma forma mais eficaz e, como os números de outros países confirmam empiricamente, não implicaria no número de abortos. Já ficou claro que não é a punição que impede a realização de abortos, apenas joga sobre as mulheres o peso da culpa, fazendo-as procurar por opções perigosas e sem nenhuma garantia, tal como, por reflexos, fomentam outros crimes reflexos como lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. Dentre as medidas que podem se provar um divisor de águas nesta triste página da história das mulheres no Brasil são: i) implementação de políticas de educação sexual; ii) informação e conscientização acerca do planejamento familiar; iii) políticas para a redução da desigualdades sociais, consequentemente de classe e gênero, permitindo que as mulheres possam se firmar economicamente, possibilitando-lhes uma janela de oportunidades e uma vida digna; entre outras que foram levantadas no presente trabalho. O debate deve ser irrestrito e incansável, não apenas focado na dicotomia a favor e contra o aborto, mas na consubstancialização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, refletindo diretamente na luta pela redução da mortalidade materna e no desenvolvimento de leis que consolidem a promessa de estado laico e democrático que vem sendo feita desde a reabertura política no final dos anos 80. As leis devem ser desenvolvidas para ampliar os direitos do cidadão, para que estes possam utilizá-los de acordo com as suas próprias convicções, respeitando a liberdade individual, democracia e os valores que a Constituição determina.

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