A INFLUÊNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-TEOLÓGICA DEUTERONÔMICA EM 1 SAMUEL 1.1 – 2.10 (M.A. Thesis/ Dissertação de Mestrado - Servo de Cristo)

June 25, 2017 | Autor: T. Abdalla T. Neto | Categoria: Deuteronomistic History, Deuteronomy, Biblical Covenants, 1 and 2 Samuel
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TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

A INFLUÊNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICOTEOLÓGICA DEUTERONÔMICA EM 1 SAMUEL 1.1 – 2.10

São Paulo 2010

TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

A INFLUÊNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICOTEOLÓGICA DEUTERONÔMICA EM 1 SAMUEL 1.1 – 2.10 Dissertação apresentada em cumprimento das exigências do curso de Master of Arts in Biblical Theology do Seminário Teológico Servo de Cristo, sob a orientação do Prof. Estevan F. Kirschner.

São Paulo 2010

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AGRADECIMENTOS A Deus, por agir de forma soberana e graciosa em minha história, dando-me vida e esperança por meio de Seu Filho, Cristo Jesus. Aos meus pais, Otavio Augusto e Lilian Rose, porque “desde a infância” me ensinaram, com carinho e dedicação, as “Sagradas Letras” e me contagiaram com sua paixão pelo estudo da Palavra de Deus. Ao Prof. Dr. Estevan Kirschner, pelo seu exemplo de integridade e seriedade no estudo das Sagradas Escrituras, pelo apoio constante no percurso do mestrado e por sua paciência, disposição e motivação na orientação da minha dissertação. Ao Prof. Luiz Sayão, pelos insights em sala de aula que deram origem à pesquisa da relação do Deuteronômio com os Profetas Anteriores. Ao Prof. Dr. Carlos Osvaldo Pinto, por sua devoção inspiradora no estudo e exposição das Escrituras, por sua amizade e pela mentoria em meus estudos teológicos, sempre com palavras de incentivo e disposição na orientação de minhas pesquisas. Ao Prof. Robinson J. de Souza, por suas orientações metodológicas e por sua prontidão na ajuda e orientação de meus estudos no Seminário Teológico Servo de Cristo, colaborando muito para a conclusão deles. Ao meu irmão, Filipe, pela sua amizade constante, seu apoio sacrificial no ministério e pelo incentivo no meu aperfeiçoamento dos estudos teológicos. Ao amigo Éder Marques que, em nossas conversas e diálogos, sempre me mostra que a teologia é um mundo amplo para se viver com alegria e devoção. Ao Seminário Teológico Servo de Cristo, pela visão de treinar líderes cristãos com excelência e possibilitar a mim este precioso treinamento. Aos queridos irmãos da Igreja Batista Nova Esperança, por honrar e valorizar o trabalho de ensino que desempenho, por possibilitar e me motivar nos estudos de Pós-Graduação e por tornar o pastoreio uma tarefa alegre e prazerosa.

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Aos diretores, professores e alunos da Faculdade de Teologia Paulistana e do Seminário Teológico Batista do Sudeste do Brasil, pela oportunidade preciosa de desenvolver algo que amo fazer: ensinar e preparar futuros expositores da Palavra de Deus.

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RESUMO NETO, Tiago

Abdalla Teixeira.

A

influência

da perspectiva histórico-teológica

deuteronômica em 1 Samuel 1 e 2. São Paulo, 2010. 73 p. (Dissertação produzida para o curso de Master of Arts in Biblical Theology do Seminário Teológico Servo de Cristo). A presente dissertação procurou mostrar a influência da perspectiva histórica e teológica que o livro de Deuteronômio exerceu sobre o registro da história e cântico de Ana, no texto de 1 Samuel 1 e 2. O autor, primeiramente, trabalhou questões da autoria do Deuteronômio, percebendo maior plausibilidade na autoria mosaica, e destacou a temática teológica fundamental no livro, como a ação de Deus na história em favor de seu povo, a escolha e relacionamento pactual entre Yahweh e Israel e o caráter soberano e singular divino. Então, examinou a perspectiva de leitura da história contida no Deuteronômio, em que Deus age em juízo e graça, conforme a fidelidade ou infidelidade de seu povo à aliança, e o modo como tal leitura da história influenciou a historiografia israelita feita pelos Profetas Anteriores. Após isso, traçou-se o desenvolvimento de importantes conceitos encontrados em 1 Samuel 1 e 2 e se analisou a relação destes conceitos com o quinto livro do Pentateuco, em perspectiva histórica e no entendimento acerca do caráter de Deus. Dentro da análise temática de 1 Samuel 1 e 2, o autor estudou as ênfases histórico-teológicas principais e que encontravam profunda influência do Deuteronômio, como a ação compassiva de Deus na história em favor dos eleitos e necessitados; seu juízo e graça operados na história conforme a atitude humana, de rebeldia e soberba ou de humildade e obediência; e o caráter supremo, transcendente e protetor de Yahweh. Por fim, esta dissertação indicou as implicações que a teologia do caráter divino soberano e transcendente traz para a adoração da comunidade da Nova aliança e que a compreensão da ação compassiva de Deus para com os necessitados oferece para a missiologia da Igreja, além da implicação ética de prática da justiça social que a perspectiva da resposta de Deus em juízo e graça, conforme os atos humanos, promove na comunidade cristã. Palavras-chave: Deuteronômio, 1 Samuel 1 e 2, perspectiva histórica, teologia, ação de Deus, caráter de Deus, Israel, ação humana, obediência, desobediência, aliança.

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SUMÁRIO Páginas INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6 1.

O DEUTERONÔMIO: SUA TEOLOGIA E PERSPECTIVA HISTÓRICA....................8 1.1.

Questões Introdutórias: autoria e data ................................................................... 8

1.2.

A Teologia do Deuteronômio ................................................................................ 12

1.3. A Perspectiva Histórica do Deuteronômio e sua Influência sobre os Profetas Anteriores ........................................................................................................................ 19 2. A TEOLOGIA DA HISTÓRIA E POÉTICA DE ANA E SUA RELAÇÃO COM O DEUTERONÔMIO ............................................................................................................. 25 2.1.

Introdução à Narrativa e Poesia de 1 Samuel 1.1 – 2.10....................................... 25

2.2.

A Teologia da Narrativa e Poesia de Ana e Sua Perspectiva Deuteronômica ........ 29

2.2.1. A ação soberana e compassiva de Yahweh em favor dos escolhidos e necessitados......................................................................................................................29 2.2.2. A expressão da justiça de Yahweh por meio do julgamento dos ímpios orgulhosos e da bênção dos fiéis humildes...................................................................................... 33 2.2.3. 2.3.

O Caráter supremo, singular e protetor de Yahweh ...................................... 38

Conclusão ............................................................................................................ 46

3. IMPLICAÇÕES DA TEOLOGIA DEUTERONÔMICA PARA A COMUNIDADE DA NOVA ALIANÇA ............................................................................................................... 47 3.1. Implicações da Teologia Própria Deuteronômica para a Adoração do Povo da Nova Aliança ................................................................................................................... 48 3.2. Implicações da Teologia da Ação Compassiva e Soberana de Deus para a Missão do Povo da Nova Aliança aos “Pequeninos” da Sociedade .............................................. 52 3.3. Implicações da Teologia da Ação de Deus na História para a Conduta Ética do Povo da Nova Aliança ...................................................................................................... 59 3.4.

Conclusão ............................................................................................................ 64

CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 66 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................................................................................... 69

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INTRODUÇÃO Há muito tempo se tem percebido a forte conexão teológica existente entre o Deuteronômio e os Profetas Anteriores.1 A história da nação de Israel encontrada entre Josué e Reis revela uma leitura dos acontecimentos a partir da aliança entre Yahweh e Israel nas planícies de Moabe, conforme o quinto livro de Moisés. Tal fato gerou uma série de teorias críticas a respeito da composição destas obras, desde uma edição única para o Deuteronômio e os Primeiros Profetas,2 até a suposição de uma escola deuteronômica na formação destes últimos escritos.3 Mesmo que não se adote as teorias de datação propostas pelos críticos bíblicos, deixar de considerar suas descobertas e insights resultaria em grande perda para a análise exegético-teológica da historiografia profética. Muitos teólogos das mais diversas correntes vêm reconhecendo a aliança deuteronômica como uma chave hermenêutica essencial para a leitura dos livros de Josué a Reis. 4 Esta dissertação, portanto, objetiva examinar os principais temas de Deuteronômio e compreender sua relação com as ênfases teológicas contidas num trecho específico dos Profetas Anteriores, isto é, a história e o cântico de Ana (1 Sm 1.1 – 2.10). Na conclusão do trabalho, o autor pretende confirmar a ligação histórico-teológica entre os dois textos sagrados, em sua perspectiva dos atos históricos e do caráter de Yahweh, o Deus de Israel. A presente análise abordará tais conexões a partir de seu entendimento da situação histórica que cercou a autoria e datação do último livro do Pentateuco e de Samuel. Espera-se que, ao final, fique patente a relação entre ambos, não por serem o produto literário de uma mesma escola teológica, distinta de outras dentro do pensamento hebraico, mas devido à

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Conjunto do Cânon Hebraico que abarca os livros de Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2). Outra tradução possível para a expressão é Primeiros Profetas e, também, será usada neste trabalho. Cf. Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 70; Roland K. HARRISON, Introduction to the Old Testament. p. 267-268. 2 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 160161; Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E MILLS, Roger Aubrey BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210-211. 3 Steven MACKENZIE, op. cit., p. 161-162. 4 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 127; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 213-215; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 145-146; Steven MACKENZIE, op. cit., p. 160-167. 6

relação de influência canônica, em que o narrador profético entende a história de Ana e do nascimento de seu filho, à luz da revelação anterior dada por Deus a Moisés. 5 Para isso, o autor da presente dissertação desenvolverá um roteiro que propicie o desenvolvimento de sua pesquisa e fundamente sua tese. No primeiro capítulo se analisará questões introdutórias pertinentes ao livro de Deuteronômio, os temas teológicos mais importantes que formam o cerne de seu ensino e, ainda, sua perspectiva histórico-teológica em relação aos Primeiros Profetas. Já no segundo capítulo, o foco será especificamente voltado para a história e cântico de Ana (1 Sm 1.1 – 2.10), sua perspectiva teológica da história e como esta fora, significativamente, influenciada pelo Deuteronômio. No último capítulo, o autor proporá de que forma a compreensão do divino e sua relação com a história percebidos nos livro de Deuteronômio e nos dois primeiros capítulos de Samuel oferecem implicações para a comunidade da Nova Aliança, em sua adoração, missão e conduta ética.

Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. commentary, v. 3, p. 555-557. 5

In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible 7

1.

O DEUTERONÔMIO: SUA TEOLOGIA E PERSPECTIVA HISTÓRICA O livro de Deuteronômio, certamente, é um dos que mais movimenta a crítica e

teologia bíblica em discussões acerca de sua autoria, composição, teologia e influência sobre os Primeiros Profetas. Esta parte do trabalho se concentrará, principalmente, na teologia e perspectiva histórica do livro, a fim de lançar as bases para a análise, no ponto seguinte, com respeito à relação e influência do Deuteronômio sobre a história e poética de Ana. Ao mesmo tempo, o presente capítulo tratará de questões introdutórias com respeito à autoria e data da obra, pois, influenciam na compreensão hermenêutica dela e de seu relacionamento com os Profetas Anteriores (dos quais o livro de 1 Samuel faz parte).6 1.1. Questões Introdutórias: autoria e data Determinar a autoria e o Sitz im Leben do Deuteronômio é desafiador, desde que a erudição bíblica vem propondo diversas possibilidades para a origem do livro. Sugestões que remontam à época de Moisés até o período pós-exílico são feitas e não se chega a um consenso geral. Portanto, faz-se necessária uma exposição resumida das várias propostas de datação do livro e o parecer deste autor sobre aquela que, mais adequadamente, faz jus ao texto bíblico. Em 1805, W. M. L. de Wette propôs que o Deuteronômio provinha de uma fonte à parte do restante do Pentateuco, cuja origem se deu no século VII a.C., pouco antes do reinado de Josias. 7 Mais adiante, tal tese fora sustentada por K. A. Riehm 8 e, então, desenvolvida, estabelecida e popularizada entre os eruditos por Julius Wellhausen, em 1876, o qual via a composição do livro por profetas da época de Josias que o esconderam no templo para, em seguida, ser “achado” e dar impulsão à reforma promovida pelo rei, legitimando a

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Um claro exemplo quanto à influência do entendimento do contexto histórico para a abordagem hermenêutica e teológica de Deuteronômio, ver John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 323-330. Sobre a importância destas questões introdutórias do livro em sua relação com os profetas anteriores, consultar Gerhard VAN GRONINGEN, “Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or prophetic writing?”. Bulletin of the Evangelical Theological Society, v. 12, no.1, 1969. p. 10-13. 7 DE WETTE, W.M.L. Dissertatio critico-exegetica, qua deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris diversum, alius cuiusdam recentioris auctoris opus ese monstratur. Halle: 1805. 8 Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 230. 8

adoração central em Jerusalém (Dt 12.13ss),9 diferentemente da possibilidade de altares múltiplos encontrada no Êxodo (Êx 20.24). Apesar de ser contestada por diversos estudiosos, a hipótese de uma autoria não mosaica para o livro, dentro do século VII, continua a receber o apoio maior da academia teológica.10 Tal proposta afirma que, em vários aspectos, o livro de Deuteronômio apresenta características legais e religiosas desenvolvidas numa época posterior da história hebraica, como uma preocupação mais humanitária com os escravos (Êx 21.1-11 com Dt 15.12-18)11 e um conceito mais transcendente de Deus no seu ambiente cúltico, seja quanto à habitação do templo (Sl 76.3 com Dt 12.11; 1 Sm 7.13; 1 Rs 3.2; 5.17; 8.17-20, 44, 48) ou ao propósito da Arca da Aliança (Êx 25.10-22; Nm 10.33-36 com Dt 31.12-13, 26). 12 Além disso, afirmam que partes da estrutura literária e alguns termos do Deuteronômio se enquadram dentro dos tratados assírios do século VII.13 Os proponentes da autoria no século VII a.C. argumentam, então, que as reformas religiosas promovidas por Ezequias e Josias seriam ambientes propícios para a redação do Deuteronômio, o qual com sua perspectiva profética fora escrito entre a queda de Samaria, em 722 a.C., e o começo do reinado de Josias, servindo como base para a reforma cúltica realizada em 2 Reis 22 e 23.14 Vários estudiosos têm reagido à datação do século VII para a composição do Deuteronômio e proposto datas anteriores e posteriores às reformas de Ezequias e Josias. Adam C. Welch e Theodor Oestreicher representam o grupo de estudiosos que propõe uma data no décimo século, entre os reinados de Davi e Salomão, 15 cujas raízes

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Julius WELLHAUSEN, Prolegomena to the history of Israel, p. 16, 20-41; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 124; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 57; WALKER, L. L, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 159-160. 10 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65. 11 Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E. MILLS, Roger Aubrey BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210; 12 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 175176. 13 Ibid., p. 170. 14 Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 56-65; Cf. Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 230. 15 J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53-55; Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 488-189. Após analisar as várias propostas de datação para o Deuteronômio, J. A. Thompson chega a uma conclusão próxima àquela que Welch e Oestreicher defendem. Ver sua obra citada, p. 66-67. 9

teológicas remontam a um movimento iniciado por Samuel. 16 A razão que apresentam para se oporem a uma data durante o governo de Josias é que a preocupação do Deuteronomista não era a centralização do culto em Jerusalém (Kulteinheint), mas a purificação dos elementos pagãos na adoração (Kultreinheint) (2 Rs 23.4-20, 24).17 Argumentam que certas leis eram demasiadamente primitivas para a monarquia judaica posterior, mas que seriam plenamente plausíveis no período final dos Juízes e começo da monarquia, como a lei acerca do homicídio cujo autor fosse desconhecido, em que os sacerdotes deveriam exercer o julgamento (Dt 21.19), ou a permissão e a proibição de determinados grupos estrangeiros participarem da assembléia do Senhor (Dt 23.1-8). Teólogos como R. K. Kennett e G. Hölscher propõem uma data para o livro no período exílico e pós-exílico em círculos sacerdotais. 18 Defendem este Sitz im Leben de Deuteronômio por entenderem ser impossível que um reformador da época de Josias escrevesse leis como as que constam nos capítulos 13 e 17, quando a grande maioria das cidades de Judá, inclusive Jerusalém, estavam contaminadas pela idolatria, o que implicaria na morte de comunidades inteiras em Israel no século VII. Hölscher, outrossim, identificou paralelos de linguagem em textos de Malaquias e Neemias com aquela encontrada em Deuteronômio, o que, ao seu ver, favorece uma data pós-exílica (cf. Ml 1.2, 6, 8; 2.1-2, 4-5, 8; 3.1, 3; Ne 13.25-27).19 Este autor entende que a solução mais satisfatória para a questão de data e autoria do Deuteronômio se dá na proposta da autoria mosaica do livro, durante a segunda metade do segundo milênio, 20 incluindo pequenas edições posteriores, provavelmente, inseridas por algum editor da geração seguinte a Moisés (cf. Dt 2.10-12; 34).21

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J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 54; Ernst SELLIN, George FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 1, p. 241. 17 Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 488; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 53. 18 G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 412; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 65-66; Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 489-491. 19 J.A. THOMPSON, op. cit., p. 66. 20 Para uma defesa mais detalhada da posição deste autor, ver Tiago Abdalla T. NETO, Deuteronômio: escrito de Moisés ou uma fraude piedosa?. http://www.fatep-sp.com.br/pdf_version.php. Acessado em Abril de 2010. Outros estudiosos e obras que defendem a mesma posição, com pequenas diferenças: Meredith G. KLINE, Two tables of the covenant. Westminster Theological Journal, v. 22, no. 2, 1960, p. 133-146; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 214-215; G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-414; Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 173-183; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 112-116; K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-8. 21 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 161. 10

Há indicações claras no livro da atividade redatorial de Moisés e de sua comunicação e exposição da lei contida no Deuteronômio (Dt 31.9, 19, 22, 24-26; cf. 1.1, 3, 5; 4.44-45, 5.1; 27.1, 9, 11; 29.1-2; 31.1).22 As referências a ocasiões que suscitaram os sentimentos de Moisés e recordações de detalhes históricos mencionados na obra, somente fariam sentido caso o seu autor tivesse experimentado tais situações (Dt 1.9-12; 5.6; 7.8; 8.14; 9.22-24; 11.10; 16.6; 25.17ss).23 Digna de nota é a menção da intercessão de Moisés em favor de Arão, depois da quebra da aliança, cujo incidente não é sequer referido no relato de Êxodo, mas consta em Deuteronômio (Dt 9.20ss). O posicionamento de Israel, dentro do livro, é sempre fora de Canaã prestes a entrar nela (3.20, 25; 4.5, 14; 5.31; 11.30; 12.10; 18.9)24 e as tribos são vistas como parte de “todo o Israel” (1.1; 5.1; 13.11; 21.21; 27.9; 29.2, 10; 31.1, 7, 11; 32.45), não há referência a Norte e Sul como nações separadas.25 Outrossim, no aspecto religioso, não há qualquer menção à abolição dos “lugares altos” (B`mot) nem à centralização do templo em Jerusalém, o que enfraquece a posição dos que defendem a autoria de século VII, dizendo que estes eram os principais objetivos do grupo reformador profético responsável pela edição do livro na época de Josias. 26 Um fator final que favorece a escrita de Deuteronômio no segundo milênio, na época de Moisés e não no primeiro milênio, época de Josias, é a semelhança muito maior de tratados do segundo milênio com o livro do que com os do milênio posterior, conforme a argumentação de Weinfeld.27 K. A. Kitchen afirma claramente: “À luz de tal padrão de medida tangível (especialmente quando as formas do primeiro milênio são completamente

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K. A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 4-5; THOMPSON, J. A, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 49; G.T. MANLEY, “Deuteronômio, livro de”. In: J. D. DOUGLAS (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v. 1, p. 413. 23 G.T. MANLEY, op. cit., p. 413; L. L. WALKER, “Deuteronomy”. In: Merril C TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 2, p. 114-115. 24 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); Gleason L. ARCHER, Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, p. 175-176. 25 Gleason L. ARCHER, Jr., op. cit., p. 179; L. L. WALKER, op. cit., p. 115; George L. ROBINSON, op. cit. (Versão eletrônica). 26 G.T. MANLEY, op. cit., p. 412-413. Carlos Osvaldo observa, pertinentemente: “(...) parece claro que se Deuteronômio foi uma ‘fraude piedosa’ projetada para legitimar Jerusalém como santuário único, seu autor fez um péssimo trabalho, pois a cidade jamais é mencionada no livro. Ao contrário, Deuteronômio prescreve a construção de um altar no monte Ebal, na região de Samária, rival de Jerusalém, e a celebração da renovação da aliança ali!” (Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 160). 27 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 169171. 11

diferentes) datar Deuteronômio cerca de 621 a.C. (...) é simplesmente um erro grotesco, sem nenhuma base, na verdade”.28 O livro de Deuteronômio é uma renovação da aliança do Sinai e sua estrutura em muito se assemelha com as formas encontradas nos tratados de vassalagem hititas da última metade do segundo milênio. 29 As seguintes características são comuns tanto em Deuteronômio quanto nos tratados hititas: (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1.1-5); (2) Prólogo Histórico (Dt 1.6 – 3.29); (3) Estipulações ou Mandamentos (Dt 4, 5 – 26); (4) Depósito do Texto e Leitura Pública (Dt 31.9-13, 24-26); (5) Testemunhas (Dt 31.16-30; 32.1-47); Bênçãos e Maldições (Dt 28.1-68).30 Quando se compara o livro de Deuteronômio com os tratados neo-assírios e neobabilônicos (primeiro milênio) percebe-se pouca semelhança. Nestes não há a menção de bênçãos que acompanham as maldições.31 Também, não existe qualquer prólogo histórico nem indicação de depósito do texto e leitura posterior, o que é típico do segundo milênio. 32 Diante da exposição acima, para o presente autor, atribuir o texto encontrado em Deuteronômio a Moisés e datá-lo no Segundo Milênio é a opção mais plausível e honesta a se fazer numa perspectiva científica, devido aos fortes paralelos histórico-contextuais com a época de Moisés e com o Segundo Milênio, além da fraqueza na proposta de datação no século VII a.C. que não resiste a um exame histórico e teológico mais acurado. 1.2. A Teologia do Deuteronômio Alguns temas teológicos centrais emanam do livro de Deuteronômio, naturalmente. Um deles é a ação de Yahweh em favor de Seu povo Israel. A história não possui qualquer poder autônomo e seu significado só é compreendido à luz do agir de Deus nela. 33 Israel se encontrava numa situação de escravidão dentro da terra do Egito (Dt 5.6; 6.12, 21; 7.8; 8.14;

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K.A. KITCHEN, The Old Testament in its context 2: from Egypt to the Jordan, p. 9. Meredith G. KLINE, Two tables of the covenant. Westminster Theological Journal, v. 22, no. 2, 1960, p. 140142; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 98-99. 30 K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 92-97; ________________, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 126-127. 31 K.A. KITCHEN, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 128129; ______________, Ancient Orient and Old Testament, p. 96. 32 Meredith G. KLINE, op. cit., p. 139-141; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament. p. 95; ______________, The fall and rise of covenant, law and treaty. Tyndale Bulletin, v. 40, no. 1, 1989, p. 132-133. 33 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 217. Ver, também, William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 136-137. 29

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15.15; 24.18), descrita em termos vívidos como uma fornalha de ferro (4.20).34 Yahweh age em prol de seu povo, tirando-os35 daquela situação hostil debaixo do poder do Faraó (4.20, 37; 5.15). Ao tirar Israel do Egito, Deus o resgatava, isto é, libertava-o do poder egípcio e o tomava como propriedade sua (9.26; 15.15; cf. 7.8; 24.18).36 A salvação da terra da servidão operada por Yahweh, destaca seu poder e presença como expressam os termos “mão poderosa”, “braço forte”, “provas, sinais miraculosos e maravilhas” (4.34; 5.15; 6.22; 7.19). 37 Deste modo, Yahweh é retratado como o Deus Guerreiro que luta por Israel não apenas no êxodo do Egito (1.30), mas, também, quando Israel enfrenta inimigos antes de sua entrada na terra prometida, como Seom, rei de Hesbom e Ogue, rei de Basã (2.33-34; 3.1-2, 21-22). Isso fortaleceria a confiança israelita no poder de Deus para as batalhas que viriam durante a conquista de Canaã (1.30; 3.21-22).38 A presença ativa do Senhor no meio de Seu povo, também, pode ser vista no sustento de Israel durante sua peregrinação no deserto. Yahweh é retratado como um pai que carrega seu filho no colo (1.31) e seu cuidado é evidente por meio da orientação sobre o caminho a seguir, com a coluna de fogo, à noite e a nuvem, de dia (1.32-33). O suprimento de Deus para com Israel é tão suficiente que o Deuteronômio nega a falta de qualquer coisa durante a jornada (2.7). A ausência temporária de alimento no meio do deserto é vista como um fato positivo, tencionando a preparação de Israel para a entrada em Canaã, no qual Deus provou o coração do povo para ver sua dependência dele, disposição em obedecê-lo e, também, para ensinar a importância fundamental de sua revelação (8.1-5).39 Ainda assim, a provisão do maná, as roupas não gastas e os pés sem inchação durante tanto tempo de peregrinação, evidenciam a ação de Yahweh em favor de Israel (8.3-4). A atividade sobrenatural de Yahweh, libertando, derrotando os inimigos e provendo orientação e suprimento necessários no deserto ao povo hebreu relaciona-se com outros dois

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J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 70. O verbo hebraico mais comumente empregado pelo Deuteronômio para narrar a libertação de Israel por Deus no Egito é  (y`x~r) no grau Hifil, sendo traduzido como “tirar” (NVI e ARA) ou “fazer sair” (BJ). Ver J. A. THOMPSON, op. cit., p. 70. 36 Ver William B. COKER, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1200-1201. 37 C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 121. 38 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 142; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 168; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 71. 39 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 327-328. 35

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conceitos teológicos centrais: Israel é o povo eleito de Deus e Yahweh é o Senhor da Aliança com Israel.40 A eleição de Israel como povo pactual de Deus se dá não por qualquer mérito que possua, mas simplesmente pela graciosa bondade divina (Dt 4.37; 7.7-8; 10.14-15).41 Tal atitude de Deus é expressa pelos verbos “amar” ( - a`h}b) e “afeiçoar-se” ( - j`v~q). Esta última palavra indica uma afeição íntima e profunda, um apego forte, que Deus tem para com os patriarcas e seus descendentes. 42 Apesar de Yahweh ser o dono de toda a terra e céus e todos os povos lhe pertencerem, Ele amou e se inclinou em favor deles, prometendo-lhes a terra de Canaã (4.36-38; 10.14-15; cf. 7.6-8; 9.4-6).43 A ausência de qualquer qualidade do povo hebreu é realçada pela sua obstinação em não confiar em Deus e, prontamente, desobedecê-lo (9.6ss).44 O verbo hebraico  (B`j~r) ganha realce particular no livro de Deuteronômio enquanto referência a Israel como povo eleito (4.37; 7.6-7; 10.15; 14.2). Em nenhum outro livro do Pentateuco há o uso do verbo neste sentido 45 que, geralmente, é expresso por  (y`d~u), “conhecer”, como exemplifica a referência a Abraão e seus descendentes em Gênesis 18.19, ou pelo verbo (B`d~l) no grau Hifil, “separar”, como em Levítico 20.26.46 Juntamente com , aparece a palavra (s+g%ll>), “propriedade especial” (Dt 7.6; 14.2; 26.18), cujo termo semelhante, em acádico, se utilizava na esfera militar, quando o suserano escolhia um de seus vassalos e dava-lhe o status de “propriedade especial”. 47 O próprio rei poderia ser indicado como “propriedade especial” do deus, como na literatura de Alalakh.48 O substantivo hebraico  ocorre no Antigo Testamento, em seu contexto secular,

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William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 130-131. P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298-299; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 226. 42 Leonard J. COPPES, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 548. 43 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 219-220. 44 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 227. 45 Um uso parecido, mas não totalmente igual, do verbo  ligado ao status de “santo” é feito em Números 16.5, 7 e 17.5. Ali, a escolha e santidade se referem à liderança e sacerdócio do povo hebreu, especificamente a Arão e Moisés como escolhidos e separados por Deus para o ministério que desempenhavam e a rejeição de Corá, Datã, Abirão e boa parte do povo dessa condição dada a eles (cf. 16.1-14, 41-50). Portanto, apesar do uso semelhante do substantivo “santo” e do verbo “escolher”, ainda assim, em Números o destaque não é dado a Israel como escolhido e separado por Deus, mas ao líder do povo e ao sumo-sacerdote. Para mais informações sobre este texto específico, ver Gordon J. WENHAN, Números: introdução e comentário, p. 140-147. 46 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181. 47 Id. Ibid. 48 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 73. 41

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como referência ao ouro e prata que faziam parte dos tesouros reais particulares, cujo uso não se dava para fins ordinários, mas era reservado para propósitos especiais (cf. 1 Cr 29.3; Ec 2.8).49 Assim, o povo de Israel era considerado a propriedade valiosa, o tesouro particular, 50 a coroa de jóias de Yahweh. 51 Esses apontamentos semânticos realçam a singularidade de Israel em seu relacionamento particular e pactual com Yahweh, além de sua responsabilidade de submissão e cooperação na realização dos propósitos do Deus soberano na terra. Diante disso, “a santidade não indica o chamado de Israel (como em Levítico), mas sua condição como resultado da escolha deles por Yahweh”. 52 A santidade não é algo a ser buscado e desenvolvido como no Código de Santidade (Lv 19.2; 20.26) e, sim, o status que impulsiona o povo a ser completamente leal ao seu Deus (Dt 7.1-6; 14.1-2).53 “Trata-se antes de um convite dirigido a Israel, para que se aproprie pessoalmente de uma realidade que já está dada e para que se instale nessa realidade através da obediência e em atitude de gratidão”.54 A escolha amorosa de Yahweh pelos patriarcas o levou a se comprometer, de forma prática, na concessão da terra de Canaã por herança à descendência deles, expulsando as nações que ali habitavam (4.37-38).55 Tanto que a terra é indicada muitas vezes no Deuteronômio como uma dádiva divina (1.20, 25; 2.29; 3.20; 4.40; 5.16, passim)56 prometida aos antepassados (1.35; 8.1; 9.5; 10.11; 11.9, passim).57 Isso se coaduna com outros textos do Pentateuco que falam de Canaã como o presente perpétuo e incondicional de Deus a Abraão e seus filhos (Gn 12.1-3; 15.12-21; 17.1-8; 48.3-4). Tal dádiva era um presente maravilhoso, a “boa terra” (Dt 1.25, 35; 3.25; 4.21-22; 6.18; 11.17), que “mana leite e mel” (Dt 11.29; 26.9, 15; 31.20), “generosamente irrigada, cheia das mais viçosas culturas e de parreiras, com

H. WILDBERGER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p. 792; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon. p. 688. 50 F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, op. cit., loc. cit. 51 H. WILDBERGER, op. cit., p. 792-793. 52 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 142. 53 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 181. 54 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 226. 55 John GOLDINGAY, op. cit., p. 142. 56 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 328. 57 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 130; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 71. 49

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abundância também de riquezas minerais (Dt 8.7-9)”.58 A fertilidade da terra era tamanha que é contrastada com o Egito (uma terra fértil) em Deuteronômio 11.10-12.59 Aqui cabe salientar as observações de Moshe Weinfeld que as promessas feitas aos patriarcas de propriedade da terra eram incondicionais, típicas de “documentos de concessão” do Oriente Médio Antigo (OMA), em que o rei concedia doações a servos reais, dedicados exclusivamente ao seu senhor, com afirmações iguais àquelas feitas por Deus a Abraão: “... darei como propriedade perpétua a você e a seus descendentes... ” (Gn 17.7-8; cf. Dt 1.8). Por outro lado, a renovação da aliança que Deus faz com Israel nas planícies de Moabe, quanto à permanência na terra, era condicional, correspondente aos “tratados de vassalagem” em que se exigia do povo obediência às estipulações da aliança, para que continuasse gozando da paz e permanência em Canaã (Dt 4.25-27; 8.19-20; 11.8-10, 13-17, 22-25; 28.25, 47-52, 62-67).60 O direito de posse da terra sempre seria de Israel, mas o desfrute da permanência nela dependia de cada geração confiar totalmente na Palavra de Yahweh e obedecer aos seus mandamentos (Dt 4.10; 12.1; 31.13).61 Apesar das constantes precauções contra a desobediência e o testemunho quanto ao coração rebelde e obstinado de Israel, que o levará a ser disciplinado por Deus e exterminado da terra no futuro (Dt 4.25-28; 30.1; 32.15-35), há uma esperança escatológica de arrependimento da nação e o recebimento de um coração circuncidado por Deus (4.29-30; 30.2-6), de um retorno para a terra e permanência próspera nela (4.31; 30.3-6, 9) e da vingança de Deus em prol de seu povo contra os seus inimigos (30.7; 32.39-43).62 A razão para essa esperança futura se dá pelo caráter gracioso e fiel de Yahweh que mantém seu compromisso de aliança com os pais da nação (4.31).

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Gerhard VON RAD Teologia do Antigo Testamento, p. 220. Ibid. p. 220-221. 60 Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 180. A falta de percepção da relação destes elementos histórico-contextuais com o Deuteronômio leva a uma abordagem confusa desta obra bíblica, como se vê em Robert POLZIN, “Deuteronômio”. In: Robert ALTER, Frank KERMODE, Guia literário da Bíblia, p. 113-114. O conhecimento destes dois tipos de tratados, também, torna desnecessárias as conclusões como a de von Rad, que afirma uma preponderância da lei sobre o evangelho nas adições posteriores de Deuteronômio (Gerhard VON RAD, Studies in Deuteronomy, p. 72). 61 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 161. 62 Quanto à perspectiva profética e escatológica destes textos, ver Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 169, 178179; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 272-273. Este último, comentando sobre o texto de Deuteronômio 30.1-10, diz: “Em termos candentes a passagem descreve o estado final de bênção divina” e “O amplo quadro de bênção e cura do povo num dia futuro tem um forte paralelo em todo o capítulo 32 de Jeremias”. 59

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A supremacia e transcendência de Yahweh, o Senhor da aliança, são bem destacadas no livro de Deuteronômio.63 Yahweh é o possuidor da terra, dos céus e dos “céus dos céus”, o que incluía os corpos celestes adorados pelos vizinhos pagãos de Israel (Dt 10.14). 64 Mas, o Deus de Israel se distingue e está acima de sua criação, jamais podendo ser confundido com ela (4.15-20).65 Ele, também, se encontra acima de todas as nações e exerce sua soberania sobre elas (7.17-19),66 é o “Deus dos deuses e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível” (10.17). “Mesmo que alguém em Israel admitisse a existência de outros deuses, a afirmação de que somente Javé era Soberano e único objeto da obediência de Israel fazia soar o toque fúnebre para quaisquer posições inferiores ao monoteísmo”. 67 Deste modo, atrelada à soberania divina está a sua singularidade. O famoso credo de Deuteronômio 6.4 destaca que “Yahweh, nosso Deus, Yahweh é único”, 68 indicando o caráter singular de Yahweh, sem igual, que não poderia ser comparado nem emulado. Aqui, provavelmente, há um antídoto contra o perigo do sincretismo religioso cananeu, impedindo qualquer associação com Baal. 69 Von Rad observa que a singularidade do caráter de Yahweh servia de base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7). Enquanto Baal se revelava em qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da natureza, o culto a Yahweh tinha sua característica única e centralizadora, distinta da forma como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu. 70

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John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 325. Carlos Osvaldo PINTO Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165. 65 Paul House observa: “Por Yahweh ser o criador, quaisquer deuses que supostamente existam teriam de ser feitos por ele, e o cânon não contempla tal possibilidade. Os atos de Deus na história removem qualquer dúvida de que Israel deve fidelidade absoluta ao seu Deus como a única divindade viva” (Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 219). 66 George L. ROBINSON, “Deuteronomy”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado). 67 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 118. Ballarini afirma: “O orador não se preocupa com a existência ou não de outros deuses: o que ele quer acima de tudo é sublinhar o fato de não terem poder algum; e um Deus sem poder não merece consideração. Javé é a fonte de toda a autoridade, de todo o poder, de todo o criado, só dele é que depende o universo” (P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 298). A dificuldade com essa conclusão é que outros textos do Deuteronômio, que o próprio Ballarini cita em seu livro, deixam muito clara a inexistência de qualquer outro deus além de Yahweh (cf. Dt 4.35, 39; 32.39). 68 A tradução de  (a#j^d) como “único”, indicando a exclusividade da divindade de Yahweh, parece ser a melhor tradução do termo, tendo em vista o próprio contexto que exige de Israel um coração totalmente consagrado a Ele como o único Deus de sua devoção (Dt 6.5). Ver Herbert WOLF, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 47-49; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224, 228. 69 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 165. 70 Gerhard VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p. 222-223; Ver, também, John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 150. 64

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Este apontamento requer uma consideração, pois, a ênfase em um santuário central é constante no livro de Deuteronômio. O capítulo 12 trata, de modo específico, da adoração central a Yahweh com as expressões “no lugar que o SENHOR escolher para ali pôr o seu nome [dentre todas as tribos – v. 5]” e “no lugar que o SENHOR escolher [numa das suas tribos – v. 14]” (cf. Dt 12.5, 11, 14, 18, 21, 26). O contexto que cerca as ordens acerca do lugar escolhido por Deus para adoração mostra uma preocupação com a multiplicidade de locais usados pelos cananeus para prestar culto a seus deuses e seu caráter abominável a Yahweh, tanto no começo quanto no final desta seção (12.1-3, 29-32).71 Além deste texto, outras partes que tratam da entrega do dízimo (14.23-25), das festas religiosas (16.2, 6-7, 11, 15-17), das primícias (26.2) e da leitura da lei a cada sete anos diante de todo o povo (31.11) enfatizam a necessidade do adorador ir até o santuário escolhido por Deus, determinando um lugar cúltico centralizado.72 Como Walter Kaiser notou, isso, de modo algum, é uma ordem contrária a Êxodo 20.24 que fala sobre ofertas e holocaustos levados a “todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome”, desde que o Deuteronômio não lança uma polêmica sobre um altar de Yahweh contra os muitos altares de Yahweh, mas sim, contra o caráter corruptor da religião cananita. 73 Isso é reforçado, ainda, pela menção do erguimento de um altar no monte Ebal em Deuteronômio 27.1-8.74 Tal localização “não é jamais denominada o lugar, nem [sic] tampouco ali ficaram a Arca ou a Tenda da Congregação”.75 Enquanto no livro de Êxodo a ordenança se destina à comunidade peregrina do deserto, em Deuteronômio, Moisés estabelece o modus operandi cúltico de um povo que está prestes a estabelecer-se em Canaã, num sistema de vida sedentário. A singularidade de Deus é afirmada de modo bem explícito em outros textos, além do v+m~a, como Deuteronômio 4.35: “A ti te foi mostrado para que soubesses que o Senhor é Deus; nenhum outro há, senão ele” (cf. 4.39; 32.39).76 Por ser o único Deus, Yahweh exige a devoção e adoração exclusiva de Israel, sua “propriedade especial” e seu povo escolhido, não

Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 92-93. 72 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 40-41. 73 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135; C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 79. 74 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 135-137. 75 J. A. THOMPSON, op. cit, p. 40-41. 76 “Dificilmente seria possível fazer uma declaração monoteísta mais clara do que essa” (Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 219). 71

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admitindo qualquer concorrente (Dt 7.5-6). Ele é Deus zeloso que pune com a morte os que o abandonam, para ir em busca de ídolos e outros deuses (Dt 4.23-24; 5.8-9; 6.14-15; 13.2-11; 17.2-7).77 Não apenas a adoração a outros deuses, como a própria forma na qual ela ocorria, deveria ser evitada por Israel (4.15-19; 12.29-31; 14.1-2).78 Em resposta à singularidade de Yahweh e à sua ação graciosa na eleição, libertação do Egito e concessão da terra, Israel é chamado a amá-lo com todo o seu coração, não dividindo este amor com ninguém mais (Dt 6.5),79 e a confiar exclusivamente nele, não em outras fontes (17.16-20).80 Outros verbos destacam a necessidade do comprometimento de Israel a seu Deus, como servi-lo (6.13; 11.13), apegar-se a Ele (10.20; 13.4), temê-lo (4.10; 6.2; 8.6) e andar em seus caminhos (8.6; 10.12). Sua lealdade deveria ser completa e indivisível (18.13; cf. 11.13, 16-17, 32).81 A fidelidade israelita experimentaria a própria fidelidade do Deus da aliança (4.31; 29.12-13), sua Rocha (Dt 32.4), expressa mediante seu “amor leal” ( - j#s#d) para com Israel (5.10; 7.9, 12). 1.3. A Perspectiva Histórica do Deuteronômio e sua Influência sobre os Profetas Anteriores O clássico livro de Martin Noth, Überlieferungsgeschichtliche Studien, 82 se caracterizou como um marco dentro dos estudos de Deuteronômio e dos Profetas Anteriores. A proposta de Noth foi que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma unidade literária, escrita por um autor, chamado de “Deuteronomista”, na metade do século VI a.C., pouco após a libertação do rei Joaquim da prisão em 562 a.C. (cf. 2 Rs 25.27-30).83 Diante das catástrofes históricas do exílio, tanto de Israel quanto de Judá, o autor buscou explicar o motivo do sofrimento de seu povo como caracterizado pelo declínio constante de sua lealdade

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John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 326; Carlos Osvaldo PINTO, e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 165-166. 78 John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 148-150. 79 P. Teodorico BALLARINI (Dir.), Introdução à Bíblia: com antologia exegética, v. 1. p. 299; C. PIEPENBRING, Theology of the Old Testament, p. 76-77. 80 John GOLDINGAY, op. cit., p. 147. “O fato de que o Deus que livrou Israel da escravidão egípcia é o único Deus verdadeiro é central na apresentação que Deuteronômio faz da aliança. Porque só há um Deus, ele exige a lealdade total do seu povo” (Eugene MERRIL, “Deuteronômio”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico Vida Nova, p. 211). 81 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 74. 82 A obra em inglês foi traduzida quase quarenta anos depois de sua primeira edição em alemão: NOTH, Martin. The Deuteronomistic History. Sheffield: JSOT, 1981. 83 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 210-211. Cf. Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 113. 19

a Yahweh, desobedecendo às estipulações contidas na lei deuteronômica.84 Para isso, o deuteronomista fez uso de tradições históricas existentes, modelou a obra com seus próprios comentários e descreveu a história de Israel, desde a conquista até o cativeiro, como objeto do julgamento divino previsto pelo próprio Deuteronômio (cf. Dt 4.25ss; 28.15ss).85 Apesar deste autor discordar das conclusões de Noth quanto à autoria e datação dos Profetas Anteriores, e mesmo diante de objeções como a de Van Groningen quanto ao fato de não haver um molde teológico deuteronômico nas obras de Josué a Reis, 86 parece impossível negar o valor das contribuições de Martin Noth no campo teológico e hermenêutico, como Kaiser e House outrora observaram. 87 “(...) os Profetas Anteriores (...) foram influenciados por Deuteronômio e por seu conceito de aliança. Esse conceito destaca a fidelidade à aliança e o culto exclusivo a Deus, explicando como a história é afetada pela moralidade da nação”. 88 É plausível, portanto, perceber e observar a forte unidade temática que há entre os Profetas Anteriores e o Deuteronômio, seja no que diz respeito ao tema do santuário central ou quanto à linha da ação abençoadora e disciplinadora de Deus na vida de Israel, sem, todavia, perder de vista as peculiaridades de cada livro ou tentar impor um molde rígido Deuteronomista/Josiânico que os enfraqueça como narrativa e teologia. 89 Como House afirmou: A hipótese de Noth tem implicações canônicas significativas, visto que faz de Deuteronômio o pai teológico de quatro livros subseqüentes. Que Deuteronômio desempenha essa função é algo que pode-se [sic] afirmar (...) Certamente um livro mosaico poderia estar numa posição de tal autoridade a ponto de ser usado como guia para reflexão teológica. (2005, p. 215)

Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 2; Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 161. 85 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 27-28. 86 Gerhard VAN GRONINGEN, Joshua – II Kings: Deuteronomistic? Priestly? Or prophetic writing?. Bulletin of the Evangelical Theological Society, v. 12, no.1, 1969. p. 24-26. 87 Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 127; Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 213-215. Ver, também, Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 556-557. 88 Kenneth A. MATHEWS, “Os livros históricos”. In: David S. DOCKERY (Ed.), Manual bíblico Vida Nova, p. 223. 89 Id., Ibid.; cf. J. Gordon MCCONVILLE, The Old Testament Historical Books in the modern scholarship. Themelios, v. 22, n. 3, 1997, p. 9-11. 84

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A rememoração da história israelita feita por Moisés nos quatro primeiros capítulos de Deuteronômio introduz um molde de interpretação teológica da história, que será tomado mais à frente no próprio livro e na historiografia hebraica posterior.90 Percebe-se uma ênfase na graça e fidelidade de Yahweh pelas vitórias recentes sobre Seom, rei de Hesbom (Dt 2.24-37) e sobre Ogue, rei de Basã (3.1-11), apesar de todos os obstáculos possíveis como cidades fortificadas com muros altos (2.36; 3.5-6) e inimigos com características físicas amedrontadoras (3.11).91 Tal graça e fidelidade divinas é que dão segurança a Israel de que vencerá os inimigos cananeus e tomará posse da terra (3.18-22; cf. 1.6-8). Por outro lado, a justiça divina, também, é destacada contra a rebelião do povo, no prólogo histórico. A falta de confiança no poder de Deus para a conquista de Canaã por parte da geração que saiu do Egito, levou-a a vagar durante quase quarenta anos no deserto e não entrou na terra prometida (1.26-40; 2.14-15). Isso ocorreu devido à ira de Deus (1.34-36) que julgou a maldade do povo com sua justa “mão” (2.15). A derrota infligida pelos amorreus que viviam nas montanhas mostra o abandono de Deus aos israelitas que buscam a vitória por suas próprias forças, em oposição à palavra de Yahweh (1.42-45). Além destes incidentes, Deus, também, executou sua ira contra aqueles homens de Israel que se entregaram à idolatria moabita de Baal-Peor (4.3-4). A graça e juízo de Deus são dois enfoques conjuntos expressos no Deuteronômio para a nova fase de vida dentro da terra prometida. Se o povo abandonar a Deus e suas ordenanças, para seguir deuses estranhos, experimentará a justa ira de Yahweh, por meio da infertilidade da terra, doenças, fome, opressão dos inimigos e, logo, serão eliminados de Canaã (4.25-28; 28.15-68; 29.18-28; 30.17-18). Todavia, se forem obedientes e leais a Ele, guardando e cumprindo os seus mandamentos, certamente, gozarão de bênção plena da parte de Yahweh, como a fertilidade humana, da terra e do rebanho, a supremacia militar e política sobre as demais nações e a fartura de alimento (6.12-16; 28.1-14; 30.9-10). Deuteronômio 27 e 28 é o oferecimento sincero ou de graça divina ou de juízo divino. O fato de que Deus chega a revelar essa proposta de relacionamento constitui graça, pois seres humanos não possuem meio algum de discernir a vontade de Yahweh sem direção claramente dada por Yahweh. Por isso, a oportunidade de os israelitas receberem bênçãos por fazer o que devem fazer como criaturas de Deus representa uma graciosidade ampliada e inesperada. Rejeitar a graça traz catástrofe

90 91

Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 220. C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the Old Testament: The Pentateuch, v. 3, p. 302-303. 21

certa. O juízo de Yahweh sempre acompanha a graça rejeitada. (House, 2005, p. 242).

A reversão da sorte israelita de juízo para a graça é algo significativo, também, em Deuteronômio. O destaque dado ao arrependimento, caracterizado pelo verbo hebraico (vWb) em Deuteronômio 4.29-31 e 30.1-10, mostra a Israel que, mesmo em meio à desgraça nacional do cativeiro como julgamento divino por sua apostasia, há esperança de restauração em seu relacionamento com Yahweh e de retorno ao desfrute de suas bênçãos. Tal certeza do perdão e restauração divinos se dá pela misericórdia de Yahweh, expressos pelo verbo (r>j^m) e o adjetivo  (r~jWm) nos textos de 4.31 e 30.3. Mas, isso requer um arrependimento de “todo o teu coração” e “toda a tua alma”, isto é, uma inclinação à voz do Senhor “segundo tudo o que hoje te ordeno” (4.29 e 30.2). A resposta divina de salvação ou de julgamento à obediência ou desobediência de seu povo, bem como o arrependimento como ponto conversor do juízo para a graça, servem de base teológica para historiografia israelita de Josué a Reis. 92 Em linhas gerais, pode-se concordar com o que Norman Gottwald afirma sobre a perspectiva histórico-teológica deuteronômica dos Profetas Anteriores: Representações e avaliações destes períodos [de Moisés até o exílio] são formuladas em relação como a Lei dada a Israel por meio de Moisés (Dt 12-26), foi cumprida ou violada no decorrer da história. O Deuteronômio serve de liderador programático do bloco para o que se segue em Josué até Reis (...) É característico do autorcompilador de HD [História Deuteronomista] suprir os principais períodos históricos com passagens interpretativas na forma de exames introdutórios e sumários, discursos e orações (...) Estes suplementos interpretativos periodizam e matizam os materiais mais antigos incluídos e ligam os quatro períodos históricos segundo o programa moral-teológico estabelecido no Deuteronômio (Gottwald, 1988, p. 180).93

Diante disso, nesta parte da dissertação, serão abordados, de forma sucinta, os textos de Josué 23, Juízes 3.7-11, 1 Samuel 7.2-14 e 2 Reis 17.7-23, que exemplificam o uso da moldura pactual deuteronômica para a compreensão da história israelita.94

Roy D. WELLS, “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: Watson E MILLS, Roger Aubrey BULLARD (Eds), Mercer Dictionary of the Bible, p. 210-211; Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 140-146; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 14-15. 93 Este autor discorda de Gottwald quando o mesmo afirma que certos discursos e orações foram “colocados freqüentemente na boca de personagens principais” e que os suplementos interpretativos da História Deuteronômica são sempre posteriores os “materiais mais antigos” (cf. Norman K. GOTTWALD, op. cit., p. 180). Há uma convicção por parte do autor de que os materiais interpretativos da HD possuem fundamento históricos, não sendo invenções de um historiador deuteronomista. 94 Steven MACKENZIE, “Deuteronomistic history”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p. 161. 92

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Em Josué 23, após a conquista inicial e fundamental de Canaã (v. 1), o líder nacional convocou a liderança de Israel e os exortou a darem seqüência à tomada da terra prometida (vv. 2-4). A conquista é vista como bênção graciosa de Deus dada a Israel (v. 3, 9-10) em resposta à confiança e obediência do povo a Ele (vv. 6-8; cf. 1.6-9).95 Ao mesmo tempo, há uma ameaça prevista por Josué que reflete a perspectiva deuteronômica: se Israel não cumprir o mandamento divino de eliminar as nações que ainda restam diante de si (v. 12; cf. Dt 7.1-6) e se prostituir diante de seus deuses (v. 16), será disciplinado por Deus e eliminado da terra (v. 13, 15).96 No texto de Juízes 3.7-11, há a primeira narrativa específica sobre a história cíclica que caracterizou este período. Os israelitas desobedecem a Deus e se prostituem perante os deuses cananeus (v. 7), então, Yahweh os pune em sua ira com um governante estrangeiro opressor (v. 8; cf. Dt 28.25, 33). A nação se volta arrependida para Deus, clamando por libertação (v. 9),97 e o Senhor em sua graça infinita atende o clamor de seu povo e o liberta da opressão, revertendo a situação de juízo para a bênção da paz na terra (vv. 10-11; cf. Dt 4.3031). 1 Samuel 7.2-14 inicia com a descrição do clamor israelita em meio à opressão filistéia (7.2-3). A razão para tal desventura, novamente, é sua deslealdade a Yahweh na prática da idolatria (v. 3). Diante do apelo do profeta Samuel, o povo se arrepende de tal maldade e reconhece seu pecado diante do Senhor, lança fora suas imagens e passa a cultuar unicamente a Yahweh (vv. 3-6). Devido à disposição do povo em ouvir a palavra do profeta e obedecer ao Senhor, este lhes concede vitória na batalha contra os filisteus, juntamente com a reconquista de suas cidades e libertação das mãos de seus inimigos num novo período de paz (vv. 8-14). O historiador do livro de Reis busca explicar o cativeiro do Reino do Norte mediante uma fundamentação teológica claramente deuteronômica. Israel demonstra ingratidão para com seu Deus que o tirara do Egito e se envolve tanto com os deuses da terra de Canaã quanto com a prática idólatra introduzida pelos seus reis (vv. 7-12, 21-22; cf. Dt 4.15-20). O texto descreve o envolvimento israelita com a adoração ao exército celestial (v. 16; cf. Dt 13.2-6) e Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 160-161. 96 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 181. 97 Cf. 1 Samuel 12.9-10. Ver Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 229230; Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 142. Para uma posição diferente, que vê o arrependimento de Israel como superficial, cf. K. GOTTWALD, op. cit., p. 184. 95

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com a idolatria comum em Canaã, chegando ao ponto de oferecerem seus próprios filhos em sacrifício (v. 16-17; cf. Dt 12.30-31). Apesar do chamado profético para que o povo se voltasse (vWb) para Deus em uma obediência completa (v. 13), conforme a esperança Deuteronômica da reversão de sorte,98 não houve qualquer resposta positiva da parte do povo (vv. 14-15).99 Diante da contínua dureza de coração de Israel para ouvir o chamado divino, tanto a população do reino do Norte quanto Judá são eliminados da terra (vv. 18-20, 23),100 como cumprimento da palavra divina anunciada por Moisés nas planícies de Moabe (cf. Dt 4.25-27; 28.49ss). Mediante os exemplos acima, torna-se nítida a influência exercida pelo Deuteronômio sobre a maneira como os autores da historiografia sagrada, de Josué a Reis, enxergavam a história da nação, desde sua conquista até o cativeiro. Deus julga o seu povo quando este o desobedece, ao mesmo tempo, o abençoa quando o povo se arrepende, anda em fidelidade e confia nele. Isso abre espaço para a análise mais específica do texto de 1 Samuel 1.1 – 2.10 e sua relação histórico-teológica com o Deuteronômio.

98

Walter C. KAISER, Teologia do Antigo Testamento, p. 142. K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia hebraica, p. 220. 100 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 441-442. 99

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2.

A TEOLOGIA DA HISTÓRIA E POÉTICA DE ANA E SUA RELAÇÃO COM O DEUTERONÔMIO Como assinalado acima, a influência teológica e de perspectiva histórica do livro de

Deuteronômio sobre a literatura dos Profetas Anteriores é muito perceptível. “Vários outros traços estilísticos, lingüísticos e temáticos são compartilhados pelo livro de Deuteronômio até o livro de Reis”.101 Assim, este capítulo observará os principais temas teológicos encontrados na narrativa de 1 Samuel 1.1-28 e na poesia de 1 Samuel 2.1-10, que evidenciam conexões importantes com a obra central de Deuteronômio. 2.1. Introdução à Narrativa e Poesia de 1 Samuel 1.1 – 2.10 A narrativa da desventura de Ana e sua libertação por meio da dádiva divina de um filho (1 Sm 1.1-28), geralmente, é vista como parte de um bloco de tradição maior da obra de Samuel que inclui os capítulos 1 – 3, conhecida como coleção das “tradições de Siló”, 102 usada pelos editores deuteronomistas que mantiveram a narrativa basicamente intacta, com pequenas adições.103 O bloco que contém o relato do nascimento de Samuel e seu surgimento como profeta de Yahweh (3.1 – 4.1a), também, é visto como parte de tradições proféticas contidas no livro.104 O cântico de Ana (2.1-10), por sua referência ao rei (v. 10), sugere, para muitos teólogos, uma redação posterior à época dos juízes, mais propriamente durante a monarquia e, possivelmente, anterior ao exílio.105 Há a proposta de que devido às expressões “inimigos”, “libertação”, “não é pela força que o homem prevalece,” et al, o Sitz im Leben da composição

Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 556. 102 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 31; Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 4; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 22-24. 103 Claus WESTERMANN, Handbook to the Old Testament, p. 104; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, p. 220; Robert P. GORDON, op. cit., p. 22-24; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. XXX; Marc BRETTLER, The composition of 1 Samuel 1 and 2. Journal of Biblical Literature, v. 116, no. 4, 1997, p. 601-612. 104 Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, op. cit., p. 220; Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 32; Claus WESTERMANN, op. cit., p. 104, 109. 105 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 14-15; Robert P. GORDON, op. cit., p. 23; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, op. cit., p. 221-222. 101

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deva ter ocorrido numa situação de vitória militar israelita contra um inimigo estrangeiro. 106 Para este autor é totalmente improvável que o cântico fora composto posteriormente e nada tivesse a ver com a história que o editor de Samuel relaciona pelas palavras w^tT]tP^L@l j^N> w^tT)am^r (“e orou Ana ao Senhor, dizendo:”). A sugestão de Joyce Baldwin, iluminada pelo comentário de Albright, de que Ana possa ter cantado um hino antigo,107 o qual fazia parte de uma coletânea de outros cânticos, é bem provável. 108 Além disso, não existe qualquer impedimento de se ver o verso 10 como um suplemento posterior ao cântico, na época do advento da monarquia, assim como ocorreu na edição pós-exílica do Salmo 51 de Davi (cf. vv. 18-19).109 Não há a necessidade de se adotar a tese de Noth ou as propostas derivadas dela, de um autor ou editores deuteronomistas exílico(s) e pré-exílicos e, assim, pressupor os Profetas Anteriores como uma produção conjunta.110 Como Baldwin pontuou: Depois de 200 anos de crítica bíblica no Ocidente, é preciso encarar o fato de que mesmo conceitos estabelecidos, tais como o Pentateuco, têm sido abalados por teorias conflitantes quanto à autoria. Na ausência de critérios objetivos, não há qualquer maneira, fora do consenso entre os estudiosos, que dura algum tempo, porém aberto a novas tendências, de avaliar todo o árduo trabalho dispendido [sic] na busca de fontes, mas que resultou num número tão variado de possibilidades. (1996, p. 33)

Sem dúvida alguma, o livro de Samuel foi produto de um trabalho editorial, que uniu fontes das várias épocas da história de Israel e as tornou compreensíveis dentro de uma grande narrativa.111 A edição do livro deve ter ocorrido, pelo menos, posteriormente ao fim do reinado de Davi (970 a.C.), desde que reporta “as últimas palavras” do rei (2 Sm 23.1).112 Provavelmente, foi composto durante a monarquia dividida, após 930 a.C., devido à indicação de que Ziclague pertencia aos reis de Judá “até os dias de hoje” (1 Sm 27.6).113 A ausência de

106

Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 15. Êxodo 15 e Juízes 5 trazem dois exemplos de poesia antiga. 108 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 61-62; Cf. Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 79. 109 Robert P. GORDON, op. cit., p. 23; Joyce G. BALDWIN, op cit., p. 62-63. 110 Para a proposta de Noth e outros insights a partir dela tanto para os Profetas Anteriores quanto para Samuel, ver: Martin NOTH, The Deuteronomistic History, passim; Anthony F. CAMPBELL, Mark A. O’BRIEN, Unfolding the deuteronomistic history: origins, upgrades, present text, passim.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. XXVIII-XXXII; Robert P. GORDON, op. cit., p. 20-21. 111 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 2; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 180. Ver, por exemplo, a menção ao “livro dos Justos” em 2 Samuel 1.18. 112 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 554. 113 Id., Ibid.; Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 253. 107

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qualquer menção à queda de Samaria pode indicar que a obra fora concluída até antes de 722 a.C.114 Portanto, é plausível uma datação para a edição do livro entre 930 e 722 a.C. A história narrada no primeiro capítulo do livro de Samuel e que serve como pano de fundo para a poesia cantada por Ana, ocorre no final da época tenebrosa dos juízes, quando Eli exercia tal função de liderança em Israel (cf. 1 Sm 4.18).115 O texto começa com a genealogia de um homem chamado Elcana que, provavelmente, era um levita (cf. 1 Cr 6.16, 22, 31-33) cuja família vivia na região montanhosa de Efraim, no povoado de Ramataim ou Ramá (1 Sm 1.1; cf. 1.19; 7.17).116 Elcana é retratado, logo no início da narrativa, como um bígamo cujas esposas se chamavam Ana, a primeira, e Penina, a segunda (1 Sm 1.2).117 Tal situação sugere que Elcana era um homem de posses118 e, provavelmente, tomou uma segunda esposa com o propósito de dar seqüência à sua descendência, já que Ana era estéril. 119 Este fato serve como introdução ao ponto central da narrativa. Era costume de Elcana subir, anualmente, talvez durante a festa dos tabernáculos (cf. Jz 21.19-21),120 ao santuário em Siló que, desde a conquista, ocupava uma posição central na vida cúltica israelita e passou a ser o lugar onde repousava a Arca da Aliança (Js 18.1; Jz 18.31; 1 Sm 4.3-4).121 Ali, ele cumpria seus deveres como adorador de “Yahweh dos exércitos”,122 oferecendo sacrifícios (1 Sm 1.3). Siló era o lugar onde vivia o sacerdote e juiz Eli, juntamente com seus dois filhos, Hofni e Finéias, os quais serviam a Yahweh no santuário. Ambos são introduzidos nesta passagem como contraponto à piedade de Elcana, pois, a maldade dos dois será desmascarada mais à frente na narrativa (cf. 1 Sm 2.12ss).123

114

Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 253. Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 571; Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 267; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 71; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 8. 116 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 56-57. 117 A seqüência em que os nomes aparecem na apresentação das duas esposas, juntamente com a indicação de que Ana era a primeira ( - a^j^t) e Penina, a segunda ( - h^v@n't), sugerem fortemente que os casamentos ocorreram em tal seqüência. Ver, também, KLEIN, Ralph W. op. cit. p. 6. 118 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. 119 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 6; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 572. 120 William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 181; Robert P. GORDON, op. cit., p. 71. 121 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 36; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. 122 Para uma explicação sobre o sentido do termo e sua origem, ver o sub-ponto seguinte deste trabalho e os comentários de Robert P. GORDON, op. cit., p. 71-72; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. 123 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 58. 115

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A refeição familiar em acompanhamento ao sacrifício sugere que Elcana oferecia ofertas pacíficas, nas quais o adorador compartilhava do alimento com os sacerdotes (1 Sm 1.4-5; Lv 7.11-18).124 Neste momento, a diferença gritante entre Ana e Penina ficava nítida, pois, esta compartilhava de tal momento com “todos os seus filhos e filhas”, enquanto a outra, apesar de receber uma parte honrosa da refeição de seu marido, 125 deparava-se com os resultados solitários da infertilidade. Somado a isso, Penina, ao perceber a afeição maior do marido por Ana, irritava-a de modo insistente e excessivo, o que gerava maior tristeza e ira em Ana (1 Sm 1.6-8).126 Diante da provocação constante da rival, numa das peregrinações ao santuário em Siló, Ana derrama sua alma diante de Yahweh, reconhece sua posição de serva e clama pela bênção de um filho, o qual promete dedicar ao Senhor como um nazireu (1 Sm 1.9-11; cf. Nm 6.1-21; Jz 13.5).127 Em meio a tamanha dor e angústia, Ana orava em voz baixa, apenas com os lábios em movimento (1 Sm 1.12-13), um modo diferente das orações cúlticas israelitas (Ver Sl 3.4; 64.1).128 Isso levou o sacerdote Eli a julgá-la e repreendê-la por embriaguez, já que havia bebida em festas religiosas (1 Sm 1.13-14; cf. Jz 21.19-21; Is 28.7).129 Logo após a repreensão do sacerdote, Ana explica sua situação de angústia e de oração perante Yahweh, em total sobriedade (1Sm 1.15-16). Eli percebe a sinceridade dela e invoca a bênção de Deus sobre sua petição (v. 17; cf. Nm 6.22ss). Confiante na resposta divina ao seu pedido, talvez por ouvir a bênção sacerdotal, 130 Ana volta para participar da refeição religiosa, não mais triste como antes (vv. 18). O texto comenta que, após isso, Yahweh agiu em prol de Ana e lhe concedeu um filho, a quem deu o nome de Samuel, reconhecendo que seu pedido fora “ouvido por Deus” (1 Sm 1.19-20).131

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Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 16; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 58. H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 24. Hertzberg sugere alguns sentidos possíveis para a palavra hebraica  (a^pP`y!m) que ajudam no entendimento desta expressão incomum. 126 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 571-572. 127 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 59; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 8; Mary J. EVANS, op. cit., p. 18. 128 H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25; William S. LASOR, David A. HUBBARD, Frederic W. BUSH, Introdução ao Antigo Testamento, p. 182. 129 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 9; H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25. 130 Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 59; H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 25; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 574. 131 Tony W. CARTLEDGE, Hanna asked and God heard. Review and Expositor, v. 99, Spring 2002, p. 143-144. Cartledge oferece uma boa explicação para o nome, com exemplos da literatura do oriente antigo, na qual Ana reconhece que Deus ouvira sua oração. Assim o nome (v+mWa@l) deriva da junção do verbo (vmU) no particípio passivo e o substantivo  (a@l), significando “ouvido por Deus”. Ver a mesma proposta etimológica do nome em C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 25. 125

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No decorrer da narrativa, fica claro que a dedicação do menino a Deus incluía sua consagração ao trabalho no santuário por toda a vida (1 Sm 1.21-22). Seu marido Elcana consente com o voto da esposa (cf. Nm 30.6-8, 10ss),132 e invoca a capacitação divina para que Ana cumpra com seu compromisso perante Yahweh (v. 23).133 Isso ocorre, provavelmente, por volta dos três anos de idade ou um pouco mais, depois que Samuel é desmamado (cf. 2 Macabeus 7.27).134 Quando sobe para entregar o menino aos cuidados de Eli, para o serviço de Yahweh, em Siló, Ana leva as ofertas necessárias, e as oferece em sinal de gratidão a Deus (1 Sm 1.24-25).135 Então, lembra a Eli de que Samuel era a resposta graciosa divina àquela oração em que se derramara diante de Deus, na presença do próprio Eli, clamando por um filho (1 Sm 1.25-27).136 Finalmente, o menino é confiado aos cuidados do sacerdote e dedicado a Yahweh por toda a sua vida (v. 28). Com tal introdução ao texto e panorama da história, agora, passa-se a empreender a tarefa de compreensão da teologia que permeia o texto de 1 Samuel 1.1 – 2.10 em sua relação com o Deuteronômio. 2.2. A Teologia da Narrativa e Poesia de Ana e Sua Perspectiva Deuteronômica A história e cântico de Ana apresentam uma riqueza de temas teológicos sobre Deus, sua ação na história e o viver piedoso de uma israelita na terra concedida por Yahweh, em seu amor leal a Israel. Nesta parte do trabalho, serão desenvolvidos aqueles pontos que mais se destacam no texto e que possuem uma conexão clara com o Deuteronômio. 2.2.1. A ação soberana e compassiva de Yahweh em favor dos escolhidos e necessitados Um ponto teologicamente importante, visível tanto na narrativa quanto na poesia de Ana, é a atividade soberana e graciosa de Deus na história, agindo em favor dos piedosos e H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 28; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 574. 133 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 60; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p.10. 134 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 19; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 77; H.W. HERTZBERG, op. cit., p. 28 135 As observações de Baldwin em favor da leitura do texto Massorético no verso 24 (“três novilhos”) são bem plausíveis. Ela observa que havia três ofertas a serem feitas por Ana, conforme instituído pelo livro de Levítico: a oferta queimada, a de purificação e a oferta pacífica em cumprimento de um voto. Além disso, um efa de farinha equivalia a três vezes mais da quantidade normal a ser oferecida com um touro (Nm 15.9). Ver Joyce G. BALDWIN, op. cit., p. 60. 136 Há um nítido jogo de palavras com o verbo (v*a^l) no versos 27-28 que ressalta a gratidão de Ana por receber o que “pediu” do Senhor e alegremente o “devolver” ou “dedicar”. Ver Robert P. GORDON, op. cit., p. 78; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 577-578. 132

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necessitados.137 Desde o início da história, Yahweh se encontra ativo. Primeiramente, Ele é o responsável pela esterilidade de Ana, ao “fechar seu ventre” (1 Sm 1.5-6). Em momento algum a narrativa sugere que a esterilidade se dá como castigo divino por algum pecado cometido por ela (cf. Dt 28.1, 4, 8).138 Tal ação de Deus ocorre com o alvo de destacar Sua graça e soberania na concessão posterior de um filho a uma mulher estéril, completamente incapaz de gerar descendentes por suas próprias forças (1 Sm 1.19-20).139 Isso propicia uma total dependência de Deus por parte de Ana, expressa em sua oração de petição (1.11 - “se atentares”; “se te lembrares”; “se deres”; “tua serva”, três vezes) e no cântico de agradecimento (2.5), ressaltando um propósito didático pelo qual Yahweh permite situações adversas na vida de seus fiéis, a fim de conduzi-los à confiança exclusiva nele. O Senhor não apenas administra o sofrimento na vida de seu povo, mas, principalmente, propicia a sua libertação. Diante do clamor de Ana (1 Sm 1.11, 15-16), Deus se “lembra” (z`k^r) dela e a liberta de sua infertilidade (1.19-20), assim, como “lembrou-se” (z`k^r) da aliança com Israel e o salvou, quando este clamava ao Senhor pela libertação da escravidão imposta pelos egípcios (Êx 2.23-24; 6.5-6).140 A “lembrança” divina é um antropomorfismo, indicando não um esquecimento anterior, mas “uma superintendência dos eventos em direção à sua desejada, ou prometida, conclusão”.141 A salvação divina é por demais enfatizada na poesia do capítulo 2. A canção usa metáforas vívidas que retratam muito bem a alegria de Ana em Yahweh. A expressão “em Yahweh” (B^yhwh), repetida no verso 1, deixa claro de quem Ana depende e quem é o grande herói e personagem da sua história. Ao contrário de Penina, que se gaba de sua capacidade reprodutora, o coração de Ana festeja em Deus. A figura do chifre erguido pelo animal consciente de sua força e vitória (Dt 33.17),142 juntamente com a metáfora da boca que se alarga sobre seus inimigos, numa atitude de desprezo (Sl 35.21; Is 57.4),143 lembram que as provocações contínuas da esposa rival foram vindicadas (1 Sm 2.1; cf. 1.6-7). Porém, é Deus

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Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 261-261. Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 7. 139 Thomas L. CONSTABLE, Notes on 1 Samuel, p. 9. 140 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 59. 141 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 76. 142 Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 15; Marjorie MENAUL, 1 Samuel 1 and 2. Interpretation, v. 55, n. 2, April 2001, p. 176; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 30. 143 Robert P. GORDON, op. cit., loc. cit.; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 15. 138

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quem vindica Ana (Dt 32.35), pois Yahweh ouviu sua oração e efetuou tamanha salvação em seu favor, ao conceder-lhe o filho (“me alegro em Tua salvação”).144 Os necessitados experimentam da graça ativa de Deus em suas vidas. Se o verso 1 enfatiza o agir de Deus para com aqueles que nele esperam, o verso 8 ressalta a carência dos que são objeto do seu amor. Ambos os adjetivos d`l (“pobre” - ARA) e a#byom (“necessitado” - ARA) se interconectam em seus significados, apesar de possuírem nuances diferentes em seu campo semântico.145 Aqui o sentido básico para ambos é de pobreza, alguém sócio-economicamente carente, sem qualquer recurso.146 Pois, o contexto em que se encontram é o “pó” e o “monte de cinzas” ou “monturo”. O vocábulo U`p`r (“pó”) é uma expressão figurativa para uma condição de humildade, fragilidade ou insignificância (cf. Gn 18.27; 103.14),147 indicando que o homem depende do Deus que o “formou do pó da terra” (Gn 2.7).148 A outra palavra a^vp)t (“monturo”, “lixão”) aponta para o lugar na parte externa de uma cidade, onde os mendigos se assentavam durante o dia para pedir esmolas e, à noite, dormir.149 O quadro de miséria daqueles em prol de quem Yahweh age fica patente. Deus reverte a condição do necessitado, em sua infinita bondade, tirando-o do monturo e o fazendo assentar-se juntamente com os “nobres” ou “príncipes”. Estes são retratados como autoridades entre o povo (Nm 21.18; Pv 8.16) e assentar-se no meio deles é um claro sinal de honra (Pv 25.6-7). Além disso, Yahweh concede aos necessitados um “trono de glória”, termo que se refere ao seu próprio trono no templo (Jr 14.21; 17.12) e a uma posição de poder inabalável e gloriosa (Is 22.20-23). Yahweh é capaz de realizar tal salvação 144

C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 30-31. O primeiro adjetivo (d`l) pode se referir a alguém de condição sócio-econômica baixa e carente de recursos (ver Êx 30.15; Lv14.21; Jó 31.16; Pv 19.4, et al), mas, também, a um grupo político enfraquecido (2 Sm 3.1), ou a um corpo adoecido (2 Sm 13.4). Já o segundo (a#byom) foca apenas no necessitado sócio-economicamente (Êx 23.11; Dt 15.7; Et 9.22; Jó 31.19, et al). 146 Ver outras passagens em que os adjetivos são usados paralelamente nesse mesmo sentido (Sl 72.13; 82.4; 113.7; Pv 14.31; Is 14.30; Am 8.6). 147 J. W. GESENIUS, Hebrew and English lexicon of the Old Testament including the biblical Chaldee. p. 505; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon, p. 780. Wanke destaca a relação do termo com a humilhação, o abatimento e a insignificância como um estado causado ou extinto por Yahweh, seja no abatimento e destruição de cidades (“lança ao pó”, Is 25.12 e 26.5) ou na remoção da degradação e da insignificância experimentadas por uma pessoa (“ergue do pó”, 1 Sm 2.8; 1 Rs 16.2). Ver G. WANKE, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p. 940. 148 Ronald B. ALLEN, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1152. 149 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, op. cit., p. 1046. 145

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e benfeitoria em favor de pessoas completamente miseráveis, porque é o Criador e o Sustentador Soberano deste mundo (parte final do verso 8).150 Como já destacado anteriormente, o livro de Deuteronômio também mostra Deus ativo na história de seu povo. Assim como Yahweh administrou o sofrimento da infertilidade na vida de Ana, a fim conduzi-la a uma dependência e à percepção de que é Ele quem faz a estéril “ser mãe de sete filhos” (1 Sm 1.11, 15-16; 2.5), do mesmo modo, Moisés já declarara, anteriormente, que Deus permitira a humilhação de Israel durante o deserto, com o propósito de ensiná-los a depender completamente de Yahweh para o seu suprimento, confiando em suas promessas e obedecendo à sua palavra (Dt 8.2-6).151 Isso os protegeria de confiarem em suas próprias forças e capacidades quando viessem a prosperar na terra prometida (Dt 8.1218). A recordação das dificuldades enfrentadas no deserto produziria um espírito de humildade em Israel. Já durante os quarenta anos de peregrinação Deus ensinara a Israel a absoluta dependência dEle para seu suprimento de água e comida. Fome e sede não poderiam jamais ter sido satisfeitos por auxílio humano, somente por Deus. (Thompson, 1982, p. 130)

A temática da libertação divina em prol de seu povo eleito e necessitado possui uma conexão importante entre 1 Samuel 1.19-20 e 2.1, 8 e o quinto livro do Pentateuco. Neste último, diversas vezes, Israel é descrito como povo que se encontrava debaixo da escravidão egípcia, sem qualquer expectativa de libertação por suas próprias forças (Dt 5.6, 15; 6.12, 21; 7.8; 8.14; 13.5, 10; 15.15; 24.18, et al).152 A angústia da escravidão chega a ser retratada de modo vívido como uma fornalha de ferro (4.20).153 Tal condição destaca o agir de Yahweh em favor de seu povo, que, com seu poder grandioso (3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19), tira Israel de seu Sitz im Leben de fraqueza e miséria (4.20, 37; 5.6, 15; 6.12, 21; 9.12) e o conduz a uma posição honrada, em uma terra própria e abençoada (4.38; 6.10, 23; 7.1; 8.7; 32.20). Se Israel vivesse de modo piedoso na terra, experimentaria o favor de seu Deus, o qual exaltaria o antigo povo escravo a uma posição de domínio sobre as nações (Dt 15.5-6).

Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 581; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 33. Aqui, opta-se pelo Texto Massorético, cuja leitura é mais difícil do que a da LXX e, portanto, mais provável. 151 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), op. cit., v. 3, p. 75. 152 O substantivo hebraico  (U#b#d) aparece 29 vezes em Deuteronômio, em 12 ocorrências caracteriza tanto o Egito como a “casa de servidão (lit. dos servos)” e o próprio povo de Israel como “servo” ou “servos” de Faraó, ou no Egito. 153 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 45-46. 150

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O regozijo de Ana pela “salvação” (y+vW>) concedida por Yahweh diante de sua rival (a{y+b'm) (1 Sm 2.1), faz coro à proclamação mosaica de que o Senhor é quem peleja por Israel contra seus inimigos (a{y+b'm) e lhe dá salvação (y+vW>) (Dt 20.4; 33.29). 2.2.2. A expressão da justiça de Yahweh por meio do julgamento dos ímpios orgulhosos e da bênção dos fiéis humildes O retrato do fiel como aquele que depende exclusivamente de Yahweh para a sua salvação, no verso 1 do capítulo 2, contrasta fortemente com os orgulhosos do verso 3, os quais não levam em conta o caráter supremo do Deus de Israel e confiam em si mesmos. A reversão de sortes descrita na seqüência (vv. 5-7), precisa ser vista à luz desta ênfase do julgamento de Yahweh sobre os soberbos e sua bênção aos fiéis.154 A declaração enfática no tricólon de 1 Samuel 2.2 acerca da singularidade de Yahweh em poder e majestade, prepara o palco para outras declarações sobre o caráter de Deus e para a advertência contra os soberbos no verso 3.155 Yahweh é descrito como a}l D}uot, literalmente “Deus de conhecimentos”, uma referência à onisciência divina, já que o substantivo D}u> (“conhecimento”, “sabedoria”) encontra-se no plural. 156A onisciência de Deus é aplicada à sua capacidade de “pesar” ou “examinar” as ações humanas,157 pois, o verbo hebraico T*k^n (“examinar”, “sondar”, “pesar”), geralmente, como referência a Deus enquanto sujeito e ao homem como objeto, traz a idéia do exame profundo de Yahweh do coração ou espírito humano e suas motivações (Pv 16.2; 21.2; 24.12). Diante da reversão de sortes nos versos 4 e 5, e das declarações explícitas sobre a ação de Deus no mundo dos homens em 6-8, T*k^n deve apresentar, também, a idéia de um exame judicial, em forma retributiva, segundo o padrão de justiça divino. 158 Portanto, o texto

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John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 562, April-June 1984, p. 135-136; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 63-64; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79. 155 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 30; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580. 156 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 582; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 16; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31. Esse detalhe parece ser ignorado ou desprezado pelas versões em português Revista e Atualizada, Nova Versão Internacional e Revista e Corrigida. Já a Bíblia de Jerusalém apresenta maior sensibilidade a tal aspecto lingüístico e traduz a expressão hebraica como “Deus cheio de saber”. 157 Ver o mesmo entendimento do texto em Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 290. 158 Provérbios 24.12 apresenta este conceito duplo: “Se disseres: ‘Não o soubemos’, não o perceberá aquele que pesa [T*k^n]os corações? Não o saberá aquele que atenta para a tua alma? E não pagará ele ao homem segundo as suas obras?” (grifo do autor). Ver ; Robert P. GORDON, op. cit., p. 79; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., 33

enfatiza o exercício do justo juízo de Yahweh sobre as ações humanas, pois ele é capaz de sondar seus corações e avaliar com retidão os seus atos.159 Os versos 4 e 5 aplicam a reversão de sortes às situações específicas da vida. Enquanto os que confiam em seu material bélico são quebrados por Deus (v. 4; cf. Ez 49.35; 39.3), os que tropeçam porque mal conseguem manter-se de pé, recebem força do Senhor e derrotam seus inimigos (v. 4; cf. 2 Sm 22.40; Sl 18.39 [Heb. v. 40]). Os que tinham comida em abundância, agora prestam serviços para sobreviver, enquanto os que passavam fome são bem alimentados e engordam.160 Por fim, um exemplo que lembra a própria história de Ana: a estéril torna-se mãe de sete filhos, uma situação ideal, símbolo de muitos descendentes (cf. Rt 4.15),161 já a que era fértil e se gabava de sua capacidade reprodutora (como era o caso de Penina), desfalece, perdendo filhos por uma situação calamitosa (cf. o uso do verbo hebraico a*m^l em Jr 15.9) ou tornando-se incapaz de reproduzir. A exaltação dos fracos não indica mera condescendência divina, mas sim, que “O que importa é a obediência e confiança em Deus”.162 Ele ajudará aqueles que se lançam sobre Ele, clamando pela provisão de que precisam (...) Pessoas aparentemente sem importância se tornam importantes, e aqueles que parecem ser importantes, tornam-se sem importância. O fator crucial para eles como israelitas era sua resposta à vontade de Deus, conforme contida na Aliança Mosaica. (Constable, 2007a, p. 13-14, itálico próprio).

Aquilo que ocorre no campo da história humana tem uma fonte sobrenatural, explicitada nos versos 6-8. Yahweh é quem tira a vida e a dá, que põe fim à existência terrena humana no Sheol, ou livra o fiel do mundo dos mortos por meio da cura (v. 6; cf. Dt 32.39; Sl 30.2-3).163 Tanto riqueza quanto pobreza, exaltação e humilhação provêm do Senhor (vv. 7-8). YHWH é invocado como o Deus imprevisível que rebaixa os poderosos e soergue os oprimidos; empobrece os ricos e enriquece os pobres; esteriliza os férteis e torna férteis os estéreis – sempre fazendo malograr a vaidade humana e a complacência dos excessivamente satisfeitos. (Rosenberg, In: Alter & Kermode, 1997, p. 138).

p. 580. O uso do verbo no Particípio Nifal em Ezequiel auxilia na compreensão do vocábulo com o sentido de “ser justo” ou “ser reto”. 159 C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 31-32. 160 O verbo j`d~l oferece a possibilidade semântica de “engordar” ou “ser bem nutrido”. Cf. Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 64; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80. 161 Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 22; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580-581. 162 Mary J. EVANS, op. cit., p. 21. 163 Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 581; Ralph W. KLEIN, op. cit., p. 17. 34

O final da poesia torna claro o que ficara subentendido até então. Yahweh “guarda os pés” daquele que é “fiel” à aliança (h&s'do) (2.9).164 O substantivo h*s'd, apesar de conter um significado amplo, mantém a idéia básica de alguém comprometido em uma aliança de amor com Yahweh, em que o j#s#d ou “amor leal” é experimentado e demonstrado.165 Ter os pés guardados é uma figura de linguagem originada, provavelmente, nas viagens feitas pelos antigos israelitas que incluía, na maior parte, andar a pé por sendas rochosas e perigosas (cf. Sl 91.11-12; 121.3).166 Portanto, a expressão indica o cuidado e proteção de Yahweh para com os que vivem conforme sua vontade revelada (Pv 3.26),167 especialmente, proteção da morte (Sl 56.13 [Heb. v. 14]; 116.8), já que, após ela, não há mais como louvar ao Senhor e desfrutar de suas bênçãos (cf. Sl 6.5; 88.10-12; 115.17; Is 26.14; 38.18). Aqui há um forte contraste com os ímpios que são retratados na seqüencia do paralelismo poético. Os ímpios ou perversos, também, experimentam a ação divina em suas vidas, mas de modo negativo. Eles serão silenciados (y!d*MW) nas trevas (B~j)v#k) (2.9). As “trevas” são, geralmente, uma referência ao Sheol, i.e., a sepultura ou o lugar dos mortos (Jó 10.21-22; 17.13; 18.18; Sl 88.12; Pv 20.20).168 Tanto o Salmo 31.17 [Heb. v. 18] quanto o texto em análise falam sobre os r+v*u'm (“ímpios”) sendo silenciados (D*m~m). Enquanto aqui eles são silenciados “nas trevas”, no Salmo 31 isto se dá no Sheol, apontando para o sentido intercambiável dos termos.169 Assim, a força física, a fartura de alimento e a capacidade reprodutora de nada valem, se Deus porá fim àqueles que confiam em seus próprios recursos e se rebelam contra a soberania dele. 170 Os que se opõem a Yahweh, confiando na própria força humana (cf. v. 9), serão quebrados por ele, assim como o arco dos fortes (2.10; cf. v. 4, verbo j*t~t). O texto conecta este fato com o juízo de Deus sobre as extremidades da Terra (2.10). 171 Em contraste com os rebeldes e auto-suficientes, o rei ungido de Israel, escolhido por Yahweh para governar seu 164

Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 80; H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 31. 165 Laird R. HARRIS, “”. In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 581; J Robert. VANNOY, “1 e 2 Samuel”. In: Kenneth BARKER (Org.), Bíblia de estudo NVI, p. 420; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-DriverBriggs Hebrew and English lexicon. p. 339. 166 J Robert. VANNOY, op. cit., p. 420. 167 Robert P. GORDON, op. cit., p. 80. 168 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 581. 169 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 18. 170 Ibid., p. 18-19. 171 Robert P. GORDON, op. cit., p. 81. 35

povo, terá sua força exaltada assim como Ana e os fiéis à aliança (v. 10 – w+y*r#m q#r#n; cf. v. 1).172 O favor de Yahweh sobre o rei do povo escolhido reflete o conceito do Salmo 89.17-18 [Heb. vv. 18-19], no qual o monarca é retratado como pertencente ao Santo de Israel e o instrumento pelo qual Yahweh exalta o q#r#n da nação. Assim, a bênção sobre o rei implicava em bênção sobre o povo.173 Portanto, a visão de Yahweh como o Senhor da história e justo Juiz que abate os orgulhosos e exalta os humildes compõe o cerne da teologia do cântico de Ana. 174 Há um chamado à dependência e à lealdade a Yahweh e uma lembrança de que o resultado desta escolha será uma vida realizada que desfruta das bênçãos plenas de Deus. Por outro lado, o cântico adverte os orgulhosos, perversos e auto-suficientes de que seu estilo de vida trará um saldo negativo de vergonha e humilhação, pois Yahweh não admite nenhum concorrente e destrói os que desafiam seu poder ou menosprezam sua majestade. 175 A conexão entre esta ênfase da poética em 1 Samuel 2 e o Deuteronômio é bem estreita. Já fora observado que o fator crucial subentendido para o desfrute das bênçãos de Deus em 1 Samuel 2.1-10 é a resposta do fiel à vontade de Yahweh revelada na aliança mosaica.176 Carlos Osvaldo Pinto reconhece que os contrastes nas histórias de Samuel, em termos de obediência e desobediência, bênção e juízo, esboçados no cântico de Ana, 177 “têm como ponto de referência a aliança deuteronômica”. 178 No quinto livro do Pentateuco, Canaã é o local em que Israel terá a oportunidade de experimentar a lealdade de Yahweh e onde sua própria lealdade ao Senhor da aliança será testada (e.g. Dt 11.8-17).179 Como os tratados de vassalagem antigos, o Deuteronômio

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Mary J. EVANS, 1 and 2 Samuel, p. 21; Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65. Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 19. 174 Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 267. 175 Este motif da reversão de sortes da humilhação e infertilidade para a bênção e vitalidade, e vice-versa, conforme a fidelidade ou infidelidade à aliança, permeará todo o restante do livro de Samuel, oferecendo uma chave hermenêutica indispensável para a compreensão de toda a narrativa desenvolvida na obra. Ver os dois artigos de John A. MARTIN, The Structure of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 561, JanuaryMarch 1984, p. 31-32, 40; _________________. The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 562, April-June 1984, p. 133-144. 176 Ver página 33. Cf. Thomas L. CONSTABLE, Notes on 1 Samuel, p. 13-14. 177 Carlos Osvaldo PINTO, op. cit., p. 266. 178 Ibid., p. 265; cf. John A. MARTIN, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel. Bibliotheca Sacra, v. 141, no. 562, April-June 1984, p. 132; Joel ROSENBERG, “1 e 2 Samuel”. In: Robert ALTER, Frank KERMODE, Guia literário da Bíblia, p. 138. 179 John D. W. WATTS, The deuteronomic theology. Review and Expositor, v. 74, no. 3, 1977, p. 329. 173

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apresenta bênçãos e maldições enquanto sanções da aliança entre Yahweh e Israel. 180 A obediência da nação resultaria no desfrute do favor de Deus, i.e., prosperidade, longevidade e paz na terra, ao passo que a desobediência traria o castigo divino, doenças, infertilidade da terra e expulsão dela (Dt 4.15-40; 8.18-20; 11.8-17, 22-32; 27.9-26; 28.1-68; 30.1-20). A fidelidade ou infidelidade ao Deus da aliança são os critérios para o juízo ou bênção do povo (Dt 28.1-68). Por isso, Moisés exorta os israelitas, diversas vezes, à obediência a seu Deus, para que experimentem seu favor (Dt 4.40; 5.16; 7.9-15; 11.8-10; 13.17-18; 30.19-20). Além da indicação da idolatria como a grande ameaça à fidelidade da nação (Dt 4.25-28; 6.12-16; 7.1-6; 11.16-17; 13.1-18; 29.23-27; 30.17-18), o Deuteronômio, do mesmo modo que o cântico de Ana, percebe na autossuficiência um perigo extremamente pernicioso para a permanente dependência e obediência de Israel a Yahweh. No capítulo 8 do livro, Yahweh adverte seu povo para que, em meio à prosperidade em Canaã (vv. 12-13), não se esquecesse de seu Deus que o trouxera até ali nem se gabasse de suas riquezas como advindos, unicamente, de seu próprio esforço (vv. 14, 17). Tal arrogância resultaria em deslealdade ao Senhor da aliança, ou seja, em desobediência aos seus mandamentos e na adoração de ídolos (v. 11, 14, 19-20). Aqui, algumas conexões lingüísticas importantes merecem atenção. Deuteronômio 8 usa o verbo c*b@^u (“estar satisfeito”, “estar farto”) para descrever a condição de prosperidade que propiciaria a autossuficiência israelita (vv. 10, 12) e 1 Samuel 2 utiliza um adjetivo com a mesma raiz para falar daqueles que, em meio à fartura de alimento, não dependem de Deus para o seu sustento (v. 5). No texto deuteronômico, condena-se a atitude arrogante dos que atribuem a sua prosperidade à própria K)^j(“força”) (Dt 8.17), do mesmo modo, o cântico de Ana adverte que não é por sua própria K)^j que o homem prevalece, pois está sujeito ao Senhor da história (1 Sm 2.9). Deuteronômio 32.15-16, também, aponta a prosperidade de Israel como o contexto de sua autossuficiência, orgulho e o conseqüente abandono da aliança e adoração a outros deuses. 181 A relação de 1 Samuel 2.1-10 com esses dois textos de Deuteronômio é

180

J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 72; K.A. KITCHEN, Ancient Orient and Old Testament, p. 93, 97; Moshe WEINFELD, “Deuteronomy, book of”. In: D. FREEDMAN (Ed.), Anchor Bible Dictionary, p.180. Ver as páginas 10-11 da presente dissertação. 181 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 206-207; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 286-287. 37

significativa, pois, no cântico de Ana a soberba e autossuficiência são identificadas com a impiedade e rebelião a Yahweh (vv. 3, 9-10). Há outras ligações importantes entre Deuteronômio 8 e 1 Samuel 2.1-10 quanto à reversão de sortes. Enquanto o primeiro texto desenvolve o aspecto macro no sustento proporcionado por Deus a seu povo, em situações críticas, e na libertação deste de sua condição de miséria e escravidão, recebendo daquele riquezas e bem-estar na terra prometida (Dt 8.7-9, 14-16, 18), 1 Samuel 2 foca a mesma ação libertadora e abençoadora do Senhor, mas a aplica como um princípio geral da relação de Yahweh com indivíduos da comunidade de Israel, em situações específicas da vida (vv. 4-10).182 O mesmo ocorre quando se trata do julgamento. Moisés anuncia o juízo de Deus sobre a nação de Israel, caso se tornasse soberba e idólatra (Dt 8.17-20),183 e o cântico de Ana aplica tal princípio (juízo contra os orgulhosos) a tipos particulares de indivíduos (1 Sm 2.4-5).184 A poesia de 1 Samuel 2 apresenta a sorte pessoal conforme o juízo e graça de Yahweh, porque entende que ele é o Senhor Soberano e ativo na história, que tira a vida e a dá (1 Sm 2.6),185 um conceito herdado de Deuteronômio 32.39 em que os mesmos verbos hebraicos, no mesmo grau causativo, aparecem (mWt e j*y> no grau Hifil),186 e mostram a Israel a tolice de abandonar o único Deus e a única fonte de vida. 2.2.3.

O Caráter supremo, singular e protetor de Yahweh

Até aqui, foram destacados alguns temas encontrados em 1 Samuel 1 e 2.1-10 relacionados ao Deuteronômio, com ênfase na atividade de Yahweh e seu relacionamento com os homens.

Nesta última parte, certas afirmações teológicas quanto ao caráter de

Yahweh dentro da narrativa e poética de Ana receberão uma atenção especial, bem como o matiz deuteronômico por trás dos conceitos nelas encontrados. Interessantemente, o título divino yhwh x+b*aot (“Yahweh dos Exércitos” ou “SENHOR dos Exércitos”) aparece pela primeira vez no Antigo Testamento dentro da Por exemplo, o cântico de Ana fala sobre os “fracos” serem revestidos de força, os “famintos” engordarem, a “estéril” dar à luz a setes filhos, o “pobre” ou “necessitado” ser exaltado à posição de príncipes e o “rei” ou “ungido” ter sua força exaltada. 183 O juízo anunciado por Deus contra a nação por sua idolatria em Dt 8.19-20 está intimamente relacionado com a soberba e auto-confiança dela, descritas nos versos 10-18, que levariam à adoração de outros deuses. A mesma seqüência de infidelidade, autossuficiência seguida por idolatria, aparece em Dt 32.15-16. Cf. J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287. 184 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 66. 185 Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 204-205. 186 Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p. 17. 182

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história do capítulo inicial de Samuel. 187 Uma expressão que tem chamado a atenção dos estudiosos no debate quanto ao seu significado e conteúdo teológico.188 Muitos vêm observando o uso abrangente do termo x*b*a tanto em relação ao exército humano de Israel (1 Sm 17.45), como, também, em conexão aos seres angelicais (Js 5.14ss) e aos corpos celestes (Dt 4.19; Is 40.26).189 Este último uso do substantivo ocorre apenas no singular e nunca ligado diretamente à expressão yhwh x+b*aot.190 O contexto em que tal nome divino é aplicado parece ressaltar não tanto o caráter guerreiro do Deus de Israel, como mais um entre os principais deuses-guerreiros das outras nações, 191 mas, principalmente, o “majestoso esplendor do domínio de Iavé”. 192 O termo, portanto, é “predominantemente real”. 193 No livro de Samuel, a realeza de Yahweh dos Exércitos é bem nítida, por exemplo, em 1 Samuel 4.4: “... a arca do SENHOR dos Exércitos, entronizado entre os querubins” (grifo do autor). Ainda que a narrativa fale sobre a batalha entre os israelitas e os filisteus, a ênfase da expressão não está sobre um Deus militante, pois seria surpreendente sua primeira ocorrência em narrativas de guerra, num combate nada glorioso para Yahweh. Conforme observou J.P. Ross: “Mas, de fato, ele não é aqui retratado como um deus-guerreiro. Sua característica é sentar sobre um trono. Esta não é a atitude de um soldado. São os reis que se assentam sobre tronos; o poder de Jahweh x+b*aot é real”. 194 Além do trecho samuelino 195 citado acima, 1 Samuel 15.2ss, também, descreve uma cena de corte real em que yhwh x+b*aot pronuncia seu juízo e envia seu oficial para executálo.196 Outrossim, Davi, em 1 Samuel 17.45, considera-se um soldado a serviço deste mesmo rei. Os dois textos trazem consigo uma conotação militar, mas esta é um corolário do Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 65; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 571; John E. HARTLEY, . In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1258; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, Biblical commentary on the books of Samuel, p. 19. 188 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 76-77. 189 Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 72-73; Eduard MACK, “God, names of”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); BALDWIN, Joyce G. Op cit. p. 57; Ronald F. YOUNGBLOOD, op. cit., p. 571. C. F. KEIL, F. DELITZSCH, op. cit., p. 19-21. 190 J. P. ROSS, op. cit., p. 77. 191 John E. HARTLEY, op. cit., p. 1258-1259. 192 Ibid., p. 1259. 193 J. P. ROSS, op. cit., p. 78. 194 Ibid., p. 80. 195 Devo o uso deste termo ao Dr. Carlos Osvaldo em Carlos Osvaldo PINTO, Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 255. 196 J. P. ROSS, op. cit., p. 80-81. 187

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significado majestático de Yahweh dos Exércitos, visto que o próprio rei aparece no livro de Samuel liderando seu exército na batalha (cf. 1 Sm 15.4-9; 31.1-13; 2 Sm 11.1; 12.26-31).197 As referências em 2 Samuel confirmam a perspectiva real de yhwh x+b*aot. No capítulo 6, a narrativa é de uma procissão cúltica e, mais uma vez, Yahweh é descrito como assentado em seu trono, entre os querubins (2 Sm 6.2). No decorrer da história, Uzá, filho de Abinadabe, é morto por não tratar com a devida reverência a santidade majestosa de Yahweh dos Exércitos (6.3-7).198 Por fim, em 2 Samuel 7.8, 26-27, a expressão se encontra diretamente ligada ao levantamento de Davi como líder da nação israelita e ao estabelecimento de sua dinastia real. Yahweh é o rei de todos os reinos sobre a face da terra (cf. yhwh x+b*aot em Is 37.16) e, de forma especial, de seu povo, Israel (cf. yhwh x+b*aot em 1 Sm 15.2ss; 17.45; Sl 46.11; 59.5; 84.3; Jr 29.8). Diante do entendimento de que Yahweh é o Rei de Israel, 2 Samuel 7 descreve o estabelecimento de Davi e sua dinastia como vice-regentes da nação, cujo Soberano é o Senhor (cf. a&d)n*y nos vv. 19, 20, 22, 28-29; cf. Sl 2; 110). É uma suposição muito mais natural que, quando a invisível soberania de Jeová recebeu uma visível manifestação no estabelecimento da monarquia, tal soberania (...) necessariamente reivindicou o reconhecimento em seu poder e glória totalmente abrangentes, e que no título “Deus dos exércitos (celestiais)”, a adequada expressão foi criada para o governo universal do Deus-Rei de Israel – um título que serviu não apenas como um baluarte contra qualquer ofuscamento da soberania invisível de Deus pela monarquia terrena, como também lançou por terra a vã ilusão das nações de que o Deus de Israel era simplesmente uma deidade nacional daquela nação específica. (Keil & Delitzsch, 1865, p. 21.)

Portanto, quando o termo Yahweh dos Exércitos aparece na história de Ana (1 Sm 1.3, 11),199 ele realça o caráter Soberano e Supremo do Deus Israel que se assenta em seu trono, cercado por sua corte celestial (1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; cf. Sl 103.21; Is 6.3, 5), e que possui todos os recursos e poderes do universo para operar em prol de seu povo, particularmente, de Ana.200 Apesar da natureza suprema e universal do governo de yhwh x+b*aot, Ana, assim como o fiel do Salmo 84 (Sl 84.1-3, 12), pôde expressar sua confiança no cuidado onipotente e pessoal do Deus de Israel para consigo e experimentá-la, de fato (1 Sm

197

Sobre as guerras no antigo oriente e o envolvimento do rei nelas, ver Roland de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 285-293. 198 J. P. ROSS, Jahweh x+b*aot in Samuel and Psalms. Vetus Testamentum, v. 17, no. 1, 1967, p. 82. 199 É importante notar que o próprio contexto da história de Ana é familiar e cúltico, não militar. 200 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 57-59. 40

1.11, 19-20). Aqui, Yahweh é retratado conforme os reis da antiguidade, ele é Supremo e Benfeitor.201 Outra parte do início de 1 Samuel que merece atenção em suas declarações acerca do ser divino é o tricólon em 2.2. O primeiro atributo de Yahweh proclamado neste versículo é sua santidade (q*dov). Tal qualidade em si é quase um sinônimo da divindade (compare Am 4.2 com 6.8; cf. Hc 3.3) e indica um mysterium tremendum, lembrando que Deus está acima de todas as fraquezas e imperfeições dos seres humanos, por isso, é capaz de realizar maravilhas (Êx 15.11).202 As observações de Ralph L. Smith são bem pertinentes e esclarecedoras acerca do caráter santo de Yahweh no Antigo Testamento: Deus não é criatura; conseqüentemente, ele é santo. O “atributo” da santidade referese a esse mistério do ser divino que o distingue como Deus (...) Dizer que Deus é santo é dizer que Deus é Deus. Santidade sugere o poder, o mistério, a transcendência – mas não a inatingibilidade – de Deus. O Antigo Testamento com freqüência recorre a antropomorfismos para falar de Deus (...) Essa linguagem poderia levar à humanização de Deus, não fosse sua santidade. A santidade de Deus o separa de todas as outras coisas no universo, incluindo o próprio universo. A palavra “santo”, usada para descrever Deus torna impossível qualquer pensamento de um deus criado pelo ser humano. Deus não é uma pessoa divinizada. (Smith, 2001, p. 180-181)

Apesar das várias ocorrências de q*dov e o substantivo de mesma raiz, q)d#v (“santidade”, “objeto santo”), indicarem a pureza moral do Senhor ou de seu povo (Lv 19.2; Js 24.19; Sl 15.1ss; Is 17.7; 30.11, passim),203 a natureza transcendente e majestosa de Deus parece ser o significado primário de sua santidade. 204 Em Isaías 6.1-5, que narra o encontro do profeta com o Deus Santíssimo (v. 3), o que predomina na cena é a visão da realeza gloriosa divina e seu poder transcendente (vv. 1-4). Ainda que Isaías perceba a santidade moral de Yahweh em contraste com sua pecaminosidade, o que o leva a exclamar “Ai de mim!” é o fato de que, além de ser puro, este Deus é o Rei Supremo (v. 5).205

201

Roland de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 138-139; Herbert LOCKYER, All the trades and occupations of the Bible, p. 128-129. Richard Patterson oferece vários exemplos das culturas mesopotâmica, egípcia e siro-palestina em que o cuidado pelos pobres e desfavorecidos era uma atribuição do rei ideal. Ver Richard D. PATTERSON, The widow, the orphan, and the poor in the Old Testament and extrabiblical literature. Bibliotheca Sacra, v. 130, n. 519, July-August 1973, p. 226-228. 202 Thomas E. MCCOMISKEY, “”  . In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1322. 203 Ibid., p. 1322-1323. 204 Ralph L. SMITH, op. cit., p. 183. 205H. P. MÜLLER, “”. In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 3, p. 110-111. H.P. Müller sugere que há uma influência cananita sobre o pensamento religioso hebraico, na compreensão de santidade e majestade como idéias sinônimas. Quanto à ênfase na majestade divina dentro cântico, ver estudo da expressão yhwh x+b*aot nas páginas 37-40 desta dissertação. 41

A transcendência divina intrínseca ao conceito de santidade pode ser vista na declaração: “Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti” (Os 11.9). O Salmo 99 declara três vezes a santidade de Yahweh (vv. 3, 5, 9) e o termo claramente se relaciona com sua majestade, supremacia e poder temível. Portanto, deve-se entender a santidade divina em 1 Samuel 2.2 como uma indicação de sua transcendência, especialmente pelos outros atributos destacados neste mesmo versículo e pela própria declaração de que “não há Santo como o SENHOR” (grifo do autor). “Neste contexto, a santidade de Deus se refere primariamente à sua soberania e incomparabilidade. Ele é único e distinto de todo os outros assim chamados deuses”. 206 Robert Chisholm, em seu artigo Yahweh versus the Canaanite gods, fornece informações importantes sobre o contexto cultual cananeu que serve como pano de fundo para a poética de Ana e contra o qual o texto de 1 Samuel 2.1-10 pretende desafiar e se opor.207 Geralmente, nos mitos ugaríticos, a assembléia dos deuses era descrita como “filhos do Santo” e El retratado como o líder da assembléia. 208 Além dele, Baal se encontra, muitas vezes, na mesma posição de proeminência, como uma declaração da deusa Anate evidencia: “O Todo-Poderoso Baal é nosso rei, nosso juiz, sobre o qual não há ninguém”.209 Diante disso, a afirmação de Ana de que “não há ninguém santo como Yahweh”, é uma poderosa declaração sobre a singularidade suprema de Yahweh que polemiza e abafa as reivindicações das divindades cananéias.210 A frase seguinte: “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n B]lT#k`) - reforça o caráter singular de Deus já subentendido na expressão anterior. Yahweh é o Deus santo, transcendente, porque é o único, não há outro igual. 211 Esta frase encontrada de forma similar em outros textos do Antigo Testamento (cf. 2 Sm 7.22; Dt 4.39; Is 45.6, 21), proclama em alto e bom tom a crença monoteísta hebraica de que apenas Yahweh é Deus, nada nem ninguém mais pode ser considerado ou adorado como tal.212

206

NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008. (Versão eletrônica). 1 Samuel 2, s.n. (study note) 5. 207 Robert B. CHISHOLM, Jr., Yahweh versus the Canaanite gods: polemic in Judges and 1 Samuel 1 – 7. Bibliotheca Sacra, v. 164, April-June 2007, p. 176-179. 208 Ibid., p. 177. 209 Id., Ibid. 210 Id., Ibid. 211 Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 290. 212 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 29-30; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79. 42

A última parte do tricólon diz que “não há Rocha como o nosso Deus”. A palavra hebraica xWr (“rocha”), geralmente, indica formações de pedra e, também, penhascos e montes rochosos (cf. Êx 33.22; Nm 23.9; 1 Cr 11.15; Jó 14.18; 18.4; Is 48.21).213 Certamente, o uso vetero-testamentário é metafórico e, de forma alguma, indica qualquer relação com uma origem animista da religiosidade hebraica. 214 A figura da rocha associada a Yahweh, descreve-o como um forte refúgio no qual seu povo pode se abrigar em meio às dificuldades (Sl 18.2; 94.22; Is 17.10) e uma fonte de força inabalável (Sl 27.5; 62.2, 6, 7 [Heb. 3, 7, 8]). 215 Assim, o fiel é levado a confiar totalmente no caráter fiel, justo e protetor de seu Deus (Is 26.4; cf. Dt 32.4). Ao declarar que Yahweh é uma rocha incomparável, o cântico de Ana expressa que ele é a única fonte segura e permanente de cuidado, salvação e força (cf. 2 Sm 22.31-33, 4749; Dt 32.15).216 O Deus de Israel é o Fiel Protetor e Salvador de seu povo. A percepção teológica quanto aos atributos divinos, encontrada na história e no cântico de Ana possui ligações interessantes e pertinentes com o Deuteronômio. Primeiramente, a própria estrutura de aliança ou tratado entre suserano e vassalo que compõe o livro indica Yawheh como o grande Rei a quem Israel deve obediência. 217 Deste modo, sua soberania e majestade são incontestáveis. No capítulo 10, os versos 14 e 17-18 retratam a supremacia do Deus de Israel sobre toda a criação, abrangendo a totalidade dos céus e da terra (Dt 10.14).218 Assim, Yahweh é confessado como o Deus acima de todos os deuses e o Senhor sobre todos os soberanos da face da terra, digno da reverência e temor de quem quer que seja (Dt 10.17; cf. 7.17-19). O superlativo “Deus dos deuses” parte da afirmação comum no

John E. HARTLEY, “” In: Laird R. HARRIS, Gleason L. ARCHER, Jr., Bruce K. WALTKE, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1278; NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008. (Versão eletrônica). 1 Samuel 2, t.n. (translator’s note) 6. 214 Eduard MACK, “God, names of”. In: James ORR, The international Standard Bible encyclopedia. (Versão eletrônica disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado). 215 John E. HARTLEY, op. cit., p. 1278-1279; A. S. van der WOUDE, “”.In: Ernst JENNI, Claus WESTERMANN, Theological lexicon of the Old Testament, v. 2, p. 1070; F. BROWN, S. DRIVER, C. BRIGGS, The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon. p. 849. 216 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 581; Robert P. GORDON, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 79; Ralph W. KLEIN, 1 Samuel, p.16. 217 Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p. 77; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 68-69. 218 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Deuteronomy, p. 47; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 142. 213

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Antigo Oriente acerca da existência de outros deuses, mas nega a realidade deles, 219 já que apenas Yahweh possui poder ou significância. 220 A glória temível que caracteriza o próprio ser do Soberano da aliança, uma clara expressão de sua grandeza, deve levar Israel a temer o seu Senhor e obedecê-lo (Dt 28.58ss).221 No trecho de Deuteronômio 10.17-18 há um conceito próximo daquele expresso por yhwh x+b*aot na história de Ana, em que o Deus de Israel é retratado conforme a figura do rei no Antigo Oriente: ao mesmo tempo em que é Soberano, ele é, também, Benfeitor para com uma mulher estéril e necessitada de seu povo.222 O mediador da aliança lembra que Yahweh é o Rei e Deus Supremo preocupado em cuidar e promover o bem dos fracos e necessitados sejam eles parte do seu povo ou a própria nação de Israel (Dt 10.17-19).223 Enquanto 1 Samuel 2.2 lança mão da palavra “Santo” para enfatizar a transcendência de Yahweh, o livro de Deuteronômio o faz por meio das menções à revelação teofânica. Uma clara ligação da aparição teofânica com a transcendência divina pode ser contemplada na proibição contra a idolatria em Deuteronômio 4.15-20. Quando Deus revelou sua aliança no Sinai para o seu povo, do meio do fogo (m!tTok h`a@v), deu-se a conhecer de um modo que nenhuma forma criada fora contemplada por Israel (4.15; v. 12), o que demonstrou sua completa transcendência sobre todas as criaturas e manifestou seu caráter Criador (4.16-19). A aproximação teofânica de Yahweh para com Israel revelou ao povo sua glória e majestade e marcou a distinção entre Deus e o ser humano (5.22-26). Além da auto-revelação nos acontecimentos, na história, o Senhor revelou-se como soberano na teofania. Desta maneira, o esplendor glorioso do Rei contribui para a aura de majestade e poder e, assim, é convincente da dignidade e autoridade. Quase sem exceção, a revelação teofânica deu-se na forma de fogo e, do oposto, escuridão (Dt 1.33; 4.11, 12, 33, 36; 5.4, 22-26; 9.10, 15; 10.4; 33.2; cf. Sl 50.2; 80.2; 94.1). O Senhor é Deus absconditus (Deus absconso), aquEle que continuamente se retira na auto-revelação. A escuridão fala da sua transcendência, seu mysterium, sua inacessibilidade. Por outro lado, o fogo representa a imanência, a possibilidade de ser conhecido mesmo que de modo limitado (cf. Ez 1.4, 27, 28; Dn 7.9; Ap 1.14). (Merril In: Zuck, 2009, p. 79)

A singularidade divina, um tema contido no texto samuelino, já fora observada dentro do livro de Deuteronômio no capítulo anterior deste trabalho.224 Vale salientar aqui que Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 86. 220 J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p.143. 221 Earl S. KALLAND, op. cit., p. 175-176. 222 Ver acima, p. 39-40 e Nota de Rodapé 201. 223 Cf. John GOLDINGAY, Theological diversity and the authority of the Old Testament, p. 135-136. 224 Ver acima, p. 16-18. 219

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a afirmação de que Yahweh é único em Deuteronômio 6.4, à luz de outros textos do mesmo livro, é uma clara indicação da crença monoteísta hebraica contra o politeísmo cananeu (cf. Dt 5.7; 32.39).225 Outras afirmações deuteronomistas como hWa h*a$l)h'm a?n uod m]lb^Do (“Ele é Deus, não há outro além/fora dele” – Dt 4.35),226 cuja base se dá na forma incomparavelmente maravilhosa pela qual Deus libertou seu povo do Egito e na majestosa revelação do Sinai (4.32-34), juntamente com a declaração exclusivista mais adiante, yhwh hWa h*a$l)h'm B~V`m~y!m m!M~u~l w+u~l h*a*r#x m!tT*j~t ?n uod (“Yahweh é Deus em cima nos céus e embaixo, sobre a terra; não há outro” – Dt 4.39),227 não deixam espaço para a existência real de qualquer outra divindade, apenas Yahweh é o verdadeiro Deus.228 A completa ineficácia dos ídolos, a ser experimentada na história posterior da nação (Dt 32.37-38), comprovará que apenas o Deus de Jacó é Deus e não há nenhum outro como ele (Dt 32.39). A confissão de Ana no cântico, “porque não há ninguém além de Ti” (K' a?n B]lT#k`), é um eco da singularidade divina desenvolvida pelo Deuteronômio.229 Por fim, o quinto livro de Moisés, também, oferece uma visão de Deus como Protetor. Seu cuidado é perceptível na peregrinação de Israel pelo deserto, em que Deus é retratado como Pai para seu próprio povo (1.31) ou como a águia que cuida de seus filhotes (32.10-11), dando-lhes orientação na viagem (Dt 1.32-33; 32.12-13), proteção (8.15; 32.10) e suprimento de comida e roupa (8.3-4, 16; 32.13-14). Israel poderia contar com o mesmo cuidado e proteção do Senhor na terra prometida (33.11-12), caso permanecesse leal à aliança (cf. Dt 28.25ss). A figura de Deus como a Rocha em 1 Samuel 2.2 deve sua origem direta do Deuteronômio.230 É no cântico do mediador da aliança que a palavra xWr aparece cinco vezes como referência a Yahweh (Dt 32.4, 15, 18, 30, 31). A rocha como metáfora para Deus no verso 4 contrasta com a nação israelita corrupta dos versos 5-6. Ela indica, portanto, o caráter imutável, justo e forte de Yahweh que

225

Paul R. HOUSE, Teologia do Antigo Testamento, p. 224; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 117-118. 226 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 88. 227 Ibid., p. 482. 228 Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 48-49; J. A. THOMPSON, op. cit., p. 106-107. 229 H.W. HERTZBERG, 1 & 2 Samuel: a commentary, p. 29-30. 230 Joyce G. BALDWIN, 1 e 2 Samuel: introdução e comentário, p. 62; Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580. 45

proporciona segurança para seu povo, sendo digno de sua confiança. 231 A Rocha de Israel é descrita como seu Salvador (32.15), pois o cuidado divino foi claramente evidenciado durante sua libertação do Egito e sua peregrinação no deserto rumo à terra da promessa (32.7-14). Dentro do ambiente de aliança, a proteção de Yahweh seria real e inabalável para com Israel, desde que o povo se mantivesse leal ao seu Rei, caso contrário, eles sofreriam as conseqüências por não confiarem no Senhor (Dt 32.30-31).232 Da mesma forma que no cântico de Ana, o contexto do desfrute da segurança de Yahweh como fonte de abrigo ocorre num andar em fidelidade a Ele (Dt 32.30). Além disso, as duas partes das Escrituras reconhecem a singularidade de Deus como Rocha verdadeira (compare 1 Sm 2.2 com Dt 32.31).233 2.3. Conclusão Ao final deste capítulo, fica patente a relação histórico-teológica entre o Deuteronômio e os dois capítulos iniciais do livro de Samuel.

As duas obras sagradas

retratam Yahweh como o Deus ativo na história de seu povo e da humanidade, agindo de forma soberana e compassiva para com os necessitados, julgando os soberbos e perversos e abençoando os fiéis e humildes. Outrossim, as literaturas deuteronômica e samuelina evidenciam conexões teológicas concernentes ao caráter do Deus de Israel, como o Senhor Supremo, Incomparável em sua divindade e Protetor de Seus fiéis. Não resta dúvida de que o historiador profético, que editou o livro de Samuel, compreendeu a história de Ana e seu cântico à luz da renovação da aliança sinaítica contida no Deuteronômio.

Earl S. KALLAND, “Deuteronomy”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 200; J. A. THOMPSON, Deuteronômio: introdução e comentário, p. 286-287. 232 NET BIBLE, Biblical Studies Foundation. Disponível em www.bible.org. Acessado em Setembro de 2008. (Versão eletrônica). Deuteronomy 32, s.n. 3. 233 Ronald F. YOUNGBLOOD, “1, 2 Samuel”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 3, p. 580. 231

46

3.

IMPLICAÇÕES DA TEOLOGIA DEUTERONÔMICA PARA A COMUNIDADE DA NOVA ALIANÇA A teologia encontrada tanto no livro de Deuteronômio quanto nos dois primeiros

capítulos de Samuel traz consigo implicações. A revelação divina veterotestamentária afetou de modo profundo a comunidade de Israel e, mesmo diante do advento da Nova Aliança, há princípios importantes e indispensáveis para a comunidade cristã (Jr 31.33-34; Hb 8.1-2, 6-8, 10-11).234 Paulo destaca a importância das Escrituras para o povo da Nova Aliança, quando cita uma passagem do Antigo Testamento em Romanos 15.3 (cf. 2 Sm 22.50; Sl 18.49) e diz que toda a revelação escriturística passada tem o propósito de ensinar os crentes em Cristo (Rm 15.4). (...) nós encontramos aqui a mais admirável condenação daqueles fanáticos que ostentam que o Antigo Testamento está abolido e não pertence em nível algum aos cristãos; pois, com que desaforo podem eles desviar os cristãos daquelas coisas as quais, conforme Paulo testifica, são designadas por Deus para a nossa salvação? (Calvin, 1998, p. 407)

Em 2 Timóteo 3.16-17, Paulo reconhece a origem divina das Escrituras veterotestamentárias, afirma sua profunda utilidade e sua função de ensinar, corrigir e treinar na justiça o crente da Nova Aliança, a fim de conduzi-lo à maturidade na prática de toda a boa obra. Portanto, neste último capítulo, o autor mostrará como a perspectiva deuteronômica sobre o caráter de Deus se relaciona com a teologia e a adoração da comunidade de fé neotestamentária, bem como traçará o modo pelo qual a teologia da justiça e graça de Yahweh para com o pecado e obediência humanos encontra uma continuidade de princípios e implicações no Novo Testamento, que devem transformar a conduta ética dos discípulos de Cristo.

234

Walter C. KAISER, Jr., The old promise and the New Covenant. Journal of Evangelical Theological Society, v. 15, n. 1, 1972, p. 19. 47

3.1. Implicações da Teologia Própria Deuteronômica para a Adoração do Povo da Nova Aliança O escritor A.W. Tozer observou, pertinentemente, que a “adoração é pura ou vil conforme os pensamentos elevados ou inferiores que o adorador alimenta em relação a Deus”.235 A adoração cresce ou diminui em qualquer igreja dependendo de nossa atitude para com Deus, se o consideramos grande ou pequeno. A maioria de nós vê Deus em ponto pequeno; nosso Deus é diminuto. Davi exclamou: ‘Magnificai a Deus comigo’ e magnificar não significa tornar Deus grande, pois você não pode fazer isso. O que pode fazer é vê-lo grande. (Tozer, 1991, p. 183)

Assim, a perspectiva da majestade de Deus desenvolvida em Deuteronômio e 1 Samuel 1 e 2 é crucial para se resgatar o espírito da adoração verdadeira e a cura de diversos males que afetam a comunidade cristã atual.236 A visão de Deus como o Rei Supremo, cercado por sua corte celestial (Yahweh dos Exércitos em 1 Sm 1.3; cf. 1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2; Sl 103.21; Is 6.3, 5; cf. Ap 4 e 5), ou como aquele que é o “Deus dos deuses e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível” (Dt 10.17), deveria gerar um santo temor e reverência nos que o adoram, como produziu em Ana, quando se achegou diante Deus em sua oração (1 Sm 1.11). Esta concepção da Majestade de Deus encontra sua continuidade nos escritos do Novo Testamento. Deus é confessado como o Rei eterno e imortal que é digno de toda honra e glória (1 Tm 1.17), ele é o soberano supremo, o Rei dos reis e Senhor dos senhores (1 Tm 6.15-16). O louvor dos santos no céu emana da compreensão de que Deus é Todo-Poderoso e Rei das nações, o único merecedor de glória, o que leva as nações a adorá-lo (Ap 15.3-4). Aqui, percebe-se a ligação íntima entre a majestade divina com a adoração, que é impulsionada pela primeira. Outro atributo divino que caminha de forma íntima com a supremacia de Deus e recebe destaque na teologia deuteronômica é sua transcendência. Como já ressaltado, isto é percebido quando Deus é proclamado por Ana como o incomparavelmente Santo (1 Sm 2.2), o mysterium tremendum, aquele que é “o completamente outro” e está acima das fraquezas e imperfeições de suas criaturas (cf. o uso de “Santo” em Os 11.8; Am 4.2 e 6.8; Hb 3.3). 237 Da

235

A.W. TOZER, Mais perto de Deus, p. 7. Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p. 137; A.W. TOZER, Mais perto de Deus, p. 7. 237 Ver o desenvolvimento deste conceito nas páginas 40-41 da presente dissertação. 236

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mesma forma, o Deuteronômio destaca este caráter divino por meio de teofanias que o distinguem de toda a sua criação e lhe conferem majestade absoluta (Dt 4.15-20; 5.22-26).238 No Novo Testamento, há claras afirmações acerca da transcendência de Deus. O evangelho de João apresenta o Pai como aquele que “ninguém jamais viu” (Jo 1.18), e na Primeira Carta a Timóteo, há a declaração de que Deus “habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver” (1 Tm 6.16). Pelo fato de Deus ser o Criador invisível, de poder eterno e imortal (atributos que indicam transcendência), é uma blasfêmia terrível adorar criaturas e objetos criados em seu lugar (Rm 1.18-25). Como os conceitos de soberania e transcendência divinos afetam de modo prático a adoração comunitária e pessoal do povo da Nova aliança? Primeiro, há um modo adequado de se adorar a Deus (Hb 12.28), o qual deve ser regido e conduzido conforme a vontade do próprio Soberano, isto é, sua Palavra revelada (cf. Dt 12.30-32).239 O texto de Colossenses 3.16-17 ensina que o louvor adequado à dignidade de Deus flui naturalmente dos corações em que a Palavra de Cristo habita ricamente.240 Eugene Peterson alertou para o risco de se realizar mudanças na adoração comunitária, movido pelo freqüente senso de pânico de inadequação do que por uma visão clara do que é requerido pela Palavra de Deus.241 A proliferação de sugestões sobre como desenvolver uma adoração relevante e moderna tem dado espaço a idéias inovadoras sem uma avaliação bíblica adequada: Somos grandes em ministério e pequenos em adoração. Somos desastrosamente pragmáticos. Só queremos saber do que funciona. Queremos fórmulas e truques e, de alguma maneira, no meio do processo, deixamos de fora a tarefa para a qual Deus nos chamou (...) Somos Marta em excesso e Maria de menos. Estamos tão envolvidos no fazer que perdemos o ser. Somos programados, informados, planejados, e ocupados – mal cultuamos! Temos nossas funções, nossas promoções, nossos objetivos, nossos esforços voltados para o sucesso, preocupados com números, tradicionais e até passageiros. Porém, é muito comum nos escapar um culto aceitável, verdadeiro e espiritual. (MacArthur, 1998, p. 259)

O experts na “área” de louvor e adoração farão todo o possível para vender seu produto e criticar como retrógados ou “fariseus” os que não seguem suas propostas ou são

Eugene H. MERRIL, “Uma teologia do Pentateuco”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Antigo Testamento, p. 79. 239 Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p. 142. 240 Curtis VAUGHAN, “Colossians”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 11, p. 216. 241 Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138. 238

49

cautelosos em apoiá-las. 242 Um exemplo deste tipo de atitude é o que se vê em parte do artigo de um site de louvor e adoração na internet: Se alguém acha que se emocionar e se expressar com extravagância na presença de Deus é pecado eu não posso falar nada (...) Só sei dizer que Jesus não repreendeu a mulher [a prostituta que derramou perfume sobre os pés de Jesus em Lucas 7.36ss]. Por outro lado, repreendeu o fariseu [Simão, da mesma história de Lucas]. Só sei dizer que a mulher fora recompensada com o perdão dos pecados e com a salvação (Lc 7.50). Já Simão levou uma “chicotada” das mais doídas de Jesus (...) O fariseu é um religioso extravagante. Ele vem pra igreja e não oferece nada. Ele é orgulhoso, ele se acha superior e espiritual demais. Ele não gosta de se expor e de se expressar na presença de Deus. Ele condena a adoração dos outros, por mais “correta” que pareça (...) Nós precisamos ser adoradores, não religiosos. Nós precisamos oferecer a Deus algo de valor, como a mulher ofereceu o ungüento precioso. Precisamos adorar com humildade, e expressar nosso louvor sem qualquer tipo de vergonha e medo. Não devemos nos preocupar com os religiosos extravagantes, eles sempre vão estar lá. Sempre vão estar questionando, mas Jesus estará recebendo sua adoração, Jesus estará satisfeito com você! (...) O que você prefere ser? Um adorador extravagante ou um religioso extravagante? Pense nisso (...) a escolha é sua. (Tessmann, http://www.vivos.com.br/338.htm, Acessado em 14/01/2010)

O artigo é, claramente, desenvolvido com o alvo de validar atitudes extravagantes na adoração comunitária, ainda que o mesmo não especifique como elas se dão. A Bíblia é tratada apenas como um recurso para embasar idéias pessoais do autor, como se percebe em seu trato de Lucas 7.36-48. O foco da história não está em como se adora a Deus (de modo extravagante ou não), mas na atitude de amor e devoção devida a Jesus quando se percebe a imensidão dos pecados perdoados por ele (cf. vv. 40-47). Além disso, o escritor do texto ignora a passagem clara de 1 Coríntios 14, que exorta à ordem e decência no culto e orienta como o mesmo deveria se processar (1 Co 14.26-33, 40). Ainda no texto supracitado, quando o autor oferece o conselho de que o adorador deve expressar seu louvor, sem vergonha ou medo, e que não precisa se importar com os “religiosos extravagantes”, há uma falta de consideração cuidadosa pelo ensino direto da Palavra de Deus. Esta exorta o cristão à busca por não ser motivo de escândalo ou tropeço ao irmão na fé (Rm 14.5-22), e a não agir de forma extravagante durante o culto público, de modo que o incrédulo venha a pensar que os cristãos estão loucos (1 Co 14.23). A Palavra autoritativa do Deus Soberano perdeu seu espaço na adoração moderna e necessita ser restituída ao seu local supremo e central. 243 A segunda implicação que a compreensão do caráter de Deus na teologia deuteronômica traz é uma adoração centrada no Deus transcendente e não no adorador

242 243

Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 138. Ibid., p. 143. 50

imanente. A comunidade cristã moderna vem enfatizando a experiência do crente durante o momento de adoração em lugar do Deus glorioso e transcendente que estabelece a forma e o tempo da adoração. Eugene Peterson classificou esta busca intensa por satisfação pessoal como “neobaalismo”244 e afirmou o seguinte: A ênfase do Baalismo estava sobre a ligação psicofísica e a experiência subjetiva. O abismo entre o homem e Deus era eliminado em sua existência por meio de ritos participativos. A terrível majestade de Deus, sua “diversidade”, era assimilada pelas paixões religiosas do adorador (...) Os desejos que inflamavam a alma eram satisfeitos no ato cúltico da adoração. A transcendência da divindade era superada pelo êxtase da sensação.(1972, p. 139)

O culto passa, então, a girar em torno dos desejos do adorador, tentando satisfazê-los, e tende a proporcionar um tempo de entretenimento empolgante. O culto “agradável” para o adorador contemporâneo não é mais aquele em que há uma proclamação fiel das Escrituras, mas o que lhe traz maior satisfação pessoal. 245 A ênfase na experiência subjetiva de adoração torna a glória de Deus secundária no culto e faz do homem a medida suprema. O Criador transcendente é substituído pela criatura limitada e a reverência humana devida ao único Deus verdadeiro é trocada pela adoração ao próprio homem. O livro de Romanos descreve tal postura como uma inversão do que Deus estabeleceu, trocando a verdade pela mentira e dando glórias à criatura em lugar do Criador (Rm 1.21-23, 25). Um exemplo disso pode ser visto na reportagem de uma revista, intitulada “Ao gosto dos fãs”, que tratava acerca do lançamento do CD de uma cantora evangélica. Depois de discursar acerca das qualidades e experiência da cantora, além das músicas que compunham seu novo CD, o editor da revista evangélica escreve: “Resumindo: é um CD feito na medida para agradar aos fãs de Assíria”.246 Outro caso semelhante se dá na gravação do álbum de uma banda gospel de grande reconhecimento no cenário brasileiro, em que o vocalista inicia o show expressando à platéia o seu desejo de que ela viesse a “curtir e se divertir do melhor que o Oficina G3 tem a oferecer pra vocês”.247 Essa atitude centralizadora no homem e suas experiências, durante a adoração pública, demonstra uma rejeição do Deus transcendente e é condenada nas Escrituras como idolatria.

244

Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 141. Valdeci dos SANTOS, Refletindo sobre a adoração e o culto cristão. Fides Reformata, v. 3, n. 2, 1998, p. 140. 246 Carlos FERNANDES, Ao gosto dos fãs. Eclésia, ano 7, ed. 75, mar., 2002, p. 64. 247 Oficina G3. CD Acústico ao Vivo. Faixa 2. Gospel Records, 1999. 245

51

A Igreja de Cristo deve desenvolver, portanto, a perspectiva do Deus que é singularmente Santo (1 Sm 2.2; Ap 15.4) e que requer adoração exclusiva a si, pois está acima de qualquer ser criado e nada se assemelha a ele (Dt 4.15-19; Mt 4.8-10; 1 Tm 6.15-16). O crente deve abandonar a busca pela gratificação psicológica enquanto adora e desenvolver um santo temor e reverência quando se aproxima do Transcendente, assim como fizeram os israelitas no deserto, ao se achegarem a Deus e verem a majestade de sua glória (Dt 5.22-26; cf. Hb 12.28-29). A adoração contemporânea precisa deixar de ser uma capa protetora para os interesses egoístas248 e tornar-se uma atitude de assombro diante do Deus santo e temível, como ocorreu com Moisés e Isaías, quando se depararam com aquele que é majestosamente “o Outro” (Êx 3.1-6; Is 6.1-6). Além disso, a ênfase na adoração simplesmente como uma experiência momentânea é extremamente perigosa, pois limita o culto a um ato público e a uma parte da vida da pessoa, separada do restante de seu dia-a-dia.249 Tal foco produzirá cultos meramente rituais, que até entretém seus freqüentadores, mas que são totalmente destituídos de vida. Situações como essas foram duramente reprovadas pelos escritores e profetas do Antigo Testamento que chamavam a atenção do povo para o fato de que Deus abominava rituais cúlticos destituídos da prática da justiça, do amor à misericórdia e de um andar humilde perante Deus (Mq 6.6-8; cf. 1 Sm 15.22-23; Sl 50.7-15; Is 1.10-17; 58.1-9). O Novo Testamento ensina que a adoração do cristão não se limita a experiências em um determinado local ou num tempo específico, mas se estende por toda a vida, em que o cristão deve oferecer-se como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 12.1-2; cf. Jo 4.23-24; 1 Co 10.31; Cl 3.17). 3.2. Implicações da Teologia da Ação Compassiva e Soberana de Deus para a Missão do Povo da Nova Aliança aos “Pequeninos” da Sociedade A soberania compassiva de Deus percebida em seu cuidado pela desprezada Ana e no suprimento do filho pedido por esta mulher estéril (1 Sm 1.6-7, 19-20; 2.1, 5), já demonstrada, anteriormente, na libertação operada por Yahweh em prol de seu povo humilhado e oprimido no Egito (4.20, 37; 5.6, 15; 6.12, 21; 9.12), percorre a linha do tempo da história da salvação e encontra expressão no famoso Magnificat (Lc 1.46-55). Neste

248 249

Eugene PETERSON, Baalism and Yahwism Update. Theology Today, v. 29, n. 2, 1972, p. 142. Id., Ibid. 52

cântico, a própria Maria se identifica com uma posição de “humilhação” ( auto-intitula “serva” (

) e se

) (Lc 1.48).

A expressão “humilhação” traduzida como “humildade” na Nova Versão Internacional (NVI) e na Almeida Revista e Atualizada (ARA) pode levar o leitor a uma compreensão psicológica do termo, como se este indicasse um espírito manso e submisso de Maria. 250 Mas a expressão encontra seu pano de fundo no Antigo Testamento, especialmente no cântico de Ana (1 Sm 1.11) e no Deuteronômio (26.7-8), e aponta para uma “pobre e desprezível posição” social, 251 sendo uma declaração, por parte de Maria, tanto de sua ausência de valor aos olhos humanos quanto de sua solidariedade com os pobres e aflitos.252 O paralelo lingüístico entre as orações de Ana e o Magnificat ressalta este fato.253 É dentro de tal contexto, no alvorecer da plenitude dos tempos (Gl 4.4-5), que se percebe a continuidade da ação compassiva e soberana de Deus em prol daqueles que são desprezados e aflitos. No Magnificat, Maria, assim como Ana, reconhece que Deus é o seu Salvador (Lc 1.46-47; cf. 1 Sm 2.1), pois, ele reverteu sua situação de humilhação para uma posição em que todas as gerações a chamarão de bem-aventurada (

) (Lc

1.48).254 Tal reversão de sorte, da humilhação para a exaltação, é proclamada pelo próprio Jesus, quando chama de bem-aventurados (

) os pobres, os famintos e os que

choram, porque herdarão o reino de Deus, serão saciados e consolados (Lc 6.20-21). O Poder Soberano e a Compaixão de Deus para com os “pequeninos” são a razão e a causa para a mudança da condição destes, como o cântico de Maria anuncia: “... atentou para a humilhação da sua serva ... todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estendese aos que o temem...” (Lc 1.48-50). 255

Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 207. John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 65; Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p. 836; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 24. 252 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 103; John CALVIN, op. cit., p. 65; Gail O’DAY, op. cit., p. 207. 253 O verbo , a preposição , e a construção estão presentes tanto em 1 Sm 1.11 [LXX] quanto em Lc 1.48. Ver “ ” (Lc 1.48) e “ ” (1 Sm 1.11 - LXX). 254 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 82-83. 255 Joel B. GREEN, op. cit., p. 102. 250 251

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O quadro do Poderoso que faz grandes coisas em favor de Maria ecoa a linguagem do Deuteronômio, quando fala dos grandes sinais e maravilhas que Yahweh realizou com sua poderosa mão, na salvação de seu povo Israel (cf. Dt 3.24; 4.34; 5.15; 6.22; 7.19).256 A declaração de que “Santo é o seu nome [caráter]”257 aponta para a transcendência Majestosa de Deus258 que possibilita seu agir em benefício de “pequeninos” como Maria e Ana (cf. 1 Sm 2.1-2; Sl 99.1-5). Neste sentido, a declaração de Jacques Dupont é salutar: A pobreza daqueles a quem Jesus anuncia a boa-nova do Reino de Deus é enfocada como uma condição humana desfavorável, que faz dos pobres vítimas da fome e opressão. É um mal: precisamente por isso os sofrimentos e as privações dos pobres aparecem como um desafio à justiça real de Deus. Deus decidiu pôr termo a tudo isso. (Dupont, 1971, p. 32 apud (conforme) Boff, 1980, p. 232, itálico nosso).

A compaixão de Deus como base para seu agir condescendente é ressaltada pelo uso da palavra

nos versos 50 e 54-55. Esta palavra, geralmente, traduz o termo hebraico

 (j#s#d) e se refere à compaixão de Deus, especialmente demonstrada àqueles com quem ele possui um relacionamento pactual (Lc 1.54-55, 72, 78; cf. Dt 5.10; 7.9, 12).259 O termo grego aparece em Lucas, quase sempre, relacionado a Deus. A única vez que

não está

relacionada à misericórdia de Deus, serve para qualificar a atitude de profunda compaixão que o samaritano da parábola demonstrou para com o homem ferido e sem recursos, na estrada para Jericó, cuidando de seus ferimentos e provendo-lhe um local para dormir (Lc 10.37). Portanto, a misericórdia de Deus “comunica a idéia de compaixão e misericórdia ao desafortunado” e, ao mesmo tempo, é uma “atitude demonstrada por Deus em relação à sua aliança (1.72) para com aqueles que o temem e o adoram (Êx 20.6)”.260 (...) esta misericórdia é nada menos que a iniciativa graciosa de Deus, a qual é o pressuposto para a criação de uma humanidade como sua parceira de aliança e para o seu contínuo relacionamento com a humanidade, a despeito da constante oposição de homens e mulheres ao seu propósito. (Green, 1997, p. 103-104).

O cântico de Maria fornece, então, o modelo da ação soberana e condescendente de Deus para com os desprezados e aflitos que o temem, já no raiar desta nova era da salvação e

Gail O’DAY, Singing woman’s song. Currents in Theology and Mission, v. 12, no. 4, 1985, p. 208. Walter L. LIEFELD, “Luke”. In: Frank E. GAEBELEIN (Ed.), The expositor’s Bible commentary, v. 8, p. 836. 258 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 83; Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 24. Para uma exposição da santidade divina como sinal de sua transcendência, ver as páginas 40-41 desta dissertação. 259 Thomas L. CONSTABLE, op. cit., p. 24. 260 I. Howard MARSHALL, op. cit., p. 83. 256 257

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que servirá de molde nas narrativas de Lucas e Atos. 261 Em que aspectos concretos, percebe-se a ação de Deus em favor dos “pequeninos” neste novo momento da história da salvação? Leon Morris menciona um corolário objetivo desta misericórdia soberana de Deus: o seu perdão e salvação a pecadores que são incapazes de justificarem-se a si mesmos. Ele cita dois exemplos importantes: o publicano da parábola que não podia se justificar de forma alguma, “Mas podia apelar a Deus por misericórdia e encontrá-la” (Lc 18.13), e a pecadora que derramou óleo precioso sobre os pés de Jesus como gratidão pelo perdão recebido da parte dele (Lc 7.47).262 Jesus proclama e concede, então, a graciosa salvação de Deus para pecadores e publicanos, pessoas rejeitadas no aspecto sócio-religioso e sócio-político do judaísmo da época (Lc 5.27-32; 7.28-50; 15.1-2; 18.9-14; 19.1-10).263 Por meio de Cristo, Deus visita a humanidade, em misericórdia, concedendo salvação e perdão a judeus e gentios (Lc 1.68-69, 76-77; 2.29-32), mas, para recebê-los é necessária a percepção da condição de miséria e pecado em que a pessoa se encontra, pois Jesus veio curar os espiritualmente doentes e que possuem consciência de tal fato (Lc 5.3032).264 A “lealdade de Deus à aliança, prometida no AT e ativamente demonstrada na história de Israel, chegaria ao seu ponto alto na graciosa auto-humilhação de Deus, feita em prol dos humildes (...) no evento de Cristo (1:50, 54, 72, 78)”.265 As orações do publicano e do fariseu juntamente com o comentário de Jesus, proporcionam uma ligação importante com o cântico de Maria e reforçam o fato de que a graça livre e soberana de Deus se manifesta aos “pequeninos” pecadores e marginalizados, que dependem dela para a sua salvação. O fariseu é soberbo em seu coração, gabando-se de seus atos religiosos, desprezando os demais e se achegando a Deus com base em seus méritos (Lc 18.11-12). O publicano é humilde, consciente de seus pecados e de sua incapacidade de agradar a Deus com seus atos, clamando pelo perdão que só pode vir do alto (Lc 18.13). A conclusão de Jesus é que o publicano foi quem voltou para a sua casa justificado por Deus e

261

John CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, v. 1, p. 68-69; Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 102. 262 Leon MORRIS, Teologia do Novo Testamento, p. 186-187. 263 Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134; I. 263 I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 36. 264 Thomas L. CONSTABLE, Notes on Luke, p. 66. 265 H. H. ESSER, “ ”. In: Lothar COENEN, Colin BROWN, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, p. 1297. 55

não o fariseu, pois “quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (Lc 18.14). Da mesma forma, Maria cantou que Deus “dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração” (Lc 1.51) e “exaltou os humildes” (1.52). Além destes grupos marginalizados nos aspectos político e religioso, há um foco na demonstração da graça divina para aqueles que são sócio-economicamente e culturalmente pobres.266 A proclamação do reino de Deus por Jesus é diversas vezes endereçada aos pobres (Lc 4.18; 6.20-23; 7.22). Os próprios discípulos são os “pequeninos”, pobres e culturalmente desprezados pelos grandes e sábios da época, a quem Deus concedeu o entendimento espiritual necessário para a compreensão das boas novas da salvação (Lc 10.21-22).267 São os pobres que Jesus convida para o banquete escatológico no reino (14.13, 21-24). Mas o foco sobre o pobre não é uma manifestação política, como Darrel Bock bem observou: O Evangelho de Lucas dedica atenção especial ao pobre. Em Lucas 1.46-55, o cântico de Maria estabelece o tom para esse tema. A referência dela ao fato de Deus elevar e abençoar o pobre (vv. 52-53), não se refere a todos os pobres. Refere-se principalmente ao [sic] a&n~w'm do Antigo Testamento, os pobres piedosos que confiam humildemente em Deus (vv. 50-55; cf. 2 Sm 2.5; Jó 5.11; 12.19; Sl 103.11, 13, 17; 89.10.; 107.9). Essa distinção é importante para Lucas, já que o foco no pobre não é uma manifestação política. O que a passagem indica é que, com freqüência, o pobre é mais dependente de Deus e sintonizado com Ele do que o rico. (...) Para Lucas, as pessoas humildes são mencionadas, em especial, como candidatas à graça de Deus. (1998, p. 134).

Timothy Johnson, também, destaca o seguinte: O rico representa aqueles que já têm sua consolação na sociedade e não necessitam do consolo de Deus; eles, portanto, rejeitam o Profeta. O pobre representa todos aqueles que foram rejeitados com base nos padrões humanos, mas são aceitos por Deus; eles, em contrapartida, aceitam o Profeta. (1991, p. 22).

Portanto, a Soberana compaixão de Deus, em Cristo, se revela por meio da oferta de salvação e comunhão com Deus em seu reino àqueles que vivem à margem da sociedade, seja por questões econômicas, raciais, religiosas, culturais ou estilo de vida. 268 Este é um aspecto que não pode ser negligenciado pela comunidade da Nova Aliança, em sua missão. Desde que ela passa a ser o agente de Deus no anúncio das boas novas do Reino, dando continuidade ao ministério de Cristo (cf. At 1.1-2, 8; 9.1-5).269

Darrel BOCK, “Teologia de Lucas-Atos”. In: Roy B. ZUCK, Teologia do Novo Testamento, p. 134. Luke Timothy JOHNSON, The Gospel of Luke, p. 169-171; I. Howard MARSHALL, The Gospel of Luke, p. 434. 268 Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 23-24; Luke Timothy JOHNSON, op. cit., p. 22. 269 BRUCE, F.F, The book of Acts, p. 30. 266 267

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O livro de Atos mostra como o Deus supremo continuou a estender seus braços de misericórdia aos marginalizados, por meio da Igreja. 270 Esta apreendeu, em alguns momentos, naturalmente, em outros, com muita dificuldade, a sua missão de proclamar as boas novas e servir aos “pobres” em seu redor. A comunidade da Nova Aliança proclamou o evangelho e ministrou a doentes (At 3.1-10; 5.12-16; At 14.8-13), a mulheres (At 5.14; 16.13-15), a viúvas e pobres (At 6.1-7; 9.36, 39), a endemoninhados (At 8.4-8) e a escravos (At 16.16-21).271 Todavia, o que se destaca em Atos é universalização da missão da igreja, ultrapassando as barreiras raciais e atingindo aqueles que eram marginalizados etnicamente pelos judeus (At 8; 10 - 11). “Pode-se dizer, então, que o Evangelho [de Lucas] focaliza sobre a universalização vertical (para cima e para baixo, na escala social) do evangelho, enquanto Atos enfoca a sua universalização horizontal (para todos os povos, por todo o império)”. 272 Dificilmente, haveria um melhor modo de indicar que o mesmo Espírito que estava em ação no Messias em sua proclamação das boas novas aos pobres e aos rejeitados entre o povo e no chamado para um lugar no banquete de Deus, e que atuou, também, em seus seguidores, do que mostrar os seguidores proféticos de Jesus proclamando a mesma oferta de salvação, não apenas àqueles que eram, por herança, parte do “povo de Deus”, mas a “todos a quem o Senhor, nosso Deus, chamar para si” (At 2.39).

Apesar da dificuldade inicial para aceitar aqueles que eram diferentes e considerados como pessoas de “segunda categoria” (cf. At 11.1-3; 15.1-2), a Igreja de Jerusalém percebeu que “Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo” (At 10.34-35), assim, o evangelho se estendeu até os confins da terra, chegando ao coração do império romano (At 1.8; 28.11-31). O princípio do kerigma da compaixão e salvação soberana de Deus, em Cristo, aos desprezados, precisa ser resgatado dentro da comunidade cristã de hoje. A Igreja de Cristo deve se perguntar, em que medida, ela tem servido e compartilhado das boas novas aos “pequeninos” de sua sociedade. Philip Yancey, em seu livro Maravilhosa Graça, apresenta um relato que aponta para a falha da comunidade cristã em demonstrar a compaixão de Deus. Ele conta a história de um de seus amigos, que trabalha com pessoas marginalizadas e que se defrontou com a realidade de uma prostituta que alugava sua filha de dois anos de idade para homens interessados em sexo pervertido. Sem saber o que dizer à mulher, seu amigo perguntou se ela nunca havia 270

Joel B. GREEN, The Gospel of Luke, p. 24; Luke Timothy JOHNSON, The Acts of the Apostles, p. 16. Ben WITHERINGTON III, The Acts of the Apostles: a social-rethorical commentary, p. 71. 272 Ibid., p. 69. 271

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pensado em ir à igreja para pedir ajuda, ao que ela, assustada, respondeu: “Por que eu iria a uma igreja? Eu já me sinto terrível o suficiente. Eles vão fazer que eu me sinta ainda pior”. 273 Pertinentemente, Yancey observou: O que me feriu na história de meu amigo é que mulheres muito parecidas com essa prostituta procuraram Jesus, não fugiram dele. Por pior que uma pessoa se sentisse a respeito de si mesma, ela sempre procurava Jesus como um refúgio. Será que a igreja perdeu esse dom? Evidentemente, os desvalidos que recorriam a Jesus quando ele vivia na terra já não se sentem bem-vindos entre os seus discípulos. O que aconteceu? (1999, p. 9-10).

Outro exemplo da falha da Igreja em ministrar aos grupos marginalizados da sociedade, pode ser visto numa entrevista com a capelã Eleny Vassão, sobre portadores do vírus da Aids: “Já presenciei casos em que pessoas infectadas pelo HIV vieram participar do culto. Quando se sentaram no banco, quem estava perto se levantou e foi procurar outro lugar”.274 Esta situação é o oposto das boas novas pregadas e demonstradas por Jesus de Nazaré que, ungido pelo Espírito Santo, “andou por toda a parte, fazendo o bem e curando todos os oprimidos do Diabo, porque Deus estava com ele” (At 10.38). O povo da Nova Aliança, então, precisa se dispor a estender suas mãos de compaixão e trabalhar com aqueles a quem o mundo ao seu redor dá as costas, percebendo quem são e como o evangelho pode transformar as suas realidades; sejam eles moradores de rua, grupos de pessoas exploradas sexualmente, imigrantes de países pobres da América do Sul, população de favelas nos seus arredores, pessoas sem alfabetização, entre muitos outros. Uma maneira como a comunidade cristã pode levar o evangelho aos “pequeninos” é o desenvolvimento de trabalho conjunto de igrejas locais com organizações missionárias, em que os membros destas igrejas participem, freqüentemente, de atividades nas quais possam servir aos grupos marginalizados, desde tarefas simples até áreas mais complexas que se relacionem com suas capacidades e formações. 275 Outra possibilidade é o uso das instalações da igreja local para trabalhos com a comunidade ao redor, como aulas de alfabetização, de prática de esportes, aulas de computação e outras atividades que promovam o crescimento pessoal e profissional daqueles que participam, sendo, antes de tudo, uma oportunidade para a

273

Philip YANCEY, Maravilhosa Graça, p. 9. Marco STEFANO, Preconceito, um inimigo a ser vencido. Eclésia, ano 11, no. 119, 2006, p. 37. 275 Um exemplo de missão que trabalha com moradores de rua é Comunidade Evangélica Nova Aurora (Missão CENA). Ver http://www.missaocena.com.br/. 274

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proclamação da mensagem do evangelho, que permanece primordial na agenda dos discípulos de Cristo. O evangelismo é o mais básico e radical ministério a um ser humano. Isso é verdade não porque o “espiritual” é mais importante do que o físico (devemos ser cuidadosos para mão cair numa distinção grega dualista), mas porque o eterno é mais importante do que o temporal (Mt 11.1-6; Jo 17.18; 1 Jo 3.17-18) (...) O evangelho da justificação tem a prioridade; isto é o que nos salva. Mas assim como as boas obras são inseparáveis da fé na vida do crente, da mesma forma, o cuidado pelos pobres é inseparável da obra de evangelismo e do ministério da Palavra. No ministério de Jesus, curar o doente, alimentar o faminto era inseparável do evangelismo (Jo 9.1-7, 35-41). (Keller, 2008, p. 17)

Finalmente, o povo da Nova Aliança pode demonstrar e proclamar, de diversas formas, as boas novas de que o Deus Soberano, em Cristo, se interessa, de modo compassivo, por aqueles que não possuem qualquer esperança e consolo nesta vida. Nunca se esquecendo de que, se Deus ama os pobres, os sofredores e perseguidos, os discípulos de Jesus precisarão ser a expressão e os arautos deste amor (1 Co 9.19-23).276 3.3. Implicações da Teologia da Ação de Deus na História para a Conduta Ética do Povo da Nova Aliança O cerne da teologia deuteronômica destacada neste trabalho se dá na presença ativa de Deus na história, como o soberano e juiz (1 Sm 2.3) que julga e castiga os orgulhosos e rebeldes, mas concede seu favor aos humildes e fiéis. Isto é ressaltado no livro de Deuteronômio, de forma macro, em que a obediência de Israel como povo pactual de Yahweh traria a bênção divina de prosperidade e paz à nação, ao passo que a

desobediência

culminaria no juízo de Yahweh sobre o povo da antiga aliança, por meio de doenças, infertilidade da terra e perda da posse da mesma (4.15-40; 8.18-20; 11.8-17, 22-32; 27.9-26; 28.1-68; 30.1-20). Em 1 Samuel 2, o mesmo princípio governa a teologia central do cântico, em que Deus reverte as sortes de tipos de indivíduos dentro da comunidade (2.4-8), punindo os ímpios soberbos, mas concedendo sua graça aos piedosos humildes (2.3, 9-10). Em que medida estes conceitos teológicos veterotestamentários se relacionam com a teologia neotestamentária e trazem implicações para a comunidade da Nova Aliança? No Novo Testamento, tanto Deus Pai quanto o Filho são reconhecidos como juízes da humanidade (Jo 5.22-30; 8.26; At 10.42; 17.30-31; Rm 3.5-6; 1 Co 5.13; Hb 12.23; Tg 4.12). Como Soberano e Juiz, o Deus Triúno julgará os homens e as suas ações praticadas em vida

276

Philip YANCEY, O Jesus que eu nunca conheci, p. 168. 59

(Rm 2.2-11; 1 Co 3.11-15), mas este julgamento recebe uma ênfase muito maior nos aspectos espiritual e escatológico do que nos aspectos terreno e presente, como ocorria com a comunidade do antigo pacto (cf. Mt 25.31-46; Jo 5.28-29; 12.48; 2 Tm 4.1). Um dos ângulos deste julgamento divino no Novo Testamento diz respeito ao destino eterno dos homens. Aqueles que rejeitam a Cristo e a salvação oferecida por meio dele, mantendo-se rebeldes e inimigos de Deus, serão condenados eternamente (Jo 3.18-20, 36; 2 Ts 1.8-10; 1 Jo 5.10-12), porém, os que se humilham diante de Deus, reconhecendo sua necessidade de perdão, e confiam em Cristo para a sua salvação, recebem o favor divino e a comunhão eterna com Deus (Jo 5.24; 17.3; Rm 5.8-11; Ef 2.8-9; Hb 9.27-28). Estes passam a fazer parte da comunidade da Nova Aliança (Mt 26.28; Lc 22.20; 1 Co 11.25; Ef 2.11-22). Diante da condenação ou salvação eterna por parte de Deus, há um chamado para que os homens se arrependam de sua autossuficiência e rebeldia para crerem no evangelho (At 2.38; 3.19; 5.31; 20.21; 2 Co 5.20; Cl 1.28). Cada homem é responsável por sua resposta, por outro lado, há favor ou condenação divinos diante da escolha que o indivíduo fizer (Jo 3.18, 36) Outro ângulo do juízo e graça se relaciona especificamente com a comunidade pactual neotestamentária. O apóstolo Paulo, em diversas ocasiões, afirma que os crentes darão contas a Deus pelas obras praticadas, comparecendo perante o tribunal de Cristo, em sua parousía (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10). O cristão receberá recompensas ou não da parte de Deus, dependendo de como viveu sua vida. Isso de forma alguma afeta a sua salvação (1 Co 3.13, 15), mas determina o recebimento de seu galardão.277 Muitas vezes esse dia é referido em termos de alegria do crente ao unir-se ao seu Senhor. Mas o Novo Testamento não passa por alto o fato de que também será o tempo de julgamento da obra que o crente realizou. Aqui a idéia é de uma prova rigorosa, pois pode ser comparada com o fogo (...) Todos quantos são considerados aqui, são salvos. Construíram sobre o fundamento único, Jesus Cristo. Até mesmo do homem cuja obra se queima se diz que será salvo. A distinção é feita, não entre os perdidos e os salvos, mas entre os que construíram bem e os que construíram precariamente. Sofrerá ele dano (AV, “perda”) significa que ele perderá o seu galardão, como um trabalhador punido pelo trabalho mal feito. (Morris, 1983, p. 5455).

Nos três textos paulinos (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10), a perspectiva da recompensa ou perda da mesma diante do tribunal de Cristo, motiva a uma vida de fidelidade

277

Thomas L. CONSTABLE, Notes on 2 Corinthians, p. 50-51. 60

e obediência a Deus, seja por meio do amor ao próximo (Rm 14.13-21), da edificação do Corpo de Cristo (1 Co 3.10) ou de um estilo de vida em geral que busca agradá-lo (2 Co 5.9). O apóstolo João, também, percebe na parousía de Cristo e o julgamento que a acompanha (“tenhamos confiança e não sejamos envergonhados”), uma forte motivação para que a comunidade cristã viva de forma justa, refletindo o caráter de Deus (1 Jo 2.28-29).278 Na carta de Tiago, a certeza de que Deus se opõe a seu povo e o humilha quando este é infiel a ele, mas que lhe concede graça quando há humildade e desejo por obedecê-lo (Tg 4.1-6) serve como mola propulsora para o quebrantamento e submissão a Deus (4.7-10). Aqui há uma importante relação do ensino neotestamentário com o deuteronômico, pois à luz da graça e juízo de Deus para com o seu povo e a humanidade, fossem eles manifestados, principalmente, de forma presente e material (Israel) ou escatológica (Igreja), há o chamado para uma vida de fidelidade e submissão ao Senhor e uma exortação ao abandono da desobediência e autossuficiência. Ou seja, o fato de que Deus pesa, avalia e julga as ações dos homens, deve conduzi-los a uma conduta ética presente que o agrada. Existem implicações vastas para o campo ético que tal ensinamento bíblico traz. No presente trabalho, dar-se-á atenção para a relação entre esta teologia de Deus como o Juiz Soberano e a prática da justiça social. O capítulo 5 do livro de Tiago liga o julgamento vindouro com a condenação do abuso sócio-econômico por parte de fazendeiros cristãos ricos e com a esperança e dependência em Deus por parte dos camponeses cristãos pobres (Tg 5.1-8).279 Diversas expressões ressaltam o juízo futuro no texto: “vossas desventuras, que vos sobrevirão” (v. 1), “últimos dias” (v. 3; cf. Jr 23.20; 30.24; Jo 12.48), “os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (v. 4), “a vinda do Senhor” (vv. 7, 8). A manifestação futura de Cristo traria condenação sobre a ganância e opressão praticadas pelos ricos (vv. 1-6), e salvação e esperança para os camponeses oprimidos que aguardassem pacientemente a vinda do Senhor (vv. 7-8). Os ricos são acusados de se enriquecerem às custas da vida dos camponeses que trabalhavam em suas terras (vv. 4, 6), de 278

John R. W. STOTT, 1, 2 e 3 João: introdução e comentário, p. 100-101. Há certa discussão se os ricos a quem Tiago se dirige são cristãos ou não. Para este autor, há dois textos que favorecem o pensamento de que tais ricos eram realmente crentes em Cristo. Primeiramente, em Tiago 1.9-11, o autor se dirige a pobres e ricos, como se fossem parte da mesma comunidade e os ensina acerca da fragilidade das riquezas. Em segundo lugar, há a ilustração que sugere fortemente a participação de ricos nas reuniões dos judeus convertidos (2.1-4). Apoio a esta posição pode ser vista em C.P. PLOOY, La epístola de Santiago: la fe que actúa, p. 49-50; Thomas L. CONSTABLE, Notas sobre Santiago, p. 59. 279

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colocarem a confiança em seus bens (vv. 2-3) e de centrarem seu viver no desfrute de prazeres (v. 5). A mensagem de Tiago para eles é uma advertência acerca do juízo divino eminente (vv. 1, 4) e um chamado ao arrependimento de suas más ações (v. 1; cf. Tg 4.7-10).280 A descrição dos camponeses pobres os apresenta como em situação de extrema necessidade, sem receber seu salário devido e vivendo quase ao ponto da morte (vv. 4, 6). A mensagem de Tiago para eles é um encorajamento à paciência e esperança em meio ao sofrimento presente, tendo em vista a expectativa da volta de Cristo, julgando os que praticam o mal e salvando os que nele esperam (vv. 7-8). A expectativa da manifestação de Cristo deve produzir, portanto, uma vida de justiça e bem social por parte dos que compõem o povo da Nova Aliança, rejeitando a ganância e opressão. Mais do que nunca, a igreja de Cristo precisa retornar à perspectiva do juízo e graça futuros de Deus, a fim de mudar sua atitude ética vergonhosa na sociedade em que convive e combater a injustiça social no país, como o próprio Jesus fez (Lc 6.22-25). O problema da corrupção política no contexto brasileiro é um claro exemplo de injustiça social. “A corrupção não é apenas sumamente nociva para a maioria da sociedade, como também provoca o enriquecimento ilícito dos ‘privilegiados’, enquanto as classes pobres e marginalizadas estão destinadas a pagar o custo da corrupção estrutural”. 281 A situação se torna mais lastimosa quando se percebe que a própria comunidade cristã vem sendo contaminada pelo estado de corrupção do ambiente que a cerca. No final de 2006, a sociedade brasileira se deparou com um dos maiores esquemas de corrupção da história do Parlamento brasileiro, no qual cerca de R$ 110 milhões foram desviados dos cofres públicos. Dentro deste projeto ilícito, quase metade da chamada “bancada evangélica” estava envolvida, vinte e cinco deputados e um senador.282 Pessoas que se identificavam como membros do Corpo de Cristo, promoveram a opressão do justo, sem que o mesmo lhes fizesse resistência (cf. Tg 5.6). Recentemente, um escândalo político chamou a atenção, novamente. Deputados evangélicos da Câmara legislativa do Distrito Federal aparecem, em gravação, recebendo propina, escondendo o dinheiro em bolsos e meias, e, ao final, orando pela vida de um dos

280

Douglas J. MOO, Tiago: introdução e comentário, p. 158. Arnold WIENS, Los evangélicos latinoamericanos ante el desafío de la corrupción. Vox Scripturae, v. VII, no. 1, Jun. 1997, p. 75. 282 Calebe PACHECO, Sanguessugas evangélicos. Eclésia, São Paulo, ano 11, ed. 117, p. 22-24. 281

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integrantes do esquema de corrupção.283 Tal “contexto de corrupção condiciona a autoridade da Palavra de Deus, sugere a manipulação da mesma, enfatiza os elementos materialistas, desemboca em numerosas heresias e sempre há uma total desconfiança em relação à interpretação bíblica”.284 Urge, portanto, relembrar os princípios deuteronômicos que encontram sua continuidade no Novo Testamento para a comunidade da Nova Aliança. Ela necessita ser profética, condenando o mal social em seu meio ou na sociedade que a cerca, bem como ser proclamadora, anunciando a esperança aos oprimidos de que um dia o mal será vencido pelo Reino de Cristo. Aqueles que afirmam fazer parte da comunidade cristã e usam do poder para o próprio benefício devem ser chamados ao arrependimento e a uma mudança de vida. Precisam ser lembrados de que um dia todos comparecerão diante do tribunal divino e, ainda que sejam salvos, caso permaneçam em sua conduta errada, serão envergonhados na vinda de Cristo e deixarão de receber seu galardão (Rm 14.10-12; 1 Co 3.12-15; 2 Co 5.9-10; 1 Jo 2.28-29). Por outro lado, há a importância de adverti-los que a falta de uma conduta justa, pode ser evidência de que nunca experimentaram a nova vida em Cristo (1 Jo 3.6-10) e o juízo futuro deixará bem claro a ausência de frutos de arrependimento e de justiça (Lc 3.8-14; Mt 7.1723). Aos cristãos que sofrem pela injustiça, a comunidade do Novo Pacto deve promover a esperança de que a vinda do Senhor porá fim ao contexto de corrupção e maldade em que vivem (cf. Tg 5.7-8), enxugando todas as suas lágrimas (Ap 21.3-4). Ela pode alentá-los com a certeza de que nenhuma situação de dificuldade e sofrimento é capaz de separá-los do amor de Deus para com eles (Rm 8.35-39), que continua o mesmo amor que o levou a entregar o próprio Filho em favor deles na cruz (Rm 5.8; 8.31-34). A Igreja deve proclamar a seus membros oprimidos que Deus é “o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação! É ele que nos conforta em toda a nossa tribulação...” (2 Co 1.3-4). O Criador de céus e terras, também, não está surdo ao clamor dos sofredores (Tg 5.4) e ele fará vingança no tempo certo (Rm 12.19-20).

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ARRUDA já tem seis pedidos de impeachment. http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN. Acessado em 01/02/2010. 284 Arnold WIENS, Los evangélicos latinoamericanos ante el desafío de la corrupción. Vox Scripturae, v. VII, no. 1, Jun. 1997, p. 82. 63

No Novo Testamento, há um chamado à própria comunidade cristã a ser a expressão viva do amor de Deus, ajudando os necessitados e vítimas da injustiça (1 Jo 3.16-18; cf. Tg 1.26-27). Novamente, a temática do julgamento futuro se destaca, pois, o amor ativo e prático dos crentes para com o seu próximo lhes proporciona segurança no Dia do Juízo (1 Jo 3.1820; 4.16-18). Não basta proclamar o conforto do amor e a esperança da salvação que provêm de Deus, é necessário encarná-los. 285 A perseverança da Igreja em seguir os princípios deuteronômicos aplicáveis a ela, fará da mesma uma comunidade alternativa que promoverá a transformação social. A sociedade corrupta está em oposição ao reino de Deus, pois, é uma sociedade que se autodestrói. A comunidade alternativa se caracteriza pela vida em justiça, amor, serviço e santidade. A comunidade alternativa que não tem sido pervertida pelos valores corruptos, será por sua própria existência, uma presença incômoda e profética na sociedade. (WIENS, 1997, p. 83)

3.4. Conclusão Ao final deste capítulo, pode-se afirmar que a teologia do livro de Deuteronômio e da história e poesia de Ana é de inestimável valor para a reflexão da comunidade neotestamentária. Sua perspectiva sobre o caráter e atributos divinos como, também, acerca do cuidado soberano e compassivo de Deus em favor dos necessitados e aflitos, e de Sua ação em julgar e abençoar os homens conforme seus atos, afeta de modo profundo a práxis do povo da Nova Aliança. A apresentação de Deus como majestoso e transcendente traz implicações para a adoração na comunidade de fé. Uma delas é que a majestade divina requer que sua Palavra soberana forneça o padrão para o modus operandis do culto, não os desejos e vontades do adorador. A segunda implicação diz respeito à transcendência divina, que demanda a diferenciação entre Criador e criatura e, conseqüentemente, torna a glória e honra de Deus centrais na adoração, antes de qualquer pessoa ou ser. A glória do Criador jamais pode ser subestimada em importância ou substituída pela experiência do adorador. O cuidado e ação soberanos e compassivos de Deus em favor dos necessitados, vivenciados por Israel e Ana (Dt 26.7-8; 1 Sm 1.19-20; 2.1), proveu um molde da atividade divina que teve sua continuidade na nova era da salvação, previsto por Maria em seu cântico (Lc 1.46-55), e manifestado no próprio ministério de Jesus em sua proclamação das boas

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Jorge PINHEIRO, Pão, terra e justiça social. Vox Scripturae, v. VI, no. 2, dez. 1996, p. 308-309. 64

novas da salvação e no seu serviço aos marginalizados (Lc 4.18; 6.20-23; 5.27-32; 7.22, 2850; 15.1-2; 18.9-14; 19.1-10). Dentro desta compreensão da graça livre e soberana de Deus nas obras e ditos de Jesus, o povo da Nova Aliança dá continuidade àquilo que Deus começou a realizar por meio de Cristo e, como parte de sua missão, deve demonstrar compaixão para com aqueles que são desprezados em sua sociedade, anunciando o evangelho da reconciliação com Deus e expressando o mesmo amor que receberam do alto. Por fim, a compreensão deuteronômica do agir soberano de Deus, com juízo ou graça, em resposta às ações humanas na história, encontra paralelos no Novo Testamento e chama os homens e a comunidade cristã à responsabilidade diante do “Juiz de toda a terra”. O fato de que um dia o fiel do Novo Pacto se deparará com o “tribunal de Cristo”, deve conduzilo a uma vida íntegra e humilde diante de Deus, especialmente no que tange à pratica da justiça social e ao compromisso com o bem daqueles que o cercam.

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CONCLUSÃO A presente dissertação atinge o objetivo principal proposto na introdução, ao analisar os temas teológicos e históricos centrais do quinto livro do Pentateuco e verificar que eles exerceram, de fato, uma forte influência na composição da história e poesia encontradas em 1 Samuel 1.1 – 2.10. Na primeira parte do trabalho, comparou-se as várias propostas de datação para o livro de Deuteronômio e o autor constatou que há maior plausibilidade em reconhecer a origem mosaica do livro, tanto pelas evidências internas que apontam para um escritor que vivenciou um Sitz im Leben precedente à entrada de Israel na Terra Prometida e a libertação do poder egípcio, como também, pelas fortes semelhanças com os tratados hititas do segundo milênio antes de Cristo. Ainda no primeiro capítulo, deu-se atenção a duas partes importantes do trabalho: os temas teológicos deuteronomistas fundamentais e a influência da perspectiva histórica que o Deuteronômio desempenhou sobre os Profetas Anteriores. Na análise do cerne teológico do Deuteronômio, percebeu-se uma ênfase na atividade libertadora de Yahweh na história, em prol de seu povo, salvando-o do cativeiro egípcio e o conduzindo até Canaã. Também, observou-se um grande destaque dado à escolha absolutamente graciosa de Deus por Israel e o compromisso pactual decorrente desta escolha. Ainda, a soberania e singularidade de Yahweh são dois conceitos importantíssimos do livro, que enfatizam a sublimidade do caráter do Deus de Israel e a resposta decorrente de devoção a Ele, que o povo deveria dar, em sua vida e adoração. A partir do entendimento da autoria mosaica de Deuteronômio, abordou-se a influência de sua perspectiva histórica sobre os Profetas Anteriores. Percebeu-se uma leitura dos acontecimentos na vida de Israel mediante as lentes da ação abençoadora ou julgadora de Yahweh para com seu povo, conforme a fidelidade ou infidelidade deste à revelação da aliança. Relacionado a isso, fora notado que dentro de tal leitura histórica deuteronômica, presente tanto no livro de Moisés quanto nos Profetas Anteriores, há uma perspectiva de reversão de sortes de juízo para bênção quando a nação de Israel se arrepende de sua infidelidade e se volta para o seu Deus. 66

O eixo principal da dissertação se desenvolveu no capítulo 2. Ali, após situar o contexto histórico da história e poesia de Ana, traçou-se os temas teológicos centrais que permearam o texto de 1 Samuel 1 e 2, bem como suas influências e relações com a teologia deuteronômica. Primeiramente, destacou-se a ação de Deus em prol dos eleitos e necessitados, promovendo a libertação deles de sua condição de miséria e opressão e dando-lhes uma condição de honra, tanto no caso de Ana ou dos pobres de seu cântico, como com a nação de Israel, no Deuteronômio. Depois, o autor deste trabalho mostrou a ênfase do cântico de 1 Samuel 2 na reversão de sortes, em que Deus julga os soberbos e rebeldes, humilhando-os e os tirando de sua situação de honra, e demonstra graça para com os humildes e fiéis, concedendo a força, o sustento e o vigor que carecem. Aqui, a dependência teológica do Deuteronômio, que proclamou a bênção de Deus sobre a obediência da nação e o seu juízo em caso de infidelidade da mesma, foi absoluta. Na última parte do segundo capítulo, estudou-se a Teologia Própria apresentada na história e cântico de Ana, em que Deus é reconhecido como o Rei Soberano, Transcendente, Singular em sua existência e Protetor dos que nele confiam. Todos estes conceitos teológicos já se encontravam de forma expressiva no quinto livro do Pentateuco e mostraram ter uma influência importante na compreensão de Deus exposta em 1 Samuel 1 e 2. Por fim, o último capítulo tratou de implicações importantes que a reflexão deuteronômica, em diálogo com a teologia neotestamentária, tem a oferecer para a comunidade da Nova Aliança. A concepção de Deus como Soberano e Transcendente promoveu uma reflexão sobre a adoração direcionada por sua Palavra Soberana e centrada em sua glória. A preocupação misericordiosa de Deus com os humilhados e aflitos, proveu um molde de ministério compassivo na realização da missão do povo da Nova Aliança aos pequeninos da sociedade. A perspectiva de juízo e graça de Deus para com as ações dos homens na história trouxe implicações para a atitude ética da comunidade cristã, na busca íntegra pela prática da justiça e do bem social. A conclusão deste trabalho, portanto, é que a perspectiva histórico-teológica de 1 Samuel 1.1 – 2.10 reflete uma leitura marcantemente deuteronômica da atividade abençoadora e punitiva de Yahweh na história, bem como de Seu caráter como Senhor supremo e singular de Israel e do mundo. Esta dissertação, então, abre espaço e motiva futuras e contínuas 67

reflexões acerca da influência teológica fundamental do Deuteronômio sobre a historiografia sagrada, contida nos Profetas Anteriores.

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