A INEFICÁCIA DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: uma análise do feminismo e da Lei 11.340/06

May 30, 2017 | Autor: L. R. Guimarães | Categoria: Feminismo, Criminología Crítica, Lei 11.340, Lei Maria da Penha
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE DIREITO LETHÍCIA REIS DE GUIMARÃES

A INEFICÁCIA DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: uma análise do feminismo e da Lei 11.340/06

Juiz de Fora 2016

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SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................................10 1 Revisitando teorias: Novas teorias para novos problemas ou velhas teorias para velhos problemas?................................................................................................................................12 1.1 A seletividade do sistema penal: um campo em disputa?.....................................................14 1.2 É o direito penal o caminho para os movimentos feministas?..............................................16 2 O Campo Jurídico em Disputa pelo Movimento Feminista Brasileiro;..................................21 3 A Lei Maria da Penha..............................................................................................................26 3.1. Histórico da Lei 11.340/06: instrumento de combate à violência doméstica pleiteado pelo movimento feminista.................................................................................................................26 3.2. O princípio constitucional da igualdade e a hipossuficiência do gênero feminino: discussões sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha....................................................................30 3.3 A utilização do direito penal como solução para a violência doméstica..............................34 4 Conclusão............................................................................................................ ..................38 5 Referências BIbliográicas.......................................................................................................40

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Introdução

A supressão da desigualdade de gênero, fruto da relação social histórica de dominação estabelecida entre homens e mulheres, é um passo importante para a igualdade material entre as pessoas, princípio fundante da Constituição brasileira. A igualdade de direito entre os gêneros é, também, um dos principais objetivos do movimento feminista e, nesse sentido, a utilização de um ordenamento jurídico que positivou essa pretensão parece ser uma excelente estratégia para sua efetivação. Dessa forma, o movimento feminista brasileiro – principalmente a partir do período de redemocratização do final do século XX – se propôs a fazer do Direito uma estratégia a ser utilizada para a emancipação do machismo. O contexto mundial no qual surge a redemocratização brasileira, temos a configuração do neoliberalismo, trouxe consigo o esvaziamento das políticas prestacionais do Estado e um crescimento vertiginoso do uso do direito penal, ou, na expressão consagrada por Löic Wacquant (1999, p.88), hipertrofia do direito penal. Não imunes a este contexto, os movimentos sociais de esquerda e, dentre eles, o feminismo, focaram suas atuações na crença de um uso alternativo do direito (BATISTA, 2008, p. 6), visando, a partir dos exemplos de aquisição de garantias do direito de trabalho, a criar condições de igualdade entre oprimidos e opressores. Dessa forma, pretende-se discutir nesse trabalho como o movimento feminista, num caminho que é comum à maioria dos movimentos sociais de esquerda da atualidade como aponta Maria Lúcia Karam (1996), deixa-se levar pela ótica punitivista que o Estado neoliberal impõe à sociedade. Nesse sentido, será analisada a construção da Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, que se diferencia da elaboração comum das leis brasileiras por ser resultado da convergência de setores do movimento feminista para buscar, através do direito penal, a erradicação da violência doméstica. Busca-se então, através de revisões bibliográfica e jurisprudencial, analisar o papel do sistema penal no combate à violência doméstica, sobretudo como instrumento de ocultação do conflito social, uma vez que reduz este conflito a casos pontuais de agressão doméstica. Para tanto, analisar-se-á o histórico de consolidação da Lei 11.340, que, como observado, diferencia-se do processo legislativo tradicional, bem como as discussões concernentes a ela no Supremo Tribunal Federal – através das ações que discutem a constitucionalidade da mesma – e os anseios do movimento feminista ao buscarem a efetividade do dispositivo.

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No âmbito teórico, será utilizada a definição de campo de Bourdieu (1989, p. 12), a saber, microcosmos da luta social entre as classes o qual, através de disputas internas, estabelece um código de valores – que pode variar de acordo com as lutas existentes no campo naquele momento - repassado àqueles que não estão inseridos no campo, como forma de perpetuação do poder simbólico. A partir deste conceito, compreender-se-á os processos de disputa dentro do campo jurídico que foram necessários para o reconhecimento da violência doméstica como tipo penal, bem como se existe possibilidade de inserção real das pautas feministas neste campo. Diante disso, serão apontadas as contradições desse discurso que aproxima movimentos de libertação à criminalização da pobreza e à manutenção da ordem social vigente através da punição, rompendo com conquistas importantes do Estado Democrático de Direito e enxergando as mulheres apenas como vítimas, não como sujeitos ativos de sua libertação.

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1 Revisitando teorias: Novas teorias para novos problemas ou velhas teorias para velhos problemas?

A partir da análise sociológica apresentada por Pierre Bourdieu (1989, p. 212), o campo jurídico “é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito”. Essa disputa constante gera um corpo de sujeitos dotados de competência social e técnica para interpretar um corpus de textos, consagrando uma leitura considerada legítima e justa do mundo social. A divisão do trabalho no campo jurídico envolve uma “concorrência estruturalmente regulada entre os agentes e as instituições envolvidas no campo” (BOURDIEU, 1989, p. 212). Isso significa que os diversos atores do campo jurídico, ou, na expressão do autor, intérpretes autorizados dos textos jurídicos, concorrem entre si em busca de prevalecer a interpretação de cada, vez que o campo jurídico não permite que existam leituras conflitantes sobre certo assunto. Assim, o campo jurídico, para Bourdieu: É pois um campo que, pelo menos em período de equilíbrio tende a funcionar como um aparelho na medida em que a coesão dos habitus espontaneamente orquestrados dos intérpretes é aumentada pela disciplina de um corpo hierarquizado o qual põe em prática procedimentos codificados de resolução de conflitos entre os profissionais da resolução regulada dos conflitos. (BOURDIEU, 1989, p. 213)

Por possuir uma forma específica de funcionamento, possuindo, inclusive, uma linguagem própria – que mistura elementos da linguagem comum e termos a ela estranhos – o campo jurídico propicia um imaginário de ser independente da realidade social no qual é inserido. Segundo Bourdieu, a retórica jurídica, constituída de elementos que invocam a autonomia, a neutralidade e a universalidade das normas jurídicas reflete, apesar de transmitir tal distanciamento de seu exterior, uma racionalização das ideologias socialmente dominantes. Nesse sentido, o funcionamento do campo jurídico não é, como pode parecer, autossuficiente e autônomo em relação ao seu exterior. Através do “conflito permanente entre as pretensões concorrentes ao monopólio do exercício legítimo da competência jurídica” (BOURDIEU, 1989, p. 220), os membros do campo jurídico, interligados por meio de uma cadeia de legitimidade, buscam legitimar e regular as relações sociais externas ao campo. Isso acontece – consideradas as especificidades das tradições jurídicas (common law e civil law) – por meio da complementaridade entre os práticos, que possuem minimamente uma

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liberdade maior ao analisar o conjunto de normas jurídicas através de casos concretos, e os teóricos, que asseguram a coerência do sistema por meio da formalização dos princípios e das regras inseridas nas situações concretas. Sendo assim, para Bourdieu: Pertence aos juristas pelo menos na tradição dita romano-germânica, não o descrever das práticas existentes ou das condições de aplicação prática das regras declaradas conformes, mas sim o pôr-em-forma dos princípios e das regras envolvidas nessas práticas, elaborando um corpo sistemático de regras assentes em princípios racionais e destinado a ter uma aplicação universal. Participando ao mesmo tempo de um modo de pensamento teológico – pois procuram a revelação do justo na letra da lei, e do modo de pensamento lógico por pretendem pôr em prática o método dedutivo para produzirem as aplicações da lei ao caso particular -, eles desejam criar uma “ciência nomológica” que enuncie o dever-ser cientificamente; como se quisessem reunir os dois sentidos separados da ideia de “lei natural”, eles praticam uma exegese que tem por fim racionalizar o direito positivo por meio de trabalho de controle lógico necessário para garantir a coerência do corpo jurídico e para deduzir os textos e das suas combinações consequências não previstas, preenchendo assim as famosas “lacunas do direito”. (BOURDIEU, 1989, p. 221)

Sendo o funcionamento do campo fundado na luta simbólica entre seus atores pela qual se estabelece uma interpretação dominante da norma jurídica, a neutralidade e a universalidade dos discursos jurídicos – expressas sobretudo na linguagem própria que ele possui – geram uma fronteira muito evidente entre os membros do campo jurídico e os não-intérpretes do direito, entre os profanos e os profissionais. Assim, as partes conflitantes, ao adentrarem no campo jurídico sem dele efetivamente fazer parte, isto é, não sendo intérpretes do direito como os procuradores e juízes, perdem a “relação de apropriação direta e imediata da sua própria causa” (BOURDIEU, 1989, p. 229) ao procurar nele uma força mediadora e reconhecer na decisão judicial uma verdade que determina uma solução socialmente reconhecida para o litígio. Dessa forma, o campo jurídico “implica, em muitos casos, o reconhecimento e uma definição das formas de reivindicação ou de luta que privilegia lutas individuais (e legais) em detrimento de outras formas de lutas” (BOURDIEU, p.229), ou seja: O campo jurídico reduz aqueles que, ao aceitarem entrar nele, renunciam tacitamente a gerir eles próprios o seu conflito (pelo recurso à força ou a um árbitro não oficial ou pela procura direta de uma solução amigável), ao estado de clientes dos profissionais; ele constitui os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais e transforma em capital a competência que garante o domínio dos meios e recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo. (BOURDIEU, 1989, p. 233)

Percebe-se assim que o campo jurídico atribui um poder específico a seus profissionais, de forma que, para alcançar a verdade legitimada através da judicialização, os profanos devem

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consumir os serviços jurídicos que lhe são prestados, reduzindo a realidade do conflito a uma definição jurídica e alienando-os das suas próprias lutas. Assim, percebe-se na obra de Bourdieu um alerta para o fato de que não apenas a retórica jurídica sedimenta um território hegemônico na medida em que impõe um limite ao poder interpretativo, como esse exercício de dominação que configura o próprio campo, também se efetiva na a partir do que Bourdieu denomina o poder da forma e da nomeação. Os rituais do campo jurídico acabam por conformar os profissionais e profanos, que diante desse enquadramento gestam a legitimação do conteúdo hegemônico do campo. Assim, como nos alerta Bourdieu, o magistrado possui um poder de nomeação que lhe permite construir uma narrativa que será compreendida como “a verdadeira”, no mesmo sentido, a imposição de formas como mecanismo de intervenção para dentro do campo também se efetiva a partir de um entendimento de que se tratam de “normas técnicas” destituídas de valor ou subjetividade. Essas formas jurídicas entendidas como neutras, por serem técnicas de intervenção objetivas, legitimam a relação processual. Para o campo penal trata-se de uma legitimação perversa pois o simples fato de haver a instauração do processo para que haja um reconhecimento da veracidade narrativa das forças de segurança no interior da instrução criminal. A partir dessa noção de campo, há que se perguntar se tal território de fato é capaz de gestar possibilidade emancipatórias, reivindicação clássica dos movimentos sociais pela própria característica do campo penal e sua seletividade punitiva.

1.1 A seletividade do sistema penal: um campo em disputa?

Nesse contexto de configuração do campo jurídico, para estabelecer uma estrutura de poder dentro de uma sociedade marcada pelos conflitos entre classes, não se pode ignorar o papel que os diferentes ramos do direito assumem para a formação do Estado capitalista (BARATTA, 2011, p. 164). Assim, o direito penal carrega consigo desde a revolução industrial inglesa, isto é, desde a formação da classe trabalhadora como a conhecemos atualmente, a “ideologia da defesa social” (BARATTA, 2011, p. 41). Dessa forma, criou-se um aparato ideológico para justificar – tanto para os profissionais do direito quanto para a população em geral – a criminalização de

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condutas, uma vez que a ciência e a codificação passaram a ser elementos essenciais da justiça criminal. Dessa forma, a partir da racionalização da punição trazida pelo conceito de defesa social constituíram-se os princípios do direito penal moderno, os quais servem de base para a atuação repressora do Estado em defesa daquilo que é justo. Nesse sentido, o Estado se consolida como força legítima para reprimir a criminalidade, sendo esta definida de acordo com o que é contrário aos valores e às normas sociais estabelecidas. Além disso, da defesa social decorre o princípio do bem e do mal, de acordo com o qual o delito é uma expressão do mal que assombra a sociedade, e esta – e os valores a ela ligados – é o bem que deve ser protegido. Sendo assim, o delito é produto de uma atitude socialmente reprovável assumida pelo criminoso. Diante disso, com a ideologia da defesa social passou-se a defender que a pena, além da sua função negativa, exerce também o papel de prevenção geral, sendo uma “justa e adequada contra motivação ao comportamento criminoso” (BARATTA, 2011, p. 42), ressocializando o delinquente. Como consequência deste princípio, criou-se também a noção de que a lei penal é aplicada da mesma forma para qualquer agente inserido na sociedade, já que a criminalidade é resultado das condutas de uma minoria desviante dos valores sociais. Assim sendo, os interesses protegidos pelo direito penal são caros a toda a população e, então, sua ofensa é um perigo para a conservação da sociedade e, portanto, deve ser punida. Contudo, conforme demonstra Passetti (2004, p. 21), o direito penal não é capaz de atingir a todos. Assim, a criminalização de condutas e, especialmente, a atribuição das penas é seletiva e atinge especialmente as camadas mais vulneráveis da sociedade – vulnerabilidade esta decorrente de condições socioeconômicas, racial ou de gênero. Nesse sentido, salienta o autor:

A prevenção geral é sempre seletiva. Os perigosos são tidos como anormais, subversivos, assaltantes, pobres, etnias diversas, pessoas, grupos ou classes tidos como intoleráveis. No caso da tolerante cultura neoliberal – que se afirmou desde os anos 80 como reação às liberações atingidas nas duas décadas anteriores – proliferaram direitos, recomendações de condutas, controles simultâneos, miséria disseminada, comandados por um Estado que se diz ausente do mercado e que amplia sua atuação penalizadora e policial. (PASSETTI, 2004, p 21-22, grifo do autor)

Essa seletividade do direito penal, principalmente observada nos governos neoliberais e nos pós-neoliberais é observada com mais profundidade por Wacquant (1999, p. 89). Segundo o autor, além de o direito penal atingir principalmente as camadas mais vulneráveis da

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sociedade, o aumento de seu uso menos tem relação com o aumento do número de crimes do que com a necessidade de controle social sobre essas populações. Através de pesquisas empíricas realizadas nos Estados Unidos e na Europa, o autor pôde observar que, embora a taxa de crimes permanecesse a mesma, a diminuição dos empregos formais e o aumento da imigração foram fatores estatísticas muito parecidas com o aumento do encarceramento. Ressalta o autor, ainda, que esse modelo punitivista foi exportado para os países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil. Nesse sentido, ao tratar do sistema penal deve-se considerar não só as instituições legalmente relacionadas ao processo penal, mas os clamores punitivistas exaltados pela mídia e pela população, especialmente pelas classes mais abastadas, como demonstram em estudos focados na realidade brasileira Malagutti Batista (2011, p. 5) e Menegat (2012, p. 72). Portanto, embora o direito penal se apresente como imparcial, através de estudos empíricos se comprova justamente o contrário: a função essencial do direito penal é manter a ordem social que é apresentada à sociedade. Sendo assim, como observa Baratta (2011, p. 162), assim como ocorre nos outros ramos do direito burguês, a aplicação da lei penal não é da mesma forma para todos, sendo o status de criminoso distribuído de forma desigual entre os indivíduos. Além disso, observa o autor que: (...) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas ao constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. (BARATTA, 2001, p. 162)

Ante a isso, percebe-se que, como observa Wacquant (1999, p. 93), o crescimento do direito penal necessariamente atinge apenas as camadas sociais consideradas como criminosas, indesejáveis, sendo inviável à estrutura do sistema penal a penalização de outros grupos que não os menos favorecidos.

1.2 É o direito penal o caminho para os movimentos feministas?

Define-se feminismo como o movimento que luta pela igualdade entre homens e mulheres. Para fazer tal afirmação, contudo, é necessário definir todos os elementos que a cercam. Em outras palavras, deve-se entender os conceitos de homem e de mulher, bem como conhecer os motivos pelos quais existe tal desigualdade entre os dois.

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Assim, é preciso inicialmente construir uma definição de gênero. De forma simplificada, essa palavra se refere à organização social que delimita o masculino, o feminino e o neutro. Este conceito se diferencia do sexo por não se referir apenas às características biológicas que diferenciam homens e mulheres no nascimento, mas comportar também todas as regras sob as quais as pessoas se relacionam socialmente a partir desse conjunto de características. É nesse sentido que escreve Simone de Beauvoir (1967, p. 9): Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum direito biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.

A definição de gênero, contudo, não foi sempre a mesma ao decorrer da história. A partir da abordagem que se pretendia dar às diferenças entre homens e mulheres essa definição abarcava mais ou menos variáveis, como observa Joan Scott em seu artigo “Gênero: uma categoria útil para análise histórica” (1989, p.8): Os (as) historiadores (as) feministas utilizaram toda uma série de abordagens na análise do gênero, mas estas podem ser resumidas em três posições teóricas. A primeira, um esforço inteiramente feminista que tenta explicar as origens do patriarcado1. A segunda se situa no seio de uma tradição marxista e procura um compromisso com as críticas feministas. A terceira, fundamentalmente dividida entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto, inspira-se nas várias escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito.

Nesse sentido, de acordo com o momento histórico e a análise pretendida pelo campo feminista, o conceito de gênero possui características diversas. Aqui trabalharemos com o conceito enfrentado pela autora: Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é 1

O patriarcado foi um conceito útil na medida em que procurou historicizar a dominação masculina, buscando uma origem para a opressão, no tempo e no espaço, a partir da qual se poderia desnaturalizar as desigualdades. Nesse sentido, o conceito foi particularmente útil para a mobilização política, por ser uma forma sucinta de descrever os nítidos problemas que interessavam (e interessam) ao feminismo: a insistente dominação das mulheres pelos homens, nas mais diferentes épocas, lugares e esferas a vida social. Entretanto, o patriarcado também trouxe enormes dificuldades, as quais foram sendo apontadas ao longo das últimas décadas no bojo dos estudos de gênero. Esses problemas giram em torno do caráter universalizante, dando o mesmo nome para as mais diversas formas de opressão, e a-histórico, inscrevendo no corpo a dominação. Tem-se uma contradição: da mesma forma que o patriarcado procurava historicizar a opressão, ele o fazia encerrando-a no corpo. Essa linha de pensamento levou a uma compreensão engessada e rígida sobre a relação entre homens e mulheres, não conseguindo sair de um modelo bipolar de gênero. Se não existe nada fora a “inerente” desigualdade entre os sexos, estamos diante de um argumento tautológico, pois “a fonte das relações desiguais entre os sexos é, afinal de contas, as relações desiguais entre os sexos, conforme critica Joan Scott.

18 um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1989, p. 21, grifo da autora)

Uma vez compreendido o significado de gênero através dessas considerações, é perceptível que o campo feminista não se desenvolveu de forma linear, possuindo sempre as mesmas características. Nesse sentido, Pinto (apud MATOS, 2010, p. 68-69), focando sua análise no desenvolvimento do feminismo no Brasil, percebe que houve três grandes momentos – ou três grandes ondas – no feminismo brasileiro. A primeira onda feminista brasileira se desenvolveu na passagem do século XIX para o século XX, culminando na conquista do voto feminino pela Constituição Brasileira de 1932. Essas mulheres, organizadas principalmente em prol dos direitos políticos, eram em sua maioria de classe alta, filhas de políticos ou que se formaram academicamente na Europa e trouxeram consigo as discussões sobre igualdade dos sexos quando retornaram ao país. O segundo momento de destaque do feminismo no Brasil remete ao período da Ditadura Militar (1965 a 1985). Assim como ocorreu em grande parte da América Latina, as mulheres brasileiras se organizaram em oposição ao regime ditatorial. Contudo, alinhando-se à conjuntura ocidental da época, essa luta foi acrescida das agendas contra a hegemonia masculina, contra a violência sexual e pelo direito a exercer o prazer. É na transição para o regime democrático e para os primeiros anos da democracia que ocorre a terceira onda feminista no Brasil, assim designada por Pinto (apud MATOS, 2010, p. 68-69). Nesse momento, os movimentos sociais brasileiros – e, dentre eles, o movimento feminista – criam novas concepções de participação política, assumindo novas abordagens de disputa da sociedade: 1) tentativas de reformas nas instituições consideradas democráticas (com a criação dos Conselhos da Condição Feminina, das Delegacias de Atendimento Especializado às Mulheres, por exemplo); 2) tentativas de reforma do Estado (com a forte participação das mulheres organizadas no processo da Assembleia Constituinte de 1988, por exemplo); 3) busca de uma reconfiguração do espaço público, por meio da forte participação de “novas” articulações dos movimentos de mulheres (mulheres negras, lésbicas, indígenas, rurais etc.); 4) uma posterior especialização e profissionalização do movimento. Este terceiro momento marca o início de uma aproximação cautelosamente construída junto ao Estado. (MATOS, 2010, p. 69)

Vale ressaltar que, neste momento, o feminismo brasileiro passa a discutir as relações intragênero. Isso significa que, na organização das mulheres feministas, outras perspectivas são consideradas ao analisar as relações de organização de poder na sociedade. São elas a classe, a

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raça, a orientação sexual e a identidade de gênero. Assim, essa abordagem nos remete ao conceito de interseccionalidade. Introduzida por Kimberle Crenshaw na década de 1980 a partir de uma situação pessoal no contexto da segregação racial nos Estados Unidos, a discriminação interseccional se refere à sobreposição de formas diversas de discriminação. Dessa forma, as questões raciais e as questões de gênero não deveriam ser consideradas separadamente (CRENSHAW, 2002, p. 8), vez que afetam de forma diferente as mulheres de acordo com a sua raça, bem como as pessoas negras de acordo com o seu gênero. Marlise Matos (2010, p. 69) defende existir, ainda, uma quarta onda de desenvolvimento do feminismo. Essa onda se reflete numa concepção transnacional e descolonizada da opressão de gênero, protagonizada pelo campo feminista da América Latina “de caráter anti ou pósneoliberal” (MATOS, 2010, p. 84). Nesse sentido, a concepção de interseccionalidade, herança do feminismo negro norte-americano, seria acrescida das noções de terceiro mundo/Sul global e das características pessoais de orientação sexual e de identidade de gênero. Segundo a autora, esta quarta fase se demonstra (considerando que ela se estende dos anos 2000 aos dias atuais) por meio: 1) da institucionalização das demandas das mulheres e do feminismo, por intermédio da entrada (parcial) delas no âmbito do Poder Executivo e Legislativo destes países; 2) da criação de órgãos executivos de gestão de políticas públicas especialmente no âmbito federal (mas também, no Brasil, de amplitude estadual e municipal); 3) da consolidação no processo de institucionalização das ONGs e das redes feministas e, em especial, sob a influência e a capacidade de articulação e financiamento do feminismo transnacional e da agenda internacional de instituições globais e regionais (United Nations Development Fund for Women, United Nations Children’s Fund, Organização Internacional do Trabalho, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos de la Mujer, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, entre outras) referidas aos direitos das mulheres; 4) uma nova moldura teórica (frame) para a atuação do feminismo: trans ou pósnacional, em que são identificadas uma luta por radicalização anticapitalista e uma luta radicalizada pelo encontro de feminismos e outros movimentos sociais no âmbito das articulações globais de países na moldura Sul-Sul. (MATOS, 2010, p. 69)

Essa configuração do feminismo, no Brasil, segundo Matos, é resultado de uma aproximação do feminismo acadêmico e dos movimentos de mulheres. Estes movimentos são organizações femininas, inicialmente de combate à ditadura militar e posteriormente de

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desenvolvimento da comunidade local (associações de bairros, por exemplo), não necessariamente feministas, mas que se articulam em defesa das suas pautas específicas.2 Como pode ser observado, o movimento feminista busca a igualdade entre os por diversos meios e, em suas configurações brasileiras atuais, a disputa de agendas feministas no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são um grande espaço de atuação das feministas, especialmente quando consideramos a aproximação das mulheres com o Estado.

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Possuindo uma grande importância nas periferias brasileiras, o movimento de mulheres pode ser exemplificado pela organização “Mães de Maio”, que reúne mães e familiares de jovens (negros e periféricos em sua maioria) executados em maio de 2006 contra a violência estatal.

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2 O Campo Jurídico em Disputa pelo Movimento Feminista Brasileiro

Como observado, a luta pelo monopólio do discurso no campo jurídico é feita, pelo menos enquanto o campo está em equilíbrio, apenas pelos profissionais inseridos nele. Contudo, em virtude de alterações na dinâmica de luta da sociedade – externas, portanto, a ele – o campo jurídico pode reformular a sua leitura sobre determinado assunto, adequando-a aos novos valores sociais. Nesse sentido, deve-se considerar a importância dos movimentos sociais – que disputam, cada um em seu locus específico, a sociedade – para formar a pressão externa ao campo jurídico, por vezes influenciando diretamente na interpretação jurídica dos fatos sociais. Em se tratando do movimento feminista, essa influência é evidente, bastando observar a mudança no tratamento da mulher pelo ordenamento jurídico brasileiro para se dimensionar os efeitos de suas lutas no campo jurídico. No Código Criminal do Império, os crimes de estupro (arts. 219 a 225), de rapto (arts. 226 a 228), ambos possuindo como sujeito passivo necessário a mulher, estavam previstos na sua Parte III, que tratava “dos crimes contra a segurança da honra”. Essa configuração de os crimes sexuais enquanto ofensa à honra se manteve até 2009, quando a Lei 12.015 modificou o Título VI do Código Penal atual de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”. Esta alteração que apresentou importantes mudanças nos crimes sexuais – já que a partir de então passaram ter como sujeito passivo não só mulheres, mas qualquer pessoa – foi resultado de disputas de diversos movimentos sociais, como os de combate à opressão LGBTTTI e ao tráfico internacional de pessoas. Surge no código do Império também a figura da mulher honesta, cujo estupro é mais condenável socialmente do que das prostitutas – o que influencia diretamente nas penas atribuídas – e a possibilidade de qualquer pena ser substituída pelo casamento com a ofendida – vez que o casamento, ao salvar a honra da vítima, desconstituiria o crime. A expressão “mulher honesta” somente foi retirada por completo do ordenamento brasileiro com a alteração proposta pela Lei 11.105/05 no Código Penal. A disputa pela extinção dessa figura ocorreu, de fato, pelo movimento feminista e – embora seu reconhecimento não seja incomum nos dias atuais – perdeu seu sentido legal com a promulgação da Constituição de 1988, que protege a igualdade de direitos entre todos os brasileiros (art. 5º, caput) –, sendo revogada mais por decurso do tempo do que por influência imediata de qualquer movimento.

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Entretanto, a luta pelo reconhecimento de que todas as mulheres são iguais e que, portanto, devem ter sua dignidade sexual respeitadas a despeito de suas atitudes é consequência do impacto do movimento feminista, sobretudo a partir da década de 1960, nos valores sociais. Dessa forma, ainda que a luta simbólica feminista tenha ocorrido no âmbito da sociedade e só muito posteriormente tenha surtido efeito no campo jurídico, há de se considerar essa influência. É importante considerar essa expressão, ainda, por ela demonstrar o paternalismo da legislação pátria sobre um determinado tipo de mulher. Além disso, sendo uma alternação recente no ordenamento jurídico, a concepção de mulher honesta ainda está presente no habitus do campo jurídico, mesmo que não esteja expressa no corpo de normas escritas do mesmo. Percebe-se nesse sentido o suporte prestado pela doutrina na perpetuação desse conceito. Magalhães Noronha, nesse contexto e acompanhando outros juristas tradicionais, conceitua a mulher honesta da seguinte forma: (...) é a honrada, de decoro, decência e compostura. É aquela que, sem se pretender traçar uma conduta ascética, conserva, entretanto, no contato diário com seus semelhantes, na vida social, a dignidade e o nome, tornando-se assim, merecedora do respeito dos que a cercam. Não vivendo no claustro nem no bordel, justamente é quem mais pode ser vítima do crime, donde logicamente a necessidade de proteção legal. (NORONHA apud MONTENEGRO, 2015, p. 49)

A mulher desonesta, para o mesmo doutrinador, já não merece tamanha proteção jurídica, posto que: Mulher desonesta não é somente a que faz mercancia do corpo. É também a que, por gozo, depravação, espírito de aventura etc, entrega-se a quem a requesta. Não é só o intuito de lucro que infama a posse da fêmea. A conduta da horizontal, muita vez, é digna de consideração, o que se não dá com a de quem, livre das necessidades, se entrega tão só pelo gozo, volúpia ou luxúria. (NORONHA apud MONTENEGRO, 2015, p. 49)

Assim, é evidente que, assim como outros ramos do direito a exemplo do direito civil, o direito penal profere, historicamente, tratamentos distintos para cada tipo de mulher que tutela. Complementando essa observação, Nilo Batista expõe uma peculiaridade do direito brasileiro, a sua estreita ligação com a sociedade escravagista: A pena pública foi fundada, no Brasil, sob o predomínio do poder punitivo doméstico, senhorial, inerente ao escravismo, aquele poder que transferia para pessoas (assim coisificadas) as faculdades absolutistas que o direito romano assegurava ao proprietário sobre suas coisas. A casa, como se vê com clareza da antiguidade aos tempos modernos, foi – ao lado do palácio e do templo – um lugar cujos habitantes estavam submetidos a poder punitivo (no caso, exercido pelo pater). Os açoites que, com ou sem a mediação da autoridade pública (açoites disciplinares domésticos aplicados privadamente; açoites

23 disciplinares domésticos aplicados a pedido do senhor pela autoridade; açoites como pena, determinados pelo juiz em sentença, seguidos obrigatoriamente da imposição de ferros cuja supervisão a lei delegava ao senhor, assim convertido em órgão da execução penal – art. 60 do Código Criminal do Império), flagelavam os escravos, eram a expressão mais visível desse poder punitivo, que resistiu a ser regulamentado e sobreviveria à abolição. (...). Este poder punitivo privado – que a certa temperatura se desmancha como público – é o mesmo que atingia as mulheres; se perdurou, como prática e como herança cultural (à maneira de uma autocomplacente técnica de neutralização machista) para além da abolição da escravatura, por que motivo se deteria perante os gradativos avanços das mulheres no reconhecimento de seus diretos? (BATISTA, 2008, p. 13-14)

Diante disso, não é difícil aferir qual tratamento era dado às mulheres negras, herdeiras não só do machismo evidente na legislação penal como também de toda uma criação mítica de força física e de hipersexualização. Sendo assim, o feminismo brasileiro, ao se propor a fazer do campo jurídico um meio para alcançar a igualdade entre os sexos, não deveria se deixar seduzir pela falsa impressão de neutralidade que ele demonstra – em relação à opressão machista e a outras formas de opressão. Contudo, numa perspectiva que Andrade (1996) denomina de “publicização-penalização do privado”, o feminismo utilizou, desde, no Brasil, a década de 1980, do campo jurídico para buscar a efetivação dos direitos das mulheres. Essa aproximação do feminismo com o direito penal, com esperanças em um “uso alternativo do direito” (BATISTA, 2008, p. 4), não contou, no entanto, com um aprofundamento teórico das feministas nas teorias criminológicas, se mantendo distante do que foi produzido pela criminologia crítica que surgia naquelas décadas, como salienta Batista. Em sentido próximo, considerada Andrade que a demanda feminista sobre o campo jurídico – e, principalmente, sobre o sistema penal – é resultado de um condicionamento teórico do movimento: Ao que tudo indica, há no Brasil um profundo déficit de recepção da criminologia crítica e da criminologia feminista e, mais do que isso, há um profundo déficit de produção criminológica crítica e feminista. Há, ao mesmo tempo, um profundo déficit no diálogo entre a militância feminista e a academia e as diferentes teorias críticas do Direito nela produzidas ou discutidas. Este déficit de uma base teórica (criminológica e/ou jurídicocrítica) orientando o movimento tem, a meu ver, repercussões do ponto de vista político-criminal, pois inexiste clareza a respeito da existência e especificidade de uma política criminal feminista no Brasil, que tem se exteriorizado, na prática, com um perfil reativo e voluntarista, como mecanismo de defesa à uma violência historicamente detectada. Esse déficit parece se evidenciar quando se indaga sobre o sentido da proteção que as mulheres buscam através do sistema penal, permanecendo difusa a resposta sobre o sentido dessa proteção, o que eu poderia ilustrar com perguntas como: o que buscam as mulheres com a criminalização de condutas como o assédio sexual? O que esperam elas do sistema penal? E, particularmente, sobre que justificativa convivem as tendências para a minimização e maximização do sistema penal, associadas à tentativa de

24 neutralização de delitos do gênero, como o estupro? Em função de que lógica se descriminaliza o aborto e o adultério e se criminaliza a violência doméstica e o assédio sexual, por exemplo? (ANDRADE, 1996, p. 45)

As indagações propostas pela autora são pertinentes especialmente se se considerar quem são os intérpretes autorizados do campo jurídico. Por existir um monopólio masculino no campo ideológico, banalizado por toda construção antropológica que se conhece (BOURDIEU, 2002, p. 15), o campo jurídico é basicamente formado por homens – já que são eles quem detém o conhecimento e a racionalidade. Dessa forma, ao buscar suas garantias unicamente através do campo jurídico, o movimento feminista, percorrendo o mesmo caminho que as partes conflitantes em um processo (BOURDIEU, 1989, p. 229), se alienam da luta simbólica que propõem, deixando a disputa para ser decidida por um terceiro. Mesmo assim, o movimento feminista percebeu no campo jurídico, durante o processo de redemocratização brasileira do final do século XX, o grande espaço no qual deveria priorizar sua luta. Esse momento não pode ser considerado isolado da conjuntura política do Brasil, já que foi possível às mulheres participarem de conselhos comunitários, de ONGs e até mesmo da própria constituinte, num tempo em que o movimento feminista estava fortalecido pelo combate à ditadura militar. Além disso, o caráter neoliberal, importado das potências ocidentais, que o governo brasileiro assumiu resultou, como esperado, numa retração do Poder Executivo, restando para os movimentos sociais que buscavam uma tutela estatal concentrar suas forças no campo jurídico. Vale salientar que, naquele momento, existiram ganhos para o movimento feminista que impulsionaram a disputa do feminismo no campo jurídico, tanto pelas oportunidades políticas que começaram a surgir para as mulheres quanto na criação de espaços específicos de garantia e exercício de seus direitos. Entre esses ganhos, é importante destacar em âmbito nacional a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher como espaço propositivo de políticas voltadas para as mulheres e, posteriormente no mesmo ano, a criação da primeira delegacia da mulher no Brasil, cuja fórmula se espalhou pelo país durante a década de 1990 e pretendeu criar uma nova abordagem sobre os “delitos contra a pessoa do sexo feminino”, por meio de atendimento inicial feito por policiais mulheres e uma rede de apoio ativa que buscava soluções para o conflito (DEBERT; GREGORY, 2002, p. 11). Ao mesmo tempo em que buscava políticas protetivas na rede penal, o movimento feminista defendeu bandeiras de descriminalização de algumas condutas e punições mais

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severas – e, em alguns casos, punições específicas – de outras. Nesse contexto, indagava Vera de Andrade ainda na década de 90: Como se insere nesta ambiguidade o movimento feminista? Como eu vejo o movimento feminista neste quadro ambíguo? O movimento feminista que reemerge no Brasil dos anos 70, se insere plenamente nesta ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que demanda a descriminalização de condutas hoje tipificadas como crimes (aborto, adultério e sedução, por exemplo), demanda ao mesmo tempo a criminalização de condutas até então não criminalizadas, particularmente a violência doméstica e o assédio sexual. Demanda, também, o agravamento de penas no caso de assassinato de mulheres e a redefinição de alguns crimes como estupro, propondo o deslocamento do bem jurídico protegido (que o estupro seja deslocado de “crime contra os costumes” como o é hoje para “crime contra a pessoa”) com vistas a excluir seu caráter sexista e que, neste mesmo sentido, o homem (e não apenas a mulher, como o é hoje) possa ser vítima de estupro. (ANDRADE, 1996, p. 44)

No mesmo sentido, considerando aquilo que Karam (1996) denominou de esquerda punitiva, ou seja, a esquerda que, seduzida pela promessa de resolução de conflitos que a hipertrofia do direito penal, amparada por toda uma estrutura de poder organizada mundialmente, transmitia (WACQUANT, 1989, p. 88), ao discorrer sobre o uso do direito penal pelo movimento feminista, Zaffaroni questiona: A pergunta chave parece ser, em quase todos os casos, se as pessoas discriminadas podem usar do poder punitivo, ou melhor, que outra coisa podem fazer frente à flagrante vitimização. A resposta não pode ser nem jurídica nem ética, mas simplesmente tática. Sem dúvida, nada impede que façam aquele uso, e nisto não radica o problema, mas em que esse uso signifique mais que um recurso tático conjuntural, ou seja, em que não se converta num fortalecimento do mesmo poder que as discrimina e submete. Não há a respeito disto resposta válida para todos os casos, mas sim que qualquer tática deve definir-se frente a cada caso concreto. A única certeza é que ninguém pode crer seriamente que sua discriminação será resolvida pelo próprio poder que a sustenta, ou que um maior exercício do poder discriminante resolverá os problemas que a discriminação criou. Sua ocasional instrumentação deve ser valorizada tendo em conta o risco de seu uso tático: que não se volte contra. Ninguém pode reprovar a vítima que use uma tática oriental muito antiga, isto é, a de valer-se do próprio poder do agressor para se defender, mas que sempre leve em conta que esse poder, seja qual for o uso que dele se faça, em última análise, não perde seu caráter estrutural de poder seletivo. (ZAFFARONI, 1995, p. 38)

Apesar dos questionamentos teóricos sobre o tema, o movimento feminista – talvez em função do déficit teórico que possuía naquele momento, como sugerem Vera de Andrade e Nilo Batista continuou – enxergando feminismo, aqui, como seus setores majoritários – apostando na construção popular de um aparato repressor, capaz de influenciar diretamente o campo jurídico.

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3 A Lei Maria da Penha 3.1 Histórico da Lei 11.340/06: instrumento de combate à violência doméstica pleiteado pelo movimento feminista

Como abordado anteriormente, o movimento feminista brasileiro alcançou perspectivas no final do século XX como participante dos espaços de poder da nova ordem democrática que surgia no país. Mais do que resultado do fim da ditadura militar que vigorou no Brasil nos vinte anos anteriores, essa tomada de espaços formais de representação se deve à organização bemsucedida das mulheres com este propósito. Leila Linhares Basterd (2011) defende que essa organização ocorreu através da advocacy feminista, isto é, da adoção de medidas estratégicas de mobilização, de ação visíveis, de pressão política e de articulações com atores-chave do poder político em torno de uma questão. Nesse momento, a atuação das feministas foi no sentido de buscar a criação de estruturas em defesa dos direitos da mulher no âmbito legislativo, como destaca a autora: No Brasil, os movimentos de mulheres compreenderam que um elemento fundamental da demanda por políticas públicas sociais é a sua formalização legislativa, com a declaração de direitos e da obrigação do Estado de garantilos e implementá-los. Por isso a percepção sobre a importância do processo legislativo levou as organizações desse movimento a desenvolverem capacidade de propositura de leis que completassem a cidadania feminina tolhida, legalmente, em grande parte, pelas disposições do Código Civil de 1916 (BARSTED; GARCEZ, 1999). Como resultado dessa atuação de advocacy junto ao Poder Legislativo, a cidadania formal das mulheres brasileiras foi completada formalmente com a Constituição Federal de 1988, que aboliu as inúmeras discriminações, especialmente no âmbito da legislação sobre a família, coadunando-se com a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979. (BASTERD, 2011, p. 14)

Além de se articularem em estruturas nacionais, as feministas brasileiras contaram, especialmente na década de 1990, com as instituições internacionais de proteção aos direitos humanos e as articulações produzidas por elas. Nesse sentido, é de suma importância destacar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ou Convenção de Belém do Pará. Ocorrida em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995, essa convenção rompeu com o conceito, até então dominante, de que a tutela sobre a violação de direitos humanos abarcava apenas as

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relações públicas e passou a considerar também o espaço privado para a proteção desses direitos (SOUZA; BARACHO, 2015, p. 79).3 Além disso, essa convenção, a primeira de cunho regional a tratar da violência sexual, elaborou metas para a erradicação desta violência para os países membros da Organização dos Estados da América (OEA) e atribuiu em seu artigo primeiro definição para a matéria: Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Foi inclusive se valendo da competência atribuída pelo artigo 12 dessa convenção que Maria da Penha Maia Fernandes, amparada pelo Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), peticionou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA para denunciar o Estado brasileiro por negligência no enfrentamento pelo Judiciário da violência doméstica (SOUZA; BARACHO, 2015, p. 82). No documento, as peticionárias denunciaram à CIDH-OEA que, embora houvesse transcorrido quinze anos das duas tentativas de assassinato que Maria da Penha sofreu por seu marido, o processo que tramitava no Judiciário brasileiro não tinha, ainda, sido capaz de oferecer qualquer punição ao agressor ou de proteção à vítima. Essa situação, segundo apresentado, demonstrava o completo despreparo do Brasil para lidar com casos de violência contra as mulheres. Diante disso, após o Estado brasileiro não ter respondido às acusações, a CIDH-OEA o responsabilizou por omissão, negligência e tolerância em relação à violência doméstica contra a mulher. Assim, foi recomendado ao Brasil: 1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia. 2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes. 3.Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e 3

No sentido de caracterizar as mulheres como uma minoria de direitos e estes enquanto direitos humanos, é necessário considerar toda a formulação internacional ocorrida após a criação da ONU, destacando-se a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1975. No caso específico da violência contra a mulher, é importante ainda destacar a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, emitida em 1993 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

28 por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil. 4.Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda particularmente o seguinte: a)Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera; d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais. e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.

Além dessa decisão ter sido decisiva para a conclusão do processo de Maria da Penha em âmbito nacional e para a consequente aplicação da pena privativa de liberdade para o agressor, ela foi também um marco na advocacy feminista vez que gerou uma importante alteração legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, a edição do parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95, que passou a contar com a seguinte redação: Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

Desde então, diversas modificações que tratavam da violência doméstica contra a mulher surgiram no sistema penal nacional, desde a notificação compulsória às autoridades policiais sobre atendimentos decorrentes de violência doméstica que fossem feitos nos órgãos de saúde – implantado pela Lei 10.778/03 – às alterações no Código Penal trazidas pela Lei 11.106/05. Embora tivessem ocorrido todas essas reformas legislativas no sentido de combater a violência doméstica, ainda incomodava o movimento feminista, como demonstra Basterd, o

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processamento do crime de lesão corporal na hipótese de violência doméstica4 (art. 129, § 9º, Código Penal) pelos Juizados Especiais Criminais. A justificativa para o estabelecimento da competência dos Juizados nos casos de violência doméstica era atribuída à pena máxima do crime não ser, naquele momento, superior a dois anos, como prevê a Lei 9.099/95. Contudo, baseado no que se produziu sobre o tema desde a Convenção de Belém do Pará, o movimento feminista questionava o motivo de a violência sexual, forma de violação de direitos humanos, ser considerada crime de menor potencial ofensivo (BASTERD, 2011, p. 27). Além disso, as feministas criticavam naquele momento a efetividade do procedimento do Juizado Especial para punir casos de violência doméstica, pois considerando as relações de poder entre o homem (agressor) e a mulher (vítima), estas se sentiam coagidas a aceitar a transação penal e aqueles não seriam punidos suficientemente, dada a complexidade do conflito. Nessa perspectiva, afirma Basterd que no Brasil, a despeito das recomendações da CIDH, existia uma situação de quase descriminalização da violência doméstica: De modo geral, teoricamente, a Lei 9.099/95 apresenta uma solução rápida para o conflito, permitindo a sua composição sem a interferência punitiva do Estado, e reforça a possibilidade de aplicação de penas alternativas à prisão. Para muitos, representa um avanço em termos do Direito Penal, considerandose as partes como tendo o mesmo poder para aceitar ou não a conciliação. No entanto, levando-se em consideração a natureza do conflito e a relação de poder presente nos casos de violência doméstica contra as mulheres, explicitada no texto da Convenção de Belém do Pará, a Lei 9.099/95 acabava por estimular a desistência das mulheres em processar seus maridos ou companheiros agressores e, com isso, estimulava, também, a ideia de impunidade presente nos costumes e na prática que leva os homens a agredirem as mulheres. Cerca de 70% dos casos que chegavam aos Juizados Especiais Criminais envolviam situações de violência doméstica contra as mulheres. Do conjunto desses casos, a grande maioria terminava em “conciliação”, sem que o Ministério Público ou o Juiz deles tomassem conhecimento e sem que as mulheres encontrassem uma resposta qualificada do poder público à violência sofrida. (BASTERD, 2011, p. 27-28)

Dessa forma, o movimento feminista se mobilizou para sanar este conflito legislativo que encontrou e para criar, através do campo jurídico, políticas públicas de proteção às mulheres vítimas de violência de gênero. O meio encontrado para tanto foi a formulação, entre 2002 e 2006, de um anteprojeto de lei que foi apelidado de “Maria da Penha” e o uso das estratégias da advocacy para garantir o sucesso dele no processo legislativo.

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A criação deste crime é, por si só, considerada outro avanço, em termos de punição à violência contra a mulher, causado pelas alterações legislativas propostas pelo movimento feminista, visto que esta causa de aumento de pena foi incluído ao tipo do artigo 129 pela Lei 10.886, datada de 2004.

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Como resultado de toda essa articulação, em 07 de agosto de 2006 foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei 11.340, que, como visto, pouco tem em comum com o trâmite monista de elaboração legislativa existente no Brasil. Sobre essa lei, explica Basterd: Em síntese, a Lei 11.340/06, além de definir as linhas de uma política de prevenção e atenção no enfrentamento dessa violência, afastou em definitivo a aplicação da Lei 9.099/95, criou um mecanismo judicial específico – os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, com competência cível e criminal; inovou com uma série de medidas protetivas de urgência para as vítimas de violência doméstica; reforçou a atuação das Delegacias de Atendimento à Mulher e da Defensoria Pública. (BASTERD, 2011, p. 29) Sendo assim, a Lei Maria da Penha consolidou, ainda que formalmente, o compromisso brasileiro com a redução dos níveis de violência sexual. A inaplicabilidade da Lei dos Juizados nos crimes relacionados à violência de gênero possibilitou, vale ressaltar, a aplicação da pena restritiva de liberdade para os agressores. Além de outras consequências importantes em relação aos efeitos de um procedimento específico para os casos amparados por essa lei, destaca-se também a criação de barreiras, burocráticas e jurídicas, para que as mulheres desistam do processo, sob a justificativa de proteger as mulheres por meio do exercício da jurisdição criminal. Assim, confirmando a teoria de Bourdieu, a Lei 11.340/06 transfere ao Poder Judiciário a responsabilidade de constituir uma solução para o conflito familiar.

3.2. O princípio constitucional da igualdade e a hipossuficiência do gênero feminino: discussões sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha

Embora tenha passado por todo o processo legislativo, a Lei 11.340/06 continuou criando incertezas mesmo após sua promulgação. Segundo os críticos da lei, ela esbarrava no princípio constitucional da igualdade entre homens e mulheres, além de diversas normas de organização do Estado brasileiro. Nesse contexto, foi proposta pela Presidência da República a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, que buscou no STF uniformizar os entendimentos até então existentes sobre os artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha. Até o momento de julgamento dessa ação, em 2012, diversos órgãos julgadores no Brasil afastavam a aplicação da lei por reputar inconstitucional tais artigos.

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Em relação ao artigo 41, que afasta a aplicação dos Juizados Especiais e de seus institutos nos casos de violência doméstica, o ministro-relator Marco Aurélio se utilizou de um voto também seu, no Habeas Corpus 106.212/MS, para declarar a constitucionalidade do artigo: A família mereceu proteção especial da Constituição de 1988, Capítulo VII do Título VIII Da Ordem Social. A união estável entre o homem e a mulher é considerada como entidade familiar artigo 226, § 3º, da Carta. Ante esse contexto e a realidade notada, veio à balha a Lei nº 11.340/2006, cujo objetivo principal é coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 do Diploma Maior: Art. 226.[...] [...] § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (...) O paciente foi condenado presente o artigo 21 do Decreto-Lei nº 3.688/41 prática de vias de fato. A Defensoria Pública da União insiste no afastamento do disposto no artigo 41 da Lei nº 11.340/06, afirmando o conflito com o texto constitucional. O móvel seria o tratamento diferenciado. Ocorre que este veio a ser sinalizado pela própria Carta Federal no que buscada a correção de rumos. Mais do que isso, conforme o artigo 98, inciso I, do Diploma Maior, a definição de infração penal de menor potencial ofensivo, submetendo-a ao julgamento dos juizados especiais, depende de opção político-normativa dos representantes do povo os Deputados Federais e dos representantes dos Estados os Senadores da República. No caso, ante até mesmo o trato especial da matéria, afastou-se, mediante o artigo 41 da denominada Lei Maria da Penha, a aplicabilidade da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aos delitos gênero praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Eis o teor do preceito: Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. (...) Tenho como de alcance linear e constitucional o disposto no artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, que, alfim, se coaduna com a máxima de Ruy Barbosa de que a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. O enfoque tende à ordem jurídico-constitucional, à procura do avanço cultural, ao necessário combate às vergonhosas estatísticas do desprezo às famílias considerada a célula básica que é a mulher.

Tendo sido acompanhado por todos os outros ministros, o relator também se apoia na referida decisão para declarar a constitucionalidade do artigo primeiro da lei. Segundo o ministro, o tratamento diferenciado entre homens e mulheres proposto pela Lei Maria da Penha demonstra a inclinação do Estado para cumprir a previsão do art. 226, §8º da Constituição Federal, diante do histórico de discriminação e sujeição enfrentadas pelas mulheres. Nesse sentido, o ministro relator reafirma seu entendimento a partir do artigo 7º, “c”, da Convenção de Belém do Pará e ressalta o fato de ser o Brasil signatário de tal convenção. Além disso, discorre sobre a necessidade de adotar medidas discriminatórias de proteção à mulher no sentido de o país alcançar a igualdade material entre os sexos prevista na Carta Magna e coloca a Lei 11.340/06 como resultado importante dos movimentos de libertação da mulher.

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Já no tocante à possível ofensa à organização dos Estados prevista na Constituição trazida pela Lei Maria da Penha, ou seja, à disposição de que cabe aos estados disciplinarem sobre a organização judiciária local – artigos 96, I, “a” e 125, § 1º, CF/88 – a posição do STF foi de que não está constituída. Isso porque os artigos da lei que tratam da competência para julgamento dos casos de violência doméstica apenas possibilitam a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, não implicando obrigação qualquer ao Judiciário. Segundo o ministro-relator, esta previsão não era inédita, já existindo construção legislativa parecida desde a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069) em 1990, a qual também visava a proteger um grupo social hipossuficiente. Essa decisão é baseada, ainda, no artigo 22, I, da Constituição, vez que, ressalta o ministro, uma vez sendo prerrogativa da União legislar sobre direito processual, cabe a ela também tratar de competência judiciária, que é um assunto correlato. Em seu voto, a ministra Rosa Weber salientou que a referida lei foi redigida por uma equipe interministerial a partir da ineficiência seletiva do Brasil no tratamento da violência contra a mulher, exposto no processo de Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil no Comitê Interamericano de Defesa dos Direitos Humanos. Assim, a ministra confere à lei o caráter de microssistema de proteção à família e à mulher e afasta a inconstitucionalidade do não processamento dos processos a ela relacionados pelos Juizados Especiais Criminais por não estar previsto, na Lei 9.099/95, a definição de crime de menor potencial ofensivo. Também em defesa da constitucionalidade desses artigos, o ministro Luiz Fux acrescenta aos votos anteriores a reiteração do argumento feminista de que a violência contra a mulher, uma violação de direitos humanos – e, como tal, uma violação a princípios constitucionais – não pode ser considerada delito pouco grave. Tendo ressaltado a importância do movimento feminista e o machismo a que estão expostas todas as mulheres, o Supremo Tribunal Federal julgou, por unanimidade, constitucional todos os artigos que foram discutidos nesta ação declaratória de constitucionalidade. A discussão em torno adequação da Lei 11.340 aos ditames constitucionais foram discutidos pelo STF, na mesma sessão de julgamento, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424/DF, em que se analisou a natureza incondicionada da ação penal em casos de lesão corporal decorrente de violência doméstica pela interpretação conforme dos artigos 12, I e 16 da Lei Maria da Penha. Proposta pela Procuradoria Geral da República, a ADI foi, também, julgada procedente por unanimidade, no sentido de ter aplicado à lei entendimento consoante à Constituição. Para

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o ministro Marco Aurélio Mello, que também relatou esta ação, quando afasta a aplicação da Lei 9.099/95 em seu artigo 41, a Lei 11.340 a afasta em sua totalidade, não devendo ser aplicada, assim, a disposição do artigo 88: Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

Tendo sido voto vencido no julgamento, o ministro César Peluzo verbalizou nesta discussão uma preocupação até então não exposta pelo Tribunal: Hoje, com a possibilidade que ela tem de retratar a representação, já temos situação que, diríamos, fragiliza a mulher, porque ela volta atrás e continua sendo vítima da violência. Se ela imaginar que, uma vez formalizada a notíciacrime, já não poderá retratar-se, a pergunta é: isso não significaria certa contenção, certa inibição com receio de que agora não haja volta?

Essa legítima preocupação do ministro é consequência de uma estatística, apresentada pelo ministro Marco Aurélio, de que 90% das representações até então feitas por mulheres contra os seus agressores – que, em sua grande maioria, são seus parceiros – eram retiradas. As justificativas para tanto são a relação emocional entre a vítima e o agressor, a tentativa de proteger a unidade familiar e, por vezes, as dependências econômica e social da mulher em relação a ele. Assim, temia o julgador que a possibilidade de fornecer às entidades policiais a notíciacrime e, a partir de então, ter certeza de que seu parceiro responderia um processo penal, desestimulasse as mulheres a tornar pública a agressão sofrida. Nesse sentido, o ministro expressa a preocupação de que, ao decidir se deve representar ou não a agressão sofrida, a mulher agredida é sujeito responsável pelo seu destino, ao deliberar se será seu companheiro processado ou não. Além disso, Peluzo ressalta que o próprio afastamento dos Juizados Especiais Criminais pode ser prejudicial ao enfrentamento da violência doméstica, posto que a oralidade e a celeridade que embasam a Lei 9.099 são mais próximas de traduzir, em linguagem jurídica, as relações familiares do que o processo penal ordinário. Por fim, em seu voto o ministro argumenta que não é o caráter condicional ou não da ação penal que impediria a prática de novas agressões, pelo contrário: ao saber que responderá necessariamente uma ação penal, o agressor poderia não se limitar a lesionar a vítima, mas cometer crimes mais graves. Peluzo também salienta a independência entre os Poderes, considerando que o Legislativo estabeleceu na Lei 11.340 a necessidade de representação para os delitos de violência doméstica e que o Judiciário, ao apresentar interpretação contrária à construção legislativa, excede suas atribuições.

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Dessa forma, em relação à previsão do artigo 12, inciso I, da Lei 11.340, que, explicitamente, requer representação para se iniciar o processo criminal, entendeu o Supremo que isso é aplicável apenas quando se trata de crimes em que o condicionamento da ação está previsto em diploma diverso à Lei 9.099/95. Esse entendimento foi firmado, ainda, pela argumentação do ministro Luiz Fux de que a necessidade de representação afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, pois a responsabilidade de representar seria uma medida inibitória à proteção estatal da família, vez que a mulher pode ser coagida para não representar contra o agressor.

3.3 A utilização do direito penal como solução para a violência doméstica

Apesar de a Lei 11.340 não ser uma lei de aplicação meramente penal, é pelas inovações no processamento criminal da violência doméstica que ela é considerada um marco legislativo no país contra a violência doméstica. A lei é considerada uma vitória do movimento feminista porque afasta os crimes de violência doméstica do rol de crimes de menor valor, de menor potencial lesivo. Nesse sentido, a grande insatisfação do movimento feminista se baseava até então no fato de que as penas para a prática de agressão contra a mulher se restringiam às “penas de cesta básica” (MONTENEGRO, 2015, p. 103), gerando, segundo as feministas, uma sensação de impunidade frente à agressão doméstica. Isso porque, uma vez notificada e processada a agressão, bastava o homem pagar para poder continuar a delinquir. Sendo assim, o afastamento dos Juizados Criminais para os crimes de violência doméstica por essa lei expõe a demanda criminalizadora do movimento feminista, no uso alternativo do direito penal. Essa função simbólica do direito penal a que remete as feministas, isto é, a visão de que “o Direito Penal poderia inverter o poder onipotente do marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio da relação doméstica” (MONTENEGRO, 2015, p. 111), pretende que ao legislar o Estado inverta a simbologia social, persuadindo os agressores a adotarem um determinado comportamento permitido sob pena de serem considerados delinquente. O direito penal simbólico, contudo, não consegue produzir pois, como revela Baratta (apud MONTENEGRO, 2015, p. 187) ele intervém no conflito de forma reativa, não preventiva, ou seja, só produz efeitos quando a violência já foi praticada; a intervenção do sistema de justiça não ocorre imediatamente após a prática do delito; o controle penal intervém sobre pessoas e não situações; e, portanto, o controle penal incide sobre os efeitos decorrentes da manifestação da violência, não sobre suas causas.

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Dessa maneira, ao aplicar o direito penal em casos denunciados de violência doméstica, pune-se atores individuais que cometeram tais condutas, não influenciando na realidade social do tratamento da violência doméstica. Nesse sentido, ao positivar a dimensão simbólica do direito penal, muito estimulada pelos meios de comunicação (MALAGUTTI, 2011, p. 7), “comumente não se almeja mais do que acalmar eleitores, dando-se através de leis previsivelmente ineficazes a impressão de que está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas” (ROXIN apud MONTENEGRO, 2015, p. 112). Não se pode, portanto, ignorar que promulgação da Lei 11.340 ocorreu às vésperas das eleições. Dessa forma, em função da individualização das condutas que carrega consigo o direito penal, o Estado deixa de incentivar políticas de educação e de prevenção àquele fato – que, como demonstra Baratta (2011, p. 42), passa a ser considerado um comportamento desviante individual cujo agente representa o mal a ser eliminado pela sociedade – para se ater a criminalizar condutas, trazendo um resultado eleitoral rápido como afirma Roxin. É também nesse caminho que escreve Karam: O sistema penal promove a ideia do ‘criminoso’ como o ‘outro’, o ‘mau’ e agora como o ‘inimigo’, assim necessariamente atuando de forma residual, através da seleção de alguns dentre os inúmeros autores de condutas criminalizadas para cumprirem aquele demonizado papel. Assim, facilita a minimização de condutas e fatos não criminalizáveis socialmente mais danosos, como a falta de educação de qualidade, de alimentação saudável, de atendimento à saúde, de moradia confortável, de trabalho digno. Assim, afasta a investigação e o enfrentamento das causas mais profundas de situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou danosos, ao provocar a sensação de que, com a imposição da pena, tudo estará resolvido. Assim, oculta os desvios estruturais, encobrindo-os através da crença em desvios pessoais, o que evidentemente contribui para a perpetuação daquelas situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou danosos. Com efeito, situações, fatos ou comportamentos negativos, indesejáveis ou danosos não desaparecem com a imposição de penas. A punição apenas adiciona novos danos e dores aos danos e dores causados pelas condutas criminalizadas. (KARAM, 2015, p. 6)

Em se tratando de violência doméstica, a caracterização do agressor como um ser “do mal” não é criticável apenas no sentido de demonizar certos grupos sociais. Ao tratar de relações domésticas, o agressor não é uma pessoa distante da vítima, relacionado a ela apenas pelo fato típico. Em pesquisa de campo realizada em Recife, Marília Montenegro pôde observar que na maior parte das vezes as mulheres procuram a polícia e, consequentemente, a justiça criminal, por não ter acesso a outras instâncias estatais para resolver os conflitos conjugais. Muitas vezes, a “pena” desejada pela vítima ao seu “agressor” é que ocorra a separação entre eles e que cada um possa viver a sua vida daqui

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para frente. O Direito Penal só é capaz de encontrar um culpado, impondo-lhe uma pena, independente da vontade da vítima. (MONTENEGRO, 2015, p. 172) Com o regime processual imposto pela Lei 11.340, assim como ocorre no processo penal como um todo, à mulher não é dada possibilidade de interferir no que acontece com o agressor. Essa situação piorou ainda mais com a impossibilidade de retirar a denúncia, pois, ao perceber que as consequências para o agressor são muito maiores do que o sofrimento pelo qual passou, não resta outra alternativa à mulher violentada senão mentir (MONTENEGRO, 2015, p. 177) para isentar o companheiro de cumprir pena. Nesse contexto, a mulher deixa de se sentir vítima da situação para se sentir agressora, uma vez que gera sofrimento para o seu parceiro e para seus filhos. Ocorre dessa forma uma duplicação da violência que ela sofre (ANDRADE, 1996, p. 4). Além dos efeitos emocionais, a imposição da pena privativa de liberdade aos agressores gera também um efeito econômico na vida das mulheres que denunciam a violência doméstica. Esse aspecto econômico ocorre não só em função da renda familiar que é diminuída com a prisão de seu companheiro – Montenegro observou, em sua pesquisa de campo, que a grande maioria dos homens que respondem a processos criminais por violência doméstica são trabalhadores, ainda que no mercado informal, e primários para o direito penal, ocorrendo abusos quando eles estão sob efeito de álcool ou outras substâncias, com destaque ao “crack” – como também pelos gastos gerados com as visitas feitas por ela e pelos filhos ao sistema prisional. A Lei, no entanto, é considerada vitoriosa tanto pelo apelo punitivista que embala o movimento feminista quanto pela construção midiática que superficializa a violência doméstica e legitima o sistema penal para enfrentá-la. Há, nesse aspecto, uma exploração da imagem da vítima para que a partir dela a população se sensibilize com o seu sofrimento e clame por punição ao agressor. O uso no nome “Maria da Penha” neste caso é sintomático dessa construção midiática sobre a violência doméstica. Ao relacionar uma lei ao nome de uma mulher cujo sofrimento em virtude de um crime violento é incontestável, cria-se uma santificação da vítima, de forma que as pessoas deixam de se preocupar com o delinquente e qualquer crítica feita àquela lei parece ser um insulto à história de sofrimento. Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria, à fácil aderência por todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a mulher, como também aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por uma máxima intervenção penal, o Estado, por meio de seus discursos político-demagogos, decidiu governar através da simbólica

37 intervenção punitiva e fez por encerrada sua suposta atuação voltada para a solução do problema social “iluminado”. Surgiu, assim, a Lei “Maria da Penha”. O fato de ter recebido o nome de uma mulher específica, contudo, fez com que as infrações penais que caracterizassem as violências domésticas praticadas contra a mulher fossem sempre associadas à violência sofrida por Maria da Penha, como também toda vítima de violência de gênero fosse comparada à sua imagem e semelhança. A título de exemplo, no livro de Maria Berenice Dias, no qual são feitos comentários à Lei 11.340/2006, a autora dedica o livro inicialmente, “a todas as Marias da Penha deste país, violadas por seus homens e violentadas pela justiça”. (MONTENEGRO, 2015, p. 216)

Analisando, assim, o processo de construção da Lei 11.340/06, é perceptível que, através de um apelo mais emocional do que técnico, legitimou-se a interferência do direito penal – que antes era utilizado apenas ao julgar um fato isolado – nas relações sociais. Essa abordagem, portanto, além de transformar relações privadas em públicas, possibilita aumentar ainda mais a vigilância trazida pelo Estado penal. Cabe ressaltar, ainda, que embora os argumentos em favor da aplicação desta lei a consideram instrumento capaz atingir as normas garantidoras de direitos humanos, estas existem no contexto da Constituição de 1988 justamente para limitar a violência estatal. A expansão do direito penal através de leis criminalizadoras refletem, justamente, uma inversão da função dessas normas, como nos adverte Karam (2015, p. 3). Voltado os olhares para o acusado, por outro lado, outro efeito importante da aplicação da Lei Maria da Penha é a possibilidade de fiança sobre os crimes decorrentes de violência doméstica. Assim, além do efeito simbólico da pena privativa de liberdade para o agressor, que seria suficiente para erradicar a violência doméstica no Brasil, e do discurso de combate à impunidade dos agressores, a lei reforça a seletividade do direito penal, uma vez que até o julgamento definitivo do processo, só responde na prisão os acusados que não têm condição financeira suficiente para escapar do cárcere.

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4 Conclusão

No decurso deste trabalho, buscou-se analisar a inadequação do direito penal para alcançar a igualdade material entre os gêneros. Para tanto, inicialmente foi exposto o funcionamento do campo jurídico dentro de uma sociedade capitalista, de forma a uniformizar a legitimar uma leitura jurídica das relações sociais. A partir disso, procurou-se compreender o funcionamento do sistema penal no sentido de manutenção da ordem social legitimada, através dos pressupostos de individualização das condutas transgressoras a essa ordem e da separação entre o “bem” – os comportamentos permitidos pela sociedade – e o “mal” – que deles se distanciam. Analisou-se também o movimento feminista, que, especialmente na transição entre os séculos XX e XXI, concentrou suas estratégias de atuação na disputa dos valores sociais e do campo jurídico, para que, através dele, conseguisse reverter a dominação masculina. Diante disso, partiu-se para a análise da Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, como efeito da incidência das demandas punitivas do movimento feminista no campo jurídico e, mais especificamente, no sistema penal. Essa lei, que visa a combater a violência doméstica contra as mulheres, é resultado de uma grande articulação nacional e internacional para o reconhecimento da violência doméstica como crime de grandes proporções, alheio, portanto, ao regime dos Juizados Especiais Criminais. Embora a referida não se atenha ao aspecto penal, possuindo inclusive diversas contribuições civis para reverter a situação de violência doméstica como as medidas protetivas de urgência (arts. 22, 23 e 24) e a suspensão de visita aos filhos (art. 22, IV), possui um caráter evidentemente punitivo no sentido de isolar o agressor da vítima por meio da pena privativa de liberdade. O processamento dos crimes de violência doméstica até a entrada em vigor desta lei ocorria, em função do quantum máximo das penas relativas a esses delitos, nos Juizados Especiais Criminais. Naquele rito, ainda que de forma precária, era possibilitado às partes a formalização de um acordo, por meio da transação penal. Dessa forma, era estabelecido um diálogo entre as partes com a possibilidade, inclusive, de não haver consequências penais para o agressor e a situação se resolver com base no diálogo mediado pelo conciliador. Com o afastamento da Lei 9.099/95 dos delitos decorrentes de violência doméstica, até que sejam criados Juizados Especiais de Enfretamento à Violência Doméstica, o processamento dos atos passou a funcionar através do processo criminal ordinário. Assim, sujeitos que jamais

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figuraram como réus no processo penal acabaram por enfrentar não só o processo, mas todas as consequências de vulnerabilidade e de estigmatização que carrega a figura do criminoso. Além disso, pôde-se observar também que a competência penal atribuída à Lei Maria da Penha impede que as mulheres interfiram na atribuição da pena para o agressor que, além de praticante do fato típico é também seu companheiro e, na maior parte dos casos, pai de seus filhos. Essa situação, como foi percebido, traz consigo uma dupla-vitimização da mulher: além de ser objetivamente vítima da violência doméstica, a ela é atribuída uma posição de passividade no processo penal que gera o sofrimento de ser responsável pelo sofrimento de seu companheiro na prisão. Isso foi agravado pela interpretação do STF de que é indisponível a retirada da representação apresentada pela mulher vítima de violência doméstica no julgamento do crime, levando, como citado, as mulheres a mudarem suas versões do fato durante o processo, quando vê seu agressor preso e já passado tempo suficiente da agressão para acabarem os sentimentos de vingança. A posição do Supremo quem também foi analisada, no mesmo sentido de colocar as mulheres vítimas de agressão em posição passiva frente à violência doméstica, foi o caráter incondicional atribuído às ações de lesão corporal decorrente de violência doméstica. Essa decisão além de corroborar com a alienação da mulher no processo aumenta a possibilidade de intervenção do sistema penal nas relações pessoais, fortalecendo o Estado penal que não possui outra função senão a de manutenção da ordem social. Dessa forma, por mais que o direito penal possa produzir um efeito simbólico no sentido de considerar a conduta criminalizada destoante dos valores sociais, ou seja, colocar neste caso a violência doméstica como uma ação reprovável e, por isso, punível, este efeito não passa de uma ilusão propagada pelas diversas instituições sociais que desobriga o Estado a construir políticas positivas de enfrentamento à violência contra a mulher. Ante a isso, por mais que a criminalização de condutas dê a falsa impressão de que o problema da violência doméstica está sendo combatido, a tutela penal do Estado está incidindo apenas em situações concretas que produzem efeitos naqueles que já estavam à margem da sociedade, ou seja, não há qualquer consequência para o imaginário social no tocante ao fim dessa violência.

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