A influência do cinema de fluxo no primeiro capítulo de \"O Rebu\"

Share Embed


Descrição do Produto

1

A influência do cinema de fluxo no primeiro capítulo de “O Rebu” 1 Heitor de Oliveira ANDRADE 2 Erly Milton VIEIRA JUNIOR3 Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES

RESUMO Este artigo tem como objetivo estabelecer uma relação entre o cinema de fluxo e o primeiro capítulo do remake de “O Rebu”, analisando as marcas do primeiro gênero em tal obra e utilizando para isso, uma breve passagem pelo conceito de “mise em scène” e suas mudanças na pós-modernidade, um estudo sobre a vertente cinematográfica do fluxo e seus aspectos e chegando ao final na análise da estreia da obra teleficcional estudada, com ênfase nas influências da corrente estudada inserida na telenovela.

PALAVRAS-CHAVE: cinema de fluxo; “mise em scène”; telenovela; O Rebu; imersão.

1) INTRODUÇÃO Após a conhecida “era clássica” do cinema hollywoodiano, que se manteve forte e quase intacta até a década de 1960, surgiram novos movimentos da sétima arte que trouxeram características

diferentes

à

produção

cinematográfica,

tanto

esteticamente

quanto

narrativamente, e dentro dessas mudanças, um artifício que sofreu significativamente as modificações pós cinema clássico foi a “mise em scène”, cujo conceito começou a ser revisto diante do advento de novas vertentes fílmicas. “A ‘mise em scène’ é o que acontece quando há o encontro do cineasta com os atores, lugares e eventos que ele pretende filmar” (OLIVEIRA JUNIOR, 2013, p. 121), e diz respeito à interação entre o espaço filmado, os atores e as ações decorridas nesse ambiente, num jogo de planos que se encadeiam e fazem uma espécie de chamada a outros planos. Tal conceito, com o surgimento de novas propostas cinematográficas diferentes do cinema clássico, foi visto,

1

Trabalho realizado para a disciplina de Teorias Contemporâneas do Audiovisual, do segundo semestre de 2015.

2

Estudante do 5º semestre do Curso de Comunicação Social – Cinema e Audiovisual da UFES.

3

Orientador do trabalho. Professor do Curso de Comunicação Social da UFES.

2

após os anos 1960, como uma forma teatral de explorar os ambientes, onde as características cênicas sobre espaços, atores e suas disposições fossem colocados de lado ao priorizar a busca do olhar para o mundo narrativo e para o momento em que esse mundo será mais bem captado, e nessas correntes, a “mise em scène” sempre é mostrada num estágio visível e não equilibrado, discrepante à era clássica, e nem totalmente aberto como no cinema moderno, se tornando complexa e dualística. Um breve comentário sobre mecanismo da “mise em scène” é necessário para entender as mudanças no âmbito narrativo e estético presentes nos filmes contemporâneos pós “classicismo hollywoodiano” e suas novas marcas. Um exemplo de vertente surgida dentro das alterações contemporâneas da sétima arte é o maneirismo, popular nas décadas de 1970 e 1980 e caracterizado por retomar imagens artísticas para compor suas próprias imagens, e um movimento que o sucedeu foi o cinema de fluxo, surgido após um período no qual o maneirismo estava decaindo e criado como conceito entre os anos de 2002 e 2003 por Stephane Bouquet. (OLIVEIRA JUNIOR, 2013) Criado nas últimas décadas e carregado de um interesse nas sensações, no ambiente e na fluidez presente num espaço, o cinema de fluxo utiliza a “mise em scène” de maneira distinta da forma clássica, gerando novas percepções ao espectador. Suas características acabaram sendo apropriadas por diversos diretores contemporâneos e podem ser vistas em obras que carregam um tom melodramático, como o remake de “O Rebu”, exibido pela Rede Globo de Televisão em 2014 e escrito por George Moura e Sérgio Goldenberg, no qual o primeiro capítulo possui marcas desse gênero contemporâneo. Para chegar à análise do episódio da telenovela, é preciso passar pelas definições do que seria o cinema de fluxo e suas aplicações e pelas regras gerais de uma estreia de uma obra ficcional televisiva, chegando enfim à análise da obra, enfatizando os aspectos do fluxo presentes no capítulo de tal telenovela. 2) O CINEMA DE FLUXO E SUAS APLICAÇÕES Dentro das correntes modernas, a imagem cinematográfica se encontra numa dualidade entre a transmissão do realismo e do lúdico, dois fatores que se contradizem, e o cinema deve saber conduzir as necessidades que o ser humano carrega para que o “mundo” representado chegue até essas necessidades e toque o espectador em seus sentidos, e é isso que aconteceu nos últimos anos segundo Oliveira Junior (apud BORDEAU, 2006, p. 73), onde um misto imagético de distintas formas e proporções passou a ser explorado, provocando uma imersão no público em relação à narrativa reproduzida. Essa provocação de sensações é uma das bases

3

do cinema de fluxo, que, como dito anteriormente, se originou no início dos anos 2000 quando o maneirismo estava dando sinais de decadência, e apresenta como aspectos a sensorialidade, o ambiente como mutável e passageiro e a sensibilidade fluida num lugar, e tem como objetivo levar o público a explorar o espaço por meio das sensações que ele proporciona. Durante o final dos anos 1990, o cinema passou a se dividir entre duas categorias estéticas, a do plano e a do fluxo: a primeira com a defesa numa estrutura dramática fluente através de planos que se somam numa narrativa, e com a “mise em scène” tendo por objetivo estruturar a obra para que esta tenha um sentido e uma emoção, e já a segunda procurava utilizar as imagens como modulações que se movessem num ritmo, intensificando potências sensoriais e gerando uma variação contínua e fluida nas obras fílmicas. O movimento se prolonga nessa última vertente citada, com uma sensação de não-permanência desses movimentos, que buscam colocar na tela as mutações dos seres humanos e dos espaços, gerando um sentimento de fluxo nas imagens e sentidos em quem assiste aos filmes. O gênero analisado aqui se baseia significativamente no filme-dispositivo, conceito surgido na transição do século XX para o XXI que utiliza a “mise em scène” de uma maneira diferente dos filmes dos períodos clássico e moderno, usando uma narração pré-definida para relatar ações e fatos deixando o desenrolar da história fluir a partir dessa própria narração, causando uma relação imprevista com a obra, já que não há uma intenção por parte dos realizadores em mostrar em mostrar um fio narrativo totalmente concreto e moldado. Com essa concepção do dispositivo nas artes em geral, os criadores fílmicos passaram a usar em suas obras as características sensitivas do ambiente, e de acordo com Oliveira Junior (2013, p. 138), “o cineasta abandona a ‘mise em scène’ para se tornar um instalador de ambiências ou um provocador/intensificador de realidades”, com filmes baseados numa narrativa que vai além do fio narrativo e chega ao corpo do espectador, ao seu consciente, gerando uma mistura de sensações gerais no público que assiste à obra. Apropriando-se de características do filme-dispositivo e carregando seus objetivos de provocar sensações além da narrativa ao espectador, o cinema de fluxo sugere à cinematografia um novo ritmo do olhar, mais alternado e sensorial, a priorização da citação em relação ao sentido e o encobrimento do drama forte em sua estética, tendo como foco o registro intenso de cada indivíduo espectador, oferecendo um olhar imerso no mundo. Dentro desses aspectos, a montagem do filme vai sendo construída para não entregar nenhuma

4

afirmação direta e criar uma mistura de espaço e tempo em sua construção, e uma crítica à vertente especificada é a falta de conflito e alteração nas obras, causando uma possível “regressão” narrativa. (OLIVEIRA JUNIOR, 2013) Essa proposta de levar o público a imergir nas sensações do ambiente e da obra em si pode ser vista em filmes como “Eternamente sua”, de 2002 e dirigido por Apichatpong Weerasethakul, e “Elefante”, de 2003, e “Últimos dias”, de 2005, ambos dirigidos por Gus van Sant, e os efeitos e aspectos do cinema de fluxo também recaem sobre obras que a princípio não têm uma ligação forte com esse gênero. É o caso do remake de “O Rebu”, de 2014, que tem seu primeiro capítulo permeado de noções estéticas e narrativas dessa corrente contemporânea da sétima arte e se apropria da linguagem do fluxo mesclada a uma linguagem própria das telenovelas. 3) A ESTRÉIA DE “O REBU” E A IMERSÃO À OBRA No meio de uma festa dada pela empreiteira Ângela Mahler em sua mansão na serra do Rio de Janeiro, um corpo sem vida é encontrado boiando na piscina: é Bruno Ferraz, rapaz que trabalhava para a protagonista e que possuía um histórico conflituoso com grande parte dos convidados da festa, como um relacionamento amoroso com Duda, a filha adotiva da anfitriã, e parcerias empresariais desfeitas com Braga, rival de Ângela. Diante do crime, a mansão se torna palco de uma investigação policial onde todos os presentes são suspeitos da morte do jovem e são interrogados sobre os acontecimentos da noite. Essa é a história de “O Rebu”, remake de 2014 criado por George Moura e Sérgio Goldenberg, dirigido por Luiz Fernando Villamarin e adaptado na obra homônima de 1974 escrita por Bráulio Pedrozo. A narrativa da telenovela é ousada ao retratar em 36 capítulos um tempo psicológico de 24 horas, que equivalem à festa e aos atos investigativos dos policiais diante do assassinato, e toda a obra carrega em sua construção uma cautela em relação às informações acerca dos atos que determinam a trama, com ênfase para o primeiro capítulo, que dá abertura ao conflito gerador das ações posteriores na narrativa. Dentro de uma obra de ficção televisual, a estreia é determinante para causar no espectador a empatia com a história apresentada, o desejo de acompanhá-la por semanas ou meses, portanto deve apresentar mais cuidado para gerar afeição no público. “O começo de qualquer caminhada supõe romper a inércia, dar o primeiro passo, forçar corpo e espírito a abandonar o cômodo ‘status quo ante’, que poderia ser até o nada” (PALLOTTINI, 1998, p. 78), e nesse primeiro passo, a simpatia pela situação da nova trama, o ambiente e seus participantes deve

5

se destacar, assim como a potencialidade sensorial deve vir em peso, fazendo com que os sentidos dos personagens saiam do âmbito narrativo e cheguem até o espectador para que este crie um tipo de afeto à trama e a seu envolvimento. É importante nessa etapa de apresentação que haja um conhecimento dos cenários, locais, indivíduos que permeiam a obra, sem muitas explicações complexas sobre suas situações (PALLOTTINI, 1998), e apresentando o ambiente, o clima, personagens e o conflito inicial da obra. “O Rebu” utiliza todas essas características melodramáticas que dão base a uma telenovela, mas num ritmo frenético e alternante esteticamente, situando o público nos acontecimentos da história de uma maneira mais intensa e sensitiva. Por se tratar de uma narrativa delicada, reproduzindo um tempo de 24 em 36 capítulos, a telenovela analisada precisa prender o público a sua história, e para isso, a trama traz em seu capítulo de estreia um objetivo de imergir o espectador à narrativa apresentada, seu ambiente e as sensações provocadas nele, apropriando-se de aspectos do cinema de fluxo em sua estética. A primeira sequência do episódio já se inicia num fluxo ao reproduzir apenas planos detalhes distorcidos dos personagens da obra, sem nenhuma identificação concreta deles e usando uma fotografia superexposta frisando a imagem lúdica e a sensação desses detalhes, sugerindo certo mistério à ação posterior. A cena seguinte acompanha de início a protagonista, interpretada por Patrícia Pillar, caminhando no salão de festas, fazendo com que quem esteja assistindo se coloque diante de diversas informações visuais e sonoras, começando pela figura de Ângela Mahler permeando ao redor dos convidados num plano sequência que capta todos os personagens da obra numa imagem carregada dos efeitos da festa, como muitas luzes fortes e fumaça, seguindo o ritmo sonoro do ambiente, que reproduz uma música dançante e as reações e falas dos presentes no cômodo, e os movimentos das pessoas no espaço, numa movimentação que se prolonga e se altera ao mesmo tempo. O decorrer dessa ação provoca o público a adentrar na situação vivida pelos indivíduos da história, como um convite para viver sensitivamente os efeitos daquela festa e imergir naquele local para sentir o que os indivíduos estão vivendo. Um segundo momento do capítulo mostra o corpo da vítima na piscina da mansão durante a festa, diminuindo a intensidade do som da música e das pessoas do salão de festa novamente para imergir o público em cada ambiente específico daquele local e seus aspectos auditivos e visuais. Nas primeiras cenas, as ações se desenrolam durante uma chuva forte, e esse artifício é fundamental para a imersão do público, já que seu som situa os diferentes espaços e suas sensações, alternando entre um barulho de chuva forte e aberta nos jardins e um som mais

6

abafado da chuva no interior da casa que está cercada de outros sons. O ritmo frenético da música dançante reproduzido até então é cortado bruscamente quando, num primeiro plano, é mostrada Duda, personagem de Sophie Charlotte, subindo ao palco e começando a cantar uma música romântica. A surpresa vivida pelos participantes da festa diante dessa mudança é transmitida em toda a sua sensorialidade ao público pela estética sonora e visual: a música animada cessa num corte brusco e dá lugar a um silêncio das vozes e a um teste de microfone, e a imagem extremamente iluminada por luzes fortes do salão de dança é alternada num tempo mínimo para uma luz difusa sobre a jovem, que vai aos poucos sendo mais iluminada pelos focos de luz do ambiente. A ação da moça cantando é alternada por Ângela e Gilda, parceira empresarial da primeira, observando a poerformance ao fundo do cômodo, e novamente a colocação do espectador em cada pedaço do ambiente, indo de acordo com a distância entre os indivíduos no espaço, é priorizada ao alternar a intensidade da voz de Duda nos momentos em que as duas outras mulheres são retratadas em um plano conjunto. É pelo artifício do som que o público percebe que as duas estão afastadas da jovem, situando o público nos sentidos espaciais vividos pelos personagens filmados naquele local. Ao longo de todo o seu capítulo de estreia, “O Rebu” utiliza em sua narrativa e estética aspectos que se assemelham ao cinema de fluxo no que diz respeito a inserir o espectador nas sensações oferecidas pelo ambiente no qual se desenrola a história, fazê-lo vivenciar todas as informações visuais, sonoras e o que elas causam. A sua estrutura já traz uma montagem que não entrega nenhuma afirmação direta ao público, reproduzindo as ações ocorridas naquele ambiente num ritmo aparentemente espontâneo e cotidiano, como se o público se deparasse com os acontecimentos de cada canto do espaço, vivendo essa absorção fragmentada do roteiro. A mansão é apresentada no decorrer do episódio com essa fragmentação espacial citada anteriormente como uma espécie de exploração rápida do espaço, mostrando diversas subdivisões desse recinto para situar quem assiste a todas as partes constituintes do cenário, como a piscina, o estacionamento, o salão principal, a cozinha, os quartos e os banheiros, por exemplo, e o fluxo é gerado, além dessa oscilação de ambientes, pela alternância do som, com a reprodução sonora relativa à distância de cada espaço, e da imagem, em relação à iluminação que cada cenário recebe, realizando uma mutação constante dentro do lugar no qual se desenrola a trama. Os fatos vão sendo apresentados sem nenhuma explicação prévia, fortalecendo a intensidade de cada registro particular, e os personagens se mostram numa variação contínua de ações, com diálogos pautados no necessário à ação específica e que variam de acordo com a cena reproduzida, e a imersão à obra se intensifica na utilização dos

7

dois “flashbacks” de ações anteriores à festa no capítulo, onde o público adentra o consciente dos protagonistas e revive suas relações interpessoais. As sensações vividas pelos indivíduos da história são acompanhadas de uma maneira íntima pela câmera, que se movimenta de acordo com os ritmos das cenas, estática em momentos aparentemente controlados, e frenética e aproximada quando em instantes mais vulneráveis e de emoções intensas, e o som se destaca por ser majoritariamente diegético, tanto em diálogos e ruídos quanto músicas, que são apresentadas como a trilha sonora tocada pelo DJ da festa. Por se tratar de uma telenovela, a obra carrega diversas características melodramáticas, como o uso de trilhas musicais nos momentos de maior dramaticidade, a intensificação de conflitos familiares e amorosos e um trabalho mais psicológico da emoção dos personagens. Entretanto, grande parte desses aspectos vão sendo desenvolvidos nos capítulos seguintes à estreia, já que esta prioriza as ações da festa e uma primeira etapa mais superficial dos conflitos que a narrativa apresentará no tempo de exibição e se apropria dum fluxo narrativo e estético para situar o espectador à história da obra e às sensações além da narrativa geradas pela estética. As modulações de espaços, personagens e sentidos fortalecem a abertura ao mistério do assassinato que permeia o enredo, já que diante das ações rápidas e dos diálogos fragmentados, qualquer indivíduo apresentado nesse capítulo pode ter sido o criminoso que matou Bruno Ferraz. 4) CONSIDERAÇÕES FINAIS O cinema de fluxo surgiu na transição do século XX para o XXI, ganhou mais força no início dos anos 2000 como uma corrente da cinematografia contemporânea, apropriando-se de conceitos da “mise em scène” e criando uma maneira de inserir o espectador à narrativa através de uma imersão sensorial provocada pela estética fílmica. Mesmo sendo uma vertente bem específica da sétima arte, os realizadores do remake de “O Rebu” utilizaram o gênero do fluxo para somar à obra, colocando nela uma absorção de sensações que chega até o espectador e faz com que ele se sinta imergido na exibição de estreia da telenovela. O que se torna considerável no primeiro capítulo da trama é a capacidade de inserir em uma linguagem melodramática aspectos estéticos e narrativos de imersão que a princípio não se relacionam com o gênero popular das telenovelas, causando certa inovação ao usar as modulações, fragmentações e inserções do fluxo no episódio. 5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

8

GOLDENBERG, Sérgio e MOURA, George. O rebu. 2014. Disponível em: . Acesso em 12 de nov. 2015. OLIVEIRA JUNIOR, Luiz Carlos. Do maneirismo ao “fim da mise em scène”. In: A mis-emscène do cinema. Campinas: Papirus, 2013, p. 119-153. PALLOTTINI, Renata. O primeiro episódio e o primeiro capítulo. In: Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998, p. 78-84.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.