A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: A CRIAÇÃO DO ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS

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Descrição do Produto

4ª semana de DIREITOS HUMANOS Construção da Paz e Segurança Internacional 03, 04 e 05 de junho de 2013

Observatório de Direitos Humanos UFSC

ISBN 978-85-86265-98-3

Multideia Editora Ltda. Alameda Princesa Izabel, 2.215 80730-080 Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 [email protected]

Conselho Editorial

Marli Marlene M. da Costa (Unisc) André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC)

Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED)

Coordenação Editorial e revisão: Fátima Beghetto

Projeto gráfico, capa e diagramação: Sônia Maria Borba Realização: Observatório de Direitos Humanos da UFSC Editora-chefe: Danielle Annoni Coeditora: Eduarda Ramos de Souza Coeditor: Felipe Orsolin Muller Fotografia e arte: Comissão Executiva do Observatório de Direitos Humanos Fotógrafo: Felipe Muller

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte S471

Semana de Direitos Humanos da UFSC (4: 2014: Florianópolis, SC) Construção da paz e segurança internacional: anais da quarta Semana de Direitos Humanos da UFSC [recurso eletrônico] / Universidade Federal de Santa Catarina; organização Danielle Annoni [et al.] – Curitiba: Multideia, 2014. 656p.; 23 cm. ISBN 978-85-86265-98-3 1. Direitos humanos. I. Universidade Federal de Santa Catarina. II. Título. CDD 342(22.ed) CDU 342.7

Distribuição gratuita – Uso não comercial Permitida a reprodução de partes, desde que citada a fonte. O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.

ANAIS DO EVENTO 4ª Semana de Direitos Humanos Construção da Paz e Segurança Internacional Florianópolis – SC

Curitiba 2014

EDITORIAL

A

Semana de Direitos Humanos da UFSC nasceu em 2010 da iniciativa de um grupo de alunos do Curso de Relações Internacionais com objetivo de estudar mais profundamente as conexões deste tema da agenda internacional e seus reflexos no Brasil. Influenciados pela Primavera Árabe, como ficou conhecido o movimento de democratização dos Estados Árabes, no ano de 2011, o tema do evento centrou-se na discussão sobre a importância da adoção do regime democrático no mundo e sua contribuição para o reconhecimento e a efetivação dos direitos de todos. Na terceira edição, o evento celebrou o aniversário da Declaração Francesa de Direitos Humanos (1789), que no ano de 2012, comemorou, em 26 de agosto, seus 223 anos de inspiração aos ideais de liberdade e reconhecimento de direitos. Em 2013, a quarta edição do evento teve por tema “a construção da paz e a segurança internacional”, tema que reúne estudos da linha de pesquisa de igual título do mestrado em relações internacionais da UFSC, bem como da linha de pesquisa do mestrado em direito e relações internacionais também da UFSC, que versa sobre regionalismo, globalização e atores internacionais. Pensado para ser um evento de integração, reuniu, nesta edição, docentes e discentes de vários cursos e universidades, mas também pesquisadores estrangeiros, funcionários internacionais, fotógrafos e profissionais das mais diversas categorias, todos com o intuito de fomentar o debate acerca da promoção e efetivação dos direitos humanos no Brasil e também no plano internacional.

Nesta edição o evento contou não apenas com palestras e mesas de discussão, mas com quatro minicursos, elaborados por especialistas para pequenos grupos, possibilitou uma interação ainda maior entre docentes e discentes, que se reuniram mais de uma vez durante o evento, em períodos mais longos, para discutir casos práticos e propor soluções concretas. Com efeito, o evento cumpriu mais uma vez com seu objetivo de integrar pesquisadores, estudantes e profissionais em torno da promoção dos direitos humanos. Esperamos que este relato do trabalho silencioso de muitos possa servir de inspiração para outras iniciativas desta natureza, em prol dos direitos humanos e seus instrumentos indispensáveis. Boa leitura! Danielle Annoni Coordenação do Observatório de Direitos Humanos da UFSC Juliana Viggiano Coordenação do Observatório de Direitos Humanos da UFSC

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

SUMÁRIO

1 Programação da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC....................  13 2 Atividades de Cidadania da 4ª Semana....................................................  25 Doação de alimentos.............................................................................  26 Tango.....................................................................................................  28 3 Relatório das Atividades da 4ª Semana de Direitos Humanos.................  31 Cerimônia de Abertura.........................................................................  32 Por: Priscilla Batista da Silva

Palestra de abertura: A Paz como Imperativo de Proteção aos Direitos Humanos: conflitos armados e intervenções humanitárias..  34 Por: Mariana Serrano Silvério Palestrantes: Dr.ª Gisele Ricobom e Dr.ª Danielle Annoni

Minicurso: “Brasil e as Missões de Paz”..............................................  40 Por: Giana da Silva Wiggers Coautoras: Jade Philippe dos Santos e Priscilla Batista da Silva

Painel: Justiça Internacional e o Paradigma Americano.....................  44 Por: Thyana C. Spode Conrad e Caroline Scotti Vilain Palestrantes: Dr.ª Soledad Garcia Muñoz, Dr. Jayme Benvenuto Lima Jr., Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal, Dr.ª Julia Barros Schirmer

Oficina: Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil...................  50 Por: Mariana Serrano Silvério Palestrantes: Dr.ª Rossana Rocha Reis, Dr. Andrés Ramirez e Dr.ª Mônica Teresa Costa Souza.

Minicurso: “Empresas e Direitos Humanos: desafios para o novo século”..........................................................................................  56 Por: Letícia Ferreira Haines

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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OFICINA: Tráfico de Pessoas................................................................  62 Por: Isadora Durgante Konzen Palestrantes: Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina

Mesa de discussão: Segurança Internacional e Meio Ambiente.........  66 Por: Giana da Silva Wiggers e Mariana Serrano Silvério Palestrantes: Dr.ª Fernanda Sola; Dr.ª Graciela de Conti Pagliari e Dr.ª Susana Borràs Pentinat.

Minicurso: Feminismos são Direitos Humanos: Importância e Desafios...............................................................................................  74 Por: Isadora Durgante Konzen Palestrante: Dr.ª Lola Aronovich

Minicurso: Violação de direitos humanos e limpeza cultural – A questão Bahai no Irã......................................................................  80 Por: Mariana Serrano Silvério Palestrante: Jonny Carlos da Silva Debatedora: Msc. Valéria Zanette

Palestra de encerramento: “Direitos Humanos, Segurança Internacional e Construção da Paz: Desafios o perspectivas”............  84 Autora: Caroline Scotti Vilain

Exposição de fotos.................................................................................  88 Por: Ana Paula Althoff

4 Depoimentos dos Participantes................................................................  91 Maíra Machado Rodrigues Isabella Alonso Panho

5 Artigos Apresentados por Professores...................................................  95 O direito internacional dos conflitos armados como instrumento de legitimidade para as intervenções humanitárias baseadas no “R2P” em conflitos armados não-internacionais................................  97 Priscila Fett

Refugiados econômicos e a questão do direito ao desenvolvimento...121 Mônica Teresa Costa Sousa Leonardo Valles Bento

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

6 Artigos Apresentados na 4ª Semana de Direitos Humanos......................149 Programa eurosocial: estrutura e resultados........................................150 Stela Floriano Ayres

A ótica do acordo internacional da Previdência Social entre Brasil-Itália como ferramenta de segurança internacional.................182 Maria José Jung Gonzalez

Hospitalidade ou hostilidade? O trabalho humano na sociedade internacional 165 anos depois do Manifesto Comunista....................216 Rose Dayanne Santos de Brito

Os limites da liberdade de expressão na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos e o discurso de ódio contra as minorias sexuais....................................................................................237 Thiago Dias Oliva

A proteçao aos direitos de crianças e adolescentes à luz da doutrina da proteção integral: um estudo da normativa internacional e interna em face da exposição dos sujeitos à publicidade mercadológica.................................................................266 Fernanda da Silva Lima Josiane Rose Petry Veronese

XENOFOBIA E PRECONCEITO NAS POLÍTICAS EUROPEIAS DE IMIGRAÇÃO: a diretiva de retorno e seu impacto na proteção dos direitos humanos da criança..........................................................294 Caroline Santos de Viera Gustavo Oliveira de Lima Pereira

OS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DO PARADIGMA DA SOCIEDADE INTERNACIONAL: traços poermanentes e duradouros de uma comunidade internacional global........................314 Juliana Graffunder Barbosa José Renato Ferraz da Silveira

O “GLOBALISMO” DE IMMANUEL KANT E HANS KELSEN: ideias sobre um projeto filosófico e um projeto jurídico para alcançar a paz........................................................................................327 Brenda Luciana Maffei

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: a criação do alto comissariado das Nações unidas para os direitos humanos.............................................346 Matheus de Carvalho Hernandez

ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUAS DECISÕES....................378 Natasha Karenina de Sousa Rego

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO DOS PAÍSES DO MERCOSUL............................................400 Isabella Alonso Panho Beatriz Oliveira Orientadora: Prof. Me. Juliana Kiyosen Nakayama

O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E A PROTEÇÃO DOS PRISIONEIROS DE GUERRA.......................................................420 Thalyta dos Santos

ZONA DE SEGURANÇA PARA REFUGIADOS: ALTERNATIVA À QUESTÃO DOS REFUGIADOS....................................................446 Elisa Moretti Pavanello

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO UM OBSTÁCULO AO ESTABELECIMENTO DE UM REGIME DEMOCRÁTICO EM MYANMAR............................................................................460 Thamirys Mendes Lunardi

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO HAITI: uma recorrência histórica e seus reflexos na atual migração para o Brasil...................................................................................................472 Marina Sanches Wünsch Sandra Regina Martini Vial

COOPERAÇÃO PARA PROTEÇÃO DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE CONFLITO ARMADO: O CASO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO................................................................491 Marília Lima Santos

MINUSTAH: AS DIFERENTES PERCEPÇÕES DE UMA LONGA MISSÃO.................................................................................................510 Mayra Coan Lago

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE A SEGURANÇA NACIONAL DOS ESTADOS E A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS...............................................................................533 Joanna de Angelis Galdino Silva

TERRORISMO: história e medidas em prol da segurança internacional..........................................................................................556 Raíssa Teixeira Almeida de Souza Daphne Martins Batista Antonio

ARMAMENTOS NUCLEARES: CONSIDERAÇÕES SOBRE SEGURANÇA INTERNACIONAL E CONTRIBUIÇÕES LATINO-AMERICANAS.....................................................................................584 Rafael Augusto Masson Rocha Cristian Ricardo Wittmann

A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DA PAZ E DE SEGURANÇA INTERNACIONAL DO ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA..........................................................................................604 Bruno Arthur Hochheim

7 MAKING OFF – A 4ª Semana de Direitos Humanos – Planejamento e Organização.........633 Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina e a IV Semana de Direitos Humanos.........................634 Ana Paula Althoff

CAMISETA DO OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS.............652 EQUIPE..................................................................................................654

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Programação da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC

Dia 3 de Junho

11hs:

Credenciamento

14h00min:

CERIMÔNIA DE ABERTURA

15h00min:

Palestra de Abertura: A Paz como imperativo de Proteção aos Direitos Humanos: conflitos armados e intervenções humanitárias

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante:

Dra. Gisele Ricobom(UNILA)

Debatedor:

Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

16hs:

Mini-Curso – Brasil e as Missões de Paz

Local:

Sala 113 (CCJ)

Palestrante:

Dra. Karine de Souza Silva (PPGD/UFSC)

Debatedor:

MSc. Priscila Fett (USP)

17h30min:

Painel - Justiça Internacional e o Paradigma Americano

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

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Palestrante:

Dra. Soledad García Muñoz (Instituto Interamericano de Direitos Humanos – Escritório América do Sul – Uruguay)

Palestrante:

Dr. Jayme Benvenuto (UNILA)

Palestrante:

Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal (Instituto Brasileiro de Direitos Humanos)

Debatedor:

Dra. Julia Schiermer (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República)

Moderador:

Dra. Juliana Viggiano (UFSC)

20h00min:

Exposição Fotográfica

Local:

HALL DO CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO (CSE) E DA BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

Dia 4 de Junho 09hs às 12hs: Workshop e Apresentação de Pesquisas Tema:

Construção da Paz nas Relações Internacionais



(trabalhos selecionados dentre os enviados pelos pesquisadores)

Local:

AUDITÓRIO DO CSE E AUDITÓRIO DO CCJ

Grupo de Trabalho 1: Questões sociais e a dimensão internacional Moderadora: MSc. Monica Duarte (Doutoranda PPGD/UFSC) Local:

Auditório do CSE

1. “Relatório EURO-Social” – Stela Floriano Ayres (UFSC/SC) 2. “A ótica do Acordo Internacional da Previdência Social entre Brasil-Itália como ferramenta de Segurança Internacional” – Maria José Jung Gonzalez (CEIRI/UFSC). 3. “Hospitalidade ou Hostilidade? O trabalho humano na sociedade internacional 165 anos depois do Manifesto Comunista” – Rose Dayanne Santos de Brito (UFPE/PE). 4. “Os limites da liberdade de expressão na jurisprudência da corte europeia de direitos humanos e o discurso de ódio contra as minorias sexuais” – Thiago Dias Oliva (USP/SP) 5. “A proteção aos direitos de crianças e adolescentes à luz da doutrina da proteção integral: um estudo da normativa internacional e interna em face da exposição dos sujeitos à publicidade mercadológica” – Fernanda da Silva Lima (PPGD/UFSC); Josiane Rose Petry Veronese (PPGD/UFSC).

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6. “Xenofobia e preconceito nas políticas europeias de imigração: a diretiva de retorno e seu impacto na proteção dos direitos humanos da criança” – Caroline Santos de Viera (PUC/RS); Gustavo Oliveira de Lima Pereira (PUC/RS).

Grupo de Trabalho 2: Discussões teóricas e debates jurídicos Moderadora: Klenize Favero (RI/UFSC) Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

1. “Os Direitos Humanos sob a ótica do paradigma da sociedade internacional: traços permanentes e duradouros de uma comunidade internacional global” – Juliana Graffunder Barbosa (UFSM/RS); José Renato Ferraz da Silveira (UFSM/RS). 2. “O „globalismo‟ de Immanuel Kant e Hans Kelsen: ideias sobre um projeto jurídico para alcançar a paz” – Brenda Luciana Maffei (PPGD/UFSC). 3. “A institucionalização das normas internacionais de direitos humanos: a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos” – Matheus de Carvalho Hernandez (UNICAMP/SP). 4. “Aspectos introdutórios sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e suas decisões” – Natasha Karenina de Sousa Rego (PPGD/UFSC). 5. “A dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico dos países do Mercosul” – Beatriz Oliveira (UEL/PR); Isabella Alonso Panho(UEL/PR). 6. “O direito internacional humanitário e a proteção dos prisioneiros de guerra” – Thalyta dos Santos (IDDH em Joinville/SC.)

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14h30min:

Oficina – Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante:

Dr. Andrés Ramirez (ACNUR/BRASIL)

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IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

Palestrante:

Dra. Rossana Rocha Reis (USP)

Palestrante:

Dra. Mônica Teresa Costa Sousa (UFMA)

Moderador:

Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

16hs:

Minicurso – Empresas e Direitos Humanos: desafios para o novo século

Local:

Sala 113 (CCJ)

Palestrante:

Dra. Denise Hauser(Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas)

Moderador:

Camila Dabrowski de Araújo Mendonça (Mestranda PPGD/ UFSC)

17h30min:

Oficina – Tráfico de Pessoas

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante:

Dra. Ella Wolkmer de Castilhos (UnB e Procuradoria da República)

Palestrante:

Dr. Paulo Abrão (Secretário Nacional de Justiça)

Palestrante:

Dra. Larissa Liz Odreski Ramina (UFPR e UNIBRASIL)

Moderador:

Dra. Juliana Viggiano (UFSC)

20hs:

Exposição Fotográfica

Local:

HALL DO CENTRO SOCIOECONÔMICO (CSE) E DA BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

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IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

Dia 5 de Junho 09hs às 12hs: Workshop e Apresentação de Pesquisas Tema:

Jus Cogens Humanitário e Segurança Internacional

Local:

AUDITÓRIO DO CSE E DO CCJ

Grupo de Trabalho 3: Instabilidade política e conflitos armados: propostas e desafios Moderadora: MSc. PRISCILLA CAMARGO (Doutoranda PPGD/UFSC) Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

1. “Zona de segurança para refugiados: alternativa à questão dos refugiados” – Elisa Moretti Pavanello (PPGRI). 2. “A violação dos direitos humanos como um obstáculo ao estabelecimento de um regime democrático em Myanmar” – Thamirys Mendes Lunardi (UFSC/SC). 3. “A violação dos direitos humanos no Haiti: uma recorrência histórica e seus reflexos na atual migração para o Brasil” – Marina Sanches Wünsch (Unisinos/RS); Sandra Regina Martini Vial (Unisinos/RS). 4. “Cooperação para Proteção das Mulheres em Situação de Conflito Armado: o Caso da República Democrática do Congo” – Marília Lima Santos (UFPel/RS). 5. “MINUSTAH: as diferentes percepções de uma longa missão” – Mayra Coan Lago (USP/SP). 6. “A (in) compatibilidade entre segurança nacional dos Estados e a proteção internacional dos refugiados” – Joanna de Angelis Galdino Silva (PPGD/ UFSC).

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Grupo de Trabalho 4: Segurança Internacional Moderador: Rafael Miranda (Doutorando PPGD/UFSC) Local:

AUDITÓRIO DO CSE

1. “O Universalismo e a Segurança Internacional: uma análise crítica sobre a luta dos direitos humanos no discurso pós-moderno” – Isabella Lunelli (PPGD/UFSC). 2. “Terrorismo: histórias e medidas em prol da Segurança Internacional” – Raíssa Teixeira Almeida de Souza (UFGD/MS); Daphne Martins Batista Antônio (UFMS/MS). 3. “Armamentos Nucleares: Considerações sobre Segurança Internacional e Contribuições Latino-americanas” – Rafael Augusto Masson Rocha (UNIPAMPA/RS); Cristian Ricardo Wittmann (UNIPAMPA/RS). 4. “O modelo de Consolidação da Paz das Nações Unidas: uma resposta eficaz à conflitualidade?”– Ananda Martins (FEUC/Portugal). 5. “O Direito Internacional dos Conflitos Armados como instrumento de legitimidade para as intervenções humanitárias baseadas no R2P em conflitos armados nãointernacionais” – Priscilla Fett (USP/SP). 6. “A Proposta de Construção da Paz e de Segurança Internacional do Estatuto de Roma e a Constituição Brasileira” – Bruno Arthur Hochheim (UFSC/SC).

14h30min:

Mesa de Discussão – Segurança Internacional e Meio Ambiente

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante:

Dra. Susana Borràs Pentinat (Universidad Rogiri i Virgili – Tarragona – Espanha)

Palestrante:

Dra. Fernanda Sola (UFSCar)

Palestrante:

Dra. Graciela de Conti Pagliari (UFSC)

Debatedor:

Dra. Vanessa Iacomini (UFF/RJ)

Moderador:

Dr. Felipe Amin Filomeno (UFSC)

16hs:

Minicurso – Feminismos são Direitos Humanos: Importância e Desafios

Local:

AUDITÓRIO DO CSE

Palestrante:

Dra. Lola Aronovich (UFC)

Moderador:

Dra. Janine Gomes da Silva (UFSC)

16hs:

Minicurso – Violação de direitos humanos e limpeza cultural – A questão bahai no Irã.

Local:

SALA 008 (CCJ)

Palestrante:

Dr. Jonny Carlos da Silva (UFSC)

Moderador:

Msc. Valéria Zanette (FASC)

19h30min:

PALESTRA DE ENCERRAMENTO:



Direitos Humanos, Segurança Internacional e Construção da Paz: Desafios e Perspectivas

Local:

AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante:

Dr. José Augusto Fontoura Costa (USP)

Debatedor:

Dr. Ricardo Soares Stersi dos Santos (PPGD/UFSC)

Moderador:

Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

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Atividades de Cidadania da 4ª Semana

DOAÇÃO DE ALIMENTOS

S

eguindo a tradição do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, durante a IV Semana de Direitos Humanos, foi solicitado aos ouvintes que contribuíssem com a doação de alimentos não perecíveis. Na ocasião, foram arrecadados 105 quilos de alimentos! Tendo em vista a extrema importância que o Observatório atribui às atividades sociais, os alimentos arrecadados foram entregues à creche “Céu da Tia Ana (localizada em Biguaçu) no dia 26 de junho, quartafeira, por estudantes de graduação da UFSC.

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A instituição é uma iniciativa da professora Ana, que auxilia aproximadamente 10 famílias. Atualmente, ela atende 28 crianças e mantém a creche apenas com doações, sem cobrar nada dos pais dos meninos e meninas ali auxiliados. Além dos alimentos, brinquedos e eletrodomésticos, como DVD, televisão, som, mix, um ferro de passar roupa e um liquidificador também foram doados pelo Observatório de Direitos Humanos da UFSC.

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TANGO

A

s atividades lúdicas realizadas pelo Observatório de Direitos Humanos têm o objetivo de integrar a comunidade e possibilitar um momento de lazer, visto que todo indivíduo tem direito ao mesmo. No dia 28 de maio de 2013, bolsistas e voluntários do Observatório de Direitos Humanos realizaram uma aula de tango em parceria com o Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI). A aula contou com a presença de 30 pessoas, entre elas estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina e o professor de tango Fransley que, juntamente com Laura, sua par-

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IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

ceira de dança que não pôde comparecer na ocasião, compõe desde 2006 a dupla “De Profesión Tango”. As aulas aconteceram nas dependências da Igrejinha da UFSC, no período da manhã e a permissão para a utilização do local foi cedido pela DAC. As aulas representam experiência cultural e humana. Foi criado um ambiente multicultural de respeito, amizade e animação.

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Relatório das Atividades da 4ª Semana de Direitos Humanos

CERIMÔNIA DE ABERTURA

Por: Priscilla Batista da Silva Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Bolsista do Observatório de Direitos Humanos.

N

o dia 3 de junho de 2013 às 14:30 teve início a IV Semana de Direitos Humanos organizada pelo Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina. Com o tema “Construção da Paz e Segurança Internacional”, as atividades realizadas foram propostas com a intenção de estimular o debate e trazer aos Acadêmicos desta Universidade discussões e informações sobre temas atuais e relevantes da área dos Direitos Humanos. A mesa de autoridades da cerimônia de abertura do evento contou com a presença do Diretor do Departamento de Projetos da Pró-Reitoria de Pesquisa, Prof. Elias Machado Gonçalves, como representante da Reitora, que na ocasião não pôde comparecer. Estiveram também presentes o Pró-Reitor de Assuntos Estudantis, Prof. 32

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Dr. Lauro Francisco Mattei, a Diretora do Centro Socioeconômico, Profa. Dra. Elisete Dahmer Pfitscher, o então diretor do Programa de Pós-graduação em Direito, Prof. Dr. Arno Dal Ri Jr, o então coordenador do Curso de Graduação em Relações Internacionais, Prof. Dr. Helton Ricardo Ouriques e a Coordenadora do Observatório de Direitos Humanos, Profa. Dra. Danielle Annoni. Na ocasião, os componentes da mesa manifestaram seu apoio ao evento e a importância que o mesmo tem para a Universidade e, especialmente, para os graduandos e pós-graduandos das áreas de Direito e Relações Internacionais. Reforçaram a importância de uma Universidade aberta às discussões e que vá além dos temas abordados em sala de aula, parabenizando a Organização da IV Semana e a equipe do Observatório de Direitos Humanos. Após o ato oficial de abertura, a Professora Danielle Annoni declarou oficialmente iniciados os trabalhos da IV Semana de Direitos Humanos.

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PALESTRA DE ABERTURA: A Paz

como Imperativo de

Proteção

aos

Direitos Humanos:

conflitos armados e intervenções humanitárias

Por: Mariana Serrano Silvério Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

À

s 15h do dia três de junho teve início a palestra “A paz como imperativo de proteção aos Direitos Humanos: conflitos armados e intervenções humanitárias”, ministrado pela Prof.ª Dr.ª Gisele Ricobom, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). A Prof.ª Dr.ª Danielle Annoni,

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Palestrantes: Dr.ª Gisele Ricobom e Dr.ª Danielle Annoni

coordenadora do Observatório de Direitos Humanos da UFSC, foi a moderadora da palestra. Após agradecimentos iniciais, a palestrante fez referência a pontos de contextualização e de abordagem geral em relação ao tema. Primeiramente, foi apresentado um panorama atual das intervenções humanitárias, onde se colocou que o direito das intervenções já está consolidado dentro do Direito Internacional, mas que ainda existem muitas dúvidas e controvérsias em relação à sua estrutura e consolidação.

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Para iniciar a discussão, a Prof.ª Gisele propôs questões sobre pontos cruciais no debate das intervenções humanitárias, tais como “é possível construir a paz através de intervenções militares/ uso da força?”, “qual é a justificativa moral por trás das intervenções?”, “é possível tomar uma medida coletiva para evitar a catástrofe humanitária?”, “em nome do quê, como e quando a sociedade internacional deve agir?”, e o maior paradoxo neste contexto, segundo a professora, “como defender que os Direitos Humanos devem ser protegidos por bombas de fragmentação?”. Além de todas essas questões, a palestrante ainda instigou o público a pensar sobre o porquê de as intervenções ocorrerem em alguns casos e em outros não. Foi apresentado o conceito de direito de ingerência, bem como a classificação das intervenções humanitárias em duas formas. Estas duas se resumem à ingerência material, que envolve a intervenção no território alheio, podendo ser caritativa (reforçando que este conceito é diferente de assistência humanitária), forçada ou dissuasora (operações de paz das Nações Unidas, operações multidimensionais, atuação por meio de forças, prevenção de conflitos, manutenção, consolidação da paz); e a ingerência imaterial, que se dá através do soft power, da diplomacia ou por meio de outros elementos que não envolvem o “contato físico” direto. A Dr.ª Ricobom afirmou que a ideia de intervenção humanitária muda conforme o tempo e pode ser explicitada pela responsabilidade de proteger, afirmando assim o uso da força como artifício de proteção dos direitos humanos, embora essa não seja uma visão consensual e alguns autores a considerem como imperialismo humanitário. Para a professora, essa ideia de humanismo militar ou imperialismo humanitário deve ser mais considerada quando utilizada como nova forma de colonização. Dando continuidade à exposição, a palestrante comentou que, após a Guerra Fria, a ONU buscou reestruturar o significado das intervenções, considerando a contradição de sua Carta que reforçava o 36

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princípio da não intervenção em contrapartida com a necessidade de torná-la um instrumento legal naquele momento. Em 1992, em pronunciamento da Agenda Para a Paz, foi declarada a nova função da ONU (nova perspectiva da intervenção, maior presença da ONU nos conflitos), assim como foi reelaborado o modus operandi da instituição em relação às intervenções humanitárias. Neste contexto foram estabelecidos novos limites e instituídos alguns princípios básicos de atuação no campo das intervenções, sendo eles: prevenção através de operações de estabelecimento da paz (incluindo a força armada se necessário), a manutenção da paz (executando atividades não só militares: através da justiça e da promoção da igualdade) e consolidação pós-conflito. Outro aporte do debate se relacionava à questão da moralidade e ética como justificativas para as intervenções humanitárias. O conflito começa com o pressuposto de cumplicidade por inação, ou seja: se a sociedade não agir, não intervir quando tiver as condições para isso, estará sendo cúmplice dos massacres e problemas no outro país. Em acréscimo, Ricobom chamou a atenção para os países que se colocam como grandes protetores da paz mundial, mas que também cometem grandes erros relacionados às intervenções. Na opinião da professora, para que tais casos pudessem ser evitados, deveria ser estatizada a responsabilidade de reparação para com o país que sofreu intervenções (dever de indenização ou estabelecimento de medidas de recompensa como comércio justo com os países sem condições de se reerguer). A palestrante falou sobre os parâmetros de prevenção dos conflitos e quais são as condições que possibilitam o uso da força nas intervenções. Ressaltou também a importância de medidas que precedam a intervenção, como os embargos econômicos, por exemplo. São seis as condições que tornam possível o uso da força no âmbito das intervenções: causa justa (proteção dos direitos humanos nos quatro casos excepcionais: genocídio, crimes de guerra, lim-

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peza étnica, crimes contra a humanidade), intenção correta (deve ser comprovada a intenção de minimizar o sofrimento humano através de um relatório; não exclui outros interesses como o desenvolvimento da indústria bélica), último recurso, esgotamento (diferente do último recurso), uso de meios proporcionais (respeito ao direito humanitário), e visando as possibilidades razoáveis (uso da força somente se o resultado for certo) por autoridade competente (envolve critério de legalidade, Conselho de Segurança das Nações Unidas, embora existam problemas e contradições relacionadas a sua formação e os novos moldes da geopolítica). Encerrando sua fala, a Dr.ª Ricobom criticou o discurso sobre os Direitos Humanos, no sentido de que ele só serve para minimizar os efeitos catastróficos das ações já cometidas. Ela defendeu a necessidade de refletir profundamente sobre maneiras alternativas de desenvolver a sociedade internacional e construir um estado da paz efetiva. A Dr.ª Danielle Annoni adentrou o debate resumindo o discurso anterior em três grandes dilemas ou perspectivas: a perspectiva jurídica das intervenções humanitárias (racionalidade, legalidade, legitimidade - o que legitima, o que não?); a questão política (por que, quando e onde intervir ou não?); e a questão moral. A debatedora questionou a palestrante sobre se, ainda que na prática existam três ou quatro grandes Estados que não serão atingidos por qualquer tipo de intervenção, os demais países deveriam ou não ter mecanismos de impedir que a barbárie se estendesse em sua vizinhança e como a palestrante justificaria sua opinião. A Prof.ª Gisele respondeu que é necessário compreender as intervenções humanitárias a partir das perspectivas da relação de poder, e não no seu “descontexto” genuíno (o mundo não é bom). Ela afirmou que as intervenções não são soluções viáveis em todos os casos e que é preciso buscar e discutir meios mais complexos e efetivos de prevenção de conflitos.

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Finalizando a sessão, Juliana, acadêmica da Universidade Federal de Santa Maria, propôs a seguinte questão à palestrante: “ao se comprometer com a responsabilidade de proteger, o Brasil se coloca em posição de agente normatizador do sistema internacional?” A Dr.ª Ricobom respondeu que o Brasil está tentando se inserir no jogo global e, para isso, se contrapõe aos moldes da geopolítica atuais, tentando afirmar uma postura de respeito dentro do sistema (para conseguir espaço na ONU, por exemplo). No entanto, seus esforços são limitados e o País ainda não fez qualquer proposta significativa de reforma igualitária. Desta forma encerrou-se a palestra, às 16h15.

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MINICURSO: “Brasil e as Missões de Paz”

Por: Giana da Silva Wiggers Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

Coautoras: Jade Philippe dos Santos e Priscilla Batista da Silva Graduandas em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e bolsistas do Observatório de Direitos Humanos.

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minicurso “Brasil e as Missões de Paz” aconteceu no dia 3 junho de 2013 na sala 113 do Cento de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal de Santa Catarina das 16:10 às 18:00 e contou com um público de, aproximadamente, 60 pessoas. O minicurso foi ministrado pela Prof. Dra. Karine de Souza Silva, da UFSC, e pela debatedora Msc. Priscila Fett. Priscila Fett abordou, inicialmente, o tema das operações de paz da ONU, bem com a relevância das mesmas e a presença do Brasil

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nesse cenário. Falou, nesse sentido, sobre algumas missões de paz, como a do Líbano, e a participação do Brasil com o envio de militares. Em seguida, a debatedora se propôs a indicar a “Agenda” referente ao histórico das Missões de Paz, a qual é citada a seguir: 1- Criação da Organização das Nações Unidas com o objetivo de manutenção da paz. 2- Os instrumentos pra manter a Paz Internacional: Peacemaking, que visa a prevenção de conflitos (tratados e acordos de diplomacia); Peacekeeping, no qual estão inseridas as operações de manutenção da paz ; Peacebuilding, presta auxílio na reconstrução social e econômica de um país visando paz e segurança duradouras; E Peace Enforcement, que abarca o uso da força. 3- Tipos de Peacekeeping: antes da Segunda Guerra a ruptura da paz era vista apenas como conflito entre Estados,

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mas após a Guerra Fria as guerras intraestatais ganharam força, o que gerou o agravante de civis se tornarem alvo frequente. 4- Fundamentação jurídica explicando a legitimidade internacional das operações, que derivam de um mandato pelo sistema de segurança. 5- Marco Regulatório, mostrando os documentos necessários para o processo das missões. 6- Desdobramentos: o passo a passo das missões desde o processo de avaliação do cenário até a operação realizada. Priscilla Fett falou brevemente sobre Missões tradicionais, como a que envolveu a criação do Estado de Israel, e também trouxe a questão das missões desarmadas nos conflitos dessa região, indicando, inclusive, a participação brasileira na pessoa do General Carlos F. Paiva Chaves em 1964. Em seguida, a debatedora apontou os Princípios de uma missão, quais sejam: o consentimento de ambas as partes (para não violar a soberania do estado); a imparcialidade (em não julgar os preceitos das ações dos países); e o mínimo uso da força. Apontou, ainda, algumas dificuldades das Missões de Paz, como a não permissão para que as mesmas sejam implantadas e a violação dos princípios por algum país. Após tecer uma crítica à ONU pela desorganização na Missão de Paz em que morreram representantes missionários, bem como às tragédias ocorridas em Missões na Somália e em Ruanda, Priscila Fett mostrou que houve uma revisão do papel das missões, e que atualmente os Direitos Humanos ocupam uma posição central nas mesmas. Tudo é feito de modo a verificar o cumprimento desses direitos e assegurar sua manutenção, havendo, inclusive, a possibilidade de Peacekeeping pelo uso da força em caso de violação dos direitos humanos de um civil. Indicou, ainda, que civis, voluntários e militares atuam em conjunto para que as missões de paz se tornem realidade. 42

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A demanda para Missões de Paz é bastante diversificada (governança econômica, estabilização econômica, conflitos, entre outros), abrangendo muitas dimensões de manutenção da paz. Há, atualmente, 15 missões em andamento, as quais concentram-se, especialmente, no Oriente Médio e na África. Foram expostos, em seguida, alguns dados estatísticos, como a indicação do orçamento de 7.33 bilhões de dólares destinados pela ONU no último ano às Missões de paz, a participação feminina equivalente a 4,5% dos enviados e o protagonismo do Paquistão, que é o país que mais envia tropas. Após a explanação de Priscilla Fett, a professora Dra. Karine apresentou um breve panorama sobre a criação da ONU e seus componentes. Expôs, por exemplo, a realidade das intervenções na diplomacia, que não está isenta de interesses em missões de paz. Explicou também o papel do Brasil e sua iniciação na Organização, indicando que o país participou desde o princípio das atividades da ONU. Numa análise comparativa com outros países ativos na ONU, indicou que o Brasil já participou de mais de 30 missões de paz mas que tem uma visão diferente dos outros Estados no tocante a conferências com a defesa de seus interesses no cenário internacional. A expositora apontou ainda os critérios de escolha das Missões de Paz utilizados pelo Brasil, como os relacionados à defesa dos Direitos Humanos, que tenham um mandato exequível, além da preferência pelo envio de observadores em missão pacífica. Retomando a uma abordagem mais geral, a professora Dra. Karine enfatizou o caso do Haiti, onde a população já começa a apresentar condições de seguir sem a intervenção da Missão. Para finalizar, mostrou fotos do cenário do Haiti sem condições básicas na época em que o Brasil se mobilizou e direcionou forças para a reconstrução do dito país. Após uma rodada de perguntas o mini curso foi encerrado, tendo seus objetivos de diálogo e ampliação dos conhecimentos sobre o tema satisfatoriamente alcançados.

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PAINEL: Justiça Internacional e o Paradigma Americano

Por: Thyana C. Spode Conrad e Caroline Scotti Vilain Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e, respectivamente, Bolsista e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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Palestrantes: Dr.ª Soledad Garcia Muñoz, Dr. Jayme Benvenuto Lima Jr., Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal, Dr.ª Julia Barros Schirmer.

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o dia 3 de junho, às 17h30min, no auditório do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, iniciou-se o painel “Justiça Internacional e o Paradigma Americano”. Participaram do painel como palestrantes o Dr. Jayme Benvenuto Lima Jr., da UNILA; a Dr.ª Soledad García Muñoz, do Ins-

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tituto Interamericano de Direitos Humanos; e o Dr. César Oliveira de Barros Leal, do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Como debatedora, a Dr.ª Julia Barros Schirmer, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; e como moderadora, a Dr.ª Juliana Viggiano, da UFSC. As atividades do painel iniciaram-se com a exposição da Dr.ª Soledad, que principiou sua participação demonstrando admiração pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, que afirma que todos os seres humanos têm o mesmo poder. Ela continuou sua fala dizendo que os Direitos Humanos que temos atualmente diferem daqueles que se tinham antigamente, nas etapas que Bobbio chamou de: positivação (1ª etapa); generalização (2ª etapa), como o direito das mulheres; e internacionalização (3ª etapa), onde se deu a criação dos grandes sistemas a nível continental de Direitos Humanos. A palestrante passou então à observação de que a luta contra a impunidade é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo Sistema Interamericano. Deste modo, Soledad voltou seu discurso para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, criado a partir da Declaração Americana de Direitos Humanos, documento importantíssimo que faz a distinção necessária entre os direitos sociais e os econômicos, e entre os direitos civis e os políticos. Sobre os benefícios advindos da criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Soledad Muñoz destacou a relevância da proibição da pena de morte, da penalização da tortura e do desaparecimento forçado de pessoas, além da proteção à mulher. Ela encerrou sua fala dizendo que estes pontos são considerados inéditos na história mundial. Dando continuidade ao debate, o Dr. Jayme primeiramente citou alguns casos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos se envolveu para sanar violações, como o da República de 46

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Trinidad e Tobago, que foi advertida em decorrência de violações físicas; o caso chileno que versa sobre a violação da honra da família e do não preconceito homoafetivo – aqui fez a observação de que o Chile é um dos países com maior número de casos na Corte; Kimel vs. Argentina, em que o escritor Eduardo Kimel foi acusado pelo crime de calúnia e perseguido pelo Estado argentino; e o caso dos 19 comerciantes vs. Colômbia. Ele disse que o Sistema Interamericano é resultado do seu tempo e, portanto, possui tanto limitações quanto potencial. Nosso sistema é fruto de duas guerras: a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, de onde se infere que as lutas histórias fazem parte do longo processo histórico dos sistemas de Direitos Humanos sendo assim cunhado o termo “diamante ético”. Concluindo seu discurso, o professor destacou a necessidade de que se altere o Sistema Internacional no sentido de ampliar os direitos onde eles ainda não conseguiram chegar, como os Estados que ainda violam os Direitos Humanos. Passou-se então a palavra ao professor Cesar Barros Leal, que fez breve menção à sua visita a Tijuana, no México. O palestrante disse que a justiça deve perseguir a paz, que o Estado deve perseguir os Direitos Humanos e que o Estado não deve se sobressair ao direito. Fazendo referência aos ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade, Cesar falou em um novo paradigma, no qual o ser humano é o eixo principal e o Estado tem a responsabilidade de reparar seus erros através da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O professor se disse ainda preocupado com a interdependência dos direitos humanos. Sua participação findou-se com uma homenagem à professora Danielle Annoni, com um prêmio de Direitos Humanos pelo evento e pela missão que este possui.

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A debatedora Julia Schirmer iniciou sua fala dizendo que o Sistema Interamericano se baseia somente nos Direitos Humanos, mas que é também formado pelos cidadãos e pelos Estados acusados. Citando alguns casos em que o Brasil está envolvido, ela observou que o governo brasileiro ainda não possui uma resposta ao caso de Belo Monte, além do caso Maria da Penha, pelo qual o País ainda se encontra na Corte e para o qual ainda deve respostas. Julia apontou que o Brasil tem atualmente cerca de 130 casos na Corte Interamericana de Direitos Humanos – o que representa grande avanço, visto que já cerca de uma década o país sequer respondia a essa Comissão. A debatedora disse que a maioria dos casos é de responsabilidade dos entes federados, exemplificando com a questão do presídio central de Porto Alegre, onde já está sendo elaborado um plano de melhorias do sistema com foco no combate à tortura. Deste modo, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é de extrema importância para evidenciar os erros que os Estados ainda cometem quando se trata da matéria. Sobre este assunto, o professor Cesar argumentou que a questão do presídio de Porto Alegre não é única, já que existem presídios em situação similar ou pior que aquela espalhados por todo o Brasil. E que, portanto, o Governo Federal deveria usar este caso para promover uma reforma geral do sistema carcerário do País, não somente do presídio de Porto Alegre. Ele ainda se colocou contra a redução da menoridade penal. Foi aberto então o momento para as perguntas, onde a moderadora, professora Juliana Viggiano, levantou a questão sobre a percepção da contingência dos direitos humanos, e se há uma nova percepção do internacional e local. Todos os integrantes da mesa manifestaram vontade em responder, começando pela Dr.ª Soledad Muñoz, que demonstrou não ter certeza se a palavra “contingente” seria a melhor a ser usada neste caso.

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O professor Jayme Benvenuto disse que a dificuldade em se entender a contingência se dá por causa do nosso apego, representado pelas teorias de Kant. O professor Cesar Leal compartilhou da opinião do colega, apresentando a questão da governança pela política das nossas opiniões. Assim encerrou-se o painel sobre Justiça Internacional e o Paradigma Americano. Em seguida, houve sorteio de livros disponibilizados pelo Prof. Cesar Oliveira de Barros Leal entre os inscritos para o painel.

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OFICINA: Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil

Por: Mariana Serrano Silvério Graduanda em relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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s 14h50 do dia quatro de junho de 2013, deu-se início à oficina “Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil”, como parte da programação da IV Semana de Direitos Humanos. Participaram como palestrantes a Prof.ª Dr.ª Rossana Rocha Reis, da Universidade de São Paulo (USP), o Dr. Andrés Ramirez, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil e a Prof.ª Dr.ª. Mônica Teresa Costa Souza, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Como moderadora, integrou a mesa a Prof.ª Dr.ª Danielle Annoni, da

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Palestrantes: Dr.ª Rossana Rocha Reis, Dr. Andrés Ramirez e Dr.ª Mônica Teresa Costa Souza.

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O objetivo central da oficina foi contextualizar e avaliar os movimentos internacionais de migração tanto no âmbito mundial quanto no nacional. Dando início aos trabalhos da tarde, o Dr. Andrés Ramirez começou sua fala constatando que o tema em questão não é muito tratado, mas que existe uma grande necessidade de torná-lo mais comum, considerando o fato de que as migrações são corriqueiras e estão diretamente ligadas às tragédias humanas. Para exemplificar, citou o confronto militar no leste do Congo, que motivou milhares de pessoas a fugirem para Ruanda, e também a invasão soviética no Afeganistão, que fez com que milhares

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se deslocassem para o Paquistão e o Irã. O palestrante destacou a situação dos conflitos na Síria e no Iraque, pois estes resultaram no deslocamento de mais de quatro milhões de pessoas que ainda possuem dificuldade de atravessar fronteiras internacionais. Afirmou que, nestes casos em específico, o ACNUR tem grande dificuldade em realizar assistência humanitária - e que, adicionandose a este problema, a missão da instituição tem sofrido grande impacto diante da crise mundial, já que não há vagas suficientes para os migrantes se reassentarem em países estáveis, fazendo com que estes se aloquem em Estados que já não comportam seus próprios nacionais. Dando continuidade à exposição, Ramirez concentrou as atenções de seu discurso na América Latina, apresentando dados estatísticos como, por exemplo, o de que existem mil colombianos por ano saindo de seu Estado natal. O palestrante afirmou que, embora a situação socioeconômica da Colômbia tenha melhorado, as condições de vida não são suficientemente boas para evitar a migração. Esta constatação fica evidente quando se apresenta o dado de que 84% dos colombianos que moram no Equador não possuem o intuito de se repatriar, pois ainda desconfiam da situação de crise e violência de seu país. Por fim, o Dr. Andrés Ramirez propôs uma reflexão sobre o impacto dessa crise nos países da América do Sul em relação ao Brasil. Disse que o Estado tem sorte, já que faz fronteira com países relativamente tranquilos e, mesmo considerando o grande número de fronteiras internacionais – o Brasil fica atrás apenas da Rússia – existe aqui uma quantidade bem pequena de refugiados, sendo a maioria deles de nacionalidade colombiana. Passou-se a palavra à Dr.ª. Mônica Teresa Costa Souza, que iniciou seu discurso com a afirmação de que a problemática relacionada ao tópico de refugiados é muito mais antiga do que se pensa, e que até hoje não existe uma convenção específica para o que se chama de refugiados econômicos. Embora seu foco não seja este, a palestrante apresentou uma categoria diversa de refugiados, os refugiados ambientais.

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A palestrante disse ser necessário, para a categorização dos refugiados, tratar a movimentação das pessoas a partir das razões de suas migrações. Citou então os refugiados em sentido clássico, que buscam a sobrevivência (de fato) por não ser possível morar em seu país de origem; e os refugiados econômicos, que buscam condições humanas de vida quando o país natal não oferece oportunidades de crescimento ou desenvolvimento. No que toca o refugiado econômico, categoria que vem crescendo diante do cenário de crise, foram levantados questionamentos relevantes para o Estado que se propõe a receber esta leva de pessoas. Por exemplo: “qual é o tipo de ajuda ou proteção que o Estado deve prover para estas pessoas?” e “até que ponto o Estado estrangeiro deve abrir suas fronteiras para pessoas que estão fugindo da ineficiência de seus Estados de origem em garantir vida digna a seus cidadãos?”. Corroborando o ponto já discutido pelo Dr. Ramirez, Costa Souza afirmou que uma das principais razões para que muitos Estados não queiram receber migrantes é o fato de que estes estariam colaborando com a desestabilização de um sistema já pouco estável. Em relação às condições dos refugiados e migrantes, a palestrante destacou a expansão da noção do desenvolvimento humano nos anos 1990, a partir da divulgação dos relatórios da ONU. Afirmou que são necessárias mudanças constitucionais e institucionais, tanto nos países de origem como nos que recebem os migrantes. Considerou necessário também o fortalecimento do aparato internacional da proteção dos Direitos Humanos, além da consideração das particularidades regionais, para tornar mais efetivo o direito ao desenvolvimento. Pondo fim à sua fala, a Prof.ª. Mônica reforçou a ideia de que o reconhecimento do direito ao desenvolvimento é fundamental, tanto no contexto de migrações e refugiados, como no âmbito da efetividade de cooperação entre os Estados. A terceira palestrante, Dr.ª. Rossana Rocha Reis, principiou sua fala comentando sobre a problemática da relação de Direitos Humanos e as migrações internacionais. Partindo do pressuposto de que os homens se movem, são nômades desde sempre (a mobili-

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dade é fato) e ignorando a noção de Estado, a professora afirmou que o que vem ocorrendo nos últimos anos é somente um aumento na frequência na distância das migrações. Em adição, destacou que, dentro do sistema capitalista, mobilidade gera renda. A Dr.ª. Rossana propôs que, partindo do ponto de vista social, a pergunta mais interessante relacionada ao assunto seja: “por que as pessoas não migram tanto?”. O fundamento para esta questão, segundo ela, é que, no contexto da lógica microeconômica, todos deveriam estar mais em movimento do que estão. Ainda neste âmbito, se as pessoas são móveis, a estrutura política de organização do território se torna obsoleta, pois foge à regra quando condiciona as populações a serem estacionárias. Foi colocada em foco, então, a reflexão sobre o monopólio da legitimidade da mobilidade: legitimamente, as pessoas só podem se mover com a permissão do Estado em que se deseja entrar – o que também vai de encontro ao princípio de que o homem é um ser nômade. A única exceção é o Direito Internacional dos Refugiados, que garante o direito das pessoas de saírem, mas não o de entrarem, ou de encontrarem condições favoráveis de vida e desenvolvimento. Outra questão discutida pela palestrante foi o fato de que o Estado perde o controle de suas fronteiras – logo, do seu território – quando surge a securitização das migrações internacionais, elemento que torna-o incapaz de manter fora de seus limites os migrantes considerados indesejáveis, colocando a sua soberania em jogo. Os migrantes indesejáveis podem ser classificados em refugiados, os que buscam reunificação familiar, e o grupo dos indocumentados. Refugiados, disse a palestrante, são aqueles que o Estado acolhe por caridade, como um favor ao sistema internacional; a única obrigação é, então, não mandá-los de volta para a região conflituosa. Os indocumentados adentram o território sem a permissão do Estado, e compreendem hoje um número grande e crescente. A Dr.ª. Rossana Reis apontou, como medida de ação em relação aos migrantes indesejados, o caso da política de migração zero, que produz de forma única uma precariedade ainda maior para os

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migrantes, condicionando-os a continuar sendo migrantes. Em adição, afirmou que a fronteira não atua como barreira da movimentação, mas sim, cria uma gigante desigualdade social para com o migrante, que se torna explorado e explorável. Complementando a classificação dos migrantes da Dr.ª Mônica Costa Souza, a Prof.ª Rossana destacou as diferenças entre as migrações de trabalho: há os trabalhadores que entram na base do sistema, onde os profissionais nacionais se recusam a atuar; os trabalhadores elitizados, que migram por serem visados; e os trabalhadores indocumentados. A Dr.ª propôs, no fim da sua fala, que a temática em questão seja mais discutida do ponto de vista de todas as Ciências Sociais, e que a discussão sobre o possível direito de ir e vir internacional seja mais difundida. Iniciou-se a sessão de perguntas. Carolina, aluna da UFSC, dirigiu sua pergunta ao Dr. Ramirez, questionando-o sobre a situação dos haitianos no Brasil e se algo mudou após o terremoto de 2010. O palestrante respondeu que o Brasil nunca foi destino de refugiados historicamente e foi apenas recentemente, após o terremoto, que o País começou a receber estes migrantes. Disse ainda que o número é pequeno e que não existe a necessidade de pânico em relação a um possível fluxo intenso de refugiados. De acordo com a lei ultrapassada e políticas restritivas, o Brasil se limita a receber migrações somente de ordem humanitária. O acadêmico Issa, da UNISUL, dirigiu seu questionamento à Dr.ª Rossana, perguntando sobre as possíveis ações do Estado Nacional para ajudar a sua população que migrou para outros Estados. A professora sugeriu uma melhora no serviço consular brasileiro, além da criação da possibilidade da dupla nacionalidade e uma maior organização relacionada aos acordos referentes às migrações entre os países.

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MINICURSO: “Empresas e Direitos Humanos: desafios para o novo século”

Por: Letícia Ferreira Haines Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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o dia quatro de junho de 2013, às 16 horas, aconteceu o minicurso “Empresas e Direitos Humanos: desafios para o novo século”, no qual estavam presentes, aproximadamente, 40 pessoas. O minicurso foi ministrado pela Dr.ª Denise Hauser, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na Guatemala, e moderado pela Mestranda em Direito Internacional na UFSC, Camila D. de Araújo Mendonça. 56

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Inicialmente, a palestrante expôs sua intenção de tornar do mini-curso uma discussão mais interativa e dinâmica do que uma palestra, explorando principalmente os pontos de interesse dos expectadores. A Dr.ª Denise, ao tratar de casos que chegavam no escritório de Direitos Humanos da ONU na Guatemala, vivenciou diretamente a realidade da temática apresentada. O tema tem ganhado visibilidade na ONU nas últimas décadas devido ao surgimento de casos em que grandes empresas multinacionais, algumas com lucros que ultrapassam o PIB dos países onde se instalam, têm sido acusadas de violações aos Direitos Humanos e cumplicidade com governos repressivos. Tais fatos levam a

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questionar qual o peso político, a influência nas relações internacionais e a subjetividade jurídica desses novos entes e como proceder nos casos de violação. Embora no Direito Internacional Público os Estados figurem como principais atores, levanta-se a questão a respeito da responsabilidade internacional das empresas e a capacidade dos indivíduos de afirmarem-se como sujeitos de Direito Internacional através dos Direitos Humanos. Falar sobre empresas e Direitos Humanos não é uma incompatibilidade, e, nesse sentido, há a visão de que, a longo prazo, é possível haver desenvolvimento sustentável, bom aproveitamento dos recursos e benefícios para as comunidades onde essas empresas instalam-se. Dra. Denise inicia sua apresentação trazendo alguns exemplos de casos recentes e, em especial, o caso da Empresa Shell na Nigéria que trouxe à tona a discussão sobre empresas e Direitos Humanos na ONU. A Nigéria é um dos países com maior reserva de petróleo do mundo e no final dos anos 50 concedeu à empresa Shell a concessão para exploração de uma jazida e construção de uma refinaria em seu território, o que acabou gerando uma joint venture entre a Shell (capital majoritário) e uma corporação nigeriana de petróleo. Apesar da resistência da população local, a refinaria foi instalada em território Ogoni, uma área tribal com mais de 500 mil habitantes. Os Ogoni são uma etnia indígena que vive em relação direta com a natureza, dependendo dos rios e do solo para a sua subsistência. A instalação da refinaria contamina o solo, o ar e as águas, provoca chuva ácida e interfere no fluxo dos rios. Isso faz com que o conflito se intensifique, uma vez que a instalação da empresa também traz poucos benefícios ao país e não promoveu o desenvolvimento sustentável das comunidades. Na década de 70, os indígenas apresentaram reclamações a respeito da degradação ambiental, para a qual não houve resposta. Após anos de conflito e protestos, a Shell suspendeu as operações no local e o governo Nigeriano suspendeu a licença. A partir de então, o Estado iniciou uma ofensiva contra o povo Ogoni, a qual resultou em mais de duas mil mortes e na condenação de quatro líderes à

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morte. A Shell não reconheceu envolvimento direto com a repressão militar, embora tenha manifestado um sutil apoio. Por fim, em 2009, a empresa firmou acordo com os demandantes. A imagem ruim que se criou da empresa em decorrência do caso apresentado levou a uma mudança em sua política e à adoção de novos comportamentos. A Doutora Denise Hauser indicou que para uma empresa atuar em determinado país não é suficiente que ela obtenha a licença legal do Estado, é preciso que também haja uma licença social. Se as comunidades envolvidas não concordam com a instalação da empresa e não há acordo prévio entre as partes, o resultado pode ser extremamente negativo para todos os envolvidos (comunidade, empresa e Estado). Em seguida, a ministrante do mini-curso mostrou aos expectadores gráficos que ilustram a distribuição dos incidentes envolvendo empresas e DDHH ao redor do mundo, os quais revelavam que o maior número de casos desse tipo acontece na Ásia e África. As empresas envolvidas são, principalmente, dos setores extrativos (ouro, prata, megaprojetos hidrelétricos), seguido pela indústria farmacêutica e química. Essas informações provêm do Centro de Investigações sobre Empresas e Direitos Humanos (Business and Human Rights Resource Centre) que recebe e compila casos, ampliando a base de dados sobre impactos positivos e negativos das empresas no tocante aos direitos humanos. A moderadora Camila, então, fez um questionamento sobre o número pequeno de casos no Oriente Médio. Ela objetivou, com isso, indagar se o índice é menor porque ocorrem menos incidentes ou porque esses são menos reportados. A Doutora Denise explica que os dados se baseiam nas denúncias recebidas e em fontes investigativas, mas ressalta o fato de que os países do Oriente Médio não são abertos e a circulação de informação não é livre, além da falta de uma comunidade civil forte para efetuar as denúncias. Em seguida, a palestrante recebe mais uma pergunta sobre a política de instalação de uma empresa em determinado país, destacando a questão do consenso social. Denise Hauser discorre sobre o Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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direito à consulta prévia e negociação com as comunidades afetadas antes da chegada das empresas, os quais estão previstos em normas internacionais. O Estado é responsável, no contexto dos tratados internacionais, em particular da OIT, a realizar a consulta com a comunidade afetada pela instalação de uma empresa a fim de se conseguir a Licença Social. A empresa, por sua vez, deve apresentar seu projeto com pontos como o impacto ambiental e econômico que causará, e o desenvolvimento que trará ao local sendo também necessário tratar das indenizações que serão pagas à comunidade em caso de danos. Ou seja, é preciso assentar as bases de negociação em comum acordo entre empresa e comunidade. Os mesmos procedimentos devem ocorrer quando se trata de um investimento nacional interno. Além do convenio 189 da OIT, que versa sobre comunidades indígenas, é preciso que sejam respeitadas as normas sobre desalojamento forçado e a própria legislação nacional, bem como o acordo prévio que deve ser estabelecido entre Estado, Sociedade e Empresa. Nesse ponto, Denise trouxe a questão dos desalojamentos forçados que atualmente acontecem no Rio de Janeiro devido as obras para a Copa do Mundo. Em seguida, a palestrante iniciou a exposição sobre o histórico da discussão sobre empresas e Direitos Humanos no âmbito da ONU. Esse processo iniciou no início dos anos 90 a partir da iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da ONU para desenvolver estudos que vinculassem as empresas. Em 2000 foi criado o Pacto Global das Nações Unidas sobre responsabilidade social empresarial, o qual tem caráter voluntário. No ano de 2013 a iniciativa de criar um tratado que vincule empresas não prosperou. Em 2005, criou-se o cargo de representante especial sobre empresas e DDHH, assumido por John Ruggie. A Doutora Denise Hauser falou ainda sobre o procedimento de fiscalização de Direitos Humanos ao redor do mundo e como ele se dá. Procedimentos especiais acontecem contando com especialistas em diversas áreas que atuam com mandato de até 6 anos e enviam comunicações sobre supostas violações aos Direitos Humanos

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(apelos urgentes e cartas de alegação), visitando países e apresentando relatórios temáticos específicos (passo para avançar em futuros tratados). Esses especialistas não são enquadrados como funcionários da ONU. A palestrante, então, focou sua explanação na atuação de John Ruggie e na criação, em 2011, do primeiro marco internacional comum com princípios a respeito do tema aprovado pelo Conselho de Direitos Humanos. Em seguida, frisou os deveres e responsabilidades dos Estados e das empresas dentro dos marcos regulatórios criados, como são as bases e os principais guias e os mecanismos como devem ser aplicados. Por fim, surgiram dúvidas sobre como atuar nos Estados onde as população ainda não tem consciência de todos os seus direitos e nem mecanismos para cobrá-los, bem como sobre o modo de fazer a fiscalização em países que não se abrem a visita dos especialistas. Denise questionou a debilidade dos marcos de Direitos Humanos e indicou que a informação precisa ser divulgada para que chegue a todos os cantos do mundo. É responsabilidade do Estado que os cidadãos conheçam seus direitos e tenham meios para cobrá-los. A palestrante coloca, ainda, que existe a possibilidade de levar os casos às Cortes Internacionais. No tocante aos países que se fecham à visita dos especialistas é difícil intervir, somente ocorrendo intervenções no caso de violações massivas de Direitos Humanos. O problema torna-se ainda mais grave quando os países não ratificaram os marcos internacionais que tratam do tema, como é o caso da China. Foram discutidos outros casos recentes que envolvem grandes empresas fora de seus territórios. O minicurso cumpriu seu caráter inicial com uma discussão dinâmica e esclareceu de forma satisfatória todas as dúvidas levantadas. Os trabalhos foram encerrados por volta das 18 horas.

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OFICINA: Tráfico de Pessoas

Por: Isadora Durgante Konzen Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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eve início às 17h30 do dia quatro de junho de 2013 a oficina “Tráfico de pessoas”, da qual foram palestrantes a Prof.ª Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de Castilho, da UnB, e a Prof.ª Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina, da UNIBRASIL. Participou como moderadora a Prof.ª Dr.ª Juliana Viggiano, da UFSC. A Dr.ª Ela Wiecko iniciou sua exposição comentando um relatório produzido pela UNODC (escritório da ONU para o controle das drogas) em 2012 sobre o tráfico de pessoas, que considerou 27 países americanos, trazendo dados como: de 6 mil vítimas, 1,6 mil é menor de idade e 27% são mulheres; 50% dos traficantes são mulheres; 44% do tráfico é direcionado para o trabalho forçado e 51% para 62

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Palestrantes: Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina

a exploração sexual; predomina o tráfico de países mais pobres para países menos pobres. A palestrante comentou também o diagnóstico regional de 2011 sobre o tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no MERCOSUL, que revela a inequidade e a violência de gênero, bem a discriminação de determinados grupos sociais (indígenas, afrodescendentes, transexuais etc.), além das barreiras migratórias nos países de destino, que levam à existência de população não documentada. O estudo revelou que a maioria das vítimas são mulheres de idade entre os 15 e os 35 anos. Do auditório, a antropóloga e pesquisadora Adriana Piscitelli questionou se argumentação jurídica que surge vem em favor ou de encontro aos Direitos Humanos. Wiecko respondeu à pergunta citando o Protocolo de Palermo, convenção para o crime internacional,

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dizendo que há movimento para a ratificação do maior número de Estados e para a internalização do conceito pelos países signatários. Ressaltou que não há instrumento universal que abranja todos os aspectos do tráfico de pessoas. Por fim, indagou se estaria o uso do Direito Penal Internacional destinado à proteção dos Direitos Humanos das vítimas, ou a ser usado como artifício para a criminalização da migração. Comentando o Protocolo, a professora observou que este caracteriza as pessoas traficadas como aquelas que são recrutadas sob algum tipo de violência, abuso ou engano com o fim de exploração, independentemente de consentimento. A penalidade dá pouca relevância para a ocorrência, ou não, de exploração – a importância está na mobilidade, fato que comprova o interesse em criar barreiras migratórias. A Dr.ª Ela finalizou seu discurso falando sobre as linhas de operação Segundo Plano Nacional, que criam uma comissão para a coleta de dados visando à compreensão do fenômeno no Brasil. Na opinião da professora, não há objetivo de proteção aos direitos humanos das pessoas traficadas entre as metas estabelecidas pelo Protocolo e pelo Plano Nacional. Dando continuidade ao debate, a Dr.ª Larissa Odreski Ramina partiu comentando o conceito de “globalização predatória”, utilizado por Richard Falk, professor da Universidade de Princeton, ao remeter-se à liberalização, à privatização, à redução de impostos e à transferência internacional de capitais sem restrições. Em seguida, citou as contracorrentes alternativas ao neoliberalismo, ou “democracia cosmopolita”, que abraçam as bases, os cidadãos comuns, incentivando os movimentos sociais a voltarem-se a aplicações globais. Mencionou também a “globalização ascendente”, na qual os Estados recuperam poderes com o fim de recuperar uma soberania sustentável, ou seja, que o Estado funcione como garantidor do bem-estar dos povos. Fazendo referência aos ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos, a palestrante concluiu que há interligação entra a globa64

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lização e os crimes internacionais. Ela colocou a globalização como o principal incentivador da indústria internacional do sexo, em que pessoas de países mais pobres se deslocam para trabalhar, enquanto pessoas de países mais ricos se deslocam em busca de turismo sexual. O neoliberalismo contribuiu para a situação de vulnerabilidade das pessoas, e a globalização “feminizou” a pobreza no hemisfério Sul. A rigidez no controle das fronteiras acaba por favorecer a busca por agentes internacionais de contrabando, aumentando o preço de seus serviços e expondo os migrantes a riscos. A Prof.ª Larissa mencionou também o estudo da OIT que revela que a pobreza é fator circunstancial que favorece o tráfico de pessoas: as pessoas vulneráveis veem no tráfico certa esperança de sair da pobreza. Para o contexto da exploração, favorece também a percepção da mulher como objeto sexual, não como sujeito de direitos. Concluindo sua exposição, a palestrante ressaltou que o tráfico de pessoas e o trabalho escravo não remetem a um passado distante ou a um problema superado – inclusive, são temas centrais na agenda internacional em pleno século XXI. Atualmente, o tráfico de pessoas é uma das atividades mais lucrativas do crime internacional, estando atrás somente do tráfico de drogas. A Dr.ª Larissa apontou o fato de que há mais mulheres sendo escravizadas atualmente do que em qualquer outro período da história. O debate foi aberto às perguntas. Thiago, estudante da UFSC, perguntou sobre a relação entre barreiras migratórias e proteção a Direitos Humanos. A professora Larissa ressaltou que as pessoas, ao serem barradas na fronteira, acabam por contratar contrabandistas. Seria mais interessante, portanto, que, paralelamente à legislação restritiva, fossem concedidos mais vistos de refúgio, por exemplo. A Dr.ª Juliana Viggiano, moderadora da mesa, perguntou sobre a coleta de dados do tráfico de pessoas. A Dr.ª Ela Wiecko respondeu que o conceito de tráfico deve abranger todas as finalidades, devendo-se fazer a coleta em cima de uma categoria jurídica bem definida, a qual ainda não possuimos.

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MESA DE DISCUSSÃO: Segurança Internacional e Meio Ambiente

Por: Giana da Silva Wiggers e Mariana Serrano Silvério Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntárias do Observatório de Direitos Humanos.

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Palestrantes: Dr.ª Fernanda Sola; Dr.ª Graciela de Conti Pagliari e Dr.ª Susana Borràs Pentinat.

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o dia cinco de junho de 2013, às 14h30, iniciou-se a mesa de discussão “Segurança Internacional e Meio Ambiente”. Participaram como palestrantes a Dr.ª Fernanda Sola, da UFSCar; a Dr.ª Susana Borràs Pentinat, da Universidad Rogiri i Virgili (Tarragona, Espanha); e a Dr.ª Graciela de Conti Pagliari, da UFSC. Como debatedora, a Dr.ª Vanessa Iaco-

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mini, da UFF; e como moderador, o Dr. Felipe Amin Filomeno, da UFSC. A sessão teve como objetivo fomentar a discussão sobre as questões ambientais que se interpelam com o tópico de segurança internacional. O debate foi iniciado com a fala da Dr.ª Suzana, que apresentou um panorama geral sobre a segurança internacional e sua multidimensionalidade. A professora disse que a ausência de guerra e de conflitos militares entre os Estados não garante, por si, a paz e a segurança internacionais – as fontes não militares de instabilidade nos campos econômico, social, humanitário e ecológico se converteram também em ameaças. Para ela, a ONU deve dar prioridade máxima à solução destes problemas. A palestrante reportou a trajetória da questão, iniciando pelo Informe sobre o Desenvolvimento Humano de 1994, quando pela primeira vez tocou-se no assunto da segurança humana. O conceito foi descrito como uma preocupação universal, de caráter multidimensional, e composto por elementos interdependentes, sendo estes mais efetivos quando se articulam através da prevenção. Observou que alguns dos componentes em que se agrupam as ameaças à segurança humana são: segurança econômica, alimentar, da saúde, ambiental, pessoal, da comunidade e política. Neste contexto, têm se destacado as mudanças climáticas e suas possíveis repercussões para a segurança humana. Borràs afirmou ser necessário tratar a questão da segurança internacional e meio ambiente por três ópticas distintas: causa, objeto e resultado de uma modificação ambiental. Citou como uma das origens da insegurança, isto é, uma causa, a degradação ambiental. Foi proposta uma relação causal entre a degradação ambiental e a violência, sendo classificados alguns tipos de problemas ambientais que poderiam ser considerados as causas da insegurança humana: a mudança climática, a degradação da camada de ozônio, a destruição dos recursos do ecossistema, a chuva ácida, resíduos nucleares e a contaminação dos recursos naturais.

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A professora propôs então uma reflexão sobre o aspecto de justiça ambiental, considerando o fato que as modificações ambientais (como a escassez de recursos) podem gerar conflitos interestatais, movimentos populacionais, subnacionais ou interestatais. Levou-se em conta também que a diversidade de degradação ambiental pode gerar crise humanitária, como catástrofes naturais (ex. tsunamis, terremotos), catástrofes tecnológicas (ex. Chernobyl, Bhopal) e degradação progressiva do meio ambiente (ex. desertificação, erosão). Revelou também alguns dados sobre catástrofes naturais, que sugerem que, entre os anos de 2002 e 2011, cerca de quatro mil eventos ocorreram, com mais de meio milhão de mortos e perda econômica de US$ 1,3bi. Finalizando o seu discurso, a Dr.ª Suzana levantou a questão sobre quem seria o responsável pela proteção das vítimas dos desastres. Ela apresentou diferentes pontos de vista em relação à questão, como é o caso da doutrina R2P (responsibility to protect), que defende que o Estado tem a responsabilidade de proteger a sua população. Passou-se a palavra à Dr.ª Graciela Pagliari, que iniciou sua participação propondo a seguinte questão: “em que medida a segurança internacional e o meio ambiente se interligam?”. Para melhor esclarecer a problemática, disse que, primeiramente, é preciso considerar o contexto de pós Guerra Fria, em que ocorreu uma ampliação importante na agenda internacional. A partir deste momento, o conceito de ameaça aos indivíduos e aos Estados no sistema internacional tomou outras proporções, já que as ameaças tradicionais não eram mais exclusivas como representação de perigo. A tarefa de definir a segurança – “o que é” e “para quem” é uma ameaça – ganhou maior complexidade, passando a agenda de segurança internacional a ser muito mais ampla do que no período da bipolaridade. É neste contexto que o meio ambiente passa a ser considerado como um setor de preocupação na segurança internacional, não mais como mero objeto.

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Dando continuidade à sua fala, a professora apresentou o fato de que muitos dos novos temas de segurança humana passaram a sê-lo por constituírem conflitos de crise humanitária e de Direitos Humanos, nos âmbitos infra e interestatal. Apontou também que vários temas relacionados à segurança internacional estão ainda em aberto nos Estado em desenvolvimento. Isso se dá em decorrência da instabilidade e da existência de conflitos nestes países, muitas vezes taxados perante a comunidade internacional como fracassados ou falidos por não conseguirem oferecer a segurança mínima aos cidadãos. A palestrante adentrou, então, a problemática do meio ambiente e sua relação com os conflitos, fazendo questão de, primeiramente, conceituar segurança como a capacidade de neutralizar forças. No seu entendimento, esta relação se dá no sentido de que os Estados, em busca de recursos naturais, podem gerar ameaças concretas entre si. Para melhor ilustrar essa ideia, Pagliari citou a fumigação de áreas no território colombiano para combater a produção de coca, medida adotada também pelo Peru e pela Bolívia como política antidrogas. Espalhando as toxinas em quantidades cada vez maiores, houve contaminação de rios e solos e, como resultado, o número de deslocados internos por causa do conflito armado na Colômbia aumentou. Para minimizar os efeitos da dispersão, passou-se a produzir coca no meio de outras plantações; com isso, cresceram plantas ainda mais fortes, necessitando de mais fumigação. Isso foi um problema sério, pois a fumigação aérea atingiu o Equador, gerando uma crise entre os dois Estados. O tráfico de drogas foi colocado como um grande problema social, para o qual a abordagem militarizada não é adequada. A Prof.ª Graciela apontou que a segurança está diretamente ligada à ideia da existência de um inimigo; entretanto, no caso dos problemas ambientais, muitas vezes não há uma definição da causa. A este tópico se relacionam diretamente os problemas ambientais

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com o indivíduo, da poluição e da contaminação, bem como o da mobilidade dos civis. Deu-se início, então, à apresentação da Dr.ª Fernanda Sola, que primeiramente falou sobre as origens da discussão acerca da segurança ambiental na década de 1970. Na década de 1980, fez-se necessário editar um relatório que tratasse da paz, da segurança e do meio ambiente, devido ao uso descontrolado dos recursos naturais. Em 1994, foi elaborado o Relatório de Direitos Humanos da ONU e, no final dessa década, o reconhecimento das mudanças climáticas e da perda da biodiversidade reforçou a importância da segurança ambiental. Por meio deste panorama histórico, a palestrante tornou clara a inserção do meio ambiente e do meio econômico nos Direitos Humanos, no sentido de que o impacto sobre um tópico acarreta consequências para os demais. Abordando a questão dos recursos híbridos, a professora explicou que a água é motivo de conflitos entre Estados por causa da dificuldade de sua administração, especialmente nos casos de escassez, já que é um recurso natural que afeta diretamente a sobrevivência das pessoas. O acesso à agua segura e de qualidade e ao saneamento básico como um todo deve ser garantido pelo Estado como forma de promoção dos Direitos Humanos. A Prof.ª Fernanda observou que a agricultura é a atividade que mais demanda água, sendo cerca de 70% do volume desta destinado para a irrigação - no Brasil, este valor aumenta para 72%. Hoje há uma quantidade considerável alocada para o cultivo da soja, que alcança a região amazônica; no entanto, mesmo que a região seja rica em recursos híbridos, muito de sua população não recebe água encanada. Entre as populações ribeirinhas, muitas vezes se disputa pela qualidade das águas. Com a definição de “bacia de drenagem”, em 2004, pôde-se definir a extensão dos aquíferos, os grandes sustentos de águas – e vítimas dos problemas ambientais. O Tratado da Bacia do Prata, assinado para complementar as políticas de povoamento da área, reve-

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la a tendência de aumentar os conflitos internacionais no que toca a partilha pelos recursos híbridos. Para a professora, o problema visto hoje é a conscientização da população sobre os problemas e riscos da segurança ambiental. Com essas palavras, a Dr.ª Fernanda Sola encerrou sua participação. Tomou a palavra a debatedora convidada, Dr.ª Vanessa Iacomini, que levantou a questão sobre a crise de alimentos como um problema social para o qual ainda não foi definida uma solução. A Dr.ª Graciela Pagliari se pronunciou no sentido de que a segurança ambiental e os direitos humanos se interligam, sendo este um claro exemplo da conexão. A Dr.ª Fernanda Sola trouxe a questão da segurança híbrida, apontando a prioridade da solução deste problema em decorrência da necessidade do recurso em pauta, além da estreita relação do homem com o meio ambiente. Ressaltou ainda que hoje o estudo das preocupações ambientais tem muito mais destaque que outrora, e que essa preocupação deve sempre aumentar. A debatedora prosseguiu à exposição dos laços entre meio ambiente e sociedade, sob a égide de dois pressupostos. O primeiro pressuposto é o da aplicação do direito internacional, analisando as ameaças dos problemas ambientais à segurança humana. O segundo pressuposto é o seu conceito de segurança, complexo e indivisível, em que o entendimento da realidade aglomera os cenários militar, econômico e político. A Dr.ª Vanessa pediu às demais participantes uma análise sobre segurança humana, crise ambiental e governança, versando a seguinte problemática: “Quais seriam as opções para a nossa governança ambiental a partir da definição que temos de crise ambiental?”. A primeira palestrante a responder foi a Dr. ª Susana Borràs, defendendo que a governança ambiental deve ser analisada não só como o autogoverno, mas também como o processo. Para a professora, a crise ambiental é estrutural, porque os recursos naturais são es-

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cassos e, dessa forma, não é possível sobreviver a uma crise ambiental. Há interesses atuais que sobrepassam as necessidades vitais das pessoas e que dependem diretamente dos recursos. Primeiramente, garantir o acesso aos que necessitam, mas não o tem; em segundo lugar, é preciso exigir a observância do princípio da responsabilidade extraterritorial por parte das empresas internacionais que mantêm atividades em países não industrializados. Por fim, colocou a questão do Ártico, o problema latente do descongelamento das calotas polares e o interesse dos Estados na área. Em sua explanação, a Dr.ª Graciela Pagliari acrescentou o enfoque em cenários regionais que não necessariamente afetam o sistema global, causando o desinteresse dos governos. Afirmou que há muitos problemas a serem resolvidos por meio de medidas tanto necessárias quanto imediatas. A Dr.ª Fernanda Sola abordou a questão expondo a notícia de que, no Dia Internacional do Meio Ambiente, a porção já reduzida da mata atlântica foi ainda mais reduzida. Disse que o meio ambiente é um problema ético, técnico, político e econômico, revelando assim a abrangência do tema. Perguntou como se pode dar um preço à biodiversidade e a um bem universal. Sua conclusão foi a de que este é um problema complexo e ainda sem solução, que passa pelo tratamento da segurança ambiental e de direitos humanos. O debate foi aberto às perguntas. Theófilo questionou as participantes sobre a verificação de um efetivo progresso ao combate à degradação. Perguntou se existe um ponto neste combate em que nos podemos espelhar, no sentido de contribuirmos para a sua evolução. A professora Fernanda respondeu, dizendo que o grande avanço, principalmente no Brasil, foi a reestruturação em setores produtivos e de serviços. Contribuiu também a criação do IBAMA, devendo ser criados outros mecanismos de fiscalização. Assim encerraram-se os trabalhos da mesa.

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MINICURSO: Feminismos são Direitos Humanos: Importância e Desafios

Por: Isadora Durgante Konzen Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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o dia 05 de junho de 2013, às 16h, teve início o minicurso “Feminismos são Direitos Humanos: Importância e Desafios”, ministrado pela Prof.ª Dr.ª Lola Aronovich e moderado Dr.ª Janine Gomes da Silva. A palestrante é professora de Literatura-Inglês no Departamento de Letras

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Palestrante: Dr.ª Lola Aronovich

Estrangeiras na Universidade Federal do Ceará. Em 2008 começou o blog Escreva Lola Escreva, que hoje recebe em média nove mil visitas diárias. A palestrante iniciou sua fala com uma crítica à aprovação, pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, do Estatuto Nascituro, Projeto de Lei que estabelece a chamada “bolsa-estupro”, uma ajuda de custo para mulheres vítimas de estupro que decidem não abortar. Essa bolsa, para Lola, representa na ver-

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dade uma forma de se comprar a consciência dessas mulheres. Na opinião da professora, o Estatuto coloca os direitos do feto acima dos direitos das mulheres, as quais já são seres formados. Ela ressaltou que somente em 2012 o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos e que, apesar deste recente avanço, o Brasil ainda é o país latino-americano mais atrasado em matéria de legalização do aborto. Como consequência da aprovação do Estatuto Nascituro, a Dr.ª apontou o término de pesquisas com células tronco e da fertilização in vitro. Ademais, a palestrante destacou que não é por via da criminalização que as mulheres sentem-se impedidas de abortar; elas apenas não podem fazê-lo de modo seguro. Os abortamentos são realizados em casa ou em clínicas clandestinas, colocando grandes riscos à vida e à saúde das mulheres. Ressaltou ainda que o aborto é hoje é a quarta causa de morte de mulheres no Brasil, configurando um verdadeiro problema de saúde pública. A ONU, em 2012, questionou a Presidenta Dilma Rousseff quanto às providências tomadas em relação à questão, mas, segundo Lola, a influência das bancadas religiosa e conservadora é tamanha que o Executivo fica impedido de programar política que vá de encontro aos interesses conservadores. A professora evidenciou a contradição das políticas públicas sobre o assunto, dizendo que a vida só é defendida até o momento da saída do bebê do ventre da mãe, após isso, a criança é negligenciada pelo governo no momento em que não se criam novas creches, por exemplo. Lola Aronovich conceituou “Feminismo” como “a noção radical de que mulheres são gente”, já que a mulher, por muito tempo, foi considerada um apêndice da figura masculina - como Eva, que teria sido criada da costela de Adão. Há que se falar em “Feminismos”, no plural, pois, se considerarmos somente a área literária, por exemplo, encontramos três tendências diversas: a francesa (com abordagem psicanalista da repressão), a britânica (ideia marxista de opressão) e a americana (ligada à expressão).

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Dando continuidade à sua fala, Lola propôs abortar a cooptação do Dia Internacional da Mulher pelo Capitalismo. Citou uma campanha publicitária da montadora de carros Volkswagen, cujo conteúdo era a homenagem aos “seres que embelezam os nossos carros”, reduzindo a figura feminina de tal modo que a mulher não pode sequer ser considerada como consumidora. A palestrante fez então uma análise da História, dizendo que ela é feita por homens e por isso não há muitos dados sobre as mulheres. Comentou que, embora elas tenham participado ativamente na Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos das Mulheres não foi bem recebida e sua autora foi decapitada. Lembrou também a questão do voto feminino, primeiramente mencionando que, na mais recente eleição norte-americana (2012), novamente levantou-se a questão de retirar o direito da mulher ao voto. Frisou que, no Brasil, a mulher tem este direito há apenas 80 anos. Traçando uma perspectiva histórica, Lola caracterizou os séculos XIX e XX pela conquista dos direitos ao voto e à propriedade; os anos 1960-1980 ao direito sobre o próprio corpo, pela luta pela igualdade política entre os gêneros: lembrou especialmente os anos 70, a “década das mulheres” declarada pela ONU, em que se teve a legalização do divórcio no Brasil (1977). A partir deste marco, as mulheres conquistaram cada vez mais a sua independência, tanto que hoje 70% dos pedidos de divórcios são feitos por mulheres. A primeira delegacia da mulher foi criada em São Paulo em 1985, grande avanço no que toca a investigação dos casos de estupro. Antes disso, o estupro era amplamente desacreditado e as denunciantes eram submetidas à humilhação de relatar o ocorrido inúmeras vezes a policiais homens, que muitas vezes se excitavam com a história. A utilização do termo “pós-feminismo” foi criticada pela palestrante, pois ele sugere que o movimento acabou. No entanto, não há como isso ser verdade, já que seus objetivos ainda não foram totalmente alcançados. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Foram apresentados dados estatísticos relacionados ao tema, segundo os quais: 30% das mulheres brasileiras se consideram feministas; 70% das pessoas pobres do mundo são mulheres; a ONU aponta que 70% das mulheres sofrerão violência em suas vidas; o número de estupros aumentou em 57% nos últimos quatro anos; somente 2% dos casos de estupro chegam à condenação. A Dr.ª abordou então a questão do feminicídio, que é a causa de morte de mais de quatro mil mulheres por ano, sendo que 28% dos assassinatos de mulheres brasileiras ocorrem dentro da casa da vítima. Mencionou outros dados importantes, como o de que cinco mulheres são agredidas a cada dois minutos no Brasil, que o número de presidiárias no sistema carcerário brasileiro aumenta mais que o de presos homens, e ainda que infraestrutura das penitenciárias femininas é inferior à das masculinas. Englobando âmbitos diversos, Lola comentou que o salário feminino brasileiro é cerca de 30% inferior ao masculino, até quando ocupam o mesmo cargo, além de informar que, das cem maiores empresas brasileiras, apenas cinco são comandadas por mulheres. Apontou também o fato de que a mulher é frequentemente taxada como péssima mãe se coloca sua carreira à frente da família. Na política, essa desigualdade é percebida quando vemos que apenas 10% dos países do mundo têm mulheres como presidentas e que as mulheres compõem menos de 10% do Congresso brasileiro. As mulheres ainda não são maioria em publicações acadêmicas em nenhuma área, mas já constituem maioria nas universidades, escolas e pós-graduações, o que resultará, futuramente, em uma melhora nos salários. Antes do encerramento da palestra, Lola Aronovich abriu o debate para a participação geral. Beatriz comentou que denunciou a página do Facebook “Orgulho de ser hétero” por fazer apologia ao estupro, mas acabou por descobrir que a empresa não considera isto razão para denúncia. Lola respondeu mencionando o caso do boicote de feministas americanas à rede sócia devido à proibição 78

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da nudez feminina, mas não daquele tipo de página (semelhante à denunciada por Beatriz). A administração do Facebook emitiu nota afirmando que vai treinar seus funcionários para detectar esse tipo de violência. Sobre este assunto, a palestrante destacou que a liberdade de expressão, para muitos, significa liberdade de opressão. O que acontece com frequência é que uma denúncia acaba por “viralizar” a página com conteúdo inadequado, ou seja, dá-se ainda mais visibilidade aos discursos preconceituosos. Para ela, o Brasil precisa aprender rapidamente a lidar com essa situação. Ao receber o questionamento de Taís sobre a legalização de prostituição, Lola respondeu que é a favor da regularização da profissão, ainda que preferisse que a prostituição como “sistema” não existisse. Assim encerrou-se o minicurso, às 19h.

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MINICURSO: Violação de direitos humanos e limpeza cultural – A questão Bahai no Irã

Por: Mariana Serrano Silvério Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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s quatro horas da tarde do dia cinco de junho de 2013, o professor Jonny Carlos da Silva ministrou o minicurso “Violação de direitos humanos e limpeza cultural – A questão Bahai no Irã”, como parte da programação da IV Semana de Direitos Humanos. Professor e coordenador do departamento de Engenharia Mecânica na Universidade Federal de Santa Catarina, o palestrante possui grande interesse pela questão Bahai

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IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL

Palestrante: Jonny Carlos da Silva Debatedora: Msc. Valéria Zanette

no Irã e afirma que todo o conhecimento apresentado em sala é advindo da vivência de mais de vinte e oito anos morando em uma das comunidades, e não da academia. O tema central do mini-curso foi a divulgação do que consiste ser a comunidade Bahai e toda a trajetória de perseguições pelas quais a mesma sofreu desde a sua criação, objetivando assim difundir um assunto pouco conhecido e quase não apresentado pela mídia. O minicurso foi iniciado através da apresentação dos aspectos essenciais e estruturais da comunidade Bahai. Entre os pontos citados, destacam-se os fundamentos da comunidade, sendo eles os princípios de unidade na diversidade, liberdade e independência de

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pesquisa, direitos iguais entre homens e mulheres, harmonia entre ciência e religião, educação universal compulsória, eliminação de preconceitos e revelação progressiva, assim como o fato de que seus indivíduos residem em mais de 100 mil localidades no globo. A discussão sobre a limpeza cultural se iniciou através da reflexão sobre a eficácia e as diretrizes do artigo XVIII da Constituição e de outros documentos-chave, como a Declaração Bahai de Direitos. Foi apresentado um vídeo introdutório sobre a história da perseguição Iraniana à comunidade e seguindo esta linha, foi contextualizado o conflito através dos séculos e diferentes localidades. Mesmo ocupando a posição de maior minoria religiosa no Irã, a perseguição e a limpeza cultural originadas pela ignorância ocorrem desde a criação da comunidade no Irã. Devido à pressão internacional, o Irã foi forçado a diminuir o ímpeto inicial de prisões e matanças. Porém, o governo iraniano não tem permitido à juventude Bahai ingressar ou freqüentar universidades no país. Seguindo o raciocínio de “mantê-los vivos, porém burros e pobres”, dados sugerem que a república do Islã e do Irã tem bloqueado o acesso de mais de 300000 integrantes da comunidade Bahai ao ensino superior, assim como tem obstruído as iniciativas da comunidade de fundação de escolas etc. Outro caso apresentado dentro do contexto em questão foi o manifesto da comunidade conhecido como “ainda estamos vivos”, que trouxe destaque a iniciativa da comunidade de fundar sua própria universidade (Instituto Bahai de Ensino Superior), mas que foi logo compelida pelo governo do Irã. As autoridades políticas deste país organizaram uma série de invasões, prendendo membros, confiscando muitos equipamentos e por fim, fecharam o Instituto. Seguindo o tema de limpeza cultural e desrespeito à comunidade Bahai, o palestrante apresentou dados relacionados à violação do direito à liberdade, relatando as prisões, as mortes e até mesmo a prática da tortura para com os integrantes. Neste âmbito ainda, discutiu-se também as violações do direito de defesa e à habitação (pelo

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menos 40 propriedades foram confiscadas desde os anos oitenta) da comunidade, assim como o fato de que cemitérios e túmulos de integrantes têm sido destruídos com frequência. O palestrante levantou questões como a diferença entre princípios e leis e o porquê da Declaração Universal de Direitos Humanos tem sido sistematicamente desrespeitada. Ao terminar sua apresentação, o professor apresentou possíveis ações para mudar a situação recorrente, como por exemplo a campanha “Can you solve this?”. Para finalizar o minicurso, a debatedora Valéria Zanette, no posto de pesquisadora dos direitos humanos, reforçou o discurso de que é necessária a mudança e a conscientização de que somos parte de um país parte da ONU e que ainda viola direitos básicos como o da liberdade. Às seis horas, encerrando a sessão, Valéria questiona o palestrante sobre o que pensam os Bahais da postura das Nações Unidas em relação a essa perseguição sistemática, a qual o palestrante responde que existe o apoio à ONU em suas tentativas de resolução, mas que é de conhecimento da comunidade a existência das limitações de ação de instituição em questão.

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PALESTRA DE ENCERRAMENTO: “Direitos Humanos, Segurança Internacional e Construção da Paz: Desafios o perspectivas”

Autora: Caroline Scotti Vilain Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

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o dia seis de junho de 2013, às 19 horas e 30 minutos, aconteceu a palestra de encerramento da IV Semana de Direitos Humanos: “Direitos Humanos, Segurança Internacional e Construção da Paz: Desafios o perspectivas”. A palestra foi ministrada pelo Doutor José Augusto Fontoura Costa, que é professor da Universidade de São Paulo. O Professor Doutor Ricardo Soares Stersi dos Santos e a Professora Doutora Da-

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nielle Annoni, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina, atuaram como debatedor e moderadora, respectivamente. O Dr. José Augusto iniciou a palestra trazendo a problematização sobre a existência de uma convergência teórica entre Segurança Internacional e Direitos Humanos. Ele mostrou quatro imagens: a primeira da bomba de Hiroshima, a segunda de dois soldados em uma trincheira durante a Segunda Guerra Mundial, a terceira de um campo de extermínio do período do Holocausto e a quarta da arma AK47, metralhadora utilizada pelo exército soviético em 1947. O método utilizado para tratar o tema serviu para ilustrar algumas formas de se fazer a guerra, mais especificamente as táticas e

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armas de guerra, de pequena ou longa direção, lícita ou ilícita, justa ou injusta. Ele indicou que fatos como aqueles não podem voltar a acontecer e que essa é uma função dos Direitos Humanos. Colocou em voga, então, a problemática e a teoria: compreender, no âmbito internacional, as relações entre Segurança e Direitos Humanos, assumindo pressupostos realistas e construtivistas. A partir daí, o palestrante apresentou dois modelos possíveis. Um deles tem segurança e direitos humanos como variáveis independentes; e o outro consiste na adição, entre as variáveis independentes, de aspectos econômicos, sociais ou de qualquer outra natureza. A segurança interfere nos Direitos Humanos de diversas formas, como na formação histórica, na limitação de sua universalidade, na eficácia e efetividades. Os Direitos Humanos interferem, por sua vez, nas concepções e políticas de segurança, nos limites e sentidos das tomadas de decisão, nos agrupamentos e identidades, na universalização dentre outras questões. Após esta apresentação, o professor Ricardo Stersi retomou as quatro fotografias inicialmente apresentadas. Começou, então, falando sobre as armas produzidas pelas duas maiores multinacionais da área e como os direitos humanos interferem e influenciam essas empresas e suas decisões. A respeito dos gases utilizados na Primeira Guerra Mundial, indicou que os mesmos eram tóxicos e, portanto, poderiam ser utilizados para destruição em massa, evidenciando a grande importância dessa temática para os Direitos Humanos. A discussão sobre a foto da bomba de Hiroshima fez emergir uma discussão sobre guerra total, a qual desconsidera os Direitos Humanos e a proteção à vida. Mostrou que o padrão de moralidade se tornaria somente um apêndice. No que diz respeito ao Holocausto, foi trazido à tona o número de 10 milhões de mortos, dentre eles judeus, ativistas políticos, gays e deficientes mentais, o que evidenciou, novamente, a importância de reconhecer as diferenças e

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respeitá-las. Além disso, o Professor mostrou como o mundo sempre possuiu dificuldades em aceitar as diferenças, o que torna ainda mais complexas as discussões para construção da paz e preservação dos Direitos Humanos. Posteriormente à explanação do debatedor, o Professor José retomou pontos e trouxe a história do Antigo Testamento à tona, no qual está presente o Deus Jeová, que é extremamente ciumento e possessivo. Quem cultuasse um Deus universalizante como este, deveria se dedicar somente a ele. Sua finalidade com esse exercício histórico foi mostrar as raízes do porque essas exclusões existem no Sistema Internacional, além das intolerâncias religiosas, as quais emanam efeitos para outras áreas, por exemplo a social, étnica e cultural. Com essas colocações foram encerradas as atividades da IV Semana de Direitos Humanos no fim da noite do dia cinco de junho de 2013.

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EXPOSIÇÃO DE FOTOS

Por: Ana Paula Althoff Graduanda em Relações Internacionais pela UFSC e bolsista do Observatório de Direitos Humanos

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exposição de fotos tem como objetivo conscientizar o maior número possível de pessoas sobre a importância dos direitos humanos e como ele é fator comum no dia a dia dos indivíduos. Nesta Semana de Direitos Humanos, seu intuito principal foi informar a comunidade acadêmica a respeito da situação da população onde ocorrem conflitos armados e intervenções humanitárias. 88

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Devido ao grande objetivo da exposição, a exposição permaneceu durante os três dias da IV Semana de Direitos Humanos para que, além dos acadêmicos inscritos no evento, as demais pessoas possam prestigiar a mostra fotográfica. O local escolhido foi o hall da Biblioteca Universitária e do CSE, em que há grande circulação de pessoas.

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Depoimentos dos Participantes

MAÍRA MACHADO RODRIGUES

Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina

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Observatório de Direitos Humanos tem um papel fundamental na UFSC, que é consolidar o debate sobre o assunto, através das semanas de direitos humanos e entre outras iniciativas. A IV Semana trouxe como tema: “Construção da Paz e Segurança Internacional”, que é uma questão muito interessante, não só para os integrantes dos cursos de Direito e Relações internacionais, mas para toda comunidade acadêmica. As palestras dessa IV edição abordaram temas como: migrações, refugiados, tráfico de pessoas, segurança internacional, entre outros, que em minha opinião são muito relevantes para conjuntura internacional que vivemos, e por isso devem ser expostos e debatidos. A discussão desses assuntos leva à conscientização, além de incentivar a pesquisa e ação da comunidade acadêmica. Tanto quanto as palestras, as apresentações de trabalhos também proporcionam a reflexão sobre diversos temas relacionados aos Direitos Humanos, contribuindo para formação dos alunos que expõem, bem como para todos que assistem. Outra iniciativa interessante dessa edição, foi a exposição de fotografias que teve como resultado diversas fotos que evidenciam a tolerância entre diferentes culturas, a solidariedade e o respeito, que são bases fundamentais para os direitos humanos.

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ISABELLA ALONSO PANHO

Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

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ou aluna do 3º ano do curso de direito da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e participei, pela primeira vez, da Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde eu e minha colega de graduação, Beatriz Oliveira, publicamos um artigo sobre a Dignidade da Pessoa Humana no Ordenamento Jurídico dos Países do Mercosul. Vindo de uma universidade situada no interior do Estado do Paraná, ressalto a importância de existir maior disseminação de eventos que tratem acerca dos direitos humanos e de direito internacional. Embora sejam direitos que a todos assistem, os eventos e a disseminação sobre a temática ainda são, ao meu ver, escassos e pouco acessíveis aos alunos da graduação. Como participante, um dos pontos que mais me agradou foi a simplicidade do evento, sem abrir mão da qualidade. Os palestrantes trazidos, tanto para as palestras quanto para os workshops durante a tarde, todos trouxeram contribuições muito significativas e demonstraram conhecimento e experiência na área das relações e dos direitos internacionais. Contudo, o local do evento, a postura da organização, o formato da programação, a ausência total de custos para os participantes (não houve custo de inscrição) foram detalhes cruciais para fomentar a incentivar a participação dos acadêmicos dos cursos de direito e de relações internacionais, público-alvo da Semana de DH da UFSC. Foi uma experiência incrível, gostaria muito de trazer para a minha universidade muitos conceitos que pude aprender na IV Semana de Direitos Humanos da UFSC, além de, claro, voltar nas próximas edições. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Artigos Apresentados por Professores

Resumo: O presente artigo se debruça sobre a importância de ser observar e cumprir as normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados durante intervenções humanitárias em conflitos armados não-internacionais justificadas pelo princípio da responsabilidade de proteger. Busca-se provar que a observância do DICA funciona como um fator de legitimidade para as ações militares pautadas em tal princípio. Palavras-chave: DICA, CANIs, responsabilidade de proteger. Sumário: Introdução. 1 Definições de Conflitos Armados Não-Internacionais. 2 Intervenção Humanitária sob a ótica da Responsabilidade de Proteger. 3 Conclusão. 4 Referências.

INTRODUÇÃO A partir do fim da Segunda Grande Guerra, tendo com a queda do Muro de Berlim o seu ápice, o número de conflitos de natureza intraestatal superou consideravelmente os deflagrados entre Estados, denominados interestatais (FLECK, 2010). A crescente incidência desses conflitos, também chamados de conflitos não-internacionais (CANIs), deve-se ao fato de que o

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O direito internacional dos conflitos armados como instrumento de legitimidade para as intervenções humanitárias baseadas no “R2P” em conflitos armados não-internacionais Priscila Fett Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; pesquisadora do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina; possui curso de extensão em Direito Internacional Humanitário pelo Instituto de Direito Internacional Humanitário de Sanremo – Itália.

fim do embate ideológico entre os blocos rivais, EUA e URSS, propiciou a ascensão de uma série de antagonismos étnicos, religiosos, culturais em diversas regiões do planeta (FETT, 2011). Para ilustrar essa tendência progressiva, o Departamento de Pesquisa sobre Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala, na Suécia, disponibilizou o gráfico abaixo para mostrar a evolução da ocorrência de conflitos intraestatais.

Fonte: .

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Frequentemente, os CANIs encontram solo fértil para se desenvolverem em países pobres, onde a capacidade do Estado é fraca, o respeito aos direitos humanos é praticamente inexistente, e a economia e política são instáveis (FETT 2011). Uma das características mais marcantes desse tipo de conflito são os altos índices de baixa entre a população civil. Neste contexto, a perda da nitidez na distinção entre combatentes e não-combatentes fica comprometida, pois a morte de civis se dá tanto pela dificuldade em identificá-los em meio aos grupos armados, quanto pelo fato de terem se tornado alvo deliberado de objetivos militares ou político-militares (HOBSBAWM, 2007). Não obstante constituírem grande parcela do número de conflitos em andamento no globo, os Estados soberanos não têm interesse em classificá-los como sendo conflitos armados de caráter não-internacional por não quererem reconhecer sua incapacidade de controlar a violência dentro dos seus domínios territoriais, fato que poderia ensejar uma intervenção externa. Desta forma, tendem a enquadrá-los na categoria de mera tensão interna (SOLIS, 2010). A verdade é que com a mudança na natureza de conflitos, uma série de novas e complexas exigências no terreno da segurança passou a ser exigida. As violações de direitos humanos na forma de genocídio, massacres, ações de limpeza étnica exigiram da comunidade internacional um novo posicionamento para o gerenciamento desses conflitos. Nesse contexto, a Organização das Nações Unidas (ONU) figura como a principal entidade envolvida na manutenção da segurança e da paz internacionais. Ademais, o compromisso particular da Organização com a garantia dos direitos humanos, manifesto no preâmbulo da sua carta1, motivou a busca por soluções que pudes

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [a]. Carta das Nações Unidas. Preâmbulo: “NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS... a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres [...]”. Dis-

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sem harmonizar-se com as novas ameaças, proporcionando uma maior proteção para as vítimas dos conflitos armados. Desse modo, debates sobre segurança no âmbito internacional foram ganhando força, fomentando, assim, o surgimento de relevantes conceitos, destacando-se o da “segurança humana” – o qual pressupõe uma reorientação do foco da segurança passando do Estado para o indivíduo2 -, e o da “responsabilidade de proteger”. Este último conceito, ainda, suscita uma controvertida polêmica no meio internacional, ao questionar o paradigma vestfaliano da soberania estatal, a partir de uma eventual intervenção humanitária justificada em nome da preservação dos direitos humanos. Nessa esteira, JUBILUT (2010) salienta que a questão da legitimidade internacional em uma intervenção humanitária é fundamental para possibilitar o emprego da força sem maiores questionamentos sobre as suas ações e ao mesmo tempo evitar o enfraquecimento do sistema internacional. Este trabalho considerará a legitimidade internacional segundo a abordagem normativa proposta por JUBILUT (2010) que avalia a coadunação das normas internacionais com a tríade normativa proposta por CLARK (legalidade – moralidade – constitucionalidade), ou seja, a adequação aos valores adotados pela comunidade internacional, e a validação formal dessas normas comprovada pela lisura e legalidade dos respectivos processos que a estabeleceram. Diante dessa realidade, o respeito aos princípios e normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA)3, que busca,



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ponível em: . Acesso em: 03 abr. 2013. COMISSION ON HUMAN SECURITY. Human Security Now. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2013. “Direito Internacional dos Conflitos Armados [...] se revela a mais técnica das nomenclaturas, considerando que acomoda, sem qualquer esforço interpretativo, tanto a vertente de restrição de meios e métodos de combate quanto a vertente de proteção das

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através de um arcabouço legal, limitar a forma como as partes de um conflito possam empregar seus métodos e meios de guerra, bem como proteger as pessoas e bens neles envolvidos, tem-se mostrado cada vez mais necessário (SWINARSKI, 1996). O presente trabalho tem como objetivo, portanto, analisar a relevância da aplicação do DICA para aumentar a legitimidade das intervenções de caráter humanitário fundamentadas no princípio da “responsabilidade de proteger”. Nesse sentido, o estudo vai ao encontro da preocupação manifestada pelo governo brasileiro, materializada na carta endereçada ao Secretário Geral das Nações Unidas (SGNU), em 09 de novembro de 2011, a qual sugeriu a formulação do conceito de “Responsabilidade ao Proteger”4. Buscar-se-á, inicialmente, caracterizar a natureza dos CANIs, a fim de que se identifique o corpo normativo a regulá-los, ressaltando a resistência dos Estados em reconhecer esta situação e a forma como este fato tem sido analisado sob a ótica do Direito Internacional (tratados internacionais/jurisprudência dos tribunais internacionais/contribuição do Comitê Internacional da Cruz Vermelha [CICV]). Em seguida, será apresentado o conceito da responsabilidade de proteger, mostrando seu escopo de aplicação e narrando sua evolução até atingir o status de princípio emergente do direito consuetudinário internacional. Por fim, o presente trabalho pretenderá mostrar se o respeito às normas do DICA por parte das tropas de intervenção poderá colaborar para o aumento da legitimidade das suas ações, particular-



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vítimas no âmbito dos conflitos armados.”, cf. PALMA, N. Curso de Direito Militar: Direito Internacional Humanitário e Direito Penal Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Trompowsky, 2009. p. 14. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (MRE, 2011). “Conselho de Segurança das Nações Unidas - Debate Aberto sobre Proteção de Civis em Conflito Armado - Nova York, 9 de novembro de 2011”. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2013.

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mente sob o ponto de vista da população do Estado onde for conduzida a operação e da comunidade internacional.

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DEFINIÇÕES DE CONFLITOS ARMADOS NÃO-INTERNACIONAIS

O arcabouço normativo do DICA foi forjado no momento histórico em que os conflitos armados de natureza internacional (CAIs) eram a constante da época. E por esse motivo, o processo que levou à elaboração das normas do direito internacional humanitário previu extensas e complexas regras dedicadas a eles. Até 1977, - ocasião em que foi assinado o Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra relativo à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Não-Internacionais (PAII)5 - os Estados resistiram6 à inclusão de previsões sobre situações que tratassem do seu povo e seu território por temerem abrir uma brecha para ingerências externas em questões de cunho doméstico. (NAJLA, 2011) Este temor tinha raízes no princípio vestfaliano da soberania, sustentado pelo princípio da não intervenção em assuntos internos. Entretanto, atualmente, esta não é mais a realidade dos conflitos armados. Dados estáticos coletados pela Universidade de Uppsala informam que no ano de 2011 foram contabilizados 27 conflitos intraestatais frente a 1 interestatal7. Há uma necessidade latente, portanto, de se responder às novas demandas decorrentes dos CANIs. Todavia, vê-se, ainda, o apreço dos Estados ao princípio da soberania. Pautados nele, os Estados têm buscado mascarar a gra

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COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA [a]. Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra relativo à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Não-Internacionais. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2013. Vale ressalvar que o Artigo 3º Comum às quatro Convenções de Genebra de 1949 já mencionava os CANIs, mas de forma ampla e genérica. UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM. Ongoing Armed Conflicts. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2013.

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vidade e intensidade real das violações em andamento no seu território não apenas para evitar uma intervenção externa, mas para que as violações e crimes cometidos no seu interior sejam julgados à luz do ordenamento jurídico interno como crimes comuns, fugindo, assim, do escrutínio da jurisdição universal sobre crimes internacionais (FLECK, 2010). Não obstante a inércia dos Estados nesse sentido, os CANIs contam, para a sua definição, com previsões legais (tratados internacionais), jurisprudenciais (tribunais internacionais), e posições firmadas CICV. Respeitado o caráter cronológico, o Artigo 3º Comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949 (Artigo 3º Comum), tem por objetivo proteger as pessoas envolvidas em um “conflito armado que não apresente um caráter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Partes”, e elenca inúmeras situações em que a vida de civis não engajados no conflito e hors de combat deve ser preservada. Trata-se do único artigo das Convenções de Genebra (CG), de 1949, que faz referência a CANIs. Embora não se extraia um conceito claro e objetivo do artigo de CANI, PEJIC acrescenta ser amplamente reconhecido o fato de que esses conflitos são travados tanto entre as forças armadas de um Estado e grupos armados não estatais, como entre estes últimos grupos (PEJIC, 2011). Dando força a essa tese, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII), no julgamento do caso Tádic, afirmou tratar-se de um CANI nos moldes do Artigo 3º Comum “wehenever there is [...] protracted armed violence between governmental authorities and organized armed groups or between such groups within a State”8. A importância do Artigo 3º Comum reside no fato da simplicidade com que foi concebido permitir sua aplicação automática, in

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INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORME YUGOSLAVIA . Prosecutor v Tadic - Case IT - 94 -1 – Decision on the Defense Motion for interlocutory Appeal on Jurisdiction. October, 2nd, 1995, § 84.

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dependente de condições de reciprocidade (SOLIS, 2010). Além disso, suas previsões orientadas pelo princípio da humanidade o classificam como um “mínimo denominador comum” que deve ser aplicado a todas as situações de conflito, sendo, portanto, irrelevante a natureza do conflito, conforme parecer da Corte Internacional de Justiça (CIJ)9. Mais adiante, em 1977, como já mencionado, foi assinado o PAII com o fito de complementar e desenvolver o Artigo 3º Comum. Frise-se, entretanto, que apesar de não modificar as condições de aplicação do referido artigo, o escopo de aplicação do protocolo é mais restritivo, abarcando apenas os conflitos que [...] se desenrolem em território de uma Alta Parte Contratante, entre as suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controle tal que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas e aplicar o presente Protocolo. (grifo nosso) (Art. 1, 1, do PAII)

Ao mesmo tempo em que busca dar mais clareza à definição de CANI, o PAII limita as situações de conflito, não contemplando a hipótese de um embate travado entre grupos dissidentes. Ademais, não especifica a porção de território que deve estar sob controle de uma das partes, tampouco a duração desse controle. Desta feita, pode-se concluir que o PAII aplica-se apenas a uma reduzida categoria de conflitos, ao passo em que o Artigo 3º Comum ampara um número maior de hipóteses de CANIs. O Estatuto de Roma (1998), por sua vez, também apresentou uma definição para CANI. Ao tratar dos crimes de guerra no artigo 8, (2), f, conceituou conflito armado não internacional como sendo “conflitos armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autorida

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INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Military and Paramilitary Activities in and Against Nicaragua – Nicarágua VS. United States. Judgment of June, 27th 1986, § 218.

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des governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos”10. (grifo nosso) Importante frisar que o estatuto de Roma não se propôs a criar um novo conceito para CANI. A esse respeito, PEJIC ressalta que o conflito armado não internacional descrito no artigo 8, (2), f, é o mesmo reproduzido no Artigo 3º Comum (PEJIC, 2011), todavia não especifica o termo “prolongado”. No âmbito da sociedade civil, o CICV, instituição promotora e guardiã do DICA, definiu CANI como sendo [...] protracted armed confrontations occurring between governmental armed forces and the forces of one or more armed groups, or between such groups arising on the territory of a State. The armed confrontation must reach a minimum level of intensity and the parties involved in the conflict must show a minimum of organization.” (grifo nosso) (INTERNATIONAL COMMITTEE OF RED CROSS [a]. How is the Term “Armed Conflict” Defined in International Humanitarian Law? Opinion Paper, March 2008. Disponível em: . Acesso em 19 abr. 2013)

Do exposto, vê-se que ao mesmo tempo em que o DICA ocupa-se da definição de CANI através dos seus tratados, da interpretação dos tribunais internacionais e do debate na sociedade civil, a imprecisão do conceito atrelada à ausência de um mecanismo de monitoramento e de um representante internacional legítimo para definir a natureza dos conflitos em andamento, contribui para que situações fáticas se percam num limbo jurídico, onde não se sabe que legislação aplicar. A importância, portanto, em se definir a natureza do conflito armado é poder fixar o arcabouço normativo a ser aplicado e, conse

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [b]. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, Decreto 4.388/2002. Disponível em: . Acesso em: 17 abr 2013.

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quentemente, poder exigir das partes envolvidas o cumprimento das normas pertinentes ao caso concreto. Numa situação hipotética ideal, a confirmação por um representante legítimo da comunidade internacional de se estar diante de um CANI exigiria das partes – atores estatais ou não – a estrita observância das normas do DICA (FLECK, 2010), e as alertaria para o fato de que em caso de violação de tais normas, poderão responder internacionalmente por crime de guerra11. (SOLIS, 2010) Entretanto, inexiste esse representante legítimo da comunidade internacional pois, de um lado os Estados não têm interesse em classificar seus conflitos armados segundo à natureza jurídica de CANI, e o CSNU e o CICV - possíveis representantes dada a legitimidade de que gozam junto à comunidade internacional - não têm mandato para tanto. Desta sorte, a indefinição continua em aberto.

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INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA SOB A ÓTICA DA RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

O término da Guerra Fria elevou os direitos humanos na hierarquia axiológica das relações entre os Estados, os quais atingiram um patamar semelhante ao da soberania. Com a evolução do sistema internacional e o consequente equilíbrio entre os conceitos de soberania e dos direitos humanos, a argumentação que limitava o emprego de intervenções humanitárias, baseada na proteção legal da soberania dos Estados, prevista na Carta das Nações Unidas12,

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Conceito de “war crimes”: “Serious violations of international humanitarian law constitute war crimes […] The Statute of the International Criminal Court defines war crimes as, inter alia, ‘serious violations of the laws and customs applicable in international armed conflict and serious violations of the laws and customs applicable in an armed conflict not of an international character”, cf. INTERNATIONAL COMMITTEE OF RED CROSS [b]. Customary International Law, Rule 156, Definition of War Crimes. Disponível em: . Acesso em: 18. abr. 2013. Artigo 2º, 7: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado

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tornou-se incoerente, acirrando as discussões nos fóruns internacionais (JUBILUT, 2010). Durante a vigência do conflito armado na antiga Iugoslávia em 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), sob o pano de fundo de uma intervenção humanitária, conduziu operações militares com o emprego da força, sem a autorização do CSNU. O nobilitante propósito da Organização visava à proteção das vítimas civis que eram alvos recorrentes das tropas beligerantes, particularmente da limpeza étnica conduzida pelo partido sérvio. A atuação da OTAN nesse episódio foi considerada muitas vezes legítima pelo seu desígnio de caráter humanitário, todavia ilegal por não contar com um respaldo jurídico positivado na esfera do direito internacional13, não obstante o Secretário de Defesa do Reino Unido ter declarado que as ações da Organização foram fundamentadas no direito consuetudinário internacional14. O caso de Kosovo fez ressurgir, uma vez mais, o debate sobre a legitimidade deste tipo de intervenção, empreendida por uma coalizão de países, na ausência de um posicionamento oficial do CSNU sobre esse tema. Ao mesmo tempo questionou-se a necessidade do estabelecimento de um critério universal para legitimar e validar legalmente operações dessa natureza (ICISS, 2001). Segundo Bellamy (2002) existem duas correntes principais que abordam essa problemática: o pluralismo comunitário e o cosmopolitismo. O pluralismo comunitário advoga que as sociedades abandonam o estado de natureza Hobbesiana para perseguir seus alvos mo-



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ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.”, cf. Presidência da República [a]. Ver quadro demonstrativo dos principais casos de intervenção por Estados e respectiva ação da ONU (JUBILUT, 2010, p. 138). UNITED KINGDOM PARLIAMENT. International Law. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2013.

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rais. Dentro de uma comunidade, os arquétipos morais são desenvolvidos baseados em padrões de relações sociais, permitindo que os princípios morais adotados por diferentes comunidades sejam no máximo semelhantes (BELLAMY, 2002). Para os pluralistas, não há consenso a respeito do que constitui uma emergência humanitária suprema ou represente um opressivo abuso dos direitos humanos que possa legitimar uma intervenção humanitária. Para este segmento, os direitos humanos são construídos dentro de um contexto cultural específico e não universal (BELLAMY, 2002). Por estas razões, os pluralistas acreditam que as propostas de padrões éticos e morais universais são tendenciosas e que uma intervenção humanitária abalaria o conceito de soberania, o qual representa a única proteção dos Estados fracos.(BELLAMY, 2002). O pensamento cosmopolita, adotado no presente trabalho, considera que os indivíduos têm interesses vitais que necessitam ser resguardados, incluindo suas respectivas proteções individuais contra possíveis danos, acesso à alimentação, vestuário e moradia (BARRY, 1998). Igualmente, salienta que o diálogo intercultural é viável e a humanidade pode crer em ideias substantivas comuns, as quais podem conduzir a um critério universal que possa legitimar uma intervenção humanitária. Após o término da 2ª Guerra Mundial, motivada pelas inúmeras atrocidades e violações dos direitos humanos que marcaram aquele conflito, a carta das Nações Unidas cerceou o emprego da força apenas para as situações que envolvessem a legítima defesa (individual ou coletiva) ou quando autorizado pelo Conselho de Segurança em função de ameaça à paz ou segurança internacionais15.

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O artigo 2 (7) da Carta da ONU estabelece que: “ Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.”, cf. Presidência da República [a]. (grifo nosso).

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Para Assunção (2009), as intervenções humanitárias são empregadas em situações em que um ou mais Estados decidem, por iniciativa própria, intervir por via coercitiva no território de outro Estado, sem o seu respectivo consentimento. As ações visam à proteção de um grupo de indivíduos que são vítimas de graves violações dos direitos fundamentais perpetradas por seu próprio Estado, ou devido a sua inação fruto da falência de suas instituições legais e de segurança. Ao comparar-se a definição de intervenção humanitária proposta por Assunção com o conteúdo da Carta das Nações Unidas, constata-se que ações desta natureza, com o emprego da força, não estão reguladas no corpo deste documento. Surge então o questionamento se o conceito de soberania pode ser flexibilizado em prol da garantia dos direitos fundamentais do homem. Em busca de uma solução para esta questão, a Assembleia Geral da ONU reuniu-se em duas oportunidades, nos anos de 1999 e 2000. Nesta última ocasião, Kofi Annan16, SGNU apresentou um desafio à comunidade internacional, no sentido de se buscar um entendimento consensual da postura que os Estados deveriam adotar em situações como as vivenciadas em Ruanda e Srebrenica, onde sistemáticas violações dos direitos humanos comoveram o mundo (ICISS, 2001). O governo canadense de forma proativa reafirmou seu profundo comprometimento com a paz internacional ao instituir a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) com o objetivo de realizar um holístico estudo sobre a questão, de forma a auxiliar o SGNU e a comunidade internacional a estabelecer um entendimento comum a respeito dessa temática (ICISS, 2001).

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Na ocasião Kofi Annan declarou que: “if humanitarian intervention is, indeed, an unacceptable assault on sovereignty,how should we respond to Rwanda, to a Srebrenica – to gross and systematic violations of human rights that affect every precept of our common humanity?”, cf. International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS). The responsibility to Protect. Ottawa: International Development Research Centre, 2001. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2013.

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A materialização deste esforço veio por intermédio do documento intitulado “Responsabilidade de Proteger” (R2P), o qual representou um importante passo na direção de uma proposta pragmática de solução para esta questão. As origens intelectuais do relatório proposto pela ICISS que resultou no conceito da R2P, basearam-se na ideia de “soberania como responsabilidade” formulado por Francis Deng, Representante do Secretário Geral das Nações Unidas para Pessoas Deslocadas Internamente e por Roberta Cohen, pesquisadora da Brookings Institution (BELLAMY, 2009). A soberania de um Estado implica a sua responsabilidade primária em zelar pela proteção de sua própria população. Todavia, nas situações de conflitos internos, quando o Estado demonstra incapacidade ou falta de vontade política para impedir o sofrimento e graves danos à sua própria população, a comunidade internacional tem o dever de intervir (ICISS, 2001). O objetivo da R2P transcende a busca por um critério universal para legalizar e legitimar uma intervenção humanitária, apesar de esse aspecto ser invariavelmente o mais ressaltado. Os estudos conduzidos pela ICISS foram realizados segundo uma visão ampla do tema, de forma a criar mecanismos que proporcionem uma proteção adequada à população de um Estado em conflito, considerando o recurso à força como última alternativa (ICISS, 2001). Com este escopo o documento estabelece três responsabilidades principais: – A responsabilidade de prevenir: que direciona os esforços para as raízes e causas diretas do conflito interno que colocam a população em risco (ICISS, 2001). – A responsabilidade de reagir: que responde às situações que ameaçam as necessidades humanas, com medidas apropriadas, podendo incluir medidas coercitivas como sanções e em casos extremos intervenções militares (ICISS, 2001).

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– A responsabilidade de reconstruir: que provê, após uma intervenção militar, assistência completa, envolvendo ações de recuperação, reconstrução e reconciliação (ICISS, 2001). As causas que justificam uma intervenção militar17 com o propósito de proteção humanitária sob a ótica da R2P, limitam-se às situações caracterizadas pela perda de vidas humanas em larga escala, configurando-se ou não a intenção de genocídio, e de limpeza étnica (ICISS, 2001). Em 2005, durante o World Summit, a Assembleia Geral da ONU definiu o alcance material da R2P limitando-o às situações em que se caracterizassem crimes de guerra, crimes contra a humanidade, limpeza étnica e genocídio18. Para que as intervenções sejam legítimas, é necessário que o seu propósito seja o de impedir o sofrimento humano, alicerçado em uma operação multilateral e pela opinião pública regional e das próprias vítimas do conflito. Elas devem representar o último recurso, empregando meios proporcionais e com uma razoável projeção de sucesso, que compense eventuais danos colaterais para a população (ICISS, 2001). Ao referir-se à sua dimensão operacional, o texto da R2P enfatiza a relevância das regras de engajamento (RE) como fator crítico para a proteção da população, as quais devem refletir uma estrita observância do DICA. Nesse sentido, o estudo estabelece como documentos integrantes do arcabouço normativo a orientar as ações respaldadas na R2P as quatro Convenções de Genebra de 1949, e os seus Protocolos Adicionais I e II de 1977 (ICISS, 2001). Para a confecção das RE a ICISS salienta, inclusive, que elas devem reconhecer que determinados armamentos, banidos em acor

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A nomenclatura adotada ICISS em substituição à intervenção humanitária se deu em virtude das críticas tecidas por organizações humanitários referentes à militarização do termo “humanitário”, ICISS, 2001. UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY [a]. 2005 World Summit Outcome. A/RES/60/1, § 138.

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dos internacionais, como a Convenção de Ottawa sobre minas terrestres, não devem ser empregados (ICISS, 2001). Jubilut (2010) ressalta que a ICISS sugere a adoção de um código de conduta para regular as formas que uma intervenção deve seguir, constituindo um aspecto positivo da nova doutrina, pois iria criar mecanismos para responsabilizar as ações da força interventora, aumentando o respeito pelo DICA e, consequentemente, a legalidade e a legitimidade das ações realizadas. Tanto a Comissão, quanto o SGNU, através do seu relatório intitulado “Painel sobre Ameaças, Desafios e Mudanças”19, em 2004, referiram-se à R2P como um princípio emergente do direito consuetudinário internacional, sinalizando um entendimento comum no âmbito da comunidade internacional (BELLAMY, 2009). Este fato ganhou ainda mais notoriedade e relevância no momento em que a R2P foi reconhecida unanimemente pelos Estados membros da ONU, durante a Cúpula Mundial em 2005. Apesar desse reconhecimento explícito da comunidade internacional, o princípio da R2P encontrou, na prática, certas resistências e foi alvo de inúmeras críticas, suscitando calorosos debates nos mais variados fóruns de discussão. Os menos entusiasmados e mais reticentes quanto à aplicação do R2P foram os países do 3º mundo que viam a R2P como um provável instrumento para violação de suas respectivas soberanias20. No ano de 2009, o SGNU, Ban Ki-moon, por intermédio do relatório “Implementando a responsabilidade de proteger”21, procurou minimizar este receio. O relatório salientou, uma vez mais, que cada Estado tem a responsabilidade de proteger a sua respectiva po

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UNITED NATIONS. A More Secure World: Our Shared Responsibility. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2013. Tal preocupação não é injustificada dado que desde o século XVII a guerra apresenta objetivos econômicos. (HELD apud JUBILUT, 2010, p. 159). UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY [b]. Implementing the Responsibility to Protect, A/63/677.

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pulação de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Entretanto, quando este Estado falha em proporcionar esta proteção, a comunidade internacional deve estar pronta para atuar de forma coletiva autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esse mesmo relatório ressaltou que a melhor forma de impedir que Estados ou coalizões de Estados venham a utilizar a R2P seguindo outros propósitos é desenvolver estratégias, padrões, processos, ferramentas e práticas das Nações Unidas para a R2P. Nesse diapasão, o relatório apresentou uma estratégia baseada em três pilares, sendo o primeiro pilar caracterizado pela responsabilidade primária de cada Estado de proteger sua respectiva população. O segundo pilar reafirmou o compromisso da comunidade internacional de assistir o Estado no cumprimento de suas obrigações. Finalmente, o terceiro pilar baseou-se na atuação dos Estados membros, de forma coletiva, nas situações em que um determinado Estado falhe em prover proteção à sua própria população. Ao abordar o primeiro pilar, o relatório destacou a importância dos Estados aderirem aos tratados concernentes ao DICA num primeiro momento. Estes tratados devem, subsequentemente, ser incorporados ao ordenamento jurídico nacional, de forma que os quatro tipos de crimes22 elencados no parágrafo 138 da 2005 World Summit Outcome estejam tipificados nas leis domésticas. O documento ainda ressalta a necessidade de que os responsáveis pela aplicação das leis e pelos processos judiciais recebam um treinamento sobre o DICA, salientando a atuação do CICV na disseminação de conhecimentos sobre esta temática. No tocante ao posicionamento do Brasil frente ao princípio da R2P, o governo tem sido cauteloso, sempre consonante com a diplomacia pacífica brasileira e com os princípios constitucionais de respeito à soberania e não-intervenção. Ao expressar o seu posicionamento

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Crimes de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.

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sobre o tema, tem sempre enfatizado a importância do foco na prevenção e no emprego de ações militares como derradeiro recurso. Alinhado com este pensamento, a presidente Dilma em seu discurso23 na abertura do Debate Geral da 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Nova York em 2011, externou a preocupação brasileira de que os Estados observem a “responsabilidade ao proteger”, nas situações em que a força for empregada com fulcro no princípio da R2P. Posteriormente, este novo conceito foi melhor desenvolvido na oportunidade em que a Embaixadora Maria Luiza Viotti apresentou o discurso do Ministro das Relações Exteriores, no Debate Aberto do Conselho de Segurança sobre Proteção de Civis em Conflito Armado, realizado em 9 de novembro do mesmo ano, na cidade de Nova York24. Nesta ocasião, a delegação brasileira divulgou entre os presentes, o documento “Responsabilidade ao Proteger: Elementos para o Desenvolvimento e Promoção de um Conceito”. No texto, o governo brasileiro lembra que o mundo atualmente sofre com algumas consequências dolorosas de intervenções que agravaram conflitos já existentes, permitindo que o terrorismo penetrasse onde anteriormente não estava presente, ocasionando novos ciclos de violência, tornando as populações civis mais vulneráveis. O governo brasileiro salienta, então, que a comunidade internacional deve demonstrar responsabilidade ao proteger e para tanto é fundamental que um conjunto de princípios fundamentais, parâmetros e procedimentos seja observado. Dentre eles, ressalta-se que as eventuais ações militares sejam realizadas em estrita conformidade com o direito internacional,

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [c]. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, na abertura do Debate Geral da 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas - Nova York/ EUA. . Acesso em: 19 abr. 2013. MRE, 2011.

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particularmente com o DICA. Nas ações em que o uso da força for autorizado ele deve ser judicioso, proporcional e limitado aos objetivos impostos pelo CSNU. Este deve assegurar que aqueles que foram investidos de autoridade para empregar a força, sejam responsabilizados pelos seus atos. Analisando o documento apresentado pela Embaixadora Maria Luiza Votti à Assembleia Geral, vê-se a fundamentação em dois princípios fundamentais do DICA, os princípios da proporcionalidade e da necessidade militar. O primeiro refere-se ao uso proporcional da força quando autorizada pelo CSNU. Considera-se como exemplo de violação deste princípio a condução de um ataque que possa causar ferimentos e mortes de civis, danos a instalações civis, ou a combinação de ambos, sendo considerados excessivos em relação à vantagem militar presumida25. Segundo Francis Lieber (2011), a necessidade militar “as understood by modern civilized nations, consists in the necessity of those measures which are indispensable for securing the ends of the war, and which are lawful according to the modern law and usages of war.”26 (grifo nosso) Ao se limitar, portanto, os objetivos da intervenção militar ao estritamente necessário para que os objetivos delineados pelo CSNU possam ser alcançados, pode-se afirmar que o princípio da necessidade militar está sendo observado. Para que o DICA seja corretamente aplicado em operações de intervenção humanitária, é fundamental que os países contribuintes de tropas sejam signatários dos tratados e convenções que versam sobre o direito internacional humanitário. Este é o ponto de partida

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Artigo 51.5 (b) do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra (1977), cf. Comitê Internacional da Cruz Vermelha [b]. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2013. AVALON PROJECT – YALE LAW SCHOOL. Lieber Code. Article 14. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2013.

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para que haja o compromisso das forças empregadas em respeitar os seus princípios e normas. Como ressaltado, dentro do primeiro pilar referenciado no relatório “Implementando a responsabilidade de proteger”, é fundamental que os países signatários do DICA tenham os seus princípios e norma internalizados, ou seja, que eles integrem o ordenamento jurídico doméstico. Este fato fará com que as tropas empregadas em uma intervenção humanitária possam responder por eventuais violações do DICA em seus países de origem e internacionalmente, aumentando a credibilidade da operação e minimizando a possibilidade de impunidade. Acrescente-se, a necessidade de as tropas empregadas em situações desta natureza receberem treinamento adequado em seus respectivos países para que tomem conhecimento dos princípios e normas do DICA e possam, assim, atuar em conformidade com as regras de engajamento. A capacitação das forças é uma medida que vai ao encontro da proposta brasileira referente à “responsabilidade ao proteger”, na medida em que as tropas, uma vez instruídas, terão maior zelo pela população civil, minimizando os efeitos colaterais das ações militares. Desta feita, a atuação da tropa em conformidade com os princípios e normas do DICA implicará menos críticas por parte da opinião pública internacional e maior apoio da população e do governo local às ações empreendidas pela força de intervenção.

3 CONCLUSÃO Após a 2ª Guerra Mundial observa-se uma patente mudança no perfil dos combates e guerras. Os conflitos de caráter não-internacional tem predominado no cenário global, eclodindo em países caracterizados pela instabilidade política e econômica, envolvendo um maior número de atores e afetando a população civil em maior escala. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Os países onde estes conflitos se desenvolvem procuram caracterizá-los como tensões e distúrbios internos. A adoção desta postura tem como objetivo preservar suas respectivas soberanias, diminuindo a ingerência externa, e administrando a situação de acordo com ordenamento jurídico doméstico. Entretanto, na prática, a população civil é vítima de violações do DICA devido à ineficácia dos Estados em proteger seus próprios cidadãos. A dificuldade em se definir a situação de conflito armado não-internacional tem origem na ausência de um conceito claro nos textos das Convenções de Genebra. Posteriormente, com o advento do Protocolo Adicional II o conceito de conflito-armado não-internacional foi melhor estruturado, entretanto, devido aos rígidos critérios estabelecidos, o seu escopo de aplicação foi restringido. Nessa esteira, nem o Estatuo de Roma, tampouco a definição apresentada pelo CICV sanaram a dúvida ou preencheram a lacuna jurídica referente à conceituação de CANI, fato esse agravado pela falta de um representante legítimo internacional responsável por classificar os conflitos em andamentos no globo. A dúvida, portanto, persiste. Independentemente de classificação, o fato é que a população civil tem sofrido muito com esses conflitos. A comunidade internacional, por intermédio da ONU, tem buscado mecanismos que possam aumentar a proteção dessas pessoas. Em prol desse objetivo, foi formulado o princípio da R2P fundamentado em um amplo estudo, que buscou estabelecer um entendimento comum a respeito de intervenções humanitárias em países, cujas populações sejam alvo de graves violações dos direitos humanos e do DICA. Apesar do estudo feito pela ICISS prever o emprego da força como último recurso, ainda pairam dúvidas e afloram acirrados debates sobre a legitimidade e a legalidade de intervenções militares fundamentadas neste princípio. Os críticos do princípio da R2P

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alegam que ele ameaça o consolidado conceito de soberania e que as intervenções humanitárias desta natureza, muitas vezes geram mais danos à população do que o próprio conflito. Sobre este último aspecto, o governo brasileiro ressaltou a importância de se atentar para a “responsabilidade ao proteger” quando for invocado o princípio da R2P. Essa perspectiva brasileira salienta que as tropas empregadas como força de intervenção devem zelar para que os princípios e normas do DICA sejam aplicados em todas as situações. Ao respeitar-se estritamente o DICA nas operações de intervenção humanitária, infere-se que serão observadas menores baixas no seio da população civil, e as tropas respeitarão as normas internacionais, coerentes com os valores adotados pela comunidade internacional, contribuindo para legitimar as ações militares junto à população local e à comunidade internacional. Pode-se, portanto, concluir que a aplicação do DICA constitui uma importante ferramenta para aumentar a legitimidade de uma intervenção militar de caráter humanitário, sendo algo almejado pela sociedade internacional. Nesse sentido SHAW diz A crescente interdependência dos Estados no mundo moderno faz com que seja cada vez mais difícil para os Estados não envolvidos e as organizações internacionais ignorar os conflitos civis [...], ao mesmo tempo que a evolução da legislação sobre os direitos humanos contribuiu para pôr fim à crença de que os eventos que ocorrem no interior de um Estado não dizem respeito a outros Estados ou pessoas. Coerentemente com esse ponto de vista, a comunidade internacional está atualmente mais predisposta a exigir a aplicação do direito humanitário internacional aos conflitos internos.27 (grifo nosso)



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SHAW, M. Direito Internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 882.

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Resumo: O artigo tem como objetivo central destacar a preocupante situação da categoria de indivíduos reconhecida como “refugiados econômicos” e a busca dessas pessoas pela efetivação do direito ao desenvolvimento. O texto apresenta a descrição do que se compreende por refugiados econômicos. A essa categoria, normalmente, não é estendida, de maneira imediata, a clássica proteção do Estatuto do Refugiado de 1951, mas nem por isso tais indivíduos devem ficar à margem da proteção internacional, principalmente junto a um cenário de proteção dos direitos humanos. Considerando tal fato, tem-se a definição do direito ao desenvolvimento, o que de fato buscam os indivíduos enquadrados como refugiados econômicos. Porém, na busca da concretização deste direito, deparam-se com os problemas relacionados à efetivação e titularidade do mesmo. Palavras-chave: Refugiados econômicos – Direito ao desenvolvimento – Direitos Humanos Keywords: Economic Refugees – Right to development – Human Rights Sumário: Introdução. I. Refugiados econômicos e a busca pelo direito ao desenvolvimento. II. Caracterização do direito ao desenvolvimento. III. A questão da titularidade e efetividade do direito ao desenvolvimento. Considerações Finais. Referências.

INTRODUÇÃO A movimentação internacional de pessoas não é um acontecimento recente, típico da modernidade. Desde sempre as pessoas 120

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Refugiados econômicos e a questão do direito ao desenvolvimento Mônica Teresa Costa Sousa Doutora em Direito (UFSC). Professora dos cursos de graduação em pós-graduação em Direito da UFMA. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Direito e Desenvolvimento (UFMA). Avaliadora do INEP/MEC. ([email protected]) Leonardo Valles Bento Doutor em Direito (UFSC). Analista de Finanças e Controle da Controladoria Geral da União (CGU). Professor do curso de graduação em Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). ([email protected])

se deslocam entre as fronteiras, pelos mais variados motivos: por necessidade econômica, para fugir de conflitos armados, porque sofrem perseguições ideológicas ou simplesmente porque querem. E essa diversidade de motivos implica também uma diversidade de proteção e controle, vez que os Estados são soberanos e decidem quem pode e quem não podem permanecer no interior de suas fronteiras. Mudar de país já foi bem mais fácil. Hoje em dia, em razão das crises econômicas e particularmente da crise do Estado de Bem Estar, muitos países adotam leis de imigração e entrada mais restritivas, esquecendo-se mesmo dos compromissos internacionalmente assumidos. Hoje não buscam segurança em outros países apenas pessoas que fogem dos efeitos da guerra ou que buscam proteção em razão de perseguição política. Muitos indivíduos buscam a realização de seus direitos mais básicos, buscam proteção em razão de colapsos ambientais ou simplesmente buscam melhor qualidade de vida. Em todas essas situações tem-se o ser humano que merece proteção inAnais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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terna e que em nível internacional deve contar com um sistema de reconhecimento dos direitos humanos. Os refugiados, hoje, não são apenas aqueles enquadrados na Convenção sobre o Status de Refugiado de 1951; são também os denominados refugiados ambientais e os refugiados econômicos, esta última a categoria objeto de análise neste artigo. Os refugiados econômicos, embora não sejam formalmente reconhecidos como refugiados, buscam a implementação e garantia do direito ao desenvolvimento, que pode ser enquadrado como a síntese dos direitos econômicos e sociais. Considerando-se desenvolvimento como um processo que vai além da garantia de renda e consumo, o direito ao desenvolvimento para a ser enquadrado como direito humano, a partir da Declaração sobre o direito ao desenvolvimento, de 1986, celebrada junto à Assembleia Geral das Nações Unidas. É certo que o mero reconhecimento internacional não é suficiente para a efetivação deste direito, e também não significa que a simples transposição de fronteiras garante ao indivíduo a concretização do direito, mas o fato é que cada vez mais pessoas estão deixando seus locais de origem simplesmente porque em tais lugares não têm oportunidades de prover os mais básicos dos direitos. O artigo apresenta, neste contexto, a caracterização desta categoria crescente – os refugiados econômicos – e as dificuldades encontradas para sua proteção mesmo ante o sistema internacional de garantia e reconhecimento dos direitos humanos, considerando se é ou não cabível a determinação do termo “refugiados” e se deve ou não ser aplicada a Convenção de 1951 a estes casos. Num segundo momento, considerando que os refugiados econômicos partem em busca da supressão de privações básicas, o texto se volta à caraterização do direito ao desenvolvimento, enquadrando o mesmo como um direito humano e desta forma tomando parte no sistema internacional de proteção destes direitos. Por fim, volta-se o texto às problemáticas encontradas para a efetivação e garantia do direito ao desenvolvimento, passando pela

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dificuldade de reconhecimento formal em âmbito interno bem como pela questão da titularidade do mesmo.

I

REFUGIADOS ECONÔMICOS E A BUSCA PELO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Não é atual a problemática envolvendo a movimentação internacional de pessoas. Os grandes fluxos migratórios ocorrem há séculos, com momentos de maior ou menor intensidade. Em períodos marcados por conflitos armados internacionais, como as duas Grandes Guerras Mundiais, certamente há uma intensificação do fluxo de pessoas. O mesmo se pode dizer em razão dos conflitos armados que não alcançam proporções internacionais, como as guerras civis, mas que infelizmente são capazes de levar um grande número de pessoas a deixar seus países de origem em busca de segurança. Considerando esta situação, desde a década de 1950, no século XX, se tem um documento internacional reconhecido e apto a atender, de maneira razoavelmente satisfatória, as pessoas que se encontram em situações limite de perseguição, caracterizando-se como refugiados. De acordo com o Estatuto do Refugiado, pode ser definido como tal aquele que está fora de seu país ou que não pode recorrer à proteção do mesmo em razão do fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a um determinado grupo social ou por razões políticas (art. 1º). Entretanto, esta definição não é suficiente para enquadrar as diversas categorias de pessoas que atualmente deixam seus países de origem, não apenas pelo temor de perseguição política, mas também por motivos outros que se relacionam diretamente com a questão dos direitos humanos. Considerando que tais são indissociáveis, não se trata apenas da garantia dos direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e políticos), estes perfeitamente enquadrados na definição estabelecida pela Convenção de 1951, mas também se apresentam hoje problemas relacionados ao fluxo de pessoas sem perspectiva de garantia dos direitos de segunda di-

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mensão, tais sejam os direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos de terceira e quarta dimensão, dentre eles o direito ao desenvolvimento. Justamente neste ponto reside a grande problemática: a identificação e reconhecimento, ainda que não de maneira formal, de novas categorias de refugiados, tais sejam os refugiados ambientais e os refugiados econômicos, sendo que sobre esta última categoria versa especificamente este trabalho28. Para esta identificação, faz-se necessário num primeiro momento estabelecer a diferença entre o migrante econômico e o refugiado, fundamental para se determinar inclusive se a Convenção de 1951 e os demais instrumentos de proteção aos refugiados podem incidir sobre a categoria dos refugiados econômicos. Com o crescimento da população mundial e a relativa facilidade de deslocamento populacional, cada vez é maior o número de pessoas que deixam seus países de origem em busca de melhores condições de vida, principalmente a partir da divulgação de indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano, que faz com que pessoas originárias de países com baixo IDH migrem para países de IDH mais elevado, nos quais se espera uma melhor qualidade dos serviços de saúde, educação e maiores oportunidades de obtenção renda, considerando-se os indicadores básicos componentes do Índice de Desenvolvimento Humano. Entretanto, fatores como a crise econômica, principalmente nos países da Europa ocidental têm feito com que tais países endure

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Refugiados ambientais podem ser definidos como “[...] pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para sustentar a vida humana”. (EL-HINNAWI, Essam. Environmental Refugees. Nairobi: United Nations Environment Programme (UNEP), 1985, p. 04-05. Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2013).

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çam a política migratória, tornando cada vez mais difícil a migração e a oportunidade de regularização da situação das pessoas que cada vez mais procuram esses países, vindos principalmente de países africanos. Ainda que a África esteja assolada por conflitos civis e muitas pessoas realmente deixam os países deste continente em razão de tais embates, é cada vez maior o número de indivíduos que, em grupos ou isoladamente, buscam nos países da Europa a realização dos direitos humanos mais básicos. Para Erika Feller (2011, p.15), tais pessoas travam uma “luta diária por legitimidade, para estabelecer uma residência legal, para se mover livremente, para emprego, para ter acesso à assistência médica e educação para os filhos”. De acordo com o ACNUR, hoje mais de 43 milhões de pessoas ao redor do mundo podem ser enquadrados como “deslocados forçados”, sem que necessariamente o sejam em razão de conflitos armados ou perseguições políticas (ACNUR, 2013), e cada vez mais a Convenção de 1951 se torna um instrumento inadequado para lidar com todos os casos que envolvem o fluxo internacional de pessoas. Considerando tal fato, tem-se, num primeiro momento, a distinção entre o grupo diretamente beneficiado pela Convenção de 195, tal seja o grupo representado pelos refugiados de guerra e os refugiados políticos, o grupo representado pelos migrantes econômicos e o grupo representado pelos refugiados econômicos. Em relação ao primeiro, a definição já foi apresentada e este grupo é abrangido pela Convenção. Já os migrantes econômicos caracterizam-se pela voluntariedade. Este migrante, no dizer de Paulo Borba Casella (2001), poderia ao menos em tese, subsistir em seu país de origem. Mas diante da insatisfação com as condições locais, se desloca para outro país, em busca de melhores condições de vida. Neste caso, observa-se que outros dispositivos internacionais são cabíveis para a sua proteção, como a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, adotada pela Resolução 45/158, de 18/12/1990, da Assembleia-Geral das Nações Unidas.

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Num outro quadro estão inseridos os “refugiados econômicos”, forçados a deixar seus países de origem pela total impossibilidade de satisfazer suas necessidades vitais básicas. O refugiado econômico é, nas palavras de Ana Paula Cunha (2008, p. 192), movido pelo instinto de sobrevivência. Apesar de não reconhecidos como uma “categoria” oficial de refugiados, os refugiados econômicos não podem como já sinalizado, ficar à margem do sistema internacional de proteção à pessoa humana. Erika Keller (2011) destaca as hipóteses de cabimento ou não da Convenção de 1951 e dentre estas situa a questão das migrações com finalidade econômica. Para a autora, há quatro hipóteses para sustentar ou não a aplicabilidade da convenção. Num primeiro momento, estão os refugiados por motivos de perseguição e violência direcionada, enquadrados de maneira natural no art. 1º. Neste caso, a Convenção de 1951 é cabível e relevante. Logo após, Keller destaca os fluxos migratórios em larga escala, envolvendo supostos refugiados; neste caso, a Convenção é uma aspiração e pode ser aplicada. Em outro quadro, a autora situa as pessoas que se deslocam forçosamente, mas por um motivo diferenciado da perseguição política ou violência, e destaca que a Convenção de 51 não deveria ser aplicada, cabendo aqui um modelo distinto de proteção. Podem ser enquadrados os refugiados ambientais. A fim de ilustrar esta situação, Keller (2011, p. 23) aponta que “[...] pessoas são deslocadas para além de suas fronteiras em uma combinação de fatores que as deixam muito vulneráveis ou que exacerbem vulnerabilidades a tal ponto que fugir torna-se mais viável que permanecer”. Por fim, têm-se os fluxos migratórios mistos que incluem migrantes em sentido clássico. Fluxos mistos incluem não apenas migrantes no sentido clássico, mas também pessoas com necessidades imediatas. Em tal questão a Convenção verdadeiramente não se aplica. Nunca houve a intenção, por parte do ACNUR e da própria Convenção, de abordar essa questão por meio de mecanismos de proteção de refugiados. Sobre esta aparente lacuna da Convenção de

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1951, Erika Keller (2011, p. 27) argumenta: “Essa não é uma falha da Convenção, e esta não pode ser responsabilizada pela incapacidade dos Estados de lidar de maneira efetiva com a migração em massa”. Sobre esta não aplicabilidade, Ana Paula Cunha (2008) destaca que o sistema internacional de proteção aos refugiados não pode ser imediatamente aplicado aos migrantes em sentido lato, sob pena de erosão do sistema. Além disso, a Convenção de 1951 foi elaborada, como já ressaltado, num contexto de proteção imediata aos direitos de primeira dimensão, o que não afasta, em absoluto, a necessidade de se estender todos os mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos às demais categorias, como os refugiados ambientais e refugiados econômicos, considerando principalmente a indivisibilidade que marca os direitos humanos. Justamente em razão dessa indivisibilidade que os direitos econômicos e sociais não podem passar ao largo do sistema internacional de proteção à pessoa humana. Pessoas que se deslocam em razão da falta grave de efetividade dos direitos econômicos e sociais precisam de proteção internacional, mas muito se questiona sobre o alcance desta proteção, vez que envolve questões como até que ponto um país deve abrir suas fronteiras a pessoas fugindo de uma situação causada pela ineficiência de seus próprios Estados? Ou ainda, qual tipo de ajuda ou proteção o Estado estrangeiro deve prover? Tais questões continuam sem resposta, e muitas vezes é mais fácil e até mesmo compreensível que o país de destino se negue a receber tais pessoas, seja em razão da sua própria incapacidade econômica, seja por pressão de seus nacionais, afinal, como sinalam Liliana Jubilut e Silvia Apolinario (2011, p. 289), a violação de direitos econômicos e sociais ocorre mais por negligência que por meio de um ato formal ou ações específicas de um agente perseguidor. Apesar de reconhecer as dificuldades em separar a situação de um indivíduo das condições gerais de seu país, as autoras alertam para um caso em que se pode caracterizar a perseguição ou o ato formal: é

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quando a ausência de condições de efetivação dos direitos econômicos e/ou sociais é direcionada a um determinado grupo ou categoria, como acontece com os ciganos, como se vê: O dilema dos direitos econômicos, sociais e culturais encontra-se no fato de que, se um Estado falha em prover tais direitos para toda a população por meio de políticas e programas, é difícil argumentar casos individuais, alegando que tais direitos não são realizados. O que se pode argumentar é que, em razão de suas opiniões políticas, sua etnia, ou de pertencimento a algum grupo social, esses indivíduos são privados por um agente – o Estado ou outra entidade com poder suficiente – de trabalhar, de receber educação ou tratamento de saúde. O ponto crucial é que o Estado, ou outro agente atua contra o indivíduo, e isso constitui uma perseguição (2011, p. 289).

Portanto, ao se considerar a vulnerabilidade de determinados grupos ou categorias em relação aos direitos econômicos e sociais, há como enquadrar os mesmos no sistema clássico de proteção ao refugiado, vez que há uma ação dirigida. Porém, a dificuldade se perpetua se as condições precárias de efetivação dos direitos econômicos e sociais são genéricas em determinado território. O que se tem, quando da generalização da precariedade da efetivação dos direitos de segunda, terceira e quarta dimensões é justamente o não reconhecimento e garantia do direito ao desenvolvimento, considerado este como um processo de expansão das capacidades e supressão de privações. E no dizer de Liliana Jubilut e Silvia Apolinário (2011, p. 290), “[...] indivíduos aos quais é negado o direito ao desenvolvimento, consoante a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986) continua sem proteção internacional”. Os refugiados econômicos se enquadram exatamente nesta situação, quadro que pode ser agravado nos casos em que há ausência de instituições democráticas e elevado grau de pobreza, como em muitos países da África sub saariana. Tais situações podem levar a 128

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uma situação insustentável para os indivíduos, cumulando elevados índices de mortalidade infantil com alta desnutrição, fomes coletivas e analfabetismo, chegando-se a situação apontada pelo Relatório de Desenvolvimento Humano de 1990 (UNDP, 2013), ao determinar que o indivíduo estar condenado pelo lugar de nascimento. Sobre tal situação, Liliana Jubilut e Silvia Apolinário (2011, p. 290) destacam: [...] pode-se buscar por meio da cooperação internacional reverter o quadro de desenvolvimento do Estado – todavia, isso demanda longo prazo -; ou se pode tentar diferenciar mesmo, entre as situações de ausência de desenvolvimento, aquelas que resultam em pessoas as quais demandam proteção internacional, visto que o futuro certo com fome e doenças configura sim fator externo que compele o indivíduo à migração, mesmo não havendo uma perseguição configurada.

O que se verifica, portanto, é que há categorias de pessoas que não se enquadram na situação típica de refugiados, mas mesmo assim precisam de proteção internacional vez que em seus países de origem não há condições de vida digna. Nestes casos, o que tais pessoas buscam nada mais é que a efetivação da síntese dos direitos humanos, tal seja o direito ao desenvolvimento. Porém, o reconhecimento e a efetivação deste direito passam por questões delicadas, como se vê a seguir.

II

CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Desde a criação das Nações Unidas que a questão do desenvolvimento e das diferenças econômicas e sociais entre os países têm sido ponto de discussão. Ainda que a temática do desenvolvimento tenha sido tratada por algum tempo em instâncias diferentes, as Nações Unidas elaboraram uma série de Resoluções a respeito, e uma delas, em especial, se volta para um componente fundamental do arAnais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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cabouço normativo de proteção dos direitos humanos, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, aprovada na forma da Resolução A/RES/41/128, de 4 de dezembro de 1986, com oito abstenções (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Israel, Japão, Reino Unido, Suécia e República Federal da Alemanha) e o voto contrário dos Estados Unidos (UN, 2007)29. A Declaração sofre críticas por ser considerada pouco eficaz no sentido de apresentar compromissos internacionais gerais exigíveis, mas sem previsão de sanção em caso de descumprimento de tais acertos. Porém, é importante não apenas por reconhecer definitivamente o direito ao desenvolvimento como um direito humano, ressaltando o caráter universal e indivisível desta classe de direitos, mas também por estabelecer as dimensões coletiva, individual, internacional e interna do direito ao desenvolvimento. Embora a questão da obrigatoriedade das Resoluções das organizações internacionais seja complexa e controversa, é inegável que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 inspira a observância e codificação do direito ao desenvolvimento em âmbito internacional e interno. Na esfera internacional, outras normas e convenções trataram do tema especificamente a partir das disposições trazidas pela Declaração de 86, como a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 e o Consenso de Monterrey em 200230.

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O conceito de desenvolvimento tinha, até a década de 1990, um forte viés economicista. Desenvolvimento era visto tão somente como crescimento econômico. Daí algumas instâncias na ONU terem se dedicado ao tema de maneira limitada. A partir da década de 90, com a divulgação dos Relatórios de Desenvolvimento Humano e dos Índices de Desenvolvimento Humano, a ONU se volta, de maneira global, ao desenvolvimento não mais como crescimento econômico, mas sim como desenvolvimento humano, levando em consideração fatores como renda, educação, saúde, liberdades políticas e garantias sociais. O Consenso de Monterrey foi adotado pelos Chefes de Estado como documento final da Conferência Internacional para Financiamento do Desenvolvimento, realizada na cidade de Monterrey, México, em março de 2002. Ressaltava a preocupação global com a questão da desigualdade, reconhecendo que o financiamento para as ações de promoção do desenvolvimento deveria se dar de maneira individualizada, variando de país a país, levando-se em consideração a necessidade específica de cada Estado. As recomendações do Consenso de Monterrey se fundamentavam em três pilares princi-

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Em âmbito interno, algumas Constituições se voltaram para a previsão de questões relacionadas ao direito ao desenvolvimento, como é o caso da Constituição Federal de 1988, que desde seu preâmbulo determina que o Estado democrático instituído é destinado a assegurar o desenvolvimento da sociedade31; tais exemplos reforçam o entendimento acerca da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento como marco mais significativo, na ordem normativa internacional, quanto ao reconhecimento deste direito. Disposta em um longo preâmbulo e 10 artigos, a Declaração de 1986 acomoda as preocupações dos países desenvolvidos sem deixar de lado os requerimentos dos países em desenvolvimento, e justamente por este aspecto um tanto diplomático verifica-se a opção de não enfrentar questões que permanecem complexas até os dias atuais, como a questão da efetivação do direito ao desenvolvimento. Mas nem por isso a Declaração perde importância; ao contrário, é a Declaração de 1986 que cristaliza de forma mais contundente a preocupação da sociedade internacional com a questão do desenvolvimento, deixando de lado polaridades econômicas levantadas pelas discussões quando da determinação na Nova Ordem Econômica Internacional. A Declaração determina o ser humano como essencial no processo de desenvolvimento, seu principal participante e beneficiário e para tanto é essencial a garantia e efetivação do seu conjunto de direitos humanos, inclusive do direito ao desenvolvimento, reconhecido pelo texto como um direito humano inalienável. No extenso preâmbulo da Declaração, as Nações Unidas reconhecem que desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político que busca o bem-estar de todos os indivíduos a partir



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pais: i) fortalecimento da democracia; ii) boa governança econômica e iii) reforço de valores morais e jurídicos (FRIED, 2004, p. 12). Jeffrey Sachs (2005, p. 217-218) também destaca o Consenso de Monterrey como uma das mais importantes conferências realizadas após o início da Rodada Doha para o Desenvolvimento da OMC. Sobre o desenvolvimento na Constituição de 1988: LOCATELLI, Liliana. Desenvolvimento na Constituição Federal de 1988. In: BARRAL, Welber (Org.). Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005, p. 95-118; SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004.

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de sua participação ativa e livre no desenvolvimento e na distribuição dos benefícios alcançados neste processo32. Outro ponto que é destaque no preâmbulo da Declaração é o reconhecimento de obstáculos ao processo de desenvolvimento, dentre estes a negação dos direitos humanos; a Declaração de 1986 reforça o caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos, considerando que todas as categorias destes direitos devem ser implementadas, promovidas e protegidas sem distinção, reforçando o entendimento de que o respeito e garantia de determinados direitos humanos não podem justificar a negação de outros. As questões mais controversas previstas na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 assim o são porque o texto estabelece responsabilidades e prerrogativas, mas não esclarece como essas serão exercidas, ou seja, falta à Declaração de 1986 a previsão de um mecanismo de enforcement. A Declaração de 1986 pode parecer retórica e até mesmo repetitiva, mas é importante principalmente na caracterização do direito ao desenvolvimento como um direito humano; além disso, a Declaração deixa claro o que talvez seria um novo leitmotiv para as Nações Unidas: a redução das desigualdades e da pobreza, objetivos centrais também do processo de desenvolvimento. A Declaração afasta a ideia economicista que vincula desenvolvimento a crescimento econômico e não retoma temas que foram exaustivamente tratados pelas resoluções anteriores à Declaração como relacionados ao desenvolvimento (comércio internacional, transferência de recursos econômicos, constituição de fundos econômicos internacionais para promoção do desenvolvimento). Não que tais temas devam ser afastados do processo, mas não constituem mais a única hipótese de promoção do desenvolvimento. A Declaração não apenas confirma o direito ao desenvolvimento

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A Declaração de 1986 reforça o papel do indivíduo como sujeito central no processo de desenvolvimento ao mesmo tempo em que permite que o ser humano deixe de ser visto como mero fator de produção. O indivíduo é determinante no processo de desenvolvimento não por sua utilidade ao longo do processo, mas muito principalmente por ser o sujeito determinante do mesmo (DELGADO, 2001, p. 92).

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como direito humano; estabelece que o desenvolvimento é um processo em que todos os direitos humanos devem ser garantidos e realizados. A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento não afasta o caráter indissociável e interdependente dos direitos humanos. Considera o desenvolvimento um processo social, econômico, cultural e político, portanto, não há porque tratar o direito ao desenvolvimento como um direito humano diferenciado dos demais. A leitura isolada da Declaração de 1986 pode parecer suficiente para a compreensão do conteúdo e dos objetivos do direito ao desenvolvimento, mas é em conjunto com o ordenamento internacional garantidor dos direitos humanos que salta aos olhos a coerência e o cabimento deste direito juntamente com outras obrigações internacionais assumidas. Desde a Carta das Nações Unidas, passando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, pelo Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, pela Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados e pela Declaração e Programa de Ação de Viena que o sistema internacional de proteção e garantia dos direitos humanos caminha de maneira idêntica: há necessidade de cooperação internacional a partir dos Estados, organizações internacionais, indivíduos e organizações sociais a fim de promover o desenvolvimento como processo de garantia dos direitos humanos e igualdade de oportunidades. Em verdade, o Direito Internacional vem se desenvolvendo no sentido de criar para os Estados obrigações exigíveis com o intuito de adotar políticas e programas capazes de garantir bem-estar econômico, social e cultural ainda que em níveis mínimos (TRUBEK, 1984, p. 207). De uma maneira ou de outra estes instrumentos normativos indicados voltam-se para estes objetivos. A partir de 1993, quase todos os órgãos e programas das Nações Unidas apresentam determinações específicas sobre a promoção do direito ao desenvolvimento e dos direitos humanos; na Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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verdade, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento como um direito humano é responsável mesmo pela renovação desta temática junto aos organismos das Nações Unidas, que promoveram a partir desta integração ações interdisciplinares e relacionadas. O Banco Mundial, por exemplo, reconhece especificamente que ao promover programas relacionados ao desenvolvimento, o objetivo central é o de criar condições, principalmente a partir dos projetos financiados pela instituição, para que os indivíduos possam efetivamente dispor dos direitos humanos (WORLD BANK, 1998). De maneira geral projetos financiados pelo Banco Mundial estão associados mesmo indiretamente, às questões relacionadas aos direitos humanos, como os que tratam especificamente de redução da pobreza, investimentos em projetos de saúde e educação, crescimento econômico e aumento de renda, iniciativas voltadas exclusivamente para os países em desenvolvimento e a redução de suas dívidas externas, ações voltadas para implementação de mecanismos de boa governança e combate à corrupção, financiamentos de programas de acesso ao crédito e à justiça, programas de capacitação para as mulheres em países com problemas de desigualdade de gênero acentuada e programas de redução de trabalho infantil (WORLD BANK, 1998, p. 14). Reconhecer o direito ao desenvolvimento como um direito humano é determinante também para o trabalho do PNUD, que alia ao seu objetivo central a promoção e a proteção dos direitos humanos. Em relação à promoção dos direitos humanos, as principais determinações do PNUD dizem respeito: i) ao apoio institucional às políticas nacionais de desenvolvimento; ii) a efetivação de estratégias de aproximação de tais políticas com a questão dos direitos humanos (human rights based approach); iii) a assistência institucional às iniciativas locais de promoção dos direitos humanos que envolvam a conscientização da sociedade civil para esta questão; e iv) apoio às iniciativas de criação de instituições locais voltadas para os direitos humanos (UNDP, 2007).

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Considerando-se que o PNUD é um programa estratégico das Nações Unidas quanto à promoção do desenvolvimento, é interessante ressaltar que o vínculo entre o objetivo central do programa e os direitos humanos apenas reforça o caráter indissociável entre os dois tópicos (direitos humanos e desenvolvimento). Não apenas o Banco Mundial e o PNUD, mas também outros organismos e programas das Nações Unidas direta ou indiretamente se voltam para o direito ao desenvolvimento uma vez que procuram sempre afirmar o compromisso da organização com a questão dos direitos humanos, afastando a tendência de deixar este assunto para os órgãos especializados33; neste ponto o direito ao desenvolvimento desempenha um papel fundamental: ao se estabelecer como meta deste ou daquele programa ou agência a promoção dos direitos humanos, as Nações Unidas buscam também a garantia do direito ao desenvolvimento, vez que o reconhecimento dos direitos humanos é um primeiro passo na concretização do processo de desenvolvimento proposto pela organização. Em sendo o direito ao desenvolvimento um direito humano, ou seja, atribuindo-lhe as mesmas garantias e valorações que são atribuídas aos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, não há porque desconsiderar o direito ao desenvolvimento dos programas relacionados aos diretos humanos. É fato que a sociedade internacional institucionalmente organizada reconhece o direito ao desenvolvimento como um direito humano e busca não apenas a divulgação deste reconhe

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Há no sistema da ONU pelo menos um órgão dedicado exclusivamente aos direitos humanos: o Conselho de Direitos Humanos, presidido pelo Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos. O Conselho foi estabelecido pela A/RES/60/251, de 03 de abril de 2006 e substitui a antiga Comissão de Direitos Humanos. Há ainda seis órgãos criados em virtude dos tratados de direitos humanos que supervisionam a implementação dos tratados de direitos humanos: i) Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; ii) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial; iii) Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; iv) Comitê contra a Tortura; v) Comitê dos Direitos da Criança; vi) Comitê para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares.

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cimento como também a efetivação deste direito, mas é necessário que esse reconhecimento também seja estendido aos outros atores da coletividade internacional, além das organizações intergovernamentais e dos Estados. Esse reconhecimento junto a estes atores se faz necessário na medida em que deve ser promovido um sistema de divisão de responsabilidades quanto à realização do direito ao desenvolvimento junto aos atores privados. Em razão da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, o direito ao desenvolvimento acarreta não apenas no plano normativo, mas também no plano operacional, obrigações erga omnes, e desta forma é essencial a efetivação de normas internas e internacionais voltadas para o combate de abusos econômicos vinculados “à concentração e às práticas comerciais restritivas, através de instrumentos que permitam a transparência do mercado, assim como a correção de suas deficiências” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 56). Reconhecido como inalienável e integrante de toda a sistemática internacional relacionada aos direitos humanos, o direito ao desenvolvimento é um direito do indivíduo e dos Estados, de caráter global e multidimensional, o que significa dizer que há mais de um componente na definição do objeto do direito ao desenvolvimento, considerando-se as dimensões civis, política, econômica e social dos direitos humanos. A principal consequência do reconhecimento do direito ao desenvolvimento como um direito humano parece ser a desvinculação do conceito de desenvolvimento de seu viés exclusivamente economicista, na medida em que ações e programas internacionais aproximam o conceito de desenvolvimento de dimensões sociais mais próximas da temática dos direitos humanos que das relações econômicas internacionais. No entender de Cláudia Perrone-Moisés (1998, p. 57), devese buscar uma visão humanista de desenvolvimento, afastando-se a sociedade internacional de uma perspectiva exclusivamente econô-

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mica; certamente a ideia que melhor atende a esta proposta é a que determina o desenvolvimento como componente do conjunto dos direitos humanos, levando-se em consideração todas as garantias (e dificuldades) que a tais direitos estão associadas. Confirmar o direito ao desenvolvimento como um direito humano é fazer com que este último se torne, ao lado do primeiro, um paradigma e um referencial ético capaz de orientar a ordem internacional, o que já é previsível a partir do intenso positivismo universal relacionado aos direitos humanos, vez que há um grande número de tratados sobre a matéria. Tais elementos normativos não deixam portanto, de ser consequência deste referencial ético compartilhado pelos Estados e pelas organizações internacionais.

III

A QUESTÃO DA TITULARIDADE E EFETIVIDADE DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

O direito ao desenvolvimento tende a ser considerado como um direito de titularidade mista, mas não pode ser implementado somente a partir do consenso de vontades individuais. O que se espera na efetivação do direito ao desenvolvimento é que haja um acordo de vontades individuais e coletivas. Avaliando-se que desenvolvimento implica ação coletiva, atribuir ao direito ao desenvolvimento titularidade essencialmente individual, na tentativa de preservar a essência teórica dos direitos humanos, é determinar que pode haver a partir de então, apenas melhoria da condição individual, mas não desenvolvimento como um processo. O direito ao desenvolvimento pode ser considerado um direito individual em sua origem e em seu fim, mas um direito coletivo em sua implementação, o que ratifica a determinação da Declaração de 1986 ao dispor sobre a pessoa humana como sujeito central e principal destinatário do processo de desenvolvimento e atribuir aos Estados a responsabilidade de formulação de políticas adequadas para o desenvolvimento.

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O artigo 1º da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 determina que o direito ao desenvolvimento é um direito de todo ser humano e de todos os povos, refletindo assim uma faceta individual e coletiva deste direito, ao estabelecer que o direito ao desenvolvimento é um direito de todo ser humano, dos povos e das nações (Preâmbulo). É certo que não há identificação específica dos Estados como titulares deste direito, porém no artigo 2º, § 3, a Declaração estende aos Estados o papel de protagonista no processo de promoção do desenvolvimento. Em nenhum momento a Declaração se afasta da ideia de tomar o indivíduo como sujeito principal e destinatário direito do processo de desenvolvimento; portanto, a discussão sobre a titularidade acaba por ser superada quando se vinculam os interesses do Estado com os dos indivíduos, e de fato é quase impossível encontrar Estados que deliberadamente não tomem a promoção do desenvolvimento como um de seus objetivos principais, pelo menos do ponto de vista formal. Quando da formulação e definição do conceito de direito ao desenvolvimento na esfera internacional, nas décadas de 1970 e 1980, este foi visto pelos representantes dos países em desenvolvimento como um direito exclusivamente coletivo, de titularidade atribuída aos povos e aos Estados. Mas este posicionamento se mostrou contrário à própria dinâmica dos direitos humanos, que não são exclusivamente direitos individuais ou direitos coletivos; podem ser os dois, ao mesmo tempo. Até mesmo porque em muitos casos os direitos humanos tidos como individuais apenas podem ser satisfeitos em um contexto coletivo. No caso do direito ao desenvolvimento, aquele que detém o direito pode ser uma coletividade, como o Estado, mas o beneficiário direto deve ser o indivíduo; há um relacionamento estreito entre a coletividade e o indivíduo, tanto é que a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas admite, na Resolução 5, de 02 de março de 1979, e na Resolução 43, de 14 de março de 1985,

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que o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto dos Estados como dos indivíduos. A opção que leva a considerar o direito ao desenvolvimento como direito de titularidade mista (individual e coletiva) é a que parece mais coerente, já que a igualdade de oportunidades deve ser considerada prerrogativa tanto dos Estados como dos indivíduos (A/ RES/70/2626, § 12). Considerar que o direito ao desenvolvimento pode ser um direito exclusivamente individual ou exclusivamente coletivo pode ser um equívoco, uma vez que não há porque determinar que os interesses dos indivíduos sejam contrários ou estejam sempre em conflito com os interesses dos Estados. Sendo assim, pode-se classificar o direito ao desenvolvimento como um direito e interesse difuso, vez que não há determinação dos titulares desse direito de maneira individualizada. Direitos e interesses difusos são caracterizados como direitos que se relacionam a um número indeterminado de pessoas; são direitos de natureza indivisível, vez que não se pode determinar exatamente o titular da prestação jurisdicional devida (MARQUES, 2006, p. 975). José Rubens Morato Leite (1996) aposta na indeterminabilidade dos sujeitos como elemento central para atribuir a determinada pretensão a qualificação de interesse difuso, e agrega a essa determinação algumas outras características que são perceptíveis quando se trata da exigibilidade do direito ao desenvolvimento. Para o autor, os direitos ou interesses difusos, além de serem indivisíveis, admitem pluralidade de sujeitos vinculados por uma circunstância de fato tamanha que chega a se confundir com a comunidade. Outra característica apontada pelo autor que serve para a caracterização do direito ao desenvolvimento como direito difuso é a indivisibilidade ampla, ou seja, “a satisfação de um só implica a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui a lesão da inteira coletividade” (LEITE, 1996, p. 33). O entendimento de Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo (1996, p. 204) confirma sobremaneira a determinação do direito Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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ao desenvolvimento como direito de terceira dimensão e portanto, como direito difuso: E, por fim, surgiram os direitos difusos ou metaindividuais, chamados de direitos de terceira geração. Podem ser facilmente confundidos com os anteriores por serem também sociais, mas ocorrem algumas distinções. Nasceram em decorrência de determinadas situações, que acabam por prejudicar o ser humano, mas da referida relação não se pode inferir uma ligação imediata entre o interesse e o bem a ser tutelado. Este bem é indivisível. Isto significa que a sua esfera de atuação permeia o campo de liceidade de um só indivíduo (transindividualidade). Disto decorre que o objeto é indisponível, pois satisfaz uma coletividade. Mas não é uma coletividade certa e sim, indeterminada, ligada por uma união de fato. Daí dizer-se que o sujeito é indeterminado.

Desta forma, é estendendo ao indivíduo a possibilidade de buscar o direito ao desenvolvimento através de procedimentos de alcance coletivo que se favorece o interesse da própria coletividade, portanto dos Estados, que a partir de então são capazes de realizar efetivamente este direito, uma vez que o direito individual implica necessariamente o direito de todos, como expresso no art. 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em síntese, o direito ao desenvolvimento é um direito dos indivíduos, de toda a humanidade e dos Estados; seu caráter multidimensional em relação à titularidade é reforçado pela Declaração de 1986, quando considera que os aspectos civis, econômicos, sociais, culturais e políticos do desenvolvimento são indivisíveis e complementares. Faz-se, portanto, necessária a revisão das disposições relativas às relações internacionais, principalmente de caráter econômico, a fim de considerar o direito ao desenvolvimento como um direito que apenas se efetiva se houver a participação dos Estados, dos indivíduos e da comunidade internacional como um todo. 140

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Além da titularidade, outra questão que diz respeito às pretensões relacionadas com o direito ao desenvolvimento é a problemática da efetivação. Não só quanto ao direito ao desenvolvimento, mas aos direitos humanos como um todo. Tais direitos podem coexistir como um padrão moral que apesar de não prever sanção legal ou contraprestação imediata, cristaliza-se num sistema eficiente para o convencimento dos responsáveis em implementá-los (Estados, por exemplo) quanto à necessidade de concessão e previsão destes direitos (SENGUPTA, 1999, p. 77). Reconhecer um direito como direito humano confere à implementação do mesmo prioridade ante às instituições nacionais e internacionais, obrigando os Estados e a comunidade internacional. Com fundamento nestas razões é que se pode admitir que o direito ao desenvolvimento é um direito humano, vez que adotado pela sociedade internacional através de consenso, sendo identificados neste processo os responsáveis pela implementação deste direito (os Estados, as agências e instituições nacionais e internacionais, a sociedade civil). Arjun Sengupta (1999, p. 77) não prevê outra classificação para o direito ao desenvolvimento que não como direito humano, e indica ser necessário apenas que programas e procedimentos para a implementação deste direito sejam seguidos pelos responsáveis; afirma que se faz necessária uma base legislativa formal para que o “padrão moral” associado aos direitos humanos e ao direito ao desenvolvimento se torne legalmente obrigatório: A crítica confunde direitos humanos com direitos legais. Direitos humanos baseiam-se em padrões morais com vistas à dignidade humana, possuindo diversas maneiras de consecução, dependendo da aceitabilidade da base ética das demandas. Isso, é claro, não ofusca a importância da utilidade desses direitos humanos traduzidos em direitos legais sob a legislação. Na verdade, toda tentativa deveria ser feita no sentido de formular e adotar instrumentos legislativos apropriados para assegurar a realização das demandas de um di-

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reito humano, uma vez que seja aceito através do consenso. (SENGUPTA, 1999, p 77)

Guilherme Amorim Campos da Silva (2004, p. 50) sustenta opinião semelhante à de Sengupta. Para o autor brasileiro, as determinações relativas ao direito ao desenvolvimento em âmbito internacional devem servir como base interpretativa, uma vez que os Estados são os destinatários das normas internacionais. Mesmo que o viés positivo destas normas seja programático, a exigência e promoção das mesmas tornam-se essenciais e indispensáveis. Na tentativa de efetivar e garantir o exercício dos direitos humanos e do direito ao desenvolvimento, há ações de âmbito interno capazes de promover o desenvolvimento, principalmente através de mudanças institucionais, mas esta tarefa pode se tornar impossível sem cooperação internacional. Mesmo as ações mais comuns, atreladas ao conceito de crescimento econômico, como a questão do acesso aos mercados através da liberalização comercial, incentivos relacionados ao aumento de investimentos estrangeiros em países em desenvolvimento, auxílio técnico a reformas econômicas institucionais e assistência em momentos de crise cambial ou financeira, acabam por favorecer ainda que indiretamente o processo de desenvolvimento em seu sentido mais amplo. O Centro para o Desenvolvimento e Direitos Humanos, instituição de pesquisa situada em Nova Déli e liderada pelo professor e pesquisador indiano Arjun Sengupta, propõe duas maneiras de concretizar ações capazes de promover o desenvolvimento que acabariam por favorecer a coletividade reconhecida como refugiados econômicos (2004, p. 64): através de processos multilaterais de cooperação, onde os países desenvolvidos, as organizações internacionais e instituições de caráter privado podem promover em conjunto ações que favoreçam a qualificação institucional dos países em desenvolvimento ou por meio de ações bilaterais específicas, de país a país, que também promovem a qualificação institucional ou

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colaboram para a realização do direito ao desenvolvimento através de ações direcionadas aos componentes desse direito. Em caráter internacional, algumas questões apontadas por Cláudia Perrone-Moisés (1999, p. 191) devem ser consideradas: i) o desenvolvimento dos Estados depende sobremaneira da sociedade internacional; ii) a interdependência leva não só à aproximação de vantagens econômicas como à aproximação dos problemas ligados ao desenvolvimento; iii) o desenvolvimento em escala internacional enfrenta problemas ligados às relações econômicas desvantajosas e exclusivistas. De maneira geral, as questões se estendem primariamente aos Estados, porque as organizações de iniciativa privada não foram taxativamente incluídas como responsáveis pelas questões do desenvolvimento, ainda que os tratados e normas sobre o tema disponham que a promoção do desenvolvimento é dever de todos. Uma vez que não há uma definição direta sobre o papel das organizações da iniciativa privada na promoção do desenvolvimento, Claudia Perrone-Moisés (1999, p. 181-194) entende ser necessário estabelecer normas tanto no plano interno como no plano internacional a fim de se combater excessos econômicos vinculados à concentração de riqueza e quanto à restrição do acesso ao mercado internacional. As regras deveriam ser propostas no sentido de corrigir deficiências e falhas de mercado, considerando-se essencial também a transparência nas relações econômicas internacionais. A cooperação internacional necessária para enfrentar a questão do desenvolvimento pode ser considerada através da formulação de um contrato internacional pactuado entre Estados e demais atores da sociedade internacional, que toma forma a partir de um modelo jurídico derivado do direito anglo-saxão denominado partnership. Seria um contrato flexível, a partir do qual se estabelece uma parceria não apenas entre Estados e organizações internacionais intergovernamentais, mas também com organizações não governamentais, sociedades privadas nacionais, associações de classe e outros grupos.

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Internamente, a primeira questão que se pode levantar é a das políticas nacionais de desenvolvimento que via de regra são estabelecidas pelas instituições financeiras internacionais e pelos países desenvolvidos. Porém, tais estratégias podem incorrer em erro ao desconsiderar particularidades locais e regionais. Ao aproximar políticas de desenvolvimento da perspectiva dos direitos humanos, há que se considerar o direito à autodeterminação dos povos, considerando-se que não há um único modelo de sucesso a ser seguido (PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 190). Cada país é soberano para determinar o seu modo de produção e regime econômico, como estabelece o art. 1º do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A relação entre direito ao desenvolvimento e os refugiados econômicos é clara: tais pessoas deixam seus países em busca da garantia e efetivação de direitos humanos essenciais. Não se trata apenas da busca por melhor qualidade de vida. Os refugiados econômicos não têm escolha no país de origem. Daí a procura por um lugar onde condições mínimas de sobrevivência lhe sejam asseguradas, vez que em suas localidades de origem não têm sequer direito à alimentação, trabalho e moradia dignos. Sendo assim o direito ao desenvolvimento é uma necessidade a ser efetivada e que merece proteção internacional. Considerando tais questões é que se associa a busca dos refugiados econômicos à busca pela efetivação do direito ao desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS De há muito se sabe que a grande questão junto aos sistemas nacionais e internacionais de direitos humanos não é a positivação dos mesmos ou mesmo o seu reconhecimento, mas sim a sua garantia e efetivação. E é neste cenário de busca pela concretização dos direitos humanos que se encontram os refugiados econômicos e sua relação com o direito ao desenvolvimento.

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Embora não reconhecidos como categoria formal de refugiados, e desta forma protegidos pelas determinações da Convenção de 1951, os chamados refugiados econômicos – pessoas que deixam seus países de origem não apenas em busca de melhores condições de vida, mas sim em busca da efetivação de suas necessidades mais básicas como ser humano – não podem nem ser deixados à margem do arcabouço de proteção garantido à pessoa humana, ainda que a primeira responsabilidade seja de seus Estados de origem, tal seja estabelecer políticas públicas e ações positivas no intuito de garantir aos seus cidadãos condições de sobrevivência digna. Definir o alcance da expressão refugiados econômicos é por si só uma questão delicada, vez que não são considerados refugiados em sentido clássico e nem migrantes comuns, pois lhes falta o elemento volitivo que caracteriza as migrações em sentido amplo. Enquanto o migrante deixa seu país de origem apenas em busca de melhores condições de vida, o refugiado deixa seu Estado por uma questão de sobrevivência. Considerando tal fato, há meios de estender aos refugiados econômicos proteção internacional diferenciada da destinada aos refugiados em sentido clássico. Mesmo não havendo o bem fundado temor de perseguição ou as obrigações formalmente assumidas pelos Estados signatários da Convenção de 1951, os Estados assumiram junto ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos obrigações outras que dizem respeito a todos que estejam sob seus territórios. O que buscam, pois, os refugiados econômicos é, em síntese, representado pelo direito ao desenvolvimento. Considerado direito humano desde a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, o direito ao desenvolvimento faz parte de um conjunto de obrigações e deveres assumidos pelos Estados junto à sociedade internacional. É fato que a garantia e efetivação do direito ao desenvolvimento perpassa por uma série de questões delicadas e mesmo difí-

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ceis, desde o simples reconhecimento deste direito até as medidas necessárias para a efetivação do mesmo. De início pode-se questionar como se pleiteia tal direito, ou quem pode fazê-lo, vez que a titularidade do direito ao desenvolvimento não é simplesmente resolvida e parece estranho que o indivíduo vá até uma corte internacional litigar em busca de “seu” direito ao desenvolvimento. Considerando tal fato é que se estabelece a titularidade coletiva deste direito, podendo ser enquadrado o mesmo como um dever e obrigação do Estado, através de prestações positivas, bem como um compromisso internacional assumido quando o ente estatal reconhece a indissociabilidade dos direitos humanos. Sabe-se que a problemática da efetivação dos direitos humanos é tema de longas discussões e que se está longe da garantia dos mesmos de maneira satisfatória, mas nem por isso os estados podem ignorar as pretensões neste sentido, seja de seus nacionais seja de estrangeiros.

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tional Law of the Inter-American Juridical Commmittee. Rio de Janeiro, Brazil, August 2004. LOCATELLI, Liliana. Desenvolvimento na Constituição Federal de 1988. In: BARRAL, Welber (Org.). Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005. p. 95-118. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. O papel das associações civis na defesa dos interesses difusos. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996. MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996. p. 201-214. MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. MORATO LEITE, José Rubens. Interesses meta-individuais: conceitos, fundamentações e possibilidade de tutela. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996. p. 27-44. PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito ao desenvolvimento e investimentos estrangeiros. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. SACHS, Jeffrey D. The end of poverty: how we can make it happen in our lifetime. London: Penguin Books, 2005. SENGUPTA, Arjun. The right to development as a human right. François-Xavier Bagnoud Center for Health and Human Rights, Harvard School of Public Health, 1999. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2004. SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004. TRUBEK, David. Economic, social and cultural rights in the Third World: human rights law and human needs programms. In: MERON, Theodor (Ed.). Human rights in International Law: legal and policy issues. Oxford: Claredon Press, 1984. UNDP. Protecting and promoting the universal values of human rights and the rule of law. Disponível em: . Acesso em: jul. 2007. WORLD BANK. Development and human rights: the role of the World Bank. Washington, DC: The International Bank for Reconstruction and Development/The World Bank, 1998.

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Artigos Apresentados na 4ª Semana de Direitos Humanos

PROGRAMA EUROSOCIAL: estrutura e resultados34/35 Stela Floriano Ayres Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina – 4a. Fase. ([email protected])

Resumo: O presente trabalho objetivo realizar uma avaliação a respeito do Programa EUROsociAL, lançado no âmbito da Associação Estratégia Birregional América Latina, Caribe e União Europeia, com intuito de corroborar para a coesão social na América Latina. Considerando-se que a região caracteriza-se pela maior desigualdade social do mundo e, portanto, o desafio estratégico do Programa, este trabalho estuda sua estrutura, as instituições envolvidas, atividades realizadas e a efetividade de seus resultados. Sumário: 1. Introdução. 2. O EUROsociAL. 2.1. O EUROsociAL I. 2.2. O EUROsociAL II. 3. Resultados. 3.1. Atividades. 3.2. Instituições. 3.3 Pessoas. 4. Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO Nos últimos 60 anos, os temas de cunho social ganharam grande relevância nas agendas políticas nacionais e notoriamente na agenda internacional. Se a Declaração Universal dos Direitos Hu

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Trabalho desenvolvido com apoio do CNPq e orientado pela Profa. Dra. Karine de Souza Silva. Esse relatório não possui caráter official, pois não foi desenvolvido por responsáveis legais do programa.

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manos, adotada pela Organização das Nações Unida, em 1948 consagrou-se como um marco mundial para assegurar a dignidade de todo ser humano, nos anos seguintes multiplicaram-se os acordos e programas focados em combater os problemas sociais que impedem a plenitude desses direitos36. Especificamente, no âmbito da Associação Estratégica Birregional América Latina, Caribe e União Europeia, durante a Cúpula de Chefes de Estado e Governo de Guadalajara, em 2004, priorizou-se o tema da coesão social como objetivo último das políticas de erradicação pobreza, desigualdade e exclusão social. Isso porque, tais mazelas corroboram diretamente para dificultar a coesão social em uma sociedade, e por sua vez, a ausência dessa coesão caracteriza-se como um grande desafio às políticas públicas, visto que a disparidade de realidades demanda um complexo planejamento das mesmas. Por isso, nessa mesma cúpula lançou-se o Programa EUROsociAL, que caracteriza-se primordialmente pela troca de experiências entre instituições de políticas públicas dentro de cinco grandes setores temáticos: Educação, Emprego, Fiscalidade 37 e Saúde. Assim, o presente trabalho apresenta um estudo a respeito desse Programa, sendo estruturado da seguinte forma: na primeira seção, expõe-se uma breve introdução sobre assunto; na segunda seção, trata-se das estruturas e objetivos do Programa EUROsociAL I e II; na terceira seção, fala-se dos resultados decorrentes das atividades implementadas; e na quarta seção, expressa-se uma conclusão analítica derivada das informações apresentadas nas seções anteriores, abarcando as dificuldades e contribuições do Programa.

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Dentre esses direitos inclui-se o direito de liberdade, educação, padrão de vida, entre outros. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A tradução correta do termo “fiscalidad” para o português seria “sistema tributário”. Entretanto utilizara-se o termo Fiscalidade visando a melhor aproximar o sentido da palavra em sua constituição original.

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O EUROsociAL

O EUROsociAL é a mais importante iniciativa da Comissão Européia em matéria de cooperação técnica com países da América Latina para o fomento da coesão social em ambas as regiões. Sua relevância temática relaciona-se ao fato de a América Latina ser a região mais desigual do mundo, além de possibilitar colocar em pratica mecanismos de cooperação condizentes com as realidades dos países de renda média 38. A partir Cúpula de Chefes de Estado e Governo de Guadalajara América Latina, Caribe e União Europeia39, em 2004, os temas sociais receberam considerável proeminência no âmbito da cooperação birregional, sendo conferido ao tópico da coesão social – presente no artigo 50 da Declaração de Guadalajara – o status prioritário dentroda parceria estratégica: Nós priorizamos a coesão social como um dos principais elementos de nossa associação estratégica birregional e nos comprometemos a cooperar para erradicar a pobreza, a desigualdade e a exclusão social. Fazemos um chamamento à Comissão Européia, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, à Comissão Econômica para América Latina e o Caribe, ao Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Europeu de Investimento e ao Banco Mundial para que contribuam a alcançar este objetivo.40

Na mesma ocasião, fora lançado o Programa EUROsociAL com objetivo geral, a médio e longo prazo, de reorientar as estratégias de políticas sociais e inovar os mecanismos de administração dos Estados latinoamericanos no sentido de torná-las

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Folleto EUROsociAL II. Disponível em http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial -II/tiki-list_file_gallery.php?galleryId=9. Acesso em: 18 set. 2011. EUROPE UNION. DECLARATION OF GUADALAJARA. III Cúpula América Latina, Caribe e União Européia, México. Maio de 2004. Acesso em: 10 set. 2011. Idem.

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mais eficazes ao atuarem como vetores dos processos de coesão social41. A principal atividade desenvolvida pelo EUROsociAL, e que o caracteriza, são os intercâmbios de experiências entre instituições de políticas públicas e seus administradores42, transferindo lições e boas práticas para formulação, execução e gestão de políticas públicas que repercutem sobre o tema da coesão social. A transferência pode ocorrer a partir de países europeus ou de países latino-americanos, por meio de formação não regular (presencial ou à distância), através de estágios ou visitas, mediante assistência técnica de especialistas, ou até mesmo por uma combinação destas modalidades. Entende-se por experiência qualquer plano, ação, projeto ou política, executado por uma autoridade ou instituição pública que tenha como finalidade suprir deficiências dos serviços públicos. Essas experiências podem ser, portanto, negativas ou positivas dependendo do contexto sociopolítico e institucional em que foram empregadas, e servem de aprendizagem ou exemplo para os demais atores político-sociais43. Logo, as atividades do programa são essencialmente dirigidas para os tomadores de decisões políticas, pessoas e coletivos influentes na formulação de políticas sociais, intelectuais, líderes profissionais, universidades, institutos de pesquisa, organizações de trabalhadores e sociedade civil, além de funcionários de ministérios, agências e demais instituições públicas responsáveis pela execução de políticas e programas sociais44. Esses atores se organizam em redes setoriais constituídas por quaisquer agentes europeus ou lati

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Programa EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 28 jul 2011. Ibidem. Disponível em: . Acesso em: 09 jul. 2011. Ibidem. Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2011. Programa EUROsociAL Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2011.

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no-americanos que manifestem interesse e comprometimento pela causa e objetivos do programa. Isso engloba não apenas entidades da administração pública como também organismos de direito privado sem fins lucrativos e com vocação ao serviço público de atividades, cuja atuação e experiências sejam condizentes com a finalidade do programa

2.1 O eurosocial I Em 2005, iniciou-se a primeira etapa do projeto, o EUROsociAL I, encerrada em junho de 2010. As atividades, até 2009, eram sustentadas pelo orçamento total do EUROsociAL I que ultrapassa 36 milhões de euros, dos quais oitenta por cento são financiados pela Oficina de Cooperação da Comissão Européia (EuropAid) e, o restante por instituições adjuntas em parceria com fundos da Agência Espanhola de Cooperação Internacional e do Ministério dos Assuntos Exteriores da França, por meio da France Cooperation Internationale45. No website do EUROsociAL – modificado em setembro de 2011 para abordar, predominantemente, informações relativas ao EUROsociAL II – consta que o Programa é divido em cinco grandes “eixos temáticos que correspondem aos interesses e prioridades dos governos latinoamericanos”: Justiça, Educação, Emprego, Fiscalidade e Saúde. Cada um desses setores é constituído por um consórcio de instituições européias e latino-americanas responsáveis pela promoção de uma série atividades comuns e transversais, e apoiadas pelas redes setoriais46. A coerência interna das instituições é garantida por um Comitê Intersetorial de Coordenação e Orientação (CICO) que inclui representantes de todos os consórcios, o qual funciona de maneira

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Programa EUROsociAL Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2011. Ibdem. Disponível em: . Acesso em 28 jul. 2011.

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permanente através de uma Secretaria Executiva ou Oficina de Coordenação. Os delineamentos estratégicos do Programa são fixados por um Comitê Conjunto, que reúne a Comissão Européia, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Comissão Econômica para América Latina (CEPAL) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)”47. O Comitê Conjunto também é responsável por avaliar a pertinência das ações, com o Programa e com os Objetivos do Milênio, a respeito de outras iniciativas de desenvolvimento em andamento na região. Os relatórios e as informações das atividades em andamento, ou desenvolvidas e concluídas nesse período (2005-2010), estão disponíveis para consulta pública no Sistema de Informação de Atividades de EUROsociAL (SIA). Nesse website, os relatórios e informações, relacionadas aos países e instituições envolvidos, podem ser pesquisadas em quatro tipos de buscadores: de atividades, de instituições, de participantes e de documentos. Ainda que no website do Programa conste que o EUROsociAL seja uma iniciativa voltada para coesão social na América Latina, o SIA registra a existência de atividades desenvolvidas em outras regiões do mundo, como Oriente Médio, África, e Ásia, que contaram com a presença de países latino- americanos também. Esse sistema “recorre à informação e ao documento das atividades do Programa EUROsociAL centrando-se no intercâmbios de experiências, ainda que seja configurado para recorrer a qualquer atividade sugerida pelo Programa (intercambio de experiências, projetos piloto, atividades de sensibilização, de mobilização e animação de redes, etc.)”48 e introduzida no portal. Dessa forma, “o nível de informação de cada atividade pode variar conforme a fonte de origem”49.

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Programa EUROsociAL. Tradução nossa. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2011 SIA. Disponível em: . Tradução nossa. Idem.

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A busca por relatórios e evidências das atividades pelo Programa revela que os documentos disponíveis, na verdade divergem muito uns dos outros, em termos de detalhamento e objetivos alcançados, bem como de algumas informações numéricas, principalmente, presentes no website oficial do EUROsociAL. As atividades do EUROsociAL II ainda não começaram a ser atualizadas.

2.2 O eurosocial II O EUROsociAL II foi lançado na Cúpula ALC-UE de Madrid (de 15 a 18 de maio de 2010), como um dos cinco novos programas regionais aprovados no marco do Plano de Ação50. É importante frisar que essa segunda etapa do Programa teve início em dezembro de 2010, quando a Comissão Europeia concedeu um subsídio de 40 milhões de euros para execução do “Programa Regional para a Coesão Social na América Latina – EUROsociAL II (2011-2014)” à organização responsável pela Agência de Coordenação EUROsociAL, a Fundação Internacional e Ibero-americana de Administração e Políticas Públicas (FIIAP)51, que coordena um consórcio de instituições européias e latino-americanas na execução das atividades definidas pelo Programa. O consórcio é composto por um núcleo de coordenação de parceiros: três latino-americanos (Agencia Presidencial para la Acción Social y para la Cooperación Internacional, Colombia; ENAP – Escola Nacional de Administração Pública, Brasil; e SICA – Sistema de la Integración Centroamericana, El Salvador) e três instituições europeias (IILA- Istituto Italo Latinoamericano, Itália FEI – France Expertise Internationale, França; GIZ – Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit, Alemanha; e FIIAP, Espanha), e mais 80 sócios operativos e entidades colaboradoras, como anuncia o portal do EUROsociAL II52.

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EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2011. Instituto de Estudios Fiscales. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2011..

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Os principais atores envolvidos no Programa correspondem a Instituições e Governos Latinoamericanos comprometidos em realizar reformas políticas que exerçam impacto sobre a coesão social. Nesse sentido, o EUROsociAL II oferece apoio e acompanhamento às iniciativas desses agentes por meio de sua arquitetura institucional formada por: sócios operativos, os quais “executam um conjunto de atividades que representam uma resposta às demandas formulados pelos governos dos países receptores”, e por sócio colaboradores, que “participam da execução das ações específicas”53. Os atores ainda se dividem por região em: “Sócio Coordenadores Europeus”, que coordenam a programação e implementação de uma atividade em determinada área, além de orientarem os sócios operativos; e “Sócios Coordenadores Latinoamericanos” que prestam apoio aos primeiros e aos sócios operativos54. Assim, de acordo com essa divisão administrativa, percebe-se que o poder decisório concentra-se nos agente europeus, cabendo às instituições latino-americanas apoiá-los. Tendo em vista a definição do EUROsociAL como uma iniciativa da Comissão Europeia, essa percepção se demonstra coerente. No entanto, se considerarmos o âmbito no qual o Programa está inserido, a Associação Estratégica Birregional, a participação dos agentes latino-americanos deveria ser mais ativa 55. Nesta segunda fase do Programa as principais atividades continuam sendo a promoção de intercâmbios de experiências, de conhecimento e de boas práticas entre as administrações públicas da UE e da AL, cujo foco centra-se em cinco principais aspectos: • assistência técnica e apoio; • conhecimento de experiências relevantes de outros países;

53



54 55

EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2011. Idem. Vide artigo escrito sobre assunto: Kloppel, Felipe; Ayres, Stela. A Associação Estratégica Birregional.

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• intercâmbio de funcionários com responsabilidades na tomada de decisão e de gestão; • atividades de formação; • networking entre os governos dos países. As atividades do EUROsociAL II se dividem em seminários, reuniões, visitas/estágios, assistências técnicas e acompanhamentos56. Os objetivos, ações e programas temáticos do EUROsociAL II foram estruturados a partir do aprendizado com as experiências do EUROsociAL I ao incorporar estratégias bem sucedidas e evitar outras que não surtiram os efeitos esperados. Não há uma lista de atividades e estratégias mau sucedidas, mas como se verá adiante neste trabalho, é possível encontrar relatório de atividades bem-sucedidas, à exemplo da experiência no setor de Educação ocorrida em Buenos Aires, Argentina: En el marco de EUROsociAL –programa de cooperación de la Unión Europea para América Latina–, la Fundación Iberoamericana para la Educación, la Ciencia y la Cultura (FIECC) y la Organización de Estados Iberoamericanos (OEI) dan cuenta, una vez más, de sus propósitos institucionales dirigidos al fortalecimiento de las políticas públicas y las estrategias que conduzcan a la plena inclusión educativa de niños y adolescentes.57

Como já fora mencionado, o fortalecimento de políticas públicas como forma de atingir a pobreza e desigualdade sociais, como forma de se alcançar coesão social, é um dos propósitos do EUROsociAL II. A imagem abaixo, demonstra a pirâmide de objetivos que se pretendem alcançar com o EUROsociAL II:



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Disponível em: . Acesso em 15 abr. 2012. Biblioteca EUROsociAL Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2012.

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Fonte: Programa EUROsociAL II58 .

As ações do Programa são tipificadas como: • Ações transversais de planejamento, coordenação, acompanhamento, avaliação e animação, encarregadas pelo Comitê de Programação e Coordenação EUROsociAL. • Ações específicas de identificação de prioridades dos países latinoamericanos, à fim de que os programas sejam delineados de acordos com estes; ações de programação, sensibilização e contrstrução de consensos; ações de apoio na concepção, estruturação e planejamento de políticas públicas; ações de fortalecimento instituicional e apoio em implementação de políticas.

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EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2011.

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Quanto aos programas temáticos, estes foram ampliados com a incorporação de mais cinco programas aprovados no Acordo Marco do Plano de Ação da VI Cúpula ALC-UE de Madrid (15 a 18 de maio de 2010) para o início da segunda etapa do EUROsociAL. As atividades se desenvolvem sob o escopo de cinco eixos de trabalho, dez áreas temáticas e vinte linhas de trabalho, como demonstra o esquema abaixo59: Eixo de Trabalho

I – Acesso universal a serviços de qualidade

II – Protecção social e promoção de políticas activas de emprego

III – Sistemas fiscais e finanças públicas que facilitem a redistribuição e efeiciencia dos gastos IV – Instituições Democráticas / articulação entre níveis de governo / promoção da lei e da luta

Áreas Temáticas

Linhas de Trabalho

1. Melhora ao acesso de serviçoes de saúde 2. Qualidade e avaliação do sistema de saúde

Saúde Educação

Institucionalização e Desenvolvimento de Políticas Sociais

1. Reformar a escola secundária 2. Qualidade de ensino 1. Fortalecimento de instituições reponsáveis pelas políticas sociais 2. Estrturação e implementação de sistemas de proteção social (combate à pobreza) 1. Promoção do emprego para os jovens

Política activa de emprego (informalidade)

2. Políticas e serviçoes nacionais de emprego 3. Articulação entre proteção social e políticas de emprego como combate à informalidade 1. Fortalecimento da eficácia, eficiência e equidade das finanças públicas

Finanças Públicas

2. Quitação de dívidas 3. Reforma nas finanças públicas

Instituições Democráticas Diálogo Social Descentralização

1. Transparências, quitação de dívidas, e combate à corrupção 2. Pacto social 3. Sistema de governança multinível 1. Prevenção da violência

V – Segurança Pública / direitos e acesso à justiça

Segurança Pública

Justiça

2. Fortalecimento da polícia e dos serviços de investigação criminal 1. Acesso à justiça 2. Reforma do sistema penal e seu fortalecimento

Fonte: EUROsociAL Elaboração: Autor



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EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2011.

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A tabela acima revela uma minuciosa divisão administrativa dos seguimentos de atividades assistidas pelo EUROsociAL, o que em tese facilita a designação de cada país de acordo com sua carência mais evidente. Entretanto, não há informações disponíveis nos documentos pesquisados que discriminem qual país é responsável por coordenaras atividades de cada linha de trabalho, ou quais países são atendidos por determinada linha. Ainda que com alguns dados ausentes a respeito de seu funcionamento, pode-se considerar que o sucesso do EUROsociAL I reside no fato de conseguir-se transformar projetos em programas, sendo que os desafios para o sucesso do EUROsociAL II constituem o direcionamento e a transformação desses programas em efetivas políticas públicas, apoiadas nos direitos de cidadania, e que se concretizam ao longo do tempo. No tópico seguinte, serão analisados alguns gráficos e resultados disponíveis no SIA referentes às atividades desenvolvidas finalizadas e em andamento na região da América Latina no âmbito do EUROsociAL I.

3 RESULTADOS

Para se compreender as metas do Programa, bem como os resultados que suas ações almejam, deve-se ter em a resposta para a seguinte pergunta: “O que é um ‘resultado’ em EUROsociAL?”. Essa pergunta é título do primeiro tópico do boletim informativo do “IV Encuentro Internacional de Redes EUROsociAL”, realizado nos dias 23 e 24 de junho, na cidade de Salvador, que traz uma relação de resultados alcançados durante a cooperação das administrações da América Latina e UE60. No referido documento consta que o Programa atua para facilitar as relações entre as administrações públicas europeias e latinoamericanas, no sentido de contribuir para a pro

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EUROsociAL. Nota à Imprensa. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2011.

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moção da coesão social. Dessa forma, o boletim apresenta como “resultados” as políticas e procedimentos cuja finalidade é propiciar a inclusão social, redução da desigualdade social e pobreza61. Há dois websites que disponibilizam informações relacionadas ao Programa: 1) Sistema de Informação de Atividades de EUROsociAL (SIA) que permite pesquisar instituições, documentos, atividades e resultados gerais, ou específico por país, sua função (transferente ou receptor) e/ou setor62; 2) O Sistema de informação de Experiências Práticas e Iniciativas de Coesão Social (EPIC), que conta com um acervo menos extenso do que o SIA, sobre práticas que afetam positivamente a coesão social, possui inúmeras ferramentas que podem tornar a busca mais avançada como componentes da atividade (o que, institucionalmente, foi desenvolvido), efeitos (sobre o bem-estar, a eficácia do Estado e suas políticas ou uma cidadania mais ativa) e nível da experiência (incipiente, confirmada ou compartilhada), entre outros63. Um exemplo de pequisa no SIA realizada pelo “buscador de resultados”, especificando o país receptor como Paraguai e selecionando o “setor educação”, prover-nos-á de uma lista de fichas de atividades exibidas por data (crescente ou descrescente), título ou autor. Escolhida uma atividade ao caso sob o título “Apoyo a la constitución de una red nacional de articulación institucional entre educación y trabajo”, a ficha do documento nos informa o autor (EUROsociAL Educación), a data (05/2011), o tipo de documento (Resultado), a possibilidade de descarregar o documento em formato Word e um quadro com uma breve observação feita pelo criador do documento. Neste documento, o criador observa que La actividad ha contribuido notablemente a los objetivos propuestos: “Generar un espacio de comunicación e intercambio entre

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EUROsociAL. IV Ecunentro Internacional de Redes EUROsociAL. SIA. Disponível em: . Acesso em: 18 maio 2012. Programa EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2012.

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representantes institucionales de sectores educativos y laborales del país con la sociedad civil. Reconocer las necesidades y oportunidades de ambos sectores. Elaborar propuestas formativas y orientadoras para ambos sectores. Establecer criterios comunes. Entre otros”. No solo se ha creado consciencia colectiva de la necesidad de involucrar a todos los actores de la sociedad que tienen un impacto y a su vez son impactados por la educación técnica y profesional; sino que se ha pasado a la acción. Es decir, se ha constituido, por primera vez en Paraguay, una red de articulación de todos los actores involucrados y han construido una agenda de actividades.64

Infelizmente, o relatório desta, bem como das demais atividades encontradas no website da SIA, não revela concretamente as medidas que foram tomadas para se alcançar o dito “Apoyo a la constituición de uma red nacional de articulación institucional entre educación y trabajo”. Não há informações específicas sobre como se constitui essa atividade, se por meio de uma cúpula ou congresso, ou quais os atores envolvidos nesta atividade. De acordo com a FIIAP – em uma apresentação datada de janeiro de 2011 – , o EUROsociAL I, ao longo de seu período vigente (5 anos), desenvolveu 459 atividades, com 160 processos de políticas públicas, envolvendo 2.212 instituições e 11.188 pessoas65. Ao cruzar essas informações com as provenientes SIA identificamos algumas divergências de dados, já que esse Sistema, atualizado pela última vez em 12 de fevereiro de 201066, acusa a existência de 475 atividades totais, com participação de 2.354 instituições e envolvimento de 12.895 pessoas. Esses dados são encontrados no documento “EUROsociAL EN CIFRAS” – disponível no próprio site da SIA –, que em sua primeira página dispõe uma nota de normalização informando que a soma das atividades, instituições e participantes

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SIA. Disponível em: . Acesso em: 06 nov. 2011. FIIAP, STRATEGIES FOR INTEGRATING SOCIAL COHESION IN PUBLIC POLICIES. Jan de 2011. Disponível em: . Acesso em 18 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2011.

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são maiores que o total real, pois as atividades multisetoriais são contabilizadas em todos os setores que participam67. Para fins de análise, este relatório basear-se-á nos dados presentes no documento “EUROsociAL EN CIFRAS”. Nos três sub-tópicos a seguir serão mostrados e analisados dados referentes as atividades, instituições e pessoas envolvidas na primeira parte do Programa a partir de tabelas originalmente encontradas na “Tabela-1: Dados estatísticos básicos do programa” daquele documento.

3.1 Atividades Como já dito, as atividades implementadas pelo EUROsociAL dividem-se em cinco eixos temáticos ou setores, de acordo com a tabela abaixo. Quanto às tipologias de atividades, observa-se que são divididas em quatro áreas: 1. O intercâmbio de experiências, pelo qual se transferem lições e boas práticas entre as administrações públicas; 2. A sensibilização política; 3. As atividades desenvolvidas pelas redes setoriais de administrações públicas; 4. O desenvolvimento de planospiloto, que permitem a experiência de novas ideias e linhas de ação. Tabela-1: Total de atividades

TOTAL DE ATIVIDADES Tipo de atividades Intercâmbio Sensibilização 366 Educação 94

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Redes

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Projeto Piloto 9

15 58 Atividades por setor Emprego Fiscalidade Justiça 48 142 102

Outros 27 Saúde 118

EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2011.

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A tabela acima revela que o tipo de atividades mais realizadas constituem, exatamente, o intercâmbio de experiências e o setor de maior atividade do Programa é o de Fiscalidade, cujo objetivo geral do projeto é introduzir métodos e técnicas que fortaleçam e modernizem as instituições fiscais nos países da América Latina, tornando seus procedimentos mais transparentes à fim de que se aumente a confiança neles68. Um exemplo dessas duas constatações é caso do modelo de educação fiscal adotado pelo Governo do Estado de Alagoas, desde 2007, que recebera o convite da Escola de Administração Fazendária (Esaf) para publicar, no site do Programa EUROsociAL, o livro “Curso de Disseminadores de Educação Fiscal”. O EUROsociAL havia solicitado à Esaf o envio de um projeto brasileiro de destaque para ser publicado e servir de experiência para outros países69. Seguindo a análise dos dados, um gráfico ilustrativo foi elaborado para facilitar a comparação de ocorrências de atividade por setor. Segundo a nota que acompanha a “Tabela-1”, a somatória das atividades expressa um valor maior de atividades (504) do que o fornecido (475) devido às atividades multisetoriais que são contadas em cada setor.



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EUROsociAL. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2011. Governo de Alagoas. Disponível em: . Acesso em: 07 nov. 2011

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Não há informações referentes ao financiamento destinado a cada setor, ainda que em nota da “Tabela-1” esteja expresso que “o volume do Projeto EUROsociAL Emprego é muito inferior ao resto dos setores tanto em seu montante financeiro como, em conseqüência, em seu nível de atividade”70. No site do SIA, é possível acessar um relatório que lista todas as “Atividades de Intercâmbio do EUROsociAL” totalizando 370 ações com detalhes sobre o ano de realização, país sede e setor abordado (http://sia.programaeurosocial.eu/informes.actividades. php?sector=0&pais=0&tipo=htm l&area=0&pat=&anyo=0&actividad=intercambio). No mesmo site, como já exposto acima, é possível pesquisar de maneira mais objetiva sobre a atividade que se procura a partir da ferramenta de busca que dispõe de data de realização, país, setor, situação da atividade. Por exemplo, ao utilizar o “buscador de atividades” é possível encontrar a ficha “Creadas las Oficinas de Atención al Ciudadano en el Poder Judicial de Córdoba, Argentina”, do setor “Justiça”, cujos países transferentes compreendem França e Espanha e revela alguns dados referentes ao objetivo da atividade. É interessante ressaltar a justificativa da operação, que identifica a contribuição do EUROsocial: “La implementación de políticas públicas orientadas a la construcción de ciudadanía y la mejora del acceso a justicia de los sectores más vulnerables, contribuirá a mejorar la cohesión social en la República Argentina”71. O gráfico seguinte mostra a predominância de atividades de intercâmbio frente às outras promovidas pelo EUROsociAL, convergindo com o conteúdo boletim do “IV Ecuentro Internacional de Redes EUROsociAL”, que identifica a formação de Redes Latinoamericanas que servem como plataforma para intercambiar experiências e conhecimentos concernentes a cada setor do Programa. Por exemplo, dentro do setor EUROsociAL Educação os mi

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EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS. SIA.

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nistérios de Educação e instituições penitenciarias da Argentina, Brasil, Colômbia, Costa rica, Equador, El Salvador, Honduras, México, Paraguai, Peru e Uruguai, criaram e participam ativamente da Rede Latinoamericana de Educação em Contextos de Isolamento - RedECE (www.redlece.org).

Além disso, é possível observar através dos gráficos seguintes I e II, que os países mais implicados pelo Programa são a Argentina e o Chile o primeiro com 242 atividades desenvolvidas, e o segundo com 209 –, e que os países que mais contribuem para o orçamento do Programa (Espanha e França) também são responsáveis pela maior parte das atividades. Nota-se, ainda, no gráfico II, uma participação mais ativa dos países da Europa Central como Espanha, França, Itália, Alemanha e Portugal, enquanto a maior parte dos países que aderiram à União Européia mais recentemente apresenta um tímido envolvimento. Ao todo participam 19 países latinoamericanos e 23 países europeus 72.

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Também participam 9 países de outras zonas. EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS.

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Gráfico I: Países da América Latina

Fonte: Programa EUROsociAL Elaboração: Programa EUROsociAL.

Os critérios para a distribuição das atividades entre países não foram encontrados em nenhum dos documentos analisados, o que pode depender, possivelmente, das iniciativas de cada país. Gráfico II: Países da Europa

Fonte: Programa EUROsociAL Elaboração: Programa EUROsociAL.

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3.2 INSTITUIÇÕES No âmbito do Programa EUROsociAL I, as instituições de cada setor temático de diferentes países se organizavam em consórcios para elaboração e implementação de projetos, financiados em sua maioria pela Comissão Européia. Um exemplo brasileiro de como funciona, parcialmente, essa dinâmica cooperativa é a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), que em uma publicação de 2008 anunciava sua responsabilidade “técnica por três linhas de intercâmbio, envolvendo a atenção primária em saúde e tecnologias de informação e comunicação, além de uma pasta de ações intersetoriais que terá a participação do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), o qual atuará sobre o tema da violência infantil na América Latina”73. A coordenadora da instituição declarou que o plano de trabalho fora enviado para aprovação da Comissão Européia e, na ocasião comunicado, estava sob análise da Oficina de Cooperação EuropeAid74.

A tabela acima revela a majoritária participação de instituições latinoamericanas equivalente a quase o triplo das instituições

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ENSP. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2011. SHVOONG. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2011.

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A ÓTICA DO ACORDO INTERNACIONAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL ENTRE BRASILITÁLIA COMO FERRAMENTA DE SEGURANÇA INTERNACIONAL Maria José Jung Gonzalez Especialista em Relações Internacionais, Jornalista, especialista em Direitos à saúde pela Unisinos. Membro de Direitoria da ONG Advogados Sem Fronteiras, articulista em Ceiri/SP, colunista em Relações Internacionais. ([email protected])

Resumo: A tendência dos Acordos Internacionais é pela globalização em porte mundial, incrementando e ratificando a necessidade de se romper barreiras jurídicas e políticas envolvendo um grande esforço no tratamento migratório. O principal objetivo deste Acordo Internacional é garantir a Seguridade Social prevista na legislação dos dois países, inclusive com o intuito de criar uma base legal comum quanto às obrigações e aos direitos previdenciários. O sistema de benefícios previdenciários é hoje percebido como ferramenta de segurança e bem-estar indispensável para atender às necessidades de estabilidade dos trabalhadores migrantes, e neste trilho, torna-se obrigatória sua divulgação. Palavras-chave: Previdência Social – Acordo Internacional – Brasil – Itália. Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1 Direito à Saúde no Cenário Internacional. 2.2 Percurso Migratório: Brasil-Itália. 2.3 Acordo da previdência Social entre Brasil-Itália. 2.4 Análise da Efetivação do Acordo. 3. Considerações Finais. 4. Referências

INTRODUÇÃO A Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz das Nações Unidas, conforme resoluções aprovadas, cita em seu teor, as medidas para promover a paz e a segurança internacionais. Con-

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forme o documento, alínea g: destaca-se o desestimular e abster-se de adotar qualquer medida unilateral que não esteja em consonância com o direito internacional e a Carta das Nações Unidas. Tudo que dificulte a obtenção plena de desenvolvimento econômico e social da população dos países afetados, em particular mulheres e crianças, que impeçam seu bem-estar, criem obstáculos para o gozo pleno de seus Direitos Humanos. Inclusive o direito de todos a um nível de vida adequado para sua saúde e bem-estar e o direito a alimentos, a assistência médica e serviços sociais necessários, ao mesmo tempo em que se reafirma que os alimentos e medicamentos não devem ser utilizados como instrumento de pressão política As políticas de imigração vigentes nos países de acolhimento que não promovam a integração social e contribuam para a manutenção das condições associadas à vulnerabilidade das populações imigrantes podem influenciar de forma negativa a sua saúde. Apesar da existência de cobertura e acesso universal aos cuidados de saúde na maior parte dos países receptores de imigrantes, o que se constata é que muitas vezes as comunidades não se beneficiam de todos os serviços disponíveis e não são efetivamente abrangidas pelos sistemas existentes de promoção da saúde, prevenção ou tratamento da doença. Os Acordos Internacionais são as mais importantes fontes de Direito Internacional e sua relevância está, principalmente, na garantia oferecida pelo Direito escrito, ou seja, normatizado. Portanto, os Acordos Internacionais que tratam sobre Previdência Social são uma forma de proteger os direitos dos trabalhadores envolvidos em movimentos migratórios, tendo-se em vista a globalização e o trânsito de pessoas gerado por essa. Assim um Estado soberano deve garantir os direitos de seus cidadãos, mesmo quando esses estiverem fora de sua área territorial. O Brasil possui Acordos Internacionais Bilaterais de Previdência Social com alguns países: Cabo Verde, Itália, Grécia, Espanha, Chile, Portugal, Luxemburgo,

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ultimando formalização com o Canadá, Estados Unidos, Japão, Alemanha e Bélgica; e Acordo Internacional Multilateral com os países do MERCOSUL (Argentina, Uruguai e Paraguai). Nesta pesquisa, optou-se pela relação Brasil-Itália, pois se estima que haja cerca de 30 milhões de ítalo-brasileiros, descendentes de imigrantes italianos chegados ao Brasil entre 1870 e 1960. A comunidade de descendentes de italianos no Brasil é considerada a maior do mundo, com 16% ítalo-descendentes. A maioria dos ítalo -brasileiros que hoje vivem no Brasil mantêm a maior parte dos costumes tradicionais italianos. A contribuição dos italianos é notável em todos os setores da sociedade brasileira, principalmente nas mudanças sociais e econômicas realizadas no campo e nas cidades onde se estabeleceram. Pode-se citar desde o modo de vida, que mudou profundamente influenciado pelo catolicismo, bem como as artes, a música, a arquitetura, a alimentação e o espírito empreendedor italiano na abertura e desenvolvimento de empresas e trabalhos especializados. No campo, é notável a introdução de novas técnicas agrícolas e, principalmente, a promoção da mudança estrutural dos latifúndios para pequenas propriedades agrícolas, bem como a introdução da policultura de produtos. Frente a esta miscigenação arraigada dos dois povos, vê-se a necessidade de avaliar a efetivação dos direitos garantidos aos brasileiros e italianos pelo Acordo do INSS e INPS entre os dois países: Quais os principais problemas encontrados no cumprimento deste Acordo? Existem informações deste Acordo disponíveis aos brasileiros e italianos? Às Repartições Consulares Brasileiras não estão delegadas as funções de agirem como intermediárias entre as Instituições Previdenciárias Italianas (INPS) e Brasileiras (INSS), e tampouco entre essas Instituições e os cidadãos interessados, sejam eles italianos ou brasileiros. Consequentemente, as Repartições Consulares não estão habilitadas a prestar informações sobre aposentadoria ou recebimento de pagamentos previdenciários, assim como não encaminham 184

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processos sobre essas matérias, nem referentes ao direito estabelecido à saúde. Então, como validar e consolidar a necessidade e eficiência de um Acordo Internacional dessa natureza? Através da publicação do Ministério da Previdência e Assistência Social (2001) sobre Acordos Internacionais de Previdência Social, cita-se Xavier (2001) que introduz o tema da globalização como um assunto constante na mídia e presente sempre que decisões devam ser tomadas, sejam elas no âmbito governamental ou da iniciativa privada. Xavier justifica, ademais, que os Acordos tenham por objetivo principal garantir os direitos da seguridade social previstos nas legislações dos dois países aos respectivos trabalhadores e dependentes legais, residentes ou em trânsito, em algum dos Países Contratantes. Esses acordos estabelecem um rol de prestação de benefícios previdenciários, não implicando na modificação da legislação vigente no país, cumprindo a cada Estado Contratante analisar os pedidos de benefícios apresentados e decidir quanto ao direito e condições, conforme sua própria legislação aplicável. Os primeiros esforços com o objetivo de coordenar os regimes de seguridade social por via de acordos internacionais são anteriores à Segunda Guerra Mundial. Contudo, os acordos recíprocos, da forma como hoje se conhece, só emergiram depois do conflito. Os primeiros envolveram os países da Europa Ocidental, que perceberam que, sem uma coordenação deste tipo, os indivíduos que contribuíram para regimes de mais de um país poderiam não reunir as condições de aquisição das prestações a que teriam direito (XAVIER, 2001). Considerando, justamente, a intensidade dos movimentos migratórios internacionais, a oportunidade de disseminação das doenças, a setuagenária origem dos Acordos Internacionais previdenciários, o interesse genérico dos países no mútuo atendimento previdenciário de seus cidadãos quando fora de seus territórios, o interesse particularizado de dois países com grande parcela étnica afim, é que se define o objetivo desse trabalho na análise da efetivação do direito aos brasileiros e italianos quanto ao Acordo do INSS e

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o INPS entre Brasil-Itália. Os objetivos específicos são os de informar a necessidade do tema saúde nos movimentos migratórios, informar e promover o fortalecimento do Acordo e questionar a sua validação.

2 DESENVOLVIMENTO 2.1 Direito à saúde no cenário internacional A proteção ao Direito à Saúde e sua consequente legitimação consagram-se como pressupostos para o pleno desenvolvimento de cada pessoa, enquanto membro ativo de uma sociedade democrática e igualitária. Entretanto, para a concretude de tais pressupostos, exige-se não somente a garantia do acesso universal ao Direito à Saúde, mas também o seu efetivo cumprimento e satisfação, transcendendo desta maneira à esfera nacional e abarcando, assim, questões de âmbito internacional que circundam a Saúde e seu reconhecimento como um direito fundamental ao homem. O Direito à Saúde no Brasil, como aponta a Constituição Federal de 1988, é um direito de todos e um dever do Estado, calcado no art. 196 da Carta Magna e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Através deste dispositivo legal o termo saúde se constitui como um direito reconhecido igualmente a todo a população, além de ser um meio de preservação e de qualidade de vida, sendo este o bem máximo da humanidade. Já na Itália, o Direito à Saúde, através da Constituição da República Italiana de 1948, se constitui como direito fundamental do homem, sendo elevado ao status de um dos direitos de solidariedade inviolável, consagrado no art. 32 da Constituição. Por conseguinte, trata-se de um direito absoluto, ao qual corresponde o dever de promover e garantir o bem estar de cada indivíduo, enquanto membro do Estado Social. Hoje, na sociedade contemporânea, a saúde é indiscutivelmente um fundamental direito humano, 186

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além de ser também um importante investimento social. Na medida em que os governos têm o objetivo de melhorar as condições de saúde de todos os cidadãos, é necessário que invistam recursos em políticas públicas de saúde, capazes de garantirem programas efetivos para a sua promoção. Todavia, garantir o acesso igualitário a condições de vida saudável e satisfatória a cada ser humano constitui um princípio fundamental de justiça social e, portanto, exige também uma grande produtividade complexa por parte da sociedade e do Estado, sendo necessária a intensificação dos esforços para coordenar as intervenções econômicas, sociais e sanitárias através de uma ação integrada. Já no século XVII as sociedades européias presenciaram rebeliões e perseguições religiosas, testemunhando também o avanço do racionalismo, que resultou em novas descobertas científicas, bem como no desenvolvimento de alguns dos conhecimentos científicos que atingiram momentos grandiosos com pesquisadores como Descartes, que percebeu ser a saúde a ausência de doença (DALLARI, 1988). O século XIX é o período da Revolução Industrial, com isso, houve uma preocupação maior com o trabalhador, que não podia adoecer, e prejudicar a produção. A saúde, então, além de ser a ausência de doença, tinha como função manter ou repor o indivíduo no trabalho e neste sentido, segundo Schwartz (2001), “[...] a saúde dentro dos padrões do individualismo liberal que floresceu no século XIX é uma saúde “curativa”, ligada ao que a moderna doutrina atual chama de aspecto negativo da saúde: a ausência de enfermidades.” Assim, a industrialização do século XIX traz consigo a urbanização, acarretando ao Estado a obrigação de assumir a responsabilidade pela saúde da população. Neste mesmo período, a preocupação com as questões sanitárias ganhou força e em 1851 doze países assinaram a Primeira Conferência Internacional Sanitária, elaborada com o intuito de combater as epidemias de cólera, peste e Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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febre amarela que acometiam os trabalhadores. Já o ano de 1864 foi marcado pela criação da Cruz Vermelha Internacional, significando uma grande conquista para a saúde. (ROCHA, 1999) A chegada do século XX impulsionou marcantes transformações sociais, juntamente com as grandes guerras ocorridas no mesmo período. Até então a saúde era vista como algo individual, e no século XXI, auge da expansão dos meios de comunicação, o constante crescimento da produção proporciona a maior obtenção de condições de bem-estar e de acesso a serviços, refletindo-se nos setores da saúde. Com isso, após vários períodos da história, surgem os aparatos legais internacionais, nos quais o direito à saúde é um direito adquirido a todo o povo, ao acesso universal e igualitário. O Direito à Saúde é reconhecido nas Constituições Brasileira e Italiana, e também nos tratados e nas declarações de direito internacional. A Convenção de Viena é o tratado internacional que disciplina a questão da integração entre o ordenamento jurídico internacional e o nacional. No cenário internacional, acresce-se o Tratado de Roma, assinado em 25 de março de 1957, vigorando a partir do dia 01 de janeiro de 1958. Esse Tratado foi assinado na cidade de Roma e institui a Comunidade Européia, mencionando em vários de seus artigos o aspecto saúde: como proteção e preservação da vida das pessoas e saúde do trabalhador. Em 12 de setembro de 1978 foi ratificada a Declaração de Alma Ata – URSS, quando então foi realizada a Conferência Internacional sobre os Cuidados Primários de Saúde, e que dispõe sobre a necessidade de ação de todos os governos, de todos os que trabalham no campo da saúde, e do desenvolvimento de uma ação de todas as comunidades para promover a saúde de todos os povos do mundo. As ações previstas, de modo generalista, nos abrangentes Tratados Internacionais como acima citados, se traduzem, de forma particularizada e com características mais específicas, nos Acordos legais internacionais para a efetivação do direito à saúde, estes até então majoritariamente bilaterais quando envolvem o Brasil, mas 188

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tendendo à aglutinação aos moldes dos Acordos Internacionais Multilaterais, se envolverem diferentes partícipes com mesmas intenções. Desenvolve-se o relacionamento acordado Brasil-Itália.

2.2 Percurso migratório: Brasil-Itália No Brasil, o estudo das migrações internacionais têm se expandido nos últimos tempos, em virtude da constatação de que o movimento migratório tem se intensificado. A partir dos anos 1980, com a internacionalização da economia, devido às facilidades de transportes e ao enfraquecimento das fronteiras nacionais, entre outros, o Brasil ingressou no processo mundial pelo qual os emigrantes de nações menos industrializadas, ou em processo de industrialização, desembarcam nos países industrializados a procura de emprego. Uma parcela destes brasileiros escolheu como área de destino a Itália, que, nos anos 1990, viu-se obrigada a uma primeira tentativa de regularização do fenômeno migratório, no entanto, nos anos 2000, a situação italiana triplicou suas taxas imigratórias no geral, com participação significativa de brasileiros. A evolução do conjunto da sociedade italiana e as transformações demográficas recentes estão na base do processo imigratório da Itália, que começou a se manifestar de forma mais intensa a partir dos anos 70 do século XX. Os fatores que conduziam à expulsão de italianos de seu território foram reduzidos e ampliou-se a atração que a Itália exerce sobre os países do Terceiro Mundo. Na Itália Meridional, onde se concentrava até há pouco tempo o movimento emigratório, a economia encontrou seu próprio equilíbrio. Em consequência, diminuiu a emigração em direção ao exterior e às áreas industrializadas do norte. De outro lado, o sistema produtivo nacional italiano tornou-se capaz de atrair trabalhadores. Este crescimento econômico foi acompanhado pela segunda transição demográfica italiana, ou seja, além do crescimento do movimento imigratório, a população nativa passou a gozar de uma substancial estabilidade quanto ao seu tamanho, a fecundidade alcançou um dos mais baixos

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níveis da Europa e, em consequência, aumentou o número absoluto e relativo de idosos. Desenvolveram-se, também, novos padrões de vida familiar, marcados, sobretudo, pela participação mais intensa da mulher no mercado de trabalho (BONIFAZI, 1995, p. 174). Ainda de acordo com o autor, refere-se que mesmo passadas cerca de duas décadas de experiência imigratória, a Itália defronta-se com uma imigração muito mais orientada pela oferta do que pela demanda, o que significa que os fluxos imigratórios não mais atendem a uma demanda do mercado de trabalho, mas visam assegurar o funcionamento do mercado onde há falta de mão-de-obra para tarefas e qualificações específicas. Assim, o imigrante que tem chegado à Itália depara-se com uma realidade marcada pela falta de empregos e moradias e por sérios problemas gerados pela discriminação étnica e social. Apesar disso, continua o fenômeno, pelo motivo, entre outros, de que as cadeias migratórias tendem a trabalhar mesmo em caso de reduzidos ou não existentes elementos de atração, fazendo com que a intensidade das entradas ultrapasse muitas vezes a capacidade de absorção do mercado da sociedade de destino. Quanto ao perfil dos imigrantes brasileiros residentes em território italiano, pode-se dizer que se trata de um grupo bastante heterogêneo. São homens e mulheres com diferentes experiências profissionais e graus de instrução, agrupados em diferentes faixas etárias, provenientes de diversas regiões brasileiras, com maior ou menor “tempo de Itália”. Vários têm passaporte italiano, uma vez que obtiveram também a cidadania italiana, outros – a maioria – apenas com visto de permanência. Um grupo ainda menor não dispõe de qualquer documentação local – são os ilegais ou clandestinos, este bastante discriminado e explorado na inserção ao mercado de trabalho. Estes brasileiros, de modo geral, começaram a chegar à Itália após 1989. Escolheram aquele país por causa das facilidades de ingresso e porque lá mantinham vínculos com parentes, amigos ou conhecidos. Alguns possuíam dupla cidadania e, consequentemente, o

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passaporte italiano. Muitas mulheres porque o namorado ou marido era italiano; outras porque na Itália a “prostituição rende mais”. Deixaram o Brasil, de acordo com seus próprios depoimentos, descontentes e desiludidos com a situação econômica do país, pela necessidade de buscar melhores condições de vida e trabalho e/ou para se unir a familiares brasileiros já residentes na Itália, a um cônjuge italiano ou a uma família italiana, como é o caso das adoções. Distribuíram-se na Itália por quase todo o território, ainda que a maior parte esteja concentrada no Norte (50%) e no Centro (38%) da península, sobretudo nas duas maiores áreas metropolitanas: Milão e Roma. O segmento brasileiro na Itália é composto - de acordo com dados oficiais -, na sua maioria por mulheres (70%), com idades na faixa de 20 e 44 anos. A partir de meados dos anos 80, tornou-se evidente para os italianos que a imigração havia se tornado uma característica estrutural do país. A partir de então começou a ampliar-se o debate acerca da necessidade de regulamentar a entrada de estrangeiros, o que foi acompanhado por investigações acerca do comportamento dos imigrantes – algumas exploradas de forma sensacionalista pela mídia – e das opiniões dos italianos a respeito dos mesmos. A preocupação política subjacente é a de que “regularizar” e controlar aqueles já residentes em território nacional e ao mesmo tempo introduzir rígidas medidas de controle quanto a novas entradas. A partir de então foi permitido o ingresso somente àqueles possuidores de contrato regular de trabalho e com garantia de moradia, enquanto a chegada dos familiares era permitida depois que o requerente provasse possuir os requisitos necessários (trabalho e residência). A 6 de março de 1998 foi promulgada a nova Lei italiana de migração que, de acordo com Bonetti (1998), vem de encontro à necessidade de disciplinar a condição jurídica do migrante extracomunitário presente na Itália em todos os aspectos de sua vida. Os principais objetivos da nova Lei – já recomendados em 1994 pela União Europeia – referem-se à integração do migrante extracomu-

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nitário à sociedade de destino através de medidas inovadoras, tais como: programação do fluxo de entradas baseado em cotas, fixadas anualmente, por país de origem ou por qualificação profissional; aumento de medidas preventivas à imigração ilegal e daquelas voltadas à sua repressão; incremento de medidas voltadas à efetiva integração dos estrangeiros regularmente residentes. A primeira inovação importante da nova Lei – a programação anual do fluxo de entradas de acordo com as possibilidades de absorção pelo mercado de trabalho – necessita ainda de maior precisão acerca dos critérios a serem adotados pelo governo italiano, uma vez que ainda são privilegiados os acordos bilaterais, que garantem aos países signatários, cotas preferenciais de ingresso para trabalho. As cotas, regulamentadas por decretos anuais, são preenchidas através de diferentes tipos de entrada, a saber: para contrato de trabalho assalariado – dispondo-se o empregador italiano a oferecer alojamento e as mesmas contribuições previdenciárias previstas para o trabalhador italiano; para contrato de trabalho sazonal – garantindo-se prioridade de trabalho no ano sucessivo àqueles trabalhadores sazonais que retornarem a sua pátria depois de seis meses de trabalho na Itália; para trabalho autônomo – de acordo com os percentuais máximos de emprego previstos para as profissões liberais. A grande novidade está no fato do ingresso por motivo de trabalho assalariado não ficar restrito apenas à requisição do empregador italiano, podendo ocorrer, também, através da emissão de vistos de entrada dirigidos à procura direta de trabalho na Itália. Através destas medidas, prevê-se a diminuição dos fluxos de imigrantes ilegais, que ademais serão punidos mais severamente (expulsão imediata e acompanhamento à fronteira) de acordo com a nova Lei. A carta de permanência pode ser requerida por estrangeiros que sejam pais, filhos menores ou cônjuges conviventes com cidadãos italianos ou comunitários, assim como por extra-comunitários residentes na Itália por pelo menos cinco anos, titulares de uma permissão que possibilite um número ilimitado de renovações e que

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demonstrem dispor de uma renda suficiente para si e os familiares conviventes. De fato, a carta de permanência não é somente expedida para o requerente, mas também para o seu cônjuge e seus filhos menores conviventes. No entanto, também neste caso, enfrentam-se algumas ambiguidades. A Lei não prevê a emissão de permissão que possibilite um número indeterminado de renovações e, portanto, esta possibilidade fica subordinada aos critérios administrativos locais. Quanto à legislação brasileira pertinente, em 1945, o Governo Vargas promulgou o Decreto-Lei 7.967 em 18 de setembro que dispunha sobre imigração e colonização. Possuía 100 artigos regulamentando a política imigratória do Brasil, protegendo os interesses do trabalhador nacional e desenvolvendo a imigração. O artigo 3º estabelecia uma quota de 2% de ingresso por nacionalidade sobre os números respectivos dos nacionais que haviam entrado no Brasil desde 1 de janeiro de 1884 até 31 de dezembro de 1933. Esta quota foi revogada em 1950, sendo ovacionada pela Santa Sé em um artigo no jornal “Osservatore Romano” de 4 de janeiro de 1951. A resolução do Conselho de Imigração e Colonização nº 1076, de 18 de outubro de 1950, suprimiu as quotas de entrada para os imigrantes portugueses, espanhóis, franceses e italianos. O decreto regulamentava e estabelecia que a entrada de estrangeiros - quer fosse permanentemente, em trânsito ou para obter o visto temporário - deveria ser documentada pela apresentação às autoridades brasileiras do passaporte e da prova de saúde. O decreto esteve em vigência por muito tempo, porém, foram firmados pelas autoridades brasileiras diversos acordos particularizados com países emigrantes. O “Acordo entre os Estados Unidos do Brasil e a República Italiana sobre Investimentos”, de 5 de julho de 1950, foi um marco para estabelecimento de ações que visassem os interesses recíprocos entre os dois países, este especificamente voltado ao investimento de capitais italianos e co-participação de cidadãos italianos em empresas brasileiras.

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O “Acordo de Migração entre os Estados Unidos do Brasil e a Itália”, de 9 de dezembro de 1960, tem por objetivo regular as imigrações entre os dois países, estabelecendo as condições para a entrada e permanência dos imigrantes, quer sob a forma de imigração espontânea, quer sob a forma de transferência de sociedades, de cooperativas ou de grupos de trabalho, ou ainda, sob a forma de migração dirigida. Tais Acordos são os precursores das demais cominações legais que envolveram ambos os países, baseando o estabelecimento de diretrizes contemporâneas de interesses migratórios conjuntos e garantias dos mútuos direitos estabelecidos, inclusive no que diz respeito à previdência social compartilhada e acesso aos sistemas de saúde de cada país.

2.3 Acordo da previdência social entre Brasil-Itália Os Acordos Internacionais inserem-se no contexto da política externa brasileira, conduzida pelo Ministério das Relações Exteriores, e resultam de esforços do Ministério da Previdência Social e de entendimentos diplomáticos entre governos. Os motivos pelos quais o Governo brasileiro firmou Acordos Internacionais com outros países enquadram-se em pelo menos uma das seguintes situações: elevado volume de comércio exterior; recebimento no País de investimentos externos significativos; acolhimento, no passado, de fluxo migratório intenso; relações especiais de amizade. Justamente, nesta esteira, é que se incluem os Acordos Internacionais Bilaterais, com objetivo particularizado de garantir os direitos de seguridade social aos imigrantes de ambos os países envolvidos, ainda que não decorrentes de modificação da legislação vigente em cada país. Portanto, neste capítulo, abordam-se os principais tópicos do Acordo no que se refere à Previdência Social entre os países Brasil e Itália. 194

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Fundamento Legal do Acordo Assinatura: 30 de janeiro de 1974 Decreto n° 80.138, 11 de agosto de 1977 Entrada em Vigor: 5 de agosto de 1977 Benefícios previstos no Acordo No Brasil • Pensão por Morte • Aposentadoria por Idade • Aposentadoria por Invalidez • Aposentadoria por Invalidez por Acidente do Trabalho • Auxílio-Doença • Auxílio-Doença por Acidente do Trabalho • Auxílio-Acidente • Assistência Médica Na Itália • Benefício por Morte • Benefício por Idade • Benefício por Invalidez • Seguro Contra Tuberculose • Benefício por Maternidade • Benefício por Doença Profissional • Benefício por Incapacidade Temporária do Trabalho • Benefício por Acidente do Trabalho • Assistência Médica

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Abaixo, descreve-se a trajetória cronológica do Acordo Internacional, com os Decretos, Protocolos e Ratificações. Acordo de Migração assinado a 09 de dezembro de 1960, em Roma. Decreto Legislativo nº 101, de 18 de novembro de 1964. Aprova o texto do Acordo. Decreto nº 57.759, de 08 de fevereiro de 1966, publicado no DOU nº 30 de 11/02/66. Promulga o Acordo. Acordo Administrativo, assinado em Brasília a 19 de março de 1973, publicado no DOU nº 111 de 12/06/73. Protocolo Adicional ao Acordo de Migração, assinado em Brasília a 30/01/74. Entrada em vigor: 05 de agosto 1977 Registrado no Secretariado da ONU em 8 de maio de 1974 sob nº 13284 Ratificado pela Itália a 23 de dezembro de 1974 Acordo assinado a 25 de junho de 1995, em Brasília. Com o DECRETO LEGISLATIVO Nº 101 DE 1964 é aprovado o Acordo de Migração entre a República dos Estados Unidos do Brasil e a República Italiana, assinado em Roma, em 9 de dezembro de 1960. Assim, o DECRETO Nº 57.759 DE 8 DE FEVEREIRO DE 1966 promulga o Acordo de Migração com a Itália: O Presidente da República, havendo o Congresso Nacional aprovado pelo Decreto Legislativo nº 101, de 1964, o Acordo de Migração assinado entre os Estados Unidos do Brasil e a República Italiana, em Roma, em 9 de dezembro de 1960; e havendo o referido Acordo entrado em vigor, de conformidade com seu artigo 51, em 26 de fevereiro de 1965, data em que se efetuou no Rio de Janeiro, a troca dos instrumentos de ratificação, decreta que o mesmo apenso por cópia ao presente

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Decreto, seja executado e cumprido tão inteiramente como nele se contem. O ACORDO ADMINISTRATIVO referente à aplicação dos artigos 37 e 43 do Acordo de Migração entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana, de 9 de dezembro de 1960. No caso de aplicação da disposição de que trata o artigo 41 do Acordo de Migração, se o trabalhador migrante voltar ao País de origem no prazo de três anos da data de migração e ali exercer novamente uma atividade sujeita à legislação de previdência social, o período decorrido no País de acolhimento será considerado neutro aos fins da concessão das prestações previstas pela legislação do País de origem. Por fim, o PROTOCOLO ADICIONAL AO ACORDO DE MIGRAÇÃO, assinado em Brasília, em 30 de janeiro de 1974, em quatro exemplares originais, dois em língua portuguesa e dois em idioma italiano, e cujos textos fazem igualmente fé. Nos termos do Artigo 48, letra d., do Acordo de Migração entre Brasil e Itália de 9 de dezembro de 1960, as autoridades brasileiras e italianas, após haverem trocado seus Plenos Poderes, achados em boa e devida forma, estabeleceram Protocolo Adicional ao referido acordo de migração com normas e regimes a doenças, Previdência Social e seguros. Estabelecidos os ditames acordados, na cronologia e prioridade enfocadas, aborda-se os questionamentos quanto ao seu conhecimento e sua utilização por parte dos potenciais beneficiários.

2.4 Análise da efetivação do acordo O estudo tem a proposta de levar o conhecimento do Acordo Internacional de Brasil-Itália, e entre os países de uma forma geral, com sucesso no alcance dos objetivos a que se proponham. Questões de limites territoriais, meramente burocráticas, estão sendo absorvi-

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das pelo tempo e hoje, através da globalização, têm-se, em sua plenitude, direitos e garantias expressos de forma bilateral e multilateral em tratados formais, dando equiparação de tratamento ao sujeito do trabalho realizado entre dois ou mais países. Esses Acordos vieram a equiparar os trabalhadores estrangeiros aos trabalhadores nacionais, dando solução a problemas social-trabalhistas, proporcionando mais dignidade aos trabalhadores migrantes. O principal objetivo do Acordo Internacional é garantir o direito à Seguridade Social previsto na legislação dos dois países, com o intuito de criar uma base legal comum quanto às obrigações e aos direitos previdenciários. A tendência dos Acordos Internacionais é pela globalização em porte mundial, incrementando e ratificando a necessidade de se romperem barreiras jurídicas e políticas, envolvendo um grande esforço no tratamento migratório. Com isso, nesta pesquisa preocupou-se em aplicar questionamentos sobre as informações dos usuários brasileiros e italianos quanto ao conhecimento do Acordo Internacional e a sua utilização. A partir de um referencial teórico sobre o cenário da saúde internacional, e do sistema de saúde brasileiro e italiano, com a metodologia exploratória das questões temáticas, optou-se por um método de pesquisa por conveniência. O número de questionamentos foi de dez brasileiros e dez italianos, a respeito do Acordo da Previdência entre Brasil e Itália, todos com uma permanência mínima de 6 meses nos seus países de destino. A coleta de dados ocorreu por e-mail com perguntas objetivas, obtendo-se uma análise do conteúdo com a organização do material, e com análise qualitativa dos pontos em comum e pontos de discordância, que complementam o tema escolhido. Os questionamentos basearam-se nos seguintes enfoques: – Você conhece o Acordo Internacional da Previdência Social entre Brasil-Itália? – No caso de você ter conhecimento da existência deste Acordo, através de que meio obteve esta informação?

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– No caso de você não ter conhecimento da existência deste Acordo, quem você acredita que deveria ter a competência de divulgá-lo? – Você gostaria de ter maior conhecimento do Acordo citado e de sua área de abrangência? – Caso você tenha interesse na obtenção de maior conhecimento do Acordo, através de que meio você irá buscar estas informações? – Qual a sua opinião a respeito de um Acordo Internacional que beneficie reciprocamente imigrantes de um país quando residentes em outro país? Além dos dados de identificação, que por questões éticas não são divulgados, formulou-se questões relativas à profissão, idade, escolaridade, tempo de residência, e sobre o direito à saúde no país de destino, caso precisasse. Dos dez brasileiros que residem(iram) na Itália e responderam aos questionamentos, 60% tem idade entre 20 e 35 anos, 20% de 51 a 65 anos, 10% acima de 66 anos e 10% entre 36 e 50 anos. O que foi constatado quanto ao nível de escolaridade dos questionados é que 70% possuem formação de pós graduação em mestrado e doutorado, os com nível superior somam 20% e os 10% restantes têm formação de nível médio. Quanto às profissões 70% são de iniciativa privada, 20% constituídos por aposentados e 10% de atividades religiosas. O tempo de residência na Itália consiste em 40% entre seis meses e um ano, de três anos a dez anos totaliza outros 40% e mais de dez anos alcança 20%; salienta-se que o questionado de atividades religiosas viveu por mais de 23 anos na Itália e apenas um dos questionados respondeu que não mais pretende morar naquele país. Quanto ao Acordo entre os países, questionou-se o conhecimento de sua existência, ao que 60% referiram que o conhecem, restando aos demais 40% a afirmativa que desconheciam a existência de tal Acordo. Os meios pelos quais obtiveram informações do

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Acordo foram as seguintes fontes: Patronato Italiano, site do INSS, Consulado Italiano no Brasil, Ministério da Saúde e indo pessoalmente ao INSS. Dos 40% que não conhecem o Acordo as fontes citadas como potenciais responsáveis pela sua divulgação foram: os Consulados Italianos no Brasil, os Consulados Brasileiros na Itália e os profissionais da área de turismo, também seria de competência do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde. Quando se pergunta: Caso você necessitasse de atendimento na Itália a quem recorreria? 70% responderam que procurariam o serviço público italiano e 30% recorreriam a profissionais particulares. Dos questionados, 70% gostariam de ter maior conhecimento do Acordo, mesmo não precisando utilizá-lo, 20% não demonstram interesse em conhecê-lo e 10% necessitam de maior conhecimento, pois pretendem utilizá-lo. Em outra seara, 90% afirmaram a necessidade e importância da existência deste Acordo. Quanto à divulgação: 80% consideram a mesma ruim e os demais 20% como razoável. A opinião quanto à utilização, mesmo daqueles que não precisaram mas que acompanharam outros brasileiros, é da dificuldade na hora de validar e usufruir deste Acordo. Um dos brasileiros que residiu na Itália relatou o seguinte depoimento: “O acordo é, em teoria, eficaz. Na Itália há dificuldade em reconhecer o termo “trabalhador autônomo” como efetivamente um “trabalhador”. Várias vezes o acordo não foi reconhecido porque se a classificação era “autônomo”, não poderia recorrer a benefícios como “trabalhador”. Há uma evidente carência na interpretação do acordo bilateral pelas autoridades sanitárias italianas”. E, para finalizar, outro depoimento: “Na Itália, e também como na maior parte do mundo, há uma diferença entre regiões, e no norte do país, o serviço público de saúde é excelente, e sempre que precisei tive um ótimo atendimento nas unidades de saúde”. Quanto aos italianos que residiram ou residem no Brasil, 60% têm idade de 36 a 50 anos e 40% acima de 65 anos. A escolaridade

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consiste de 40% com nível superior, 50% em nível de pós- graduação e 10% com nível médio. Quanto às profissões: 40% são aposentados e 60% labutam na iniciativa privada. O tempo de residência no Brasil perfaz 90% de 5 anos a 10 anos, e 10% com mais de 10 anos de permanência. Quanto ao Acordo entre os países e a questão do conhecimento de sua existência: 30% conhecem o Acordo, 40% não têm conhecimento e 30% conhecem parcialmente. Os meios em que obtiveram informações do Acordo foram pelos sites do INSS e junto ao Consulado Italiano. Do percentual que desconhece o Acordo, os questionados responderam que sua divulgação seria de competência dos Consulados Italianos no Brasil, do Ministério da Saúde e dos profissionais de comunicação – a imprensa. Quando da pergunta: Caso você necessitasse de atendimento no Brasil a quem recorreria? 60% responderam que procurariam clínicas e hospitais privados, e os demais 40% se socorreriam da rede pública. Dos questionados, 80% gostariam de ter maior conhecimento do Acordo, 20% não veem necessidade de sua existência. Quanto à divulgação: 70% consideram como ruim e 30% estimam como razoável. O posicionamento quanto à utilização dos que desconheciam o Acordo foi de que teriam utilizado os serviços, caso soubessem de seus direitos. No depoimento de italianos, destacaram-se as seguintes respostas: “ficarei no Brasil até me aposentar, pois o Governo Brasileiro com certeza o processo seria muito mais rápido o processo da aposentadoria”. Outro relato também relevante: “me senti prejudicada, pois não é divulgado em nenhum site, na imprensa, e quando tentamos nos informar, as modalidades de assistência oferecidas não estão bem claras, e muito menos como conseguir esta assistência”. A partir destes questionamentos, em princípio, considera-se que um tratado consiste numa negociação, e que, a partir do momento do comprometimento do tratado ou acordo, esse tem condições de vigência imediata. Conforme publicação do Ministério da

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Previdência e Assistência Social, de 2001, um tratado é aprovado pelo Senado Federal e a ratificação é realizada pelo Presidente da República passando a vigorar no Brasil. No Brasil, compete à Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Previdência e Assistência Social, a coordenação dos documentos técnicos dos Acordos Internacionais, bem como o acompanhamento e a avaliação de sua operacionalidade. O Instituto Nacional de Seguro Social, INSS é o órgão Gestor, ou seja, é a instituição competente para conceder e operacionalizar as prestações previstas nos acordos, através de órgãos regionais, que atuam como Organismos de Ligação. São beneficiários dos Acordos Internacionais, os segurados e seus dependentes sujeitos ao Regime de Previdência Social dos Países Acordantes. Os Acordos de Previdência Social aplicam-se aos benefícios do Regime de Previdência Social Brasileiro. Para a obtenção de um benefício no âmbito do Acordo Internacional, o segurado fará um requerimento de benefício, que deverá ser protocolizado na entidade gestora do país de residência do interessado. No Brasil, os requerimentos são formalizados nas unidades/ agências do INSS em cada Unidade da Federação e encaminhados ao Organismo de Ligação correspondente, conforme a residência do beneficiário. Os Organismos de Ligação são setores competentes do INSS para fazerem a ligação com o setor competente do órgão previdenciário estrangeiro. No Brasil, estes órgãos situam-se no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Os Acordos Internacionais preveem o instituto do deslocamento temporário que permite ao trabalhador continuar vinculado à Previdência Social do país de origem quando deslocado para outro país, por período pré-estabelecido no referido Acordo. Ao empregado será fornecido um Certificado de Deslocamento Temporário visando à isenção de contribuição deste segurado no país acordante. Os Acordos Internacionais de Previdência preveem a Prestação de Assistência Médica no Exterior aos brasileiros e estrangeiros que se deslocam, e é administrada pelas Coordenadorias Regionais de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde. 202

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Para aquisição de direito ao benefício, somam-se os períodos de seguro prestados nos dois países acordantes. O benefício brasileiro é solicitado pelo requerente numa agência do INSS próxima de sua residência. O trâmite do processo é bastante burocrático e tem-se conhecimento da demora na agilização deste processo. Após a protocolização do requerimento na Unidade da Previdência Social, este é encaminhado à Gerência Executiva a que pertence. As Gerências, após a conferência da documentação encaminham ao Organismo de Ligação naquele Estado. Para quem não reside nos estados que possuem o Órgão de Ligação, encaminham seus processos ao de Brasília. A partir daí, este envia ofício ao Organismo de Ligação do País Acordante (2 vias). A documentação é examinada e retorna a Brasília, que encaminhará novamente a Agência/Unidade para chamamento do interessado. Quanto ao cálculo do benefício (período de seguro no Brasil mais o período de seguro no País Acordante) é proporcional ao tempo de seguro no Brasil em função do tempo total. Logo, o benefício é calculado como se todo o período fosse contribuído no Brasil, e a parcela a cargo do Brasil é o resultado da multiplicação do valor teórico pelo tempo de contribuição no Brasil, dividido pelo tempo total. Já a solicitação de benefício brasileiro por parte de requerentes residentes no País Acordante deverá encaminhar ao Brasil por via do Organismo de Ligação daquele país, protocolando o requerimento no local, conforme orientação do Órgão de Previdência Social do País Acordante. De posse deste requerimento, o Organismo daquele país encaminha ao Brasil o formulário contendo informações sobre a situação do requerente, e analisado o pedido no Brasil, é informado ao País Acordante através do encaminhamento de ofício sobre a finalização do processo. Ao trabalhador da empresa pública ou privada é fornecido, mediante solicitação da empresa, um Certificado de Deslocamento Temporário, visando à isenção de contribuição deste segurado no País Acordante, a fim de que o mesmo permaneça sujeito à Legis-

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lação Previdenciária Brasileira. O pessoal de vôo de empresas de transporte aéreo e terrestre continua sujeitos à legislação vigente no Estado em cujo território a empresa tenha sede. Os membros de tripulação de navios sob bandeira de um dos Estados Contratantes estão sujeitos às disposições vigentes no mesmo Estado. As pessoas que trabalham em tarefa de carga e descarga, consertos ou vigilância estão sujeitas à legislação do Estado sob âmbito jurisdicional que se encontre o navio. Os membros das representações diplomáticas e consulares, organismos internacionais e pessoal trabalhando em prol dessas representações são regidos pelas Convenções e Tratados que lhes sejam aplicáveis. O trâmite do deslocamento inicial deve ser endereçado a Unidade/Agência da Previdência Social mais próxima e deve ser feita até 45 dias antes do início do período previsto para o deslocamento. Este deslocamento deve ser feito pela empresa em cinco vias preenchidas e assinadas e passam por um processo protocolizado e enviado à Gerência Executiva a que pertence. O processo passa a ser analisado, e são entregues através de correspondência à empresa comunicados de prazos e da emissão do certificado. Se houver necessidade de prorrogação de deslocamento, deve-se protocolizar até 90 dias antes do término do prazo inicial autorizado. As entidades de “Patronato” são as que operam no Brasil com a função de prestar assistência administrativa e jurídica no setor da Previdência Social às comunidades de descendentes de italianos e italianos residentes no Brasil, em razão dos Acordos Internacionais entre Itália e Brasil. As entidades de “Patronato” nasceram na Itália, por iniciativa de trabalhadores, e são reconhecidas pelo Governo Italiano com as entidades sem fins lucrativos, de assistência e defesa dos direitos dos trabalhadores, segundo as normas da legislação italiana. Ao realizar a pesquisa, os sites de Consulados Brasileiros e Italianos foram consultados a procura de informações a respeito deste Acordo. O que se obteve, inclusive com posicionamento pessoal de representante diplomático no Canadá que está ultimando Acordo de 204

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iguais características com o Brasil, que as Repartições Consulares Brasileiras não funcionam como intermediárias entre as Instituições Previdenciárias Brasileiras (INSS) e Italianas (INPS) – ou, por extensão, de outros países. Consequentemente, estas Repartições não estão habilitadas a prestar informações sobre aposentadoria ou recebimento de pagamento previdenciário, e não encaminham processos sobre essas matérias. Assim sendo, qualquer esclarecimento, bem como o requerimento de serviços referentes às questões previdenciárias deverão ser solicitadas diretamente pelo interessado aos respectivos escritórios das Instituições Previdenciárias. Os únicos serviços prestados por estas Repartições Consulares Brasileiras são quanto à regularização do CPF, emissão de procuração para poderes junto ao INSS do Brasil e Atestado de Vida, para aqueles que recebem aposentadoria. Qualquer documento emitido por autoridade estrangeira, como é o caso do INPS italiano, para ter valor legal no Brasil, deverá antes de seu envio, ser devidamente legalizado pela Repartição Consular Brasileira com jurisdição sobre o local onde se encontra a autoridade estrangeira que emitiu tal documento e, posteriormente, ser traduzido por tradutor juramentado no Brasil. O envio ao Brasil desses documentos é de responsabilidade do interessado. Por outro lado, a publicação de Rosângela Elias, 2009, juntamente com o Ministério da Previdência Social (MPS), afirma que existe uma parceria entre este Órgão e o Itamaraty, com vistas a estender proteção previdenciária aos brasileiros que vivem no exterior. Essa parceria, opera mediante negociações técnicas do MPS e ação coordenadora do Ministério das Relações Exteriores na proposição formal de acordos, no agendamento e acompanhamento de tratativas, e em ações ao bom desenvolvimento das solicitações. Cabe ressaltar que estas parcerias são fundamentais para os aspectos migratórios, para que os trabalhadores sejam socialmente protegidos. Em outras palavras, do ponto de vista da Previdência Social, o fenômeno da migração traz, como consequência, o fato de muitos imigrantes, ao contribuírem para sistemas previdenciários de países diferentes,

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eventualmente não completarem os requisitos para obtenção da aposentadoria, ou não se qualificarem a outros benefícios contando apenas com o tempo de contribuição vertido a um dos países nos quais residiram. Assim como existe este tipo de descontinuidade, devem existir políticas previdenciárias específicas, constantes nos Acordos Internacionais. Nesta publicação, o embaixador Oto Maia diz que os Acordos de Previdência Social são, neste momento, a maneira mais concreta, mais direta que o Governo Brasileiro dispõe para ajudar seus nacionais que são assalariados no exterior, e que a parceria do Itamaraty e do Ministério da Previdência Social surge num terreno onde os aspectos técnicos e políticos têm de andar de mãos dadas. Também se refere aos atendimentos nos balcões dos consulados, no intuito de maiores informações e pela informatização desses serviços. Através desta análise, e dos questionamentos feitos a brasileiros e italianos quanto ao Acordo existente entre os países, observou-se que há necessidade de mais informações dos Ministérios da Previdência Social, nos âmbitos internos de cada país, e dos Ministérios das Relações Exteriores e dos próprios Consulados, uma vez que se constituem nos grandes agentes das políticas externas entre países. Com a interdependência de um mundo globalizado e a saúde como um elemento essencial, precisa-se de uma dinâmica entre a diplomacia para reorientar as políticas externas relativas à saúde, de maneira a contribuir para a proteção da saúde global e dos aspectos previdenciários.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estudo, em seu conjunto, sublinha o crescente papel internacional que a Previdência Social desempenha, bem como a crescente dimensão de seus atributos e competências em nível da propagação das relações exteriores, na formulação e consolidação da garantia da qualidade de vida. A Previdência é um sistema de solidariedade nacional, administrada por um Estado, e no momento em que ocorrem migrações populacionais, encontram-se limites à capacidade de 206

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estender a proteção social para além das fronteiras nacionais. Em decorrência desses movimentos migratórios e da intensidade de seu fluxo impõem-se os Acordos Internacionais de Previdência Social que permitam coordenar as diferentes legislações dos países envolvidos, de maneira a estabelecer regras de reconhecimento recíproco. Ora, não há qualquer país com legislação previdenciária exatamente igual ao de outro país, logo, tais arestas devem se objeto de aplainamentos que possibilitem minorar suas consequências danosas, em prol de um fornecimento mais justo e equânime. Em função destas diferenças, os Acordos Internacionais Bilaterais buscam, mesmo sem alterar a legislação dos dois países que permanece em vigor, equacionar devidamente os direitos obtidos a par de estendê-los, com as devidas reservas, aos beneficiários da outra Pátria. Não se encontra plenamente a reciprocidade, pois nem todos os aspectos da legislação relevante podem estar contemplados em um Acordo Internacional, com díspares legislações regulamentadoras, mas, à medida do bem maior que é a vida humana, promoções de benefícios além fronteiras assumem papel de reconhecimento social. O salutar conhecimento dos direitos que envolvem qualquer cidadão, no caso restrito de acesso aos direitos previdenciários, é condição majoritária para obtenção de resultados conquistados após décadas de busca incessante. Seu desconhecimento leva à ignorância quanto às possibilidades e à perda de direitos adquiridos e não usufruídos. Por exemplo, quem contribui para a Previdência Social Brasileira deve estar atento para a constância de sua contribuição: não pode permanecer, em muitos casos, por mais de 12 meses sem contribuir sob pena de perder o direito ao benefício - este prazo é estendido para 24 meses para aqueles que possuem mais de 120 meses de contribuição - ocorre que muitos italianos que retornaram a sua origem deixaram de contribuir no Brasil, assim, quando alcançam a idade pensionável, requerem o benefício através do INPS Italiano, que consequentemente envia o requerimento ao Órgão Brasileiro, que por sua vez indefere o pedido sob a condição de suspensão do

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recolhimento contributivo, resultando na negativa de concessão do benefício ao usuário requerente. Ainda que os dois países adotem estratégias muito semelhantes em suas políticas de proteção social no que tange à concretização da fase assistencial do direito à saúde, tal fato somente se consolidou nos meados do último século, tendo em conta que até então, na maior parte do processo histórico, essas estratégias encontravam-se temporalmente distanciadas. Mas, ainda que demorada, dita aproximação foi contundente para o estabelecimento de metas mútuas de interesse previdenciário entre o Brasil e a Itália, influenciando de maneira positiva os propósitos conjuntos de interesse individual e recíproco, e alcançando patamares diferenciados de relacionamento fraternal. Através de Acordos Internacionais, a Previdência Social Brasileira concedeu, em 2004, 218 benefícios no valor de R$ 142,7 mil, o que representa uma diminuição de, respectivamente, 50,9% e 42,5% em relação ao ano anterior. As pensões por morte e as aposentadorias por tempo de contribuição foram as espécies cujas participações foram mais relevantes, atingindo, respectivamente 57,2% e 24,8% do valor total concedido. Os países com maior participação no valor total foram Portugal com 66,8% e Espanha com 12,6%, cabendo à Itália o inexpressivo percentual de 0,9%, conforme o site da Previdência Social em seu Anuário Estatístico com fonte na DATRAPEV. Tais dados são relevantes uma vez que demonstram a inversa proporcionalidade entre um fluxo migratório crescente e a decrescente concessão de benefícios naquele período. Seu significado pode estar contido em uma migração de características mais ativas - com emigrantes ainda em plena atividade laboral não beneficiários de direitos adquiridos, ou concessão de benefícios previdenciários mais exigente e restritiva por parte dos organismos brasileiros, ou, ainda, motivadamente de acordo com o resultado da pesquisa deste trabalho, desconhecimento por parte dos emigrantes brasileiros de seus direitos recorrentes. Importa salientar, de qualquer forma, que os valores despendidos

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naquele momento representam uma parcela reduzida frente aos dispêndios gerais da Previdência Brasileira, traduzindo a relação custo X benefício como bastante saudável ao parâmetro social. Há um crescente reconhecimento, entre os países, da importância de que os direitos humanos dos migrantes e suas famílias sejam preservados, especialmente em um período marcado pela formação de grandes blocos de países e o aumento significativo de fluxos migratórios. Mas as tratativas e os embates decorrentes das negociações envolvendo outros regimes de Seguridade Social tem levado a uma considerável demora até a ratificação plena dos Acordos. A importância destes Acordos de Previdência Social é que somente com eles se torna possível o reconhecimento do tempo de contribuição feito no exterior para outro regime. O mesmo vale para o estrangeiro de um desses países quando em relação com o Brasil. Nos países que não possuem Acordo, nada disto se viabiliza. Pela Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, da ONU, o artigo 27 estabelece: 1. Os trabalhadores migrantes e seus familiares desfrutarão, no Estado empregador, com respeito à Seguridade Social, do mesmo tratamento que os nativos, desde que cumpram os requisitos previstos na legislação aplicável desse país ou nos Tratados Bilaterais e Multilaterais aplicáveis. As autoridades competentes do país de origem e do país empregador poderão tomar, a qualquer momento, as atitudes necessárias para determinar as modalidades de aplicação dessa norma. 2. Quando a legislação aplicável não permitir que os trabalhadores migrantes ou seus familiares tenham direito a alguma prestação, o Estado em questão, com base no tratamento outorgado aos nativos que estiverem em situação similar, considerará a possibilidade de reembolsá-los o montante das contribuições que tiverem aportado com relação a essas prestações.

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Nesse sentido, o artigo 61, cláusula 3, estabelece: 3. Com relação aos acordos Bilaterais ou Multilaterais que sejam aplicados, os Estados-Membros procurarão assegurar que os trabalhadores vinculados a um projeto estejam devidamente protegidos pelos sistemas de seguridade social de seus países de origem, ou de residência habitual durante o tempo de vinculação ao projeto. Os Estados-Membros interessados tomarão medidas apropriadas a fim de evitar contestação de direito ou duplicação de pagamentos a esse respeito.

Portanto, ambos os países Acordantes tem responsabilidades sobre os trabalhadores migrantes, no que tange à Seguridade Social, não havendo com isso, omissão em relação às responsabilidades. Diante do inexorável reconhecimento internacional da importância de legislações que garantam, em nível interno a cada país, a assistência previdenciária de sua população, a par da bilateralidade e multilateralidade quando pretendida por dois ou mais Estados simultaneamente, imprime-se que os potenciais beneficiários sejam cientes de suas prerrogativas de alcance dos benefícios a que fazem jus. Inexplicável que haja tamanho desconhecimento de direitos reconhecidos, primordialmente, como demonstrou a pesquisa realizada, sobre público-alvo que tenha formação e experiência profissional em nível bem superior à média dos indivíduos em geral. Se, entre uma amostragem de entrevistados que se mostrou predominantemente diferenciada para uma cultura privilegiada, houve a ocorrência expressiva de desconhecimento da existência ou termos do Acordo mantido entre o Brasil e a Itália, o que dizer de toda aquela maciça parcela da população cujo acesso às informações é precária? Ainda que grande parte da população de ambos os países esteja enraizada, não tendo pretensão nem condições de buscar perspectivas de qualquer ordem no outro Estado, como justificar a falta de conhecimento de Acordos desta natureza? 210

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O círculo vicioso que explicaria tal carência pode ser traçado a partir da relação falta de informação que gera falta de conhecimento que gera falta de informação – infindável se não truncado o processo pela inserção de dispositivos e providências que alterem esta prejudicial cadeia de omissões. Um dos procedimentos passíveis de resolução reside no aparelhamento das Representações Diplomáticas de ambos os países, com treinamento específico de pessoal de contato ao público. Mister se faz que, a despeito das referidas Representações Diplomáticas afirmarem sua disfunção relativamente a tais competências, tais Consulados e Embaixadas são os mais concentrados organismos de um país presentes em outro país, com representatividade política reconhecida, facilmente adaptáveis a uma representatividade social também reconhecível. Outra forma de esclarecer a garantia de tais direitos é através de Conferências Internacionais, para permitir a troca de informações sobre a seguridade social, possibilitando, assim, o intercâmbio de conhecimento e práticas bem sucedidas entre os segurados e a Previdência Social. Interessante seria a criação de um modelo de controle dos documentos enviados e recebidos por um Órgão Centralizador, sem burocracias, sem elevação de custos, e com agilidade para a obtenção dos benefícios perante aos Acordos Internacionais. Os dados repassados por via “on-line”, sem prejuízo da segurança de identificação, com implementação de formulários únicos e específicos para a permissão de consultas. Assim, seria adotado um único modelo sistematizado para brasileiros e estrangeiros, para todos os países em que o Brasil tenha ajustado Acordos de Previdência Social, evitando a burocratização e promovendo a agilidade a todos os segurados. Por fim, mas sem esgotar as possibilidades, haveria a necessidade de formação/capacitação de recursos humanos para um conhecimento de legislação de todos os países parceiros, com estruturas de diálogo e gestão que sirvam de pontos de contato, pois se corre o

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risco de descumprimento e perda de confiança externa por parte da comunidade internacional, sem falar no desrespeito aos direitos dos potenciais beneficiários. É necessário repensar as Relações Internacionais nos Acordos da Previdência Social, com Cooperações entre Instituições públicas capazes de dialogar e cumprir os Acordos, na obtenção das garantias pactuadas, da divulgação para um bem-estar dos imigrantes das nações envolvidas. Além do mais, urge o desenvolvimento de uma Assessoria na área de Cooperação para brasileiros no exterior, e estrangeiros de vários países no Brasil, ampliando as informações em sites, com levantamentos de dados tempestivos de Instituições de Saúde e ONGs, bem como qualificando a assistência e o direito à saúde. O desafio está na troca de informações entre as previdências dos países, premente a criação de um elo entre os organismos dos países que devam repassar estas informações; e destes países com sua população, esteja esta população em qualquer território, quando o segurado tenha o conhecimento de seus direitos e a necessária assistência. Não se tem informação do alcance do interesse dos órgãos governamentais dos países parceiros na extensa divulgação dos dados acordados. Ainda que política, diplomática e socialmente defendidos os direitos dos migrantes na contextualização dos países de destino, poucas informações são disponibilizadas em caráter geral. Dados de concessão de benefícios a brasileiros no exterior, por exemplo, são disponibilizados com o interstício de anos entre a ocorrência geradora e sua divulgação. Quando ocorrem dificuldades na divulgação de dados retrógrados, que faz muito deveriam estar consolidados, obrigatórias se impõem medidas corretivas que, com muita dificuldade, seriam tratáveis simultaneamente com as medidas preventivas acima relatadas. É passível que à medida do acréscimo de novos Acordos, novos interesses sejam despertados para a efetiva e eficaz validação dos já existentes.

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HOSPITALIDADE OU HOSTILIDADE? O TRABALHO HUMANO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL 165 ANOS DEPOIS DO MANIFESTO COMUNISTA Rose Dayanne Santos de Brito Graduanda do 9° semestre do curso de Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Realizou pesquisa na UnB como bolsista do CNPQ (2010-2012). ([email protected])

Resumo: O presente artigo propõe pensar a noção de hospitalidade na atual conjuntura de crise político-econômica internacional. Primeiramente, são demarcados os contextos históricos do final do século XVIII e do Pós 2ª Guerra Mundial para demonstrar que os ideais de hospitalidade e direitos humanos são conseqüências das lutas pela emancipação humana ao longo da história. Nesse sentido, procura-se evidenciar as condições atuais dos trabalhadores em decorrência da crescente desigualdade propiciada pelo capitalismo hegemônico e pela crise financeira. Para investigar, ao final, como garantir segurança e hospitalidade aos trabalhadores, se o modelo capitalista valora a guerra lucrativa dos mercados em detrimento da paz internacional. Palavras-chave: Democracia – Capitalismo - Direitos Humanos. Sumário: 1. Introdução. 2. O sonho da paz perpétua 3. Proletários de todos os países, uni-vos! 4. A Hospitalidade incondicional 5. Do Bem-estar social ao império neoliberal 6. Democracia da Multidão e Amor político 7. Ação, Reação, Indignação! 8. Considerações Finais 9. Referências.

1 INTRODUÇÃO Desde a antiguidade grega, os filósofos dedicam-se a estudar as desigualdades entre os seres humanos e a possibilidade da justiça social. A modernidade, entretanto, desenvolveu esses temas de

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uma maneira bastante peculiar, uma vez que o modo capitalista de produção ao suplantar o feudalismo trouxe novas configurações no mundo do trabalho e nas organizações sócio-política. No século XVIII, o pensamento de Immanuel Kant propiciou contribuições significativas não apenas na filosofia, mas também no direito. Ao refletir sobre as relações internacionais, Kant pergunta sob quais condições, independentes da experiência, os sujeitos podem conservar sua liberdade externa e viver, ao mesmo tempo em sociedade. O direito, nessa direção, pode ser entendido como o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um pode conviver com o arbítrio do outro segundo uma lei universal de liberdade. Para a garantia da paz, os direitos cosmopolitas deveriam ser regidos pelas condições de hospitalidade universal. É relevante ressaltar, contudo, que Kant rejeita qualquer moralização do direito, por isso a comunidade jurídica não seria uma comunidade de solidariedade entre as pessoas, mas uma comunidade de liberdade entre sujeitos responsáveis. Por fim, Kant elege o Estado republicano como modelo político ideal. Posteriormente, Marx faz uma leitura diferente do papel do Estado, cujo surgimento é simultâneo e vinculado à propriedade privada e à divisão social do trabalho. Logo, para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe. No Manifesto Comunista, que completa 165 anos este ano, Marx faz referência as inovações trazidas pela classe burguesa, a qual revolucionou as relações sociais e demonstrou o que a atividade humana é capaz de realizar na sociedade mundial. Não se pode, portanto, negar os impactos promovidos pela burguesia e os vínculos globais decorrentes da internacionalização dos mercados e das pessoas. Nesse sentido, a classe burguesa “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito.”89 Por outro lado, desencadeou desigualdades profundas

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Marx, Karl; Engels, Friedrich. O Manifesto Comunista. Edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores. Versão para eBook. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2013, p. 11.

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no mundo e uma exploração cínica e brutal dos seres humanos. A internacionalização do trabalho e as condições desumanas decorrentes do modo capitalista de produção provocaram diversas insurgências e lutas operárias para a garantia de melhores condições no trabalho. É interessante notar que, hoje em dia, as crises cíclicas do capitalismo re -afirmam as ideias defendidas por Marx, o qual depositou apenas nos trabalhadores a força revolucionária para as transformações sociais. De todo modo, compreende-se o valor histórico do texto o Manifesto Comunista e as conquistas jurídicas no mundo do trabalho. Como pensar a concepção kantiana de hospitalidade após a crítica de Marx à economia política? É possível a constituição da hospitalidade no capitalismo? Após as catástrofes do século XX, o filósofo Emmanuel Levinas, de origem judaica, retoma a noção de hospitalidade à luz da ética da alteridade, a qual se distancia do pensamento kantiano. A perplexidade dos crimes cometidos na 2ª Guerra Mundial fez surgir, nas mais diversas esferas do conhecimento, a urgência de um novo sentido para o humano, em outras palavras, a necessidade de pensar outro modo de ser. Um “eclipse ético” surgia nas perguntas dos “jovens alemães, que se voltavam aos seus pais grisalhos e indagavam: a que ordens criminosas estavam obedecendo? Como dizer que não sabiam?”90 Sob o mesmo eclipse, os juristas buscavam promover mais segurança e proteção extra-nacional aos indivíduos, uma vez que a ordem jurídica não apenas legitimou o estado nazista, mas emudeceu os gritos da verdadeira testemunha, o Muselmann, o morto vivo dos campos de concentração. Era preciso, pois, a criação de instituições e declarações internacionais para concretizar a cooperação entre os países e garantir efetivação aos direitos humanos reconhecidos universalmente. A apresentação histórica das lutas sociais e das conquistas de direitos é necessária para entender o mundo contemporâneo. O capitalismo hoje, hegemônico e excludente, destruiu o Estado de Bem

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LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2009. p. 14.

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-Estar social, diante disso, como pensar a situação dos trabalhadores em face do desemprego estrutural? Como garantir o pleno emprego, se atualmente a maioria encontra-se desempregada? O direito do trabalho surgiu das lutas operárias para atenuar as disparidades ontológicas entre o capital e o trabalho, mas a exploração subsiste de forma ainda mais monstruosa. Aqui a piada de Rabinovitch é bastante ilustrativa: “Por que você acha que é explorado”? “Por dois motivos. Primeiro, quando trabalho, o capitalista se apropria da minha mais-valia.” “Mais você está desempregado! Ninguém está explorando sua mais-valia porque você não está produzindo nenhuma!” “Esse é o segundo motivo.”91 As contradições agravadas entre a força produtiva e relação de produção demonstra a falência do capitalismo como modelo ideal de sociedade. Se no século XIX Marx afirmou que o espectro do comunismo rondava a Europa, na atualidade este espectro são os novos movimentos sociais. É nessa direção que o presente artigo tenta refletir sobre um novo mundo do trabalho vinculado à hospitalidade e à justiça social. Certo de que a noção de utopia enunciada por Galeano perfaz todo o trabalho. “Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar”92.

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O SONHO DA PAZ PERPÉTUA “No debe haber guerra.” (KANT, 1999)

A filosofia moral de Kant entende que a base para toda razão moral é a capacidade do homem de agir racionalmente, afastando a

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ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 16. GALEANO, Eduardo.  As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1994. p. 310.

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crença de que o homem é naturalmente bom. Nesse sentido, ele não se baseava nas leis naturais para ditar o comportamento humano contrapondo-se, por exemplo, a idéia de Rousseau do “bom selvagem”. O estado de natureza, para ele, destoa da noção de convivência pacífica entre os seres humanos. Diante disso, La paz entre hombres que viven juntos no es un estado de naturaleza –status naturalis-; el estado de naturaleza es más bien la guerra, es decir, un estado en donde, aunque las hostilidades no hayan sido rotas, existe la constante amenaza de romperlas. Por tanto, la paz es algo que debe ser ; pues abstenerse de romper las hostilidades no basta para asegurar la paz, y si los que viven juntos no se han dado mutuas seguridades- cosa que solo en el estado puede acontecer, cabrá que cada uno de ellos, habiendo previamente requerido al outro, lo considere y trate, si se niega, como a um enemigo.93

A partir dessa reflexão o direito não é uma instituição aleatória e, menos ainda, arbitrária entre os homens. É algo necessário. Nesse ínterim, Kant fundamenta o direito e o Estado a partir da razão prática pura e, por conseguinte, diferencia legalidade de moralidade à luz dos imperativos hipotéticos e da vontade heterônoma contribuindo para o formalismo jurídico. A hospitalidade, portanto, não é apenas uma questão moral, mas deve ser tratada também no âmbito jurídico, ou seja, ele retira da noção de hospitalidade qualquer ideia relativa à filantropia e determina sua vinculação na doutrina moral à autonomia da vontade e ao imperativo categórico já, na esfera jurídica, ressalta que: O princípio racional do direito público não vale somente para a constituição interna de um Estado. Se não existem relações jurídicas entre os Estados, também estes vivem, entre si, no estado natural da guerra em potencial, em que reina o “direito do mais forte”. O estado de natureza internacional só

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KANT, Immanuel. La paz perpetua. Biblioteca Virtual Universal. Disponível em: . Acesso em 13 de Abril de 2013, p. 6.

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é superado em favor de uma ordem jurídica e pacífica pela instauração de uma comunidade dos Estados em uma “sociedade das nações, segundo a idéia de um contrato social originário”.94

Nota-se, portanto, a crença kantiana no papel exercido pelo Estado, o qual possibilitaria aos cidadãos efetivar suas liberdades. Por outro lado, entende que a criação de um “Estado mundial” impossibilitaria as pretensões cosmopolitas e pacíficas na sociedade internacional, na medida em que poderia desencadear num totalitarismo. Por isso, defende que nenhum Estado interfira na constituição e no governo de outro Estado. Além do mais, aconselha que a constituição civil de todos os países seja a republicana- entendida como a separação entre o poder legislativo e o executivo. É importante ressalvar, todavia, que a idéia de hospitalidade em Kant está vinculada apenas a cidadania, explica Derrida: Quando [Kant] fala do tratado da paz universal, pensa numa hospitalidade de cidadão para cidadão. Mas hoje devemos nos preocupar com pessoas que são lançadas fora de seus países, sem cidadania, e que não são respeitadas como cidadãos. É preciso pensar numa hospitalidade não mais voltada somente para cidadãos, porém que se dirija a qualquer um (...) Todos os que, desde pelo menos a primeira guerra mundial, foram lançados na estrada do mundo: milhões de deportados, pessoas deslocadas, imigradas à força.95

Nesse ínterim, fica evidenciado que as noções de hospitalidade e paz perpétua em Kant são baseadas essencialmente em princípios racionais, retirando de tais conceitos os aspectos da solidariedade e alteridade. O acolhimento do estrangeiro proposto por Kant

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HÖFFE, Otrifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 261. DERRIDA, JAQUES. A solidariedade dos seres vivos. Entrevista publicada no suplemento Mais! da Folha de S. Paulo. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2013, negrito meu.

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se assemelha a ideia de tolerância, ou seja, eu hospedo o estrangeiro sob determinadas condições: primeiro, se ele for reconhecido juridicamente como cidadão; segundo, se ele se adéqua às minhas regras; e terceiro, se ele renuncia àquilo que o torna diferente de mim.

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PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS! “A desvalorização do mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das coisas.” (MARX, 1985)

A Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos foram eventos importantes para o século XVIII, no entanto desencadearam interpretações diferentes. Kant ficou seduzido pelo progresso racional e histórico conquistado pelos seres humanos. Hegel, por conseguinte, enfatizou a figura do Estado como símbolo de libertação dos indivíduos. Marx, porém, faz uma leitura diferenciada entendendo a ascensão da burguesia como a radicalização do antagonismo de classe e o Estado como um instrumento de dominação. Para Marx, seria uma contradição pensar a realização da liberdade humana no capitalismo. Com esse entendimento, publica o livro “Crítica da filosofia do direito de Hegel” onde apresenta de forma ainda rudimentar suas idéias sobre o papel revolucionário da classe proletária. A emancipação humana seria construída através: Da formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já

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não possa exigir um título histórico, mas apenas o titulo humano (...). Uma esfera, por fim, não pode se emancipar sem emancipar todas as outras.96

O Estado e o direito burguês podem ser entendidos como sistemas de relações sociais tutelado no interesse da classe dominante; deveria haver, então, a união revolucionária dos proletários, ou seja, de todas as pessoas que vendiam sua força de trabalho para sobreviver. No ano de 1848, Marx publica em Londres o Manifesto do Partido Comunista, o qual tinha sido encomendado pela Liga dos Justos- organização conspirativa, ativamente comprometida com a construção de uma alternativa ao mundo de desigualdades e opressão existente. O texto ratificava a idéia de que a grande revolução vinha nas asas do tempo, por isso era importante a publicação de uma carta programática com os ideais políticos e sociais dos comunistas, já que o mundo vivia em constantes insurgências, porém sem um ideal político comum. O que movia as pessoas era o desejo de adquirir mais direitos. Nesse sentido, destacaram-se os eventos da insurreição dos operários têxteis de Lyon em 1834; as lutas pela redução da Jornada de Trabalho em 1836-1838; a grande greve de Paris em 1840; as greves de Loire 18461847; a crise econômica inglesa em 1847. O mundo era hostil aos trabalhadores e a exploração era desenfreada e brutal. Não obstante, os comunistas defendiam que o verdadeiro resultado de suas lutas não era o sucesso imediato, mas a união crescente. Diante disso, os trabalhadores começaram a formar associações contra a burguesia; fundaram organizações permanentes com grande participação dos sindicatos tendo como finalidade a ação prática. As ideias de Marx e Engels tiveram grande relevância na conscientização política dos indivíduos, uma vez que ficou evidenciado que o trabalho subordinado e alienado não criava apenas os objetos; ele transformava o próprio trabalhador em mercadoria,

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MARX, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 156.

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isto é, o operário ficava mais pobre à medida que produzia mais riqueza. A desigualdade promovida pelo capitalismo era incompatível com uma sociedade pacífica. Por isso, o final do Manifesto Comunista pode ser entendido como um convite à participação dos trabalhadores de todos os países para sepultar definitivamente o modo de produção capitalista. A luta revolucionária proposta por Marx e Engels busca a transformação de toda sociedade e não apenas a garantia de privilégios à classe trabalhadora. Em conformidade as condições históricas do século XIX, os proletários deveriam assumir o papel de transformação social. Atualmente o filósofo marxista Holloway enfatiza que: [...] não lutamos como classe trabalhadora, lutamos contra ser classe trabalhadora, contra ser classificados. A unidade do processo de classificação (a unidade da acumulação de capital) é que dá unidade a nossa luta, não nossa unidade como membros de uma classe comum. [...] Nada de bom existe em sermos membros de classe trabalhadora, em sermos ordenados, comandados, separados de nosso produto e de nosso processo de produção. A luta não surge do fato de que somos a classe trabalhadora, mas do fato de que somos-e-não-somos classe trabalhadora, de que existimos contra-e-mais-além de sermos classe trabalhadora; de que eles tratam de ordenar-nos e comandar-nos, mas nós não queremos ser ordenados nem comandados; de que eles tratam de separar-nos do nosso produto e do nosso produzir e da nossa humanidade e de nós mesmos e nós não queremos ser separados de tudo isso.97

Não se pode negar a importância das obras de Marx e Engels para entender o mundo contemporâneo. Por outro lado, a configuração atual da sociedade mudou. As relações globais foram intensificadas e a maioria da população é de clandestinos e desempregados, logo o discurso obreirista precisa ser revitalizado.

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HOLLOWAY, J. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Ed Viramundo, 2003, p. 212.

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A HOSPITALIDADE INCONDICIONAL “Justiça é a relação com os outros” (LEVINAS, 1988)

A noção Kantiana de hospitalidade não transformou na prática o brutal e desumano tratamento aos estrangeiros, refugiados e aos trabalhadores. Além disso, a mais-valia despertou a humanidade do sonho perpétuo da paz, porque o sistema capitalista não apenas fomenta, mas se nutre das desigualdades e exploração. Nota-se que a filosofia ocidental se caracteriza pela totalidade do ser centralizada no culto do Mesmo e na exclusão do outro – o refugiado, o pobre, etc. Derrida reconhece esse autismo europeu quando afirma que: “houve, aliás, um tempo, nem longíquo nem terminado, em que “nós os homens”, queria dizer, nós os europeus adultos machos brancos carnívoros e capazes de sacrifício”98. É como crítico da totalidade que o filósofo lituano Emmanuel Levinas se destaca no século XX. Segundo este autor, “o itinerário da filosofia permanece igual aquele de Ulisses cuja aventura no mundo não é senão um retorno a sua ilha natal- uma complacência no Mesmo, uma indiferença ao Outro”99. Diante disso, Levinas se contrapõe a noção racional individualista e antropocêntrica para demonstrar a importância da alteridade e do acolhimento incondicional do outro. O filosofo lituano de origem judaica foi prisioneiro no campo de concentração, ou seja, uma vítima direta dos horrores do Holocausto. Em um dos seus livros conta a história do cão Bobby, que vagava pelo campo e era companhia diária dos prisioneiros nos trabalhos forçados. “O cão errante, vindo de qualquer parte, era a única atestação da humanidade daqueles homens que tinham diariamente

DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2. ed, 2010, p. 34.



LEVINAS, EMMANUEL. Humanismo do outro homem. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 49.

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sua condição humana esmagada”100. Os prisioneiros desenvolveram uma amizade sobrenatural pelo animal; como um kantiano pautado apenas na racionalidade poderia interpretar tais sentimentos? Nota-se que as tragédias da 2ª Guerra Mundial possibilitaram repensar o sentido humano e a ética, com o intuito de que esses atos bárbaros praticados contra a humanidade jamais se repetissem. Em uma entrevista concedida ao periódico Autrement, em 1988, Levinas declara que [...] é a hora da justiça, da comparação dos incomparáveis “juntando-se” em espécies e gênero humanos. É hora das instituições habilitadas a julgar e a hora dos Estados em que as instituições se consolidam e a hora da Lei universal que é sempre dura lex e a hora dos cidadãos iguais diante da lei.101

Para ele, tanto o direito quanto a política não poderiam se dissociar completamente dos valores éticos. E, nesse sentido, desenvolve a idéia do direito infinito que aparece transpassada na obra “Do sagrado ao santo”, cujo destaque está visível na “metáfora do operário”. Levinas possibilita, portanto, uma ruptura na tradição, uma vez que não restringiu os questionamentos filosóficos à herança grega, mas também os associou a sabedoria hebraica da tradição hermenêutica bíblico-talmúdica. Nesse contexto, a idéia do direito infinito floresce sob a égide do “humanismo judaico”. Com isso, ele possibilita um novo entendimento sobre o direito equiparado a idéia de justiça e não apenas a meros procedimentos formais. Derrida reconhece tal grandeza e utiliza algumas das categorias de Levinas para re-pensar a justiça e propor a desconstrução do direito102. HADDOCK-LOLO, Rafael. Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Levinas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006. 101 LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2004. p. 293. 102 Em Força de Lei, Derrida afirma: “eu seria tentado, até certo ponto, a aproximar o conceito de justiça – que tendo a distinguir, aqui, do direito- daquele de Lévinas. Eu o faria em razão daquela infinidade, justamente, ou da relação heterônoma, cuja infini100

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O pensamento de Emmanuel Levinas evidencia, em suma, que nossas interações sociais não foram sustentadas pelas relações éticas, por isso o pior pôde acontecer, ou seja, o não reconhecimento do outro como ser humano. Esclarece que a “compreensão do Ser” em detrimento do “esquecimento do Outro” foi uma violência cometida na história da filosofia desde Parmênides. O horror do Holocausto, para Levinas, foi uma conseqüência dessa filosofia que valorou a existência em detrimento dos existentes, por isso propõe a revisão da diferença ontológica heideggeriana. Nos dias de hoje, partindo dessa leitura, Costa Douzinas entende que “a lei da modernidade baseada no direito do Eu e no império do sujeito é estranhamente imoral enquanto tenta assimilar e excluir o Outro”103. Diante disso, [...] o paradoxo dos direitos humanos emerge em uma nova formulação: direitos humanos são, ao mesmo tempo, a criação desse primeiro dever ético fundamental e a distorção do imperativo moral, um reconhecimento da singularidade do Outro que, entretanto, revela a necessidade de acomodar muitos.104

Chega-se ao entendimento que a justiça como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história105. A hospitalidade se nutre, pois, desta impossibilidade, caracterizada aqui por sua infinitude, que se produz como desejo. Ela se alimenta da sua própria fome, assim como a carícia. A hospitalidade consiste em não se apoderar de nada, em solicitar o que se afasta incessantemente da sua Forma para um futuro – nunca suficientemente futuro – em solicitar o que se escapa dade não posso tematizar e do qual sou refém. (2010, p. 41, grifo meu). Já em Adeus a Emmanuel Lévinas, ele desabafa “cada vez que leio ou releio Emmanuel Levinas sintome inundado de gratidão e de admiração, inundado por esta necessidade (...) à justiça, diz ele em algum lugar, numa poderosa e formidável elipse: a relação ao outro quer dizer a justiça. (2008, p. 26, grifo meu). 103 DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 353. 104 Ibidem, p. 358. 105 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla

Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 55.

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como se ainda não fosse. Assim como a carícia, a hospitalidade incondicional procura e rebusca. Não é uma intencionalidade de desvelamento, mas de procura: caminho para o invisível. Num certo sentido, exprime o amor, mas sofre da incapacidade de dizer. Tem fome dessa expressão, num incessante aumento de fome106.

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DO BEM-ESTAR SOCIAL AO IMPÉRIO NEOLIBERAL “Não existe essa coisa de sociedade o que há são indivíduos.” (THATCHER, 1993)

A queda dos regimes totalitários na Europa Ocidental, nazifascismo, aliada aos resquícios patológicos da Grande depressão de 1929 suscitou a urgência de uma nova organização político-social, podemos dizer, de maneira bastante resumida, que este momento na história ficou conhecido como: “Welfare State”. O Estado de bem -estar social buscou estender a proteção Estatal às diversas classes sociais, por isso foram criados diversos programas assistenciais para suprir as necessidades da população. Esta política social pleiteava ampliar a noção de cidadão e atenuar as disparidades inerentes ao regime capitalista, dentre elas, a propriedade privada e a superioridade lucrativa dos mercados. Franklin Delano Roosevelt consolidou o Estado de Providência nos Estados Unidos com a criação de empregos e com o discurso protecionista do Estado. A integração entre a política e o social, marcante no governo de Roosevelt, ainda hoje é lembrada e fez dele um dos melhores presidentes norte-americanos. Nessa direção, houve um crescimento marcante da social-democracia, na medida em que parecia vital a conversão dos lucros econômicos para garantir me Alusão à p. 256 do livro Totalidade e Infinito.

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lhores condições de vida à população. Essas idéias foram propagadas e idealizadas pelo economista Keynes, segundo o qual: O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, seja através de seu sistema de tributação, seja, em parte, por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, talvez, recorrendo a outras medidas [...] Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique na necessidade de excluir ajustes e fórmulas de todas as espécies.107

As ideias Keynesianas proporcionaram o desejo de um equilíbrio econômico internacional com a finalidade de evitar novas catástrofes na economia. Foi baseado neste modelo protecionista que surgiu, em 1944, o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Estado Providência buscou atenuar as desigualdades sociais, garantir pleno emprego aos trabalhadores e exercer um papel ativo na Economia, porém ele foi desconstruído pelo chamado: Neoliberalismo. Na década de 1970, Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA, passaram a privatizar empresas nacionais e revogar as garantias jurídicas concedidas aos sindicatos e aos trabalhadores. Era o retorno, pois, ao “laissez-faire” e a prevalência mercadológica do liberalismo clássico, porém de maneira mais bárbara. Este pensamento foi disseminado pelo mundo através da globalização, aumentando desenfreadamente o índice de pobreza e as desigualdades no mundo. Com o slogan neoliberal “a ganância é uma coisa boa”, a socialização ficou subordinada ao individualismo egoísta e o senso de coletividade foi substituído pelo “culto ao eu”, que passou a ser a regra em consonância aos desejos econômicos de lucratividade nos mercados. O humano deu lugar ao capital. As relações humanas KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. New York: HBJ Book, 1964. p. 378.

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mercantilizadas foram presas na lógica insana do capitalismo: no desejo de consumo nunca saciável. Hoje em dia, [...] estamos diante de um sujeito que não é mais necessariamente marcado pela disciplina, mas pelos signos, imagens e imperativos publicitários, por meio dos quais ele se inscreve no universo das mercadorias, acreditando ser possível “comprar” afeto, bem-estar, auto-estima, respeitabilidade, enfim, atributos que em outros tempos históricos eram acessíveis por meios distintos, como os laços sociais, por exemplo.108

Marx já não havia debatido isso no século XIX? Com a crise econômica mundial de 2008, os livros de Marx saíram das prateleiras para serem relidos e a instabilidade dos mercados mundiais passou a conviver diariamente com os coveiros do capitalismo: os movimentos sociais.

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DEMOCRACIA DA MULTIDÃO E AMOR POLÍTICO “Ler O capital não será suficiente se não soubermos ler também os sinais da rua.” (BERMAN, 1987)

A sociedade do século XIX não é igual a do século XXI. As formas de trabalho não são as mesmas. O proletariado não parece ser a única classe capaz de revolucionar o capitalismo. Por que reler Marx, então? É nesse caminho que destacamos o pensamento do filósofo italiano, Antônio Negri, que analisa a teoria de Marx sob a égide da nova conjuntura social. Para ele, MANSANO, Sônia Regina Vargas. Sorria, Você Está Sendo Controlado: Resistência e Poder na Sociedade de Controle. São Paulo: Summus Editorial, 2009. p. 76.

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[...] à medida que a história avança e a realidade social se transforma, as velhas teorias deixam de ser aplicáveis. Precisamos de novas teorias para a realidade. Para seguir o método de Marx, assim, devemos nos afastar das teorias de Marx, na medida em que o objeto de sua crítica, a produção capitalista e a sociedade capitalista como um todo mudou. Em termos simplificados, para seguir os passos de Marx temos realmente de ultrapassá-lo, desenvolvendo, com base em seu método, um novo aparato teórico adequado à nossa atual situação.109

Com base nisso, Negri constrói sua teoria tendo como inspiração os componentes primordiais do método de Marx: a tendência histórica, a abstração real, o antagonismo e a constituição da subjetividade. Em virtude da ampla dimensão teórica, o presente trabalho apenas introduz breves noções da filosofia de Negri, a saber: o trabalho imaterial, a multidão e a consciência do amor político. Com o propósito de demonstrar que: [...] as grandes lutas antifascistas das décadas de 1930 e 1940, e das numerosas lutas de libertação da década de 1960 até as de 1989, as condições da cidadania da multidão nasceram, se espalharam e se consolidaram. Longe de derrotas, as revoluções do século XX fizeram avançar e transformou os termos do conflito de classe, propondo as condições de uma nova subjetividade política, uma multidão insurgente contra o poder imperial. O ritmo estabelecido por esses novos movimentos revolucionários é a batida de uma nova era, uma nova maturidade e metamorfose dos tempos.110

A sociedade industrial foi revolucionada pelo capitalismo informacional. As fábricas tornaram-se nômades. Em certo sentido, elas contrariam a lógica, pois estão e não estão em uma localidade fixa. Nada impede que o trabalhador, em um dia comum de serviço, HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 189. 110 HARDT, M.; NEGRI, A. Império. São Paulo: Record, 2005. p. 433-434. 109

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vá à fábrica e ela esteja fechada, tendo se transferido para outro país. O capitalismo hegemônico possibilitou a brutal exploração global do mundo do trabalho, uma vez que as fábricas migram para os paraísos fiscais e onde encontram mão de obra mais barata. Se os trabalhadores fazem greve no país A, elas migram para B onde poderão lucrar mais e evitar ações trabalhistas, assim segue a devastação do ser humano. Por outro lado, na sociedade pós-industrial, a produção fabril não se configura isoladamente como a única forma de trabalho, convivendo, por exemplo, com o trabalho imaterial característico dos novos tempos. Para Negri e Hardt o trabalho imaterial é entendido como aquele que produz um bem imaterial, um produto cultural, conhecimento ou comunicação. Este tem uma relevância no mundo contemporâneo por diversas razões, em especial, por possibilitar o surgimento de uma nova classe revolucionária, a multidão. Nessa perspectiva, o filósofo italiano conclui que: La única base posible reside em los movimentos globales de poblaciones y em su rechazo de las normas y reglas globales de la explotación. Llevar la rebelión al terreno del espacio social global en um plano cosmopolítico significa pasar por la profundización de las resistências locales em las redes sociales productivas, em las banlieues, las metrópolis y en todas las redes que conectan el proletariado en su proceso de formación de la multitud. Construir el espacio público global exige que la multitud, em su êxodo, cree las instituciones que pueden consolidar y fortalecer las condiciones antropológicas de la resistência de los pobres.111

Enquanto no século XIX, Marx depositou na classe proletária a expectativa de destruição do capitalismo, para Negri a nova sociedade desencadeou a formação de novos atores participativos e insurgentes; a constituição da multidão, portanto, seria capaz de destruir definitivamente o império do capital. Nota-se, por conseguinte, que o conceito de multidão designa um sujeito social que não se baseia na unidade, mas sim no respeito às diferenças agindo em conjun HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Ediciones Akal, S. A., 2011. p. 253.

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to com base em interesses comuns. Com esse fundamento, Negri critica o modelo político representativo e a idéia de unicidade soberana e governamental. Conseqüentemente, anuncia a democracia da multidão como paradigma contra a guerra, na medida em que a multidão ao se autogovernar cria efetivamente um estado de felicidade duradouro. A força da multitude é a única capaz de banir as desigualdades sociais e criar um novo mundo cujo produto não seria o ódio da esfera privada, mas o amor comum. Segundo Negri: El amor compone singularidades, como temas de uma partitura musical, no como unidad, sino como uma red de relaciones sociales. Reunir esas dos caras del amor - la constituición del común y la composición de singularidades - es un desafio central para comprender el amor como um acto material y político. 112

As críticas de Negri e Hardt ao neoliberalismo são importantes para pensar novas possibilidades de constituição política e social. O objetivo destes filósofos, porém, não é criar receitas fabricadas e comercializáveis, mas contribuir para um pensamento crítico em relação a sociedade capitalista. Inclusive, Negri participou do Fórum Social Mundial apresentando seu ponto de vista sobre as novas alternativas à crise atual.

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AÇÃO, REAÇÃO, INDIGNAÇÃO! “Eu desejo a todos, a cada um de vocês que tenham seu motivo de indignação.” (HESSEL, 2011)

Em 1989, o filósofo e economista Fukuyama, idealizador do governo Reagan, ficou conhecido ao publicar o artigo intitulado “O HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Ediciones Akal, S. A., 2011. p. 193-194.

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fim da história”, por sua vez, Margaret Thatcher, em 1994, afirmou que “ela e Reagan ajudaram a demolir o comunismo.” Na atualidade, porém, estes pensamentos foram invalidados. Em primeiro lugar, ficou comprovada com a crise de 2008 que o Capitalismo não é a última, muito menos, a melhor das formas de organização econômico-social. Se a dama de ferro estivesse viva, talvez reconhecesse que o neoliberalismo, na verdade, não destruiu o comunismo, mas sim acelerou a falência autofágica do capitalismo. As resistências sociais estão cada vez mais organizadas e sofisticadas como ficou visível, por exemplo, nas Revoluções árabes e no movimento dos indignados. Se o conceito clássico de comunismo se define pela auto-gestão social e pela inexistência de classes sociais, de propriedade privada e de Estado, é inquestionável a conclusão de que o comunismo nunca existiu na URSS. É interessante, nesse sentido, o posicionamento atual do filósofo francês Badiou que entende o comunismo como a idéia de emancipação de toda a humanidade. Fica visível que a ação neoliberal não apenas gerou fortes reações, mas também indignações. No funeral de Thatcher, os 4 mil policiais para patrulhar as ruas de Londres durante o cortejo fúnebre não impediram diversos protesto. As pessoas demonstraram mensagens de repúdio ao legado de Thatcher com os cartazes: “o resto de nós na pobreza” e “não quero pagar o funeral do meu bolso”. É com base nessa potência de resistência do ser humano que Negri propõe a organização revolucionária da multidão. Um evento recente também marcou os noticiários internacionais. No Bahrein, uma pequena monarquia do Golfo Pérsico, cuja violação aos direitos humanos é diária, os ativistas pró-democracia foram às ruas protestar contra a realização da Fórmula 1 no país. A indignação dos ativistas buscava ressaltar a manipulação política do governo ditatorial de Bahrein que pretende propagar uma normalidade que não existe. Afinal, o país está guerra. Enquanto as pessoas estão lutando por mais liberdade e garantia de direitos humanos,

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o chefe da F1, Bernie Ecclestone, os acusava de terrorismo. É claro que os patrocinadores da Fórmula 1 não estão preocupados com a situação ética e política de Bahrein, nem das violações aos direitos humanos. Infelizmente, o que move os empresários são os lucros arrecadados. Portanto, revolucionar a lógica do capital é preciso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto buscou demonstrar que há “uma guerra em estado permanente contra o outro. O diferente que é exterminado para assegurar o êxito da Torre de Babel do capitalismo e da S.A. do dinheiro.”113 Logo, fica difícil pensar a hospitalidade incondicional defendida por Levinas na configuração político -econômica atual. Os trabalhadores, os imigrantes e refugiados são vítimas da brutalidade do mercado diariamente. As declarações de direitos humanos, conquistadas através da luta social, têm uma importante contribuição para assegurar melhores condições aos cidadãos, porém o desejo revolucionário pela justiça social e fim das desigualdades continua. A pergunta leninista “que fazer” retorna em tempos de crise global. Se no Manifesto Comunista, os proletários deveriam se organizar para transformar a sociedade, hoje os movimentos sociais se reconstroem no âmbito local, nacional e mundial e fazem resistência ao poder hegemônico. Ao longo da história, muitos pensadores manifestaram suas opiniões quanto à transformação da sociedade e a busca pela paz, o presente trabalho apenas ressaltou algumas teorias sem a pretensão de elencar uma única resposta aos problemas atuais. O que é incontestável é o desejo de revolução permanente, pois se ainda hoje é possível ler em manchetes de jornal “Imigrantes cobram salários atrasados e são baleados na Grécia”, fica evidente que a evolução e o progresso social não se realizaram completamente como muitos defendem. WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! direitos humanos de alteridade, surrealismo e cartografia. Trad. Vívian Alves de Assis. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010. p. 23.

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9 REFERÊNCIAS BERMAN, Marshall. Os sinais da rua: uma resposta a Perry Anderson. Presença, Rio de Janeiro, n. 9, fev. 1987, p. 122-138. GALEANO, Eduardo.  As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4. ed. Porto Alegre: L&PM, 1994. HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. _______. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Ediciones Akal, S. A., 2011. HESSEL, Stéphane. Indignai-vos. Trad. Marli Peres. São Paulo: Leya, 2011. HOLLOWAY, J. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Ed Viramundo, 2003. KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. New York: HBJ Book, 1964. LENIN, V. I. Que Fazer? Obras Escolhidas.v. 1. Lisboa: Edição Avante, 1981. LEVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Ensaios sobre a alteridade. Trad. de Pergentino Stefano Privatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2004. MANSANO, Sônia Regina Vargas. Sorria, Você Está Sendo Controlado: Resistência e Poder na Sociedade de Controle. São Paulo: Summus Editorial, 2009. MARX, Karl. Manuscritos Economia y Filosofia. 11. ed. Madri: Editorial Alianza, 1985. MARX, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010. MARX, K; ENGELS, F./ Carlos Nelson Coutinho, [et.al]. O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

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OS LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS E O DISCURSO DE ÓDIO CONTRA AS MINORIAS SEXUAIS Thiago Dias Oliva Thiago Dias Oliva é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e mestrando na área de concentração em Direitos Humanos, também junto à Faculdade de Direito da USP. Sua linha atual de pesquisa tem o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. ([email protected])

Resumo: A liberdade de expressão e o direito antidiscriminatório constituem objeto de preocupação crescente no continente europeu. Para fazer frente ao desafio de convivência respeitosa entre grupos culturais, étnicos, religiosos e sociais díspares, o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos tem imposto limites à liberdade de expressão, de modo a coibir o discurso de ódio. Ao debruçar-se sobre a matéria, a Corte Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) desenvolveu parâmetros para definir os limites à liberdade de expressão em casos envolvendo manifestações racistas, antissemitas e xenófobas. Paralelamente às dificuldades enfrentadas por minorias culturais, étnicas e religiosas, as minorias sexuais têm seu reconhecimento no espaço público colocado constantemente à prova por discursos discriminatórios. Tendo em vista essa situação, o objetivo do presente estudo é identificar os parâmetros adotados pela CEDH para definir os limites da liberdade de expressão face ao discurso de ódio, bem como avaliar a sua aplicação para coibir manifestações homofóbicas. Palavras-chave: liberdade de expressão – discurso de ódio – Corte Europeia de Direitos Humanos – minorias sexuais. Sumário: 1. Introdução. 2. A Convenção Europeia de Direitos Humanos e a jurisprudência da CEDH. 2.1 A aplicação do art. 17 da Convenção Europeia. 2.2 A aplicação do §2º do art. 10 da Convenção Europeia. 2.3 A jurisprudência da CEDH em matéria de minorias sexuais e o caso Vejdeland e outros v. Suécia. 3. Considerações Finais. 4. Referências.

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1 INTRODUÇÃO O Comitê de Ministros do Conselho da Europa definiu, na Recomendação Nº R(97)20, o conceito de discurso de ódio como [...] todas as formas de expressão que difundem, incitam, promovem ou justificam ódio racial, xenofobia, antissemitismo ou quaisquer outras formas de ódio pautadas na intolerância, o que inclui: intransigência expressa por manifestações agressivas de nacionalismo e etnocentrismo, discriminação e hostilidade contra minorias, migrantes e pessoas de origem estrangeira114.

A recomendação assinala, ademais, princípios que devem nortear o tratamento legal do discurso de ódio. É importante destacar que os parâmetros apontados pela recomendação condensam a abordagem que a CEDH conferiu, até aquele momento, à matéria, além de servir de orientação para as decisões que se seguiram à sua publicação. O próprio Comitê de Ministros já se pronunciou sobre outras vertentes específicas do assunto, como a promoção da tolerância na mídia115 e a liberdade de expressão em meio a debates políticos116. Mais recentemente, editou recomendação sobre o combate à discri COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation No. R (97) 20 of the Committee of Ministers to member states on “hate speech”, 1997, p. 107. É interessante mencionar, ainda, que o Conselho da Europa redigiu um protocolo adicional à Convenção sobre Crimes Cibernéticos prevendo a criminalização de atos racistas e xenófobos praticados via internet. Muito embora nem todos os países tenham ratificado o protocolo em questão, ele não deixa de servir como parâmetro para a análise de casos concretos envolvendo manifestações odiosas por meio da internet. 115 COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation no. R (97) 21 of the Committee of Ministers to member states on the media and the promotion of a culture of tolerance, 1997, p. 109-111. 116 A declaração assevera que, muito embora as discussões políticas demandem, naturalmente, um campo mais amplo para a liberdade de expressão – de modo a garantir um ambiente democrático – o debate político não acoberta opiniões racistas ou que incitem ao ódio. Cf. COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Declaration on freedom of political debate in the media, 2004. 114

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minação por orientação sexual e identidade de gênero que chama os Estados-membros a adotarem uma série de medidas protetivas117. Na sequência das orientações gerais acerca da postura que os Estados-membros são convidados a adotar, o documento traz anexo um rol de direitos a serem assegurados as minorias sexuais, tendo em vista as vulnerabilidades do grupo em questão. Dentre esses direitos, encontra-se o “direito à vida, à segurança e à proteção contra a violência”, no âmbito do qual, o documento faz recomendações aos Estados-membros quanto ao discurso de ódio118. Mais importante do que listar os documentos acima é, contudo, analisar como a CEDH – o órgão judicial do Conselho da Europa e o intérprete da Convenção Europeia por excelência – tem decidido, na prática, o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à nãodiscriminação no continente europeu.

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A CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS E A JURISPRUDÊNCIA DA CEDH

A Convenção Europeia assegura a liberdade de expressão em seu art. 10, § 1º: COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recomendação CM/Rec(2010)5 do Comitê de Ministros aos Estados-Membros sobre medidas para o combate à discriminação em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero, 2010. 118 “B. “Discursos de ódio”: 6. Os Estados-Membros devem adotar as medidas apropriadas ao combate de todas as formas de expressão, nomeadamente na comunicação social e na Internet, que possam ser razoavelmente entendidas como suscetíveis de incitar, difundir ou promover o ódio ou outras formas de discriminação contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero. Tais “discursos de ódio” devem ser proibidos e publicamente condenados sempre que ocorram. Todas as medidas devem respeitar o direito fundamental à liberdade de expressão, nos termos do Artigo 10.º da Convenção e da jurisprudência do Tribunal. 7. Os Estados-Membros devem sensibilizar as autoridades e instituições públicas a todos os níveis para a sua responsabilidade de se absterem de prestar declarações, em particular à comunicação social, que possam ser razoavelmente interpretadas como legitimando esse ódio ou discriminação. 8. Os/ As funcionários/as públicos/as e outros/as representantes estatais devem ser encorajados/as a promover a tolerância e o respeito pelos direitos humanos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero sempre que dialoguem com representantes chave da sociedade civil, incluindo a comunicação social, organizações desportivas, organizações políticas e comunidades religiosas”. Ibidem. 117

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Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.

No entanto, o mesmo artigo reconhece que a liberdade de expressão – a manifestação externa de uma opinião, o forum externum – não é um direito absoluto, porquanto o seu exercício está condicionado a determinados deveres e responsabilidades, sobretudo com a finalidade de proteger direitos de terceiros (art. 10, § 2º): O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

Dentre esses “direitos de terceiros”, aqueles que mais frequentemente colidem com a liberdade de expressão são a liberdade de consciência religiosa, o direito à privacidade e o direito à nãodiscriminação119. Assim, no caso da expressão de uma determinada opinião difundir, incitar, promover ou justificar o ódio pautado na intolerância, ela deverá ser objeto de uma sanção, respeitadas certas O art. 14 da Convenção Europeia afirma a proibição de discriminação: “O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.

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formalidades e condições pré-estabelecidas que sejam proporcionais ao fim por elas almejado120. Além das restrições impostas pelo próprio art. 10 ao exercício da liberdade de expressão, é importante considerar a regra geral do art. 17, relativa à proibição do abuso de direito: Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a atividade ou praticar atos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.

Deste modo, além dos casos em que a liberdade de expressão deve ser limitada com base no §2º do art. 10, existem atos que sequer encontram-se acobertados pela proteção do referido dispositivo, já que constituem manifesto abuso de direito, nos termos do art. 17. Em síntese, o discurso de ódio constitui a linha divisória entre manifestações de opinião que devem ser toleradas em um ambiente democrático e aquelas que não devem sê-lo, tanto por conformarem evidente abuso de direito, quanto por não se mostrarem compatíveis com direitos de terceiros – inclusive o direito à não-discriminação pelo pertencimento a determinado grupo religioso, étnico, nacional, político ou social121. A violação do direito à não-discriminação, da mesma forma que a total supressão da liberdade de expressão, é prejudicial ao regular funcionamento de uma sociedade plural e democrática. Conceitualmente, a Corte considera o discurso de ódio como uma ação, e não uma mera opinião. Assim, o órgão judicial não avalia a legalidade de uma opinião – já que, em uma democra Esse é o caso do discurso de ódio. Impende mencionar que, ao contrário do que se pode imaginar a partir da expressão “discurso de ódio”, esse tipo de manifestação prescinde de clara demonstração de ódio ou emoções violentas, abarcando também “afirmações que, à primeira vista, podem parecer racionais”. (WEBER, Anne. Manual on hate speech, Estrasburgo: Council of Europe, 2009. p. 5) 121 Ibidem, p. 2-3. 120

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cia, não é possível incriminar uma pessoa por possuir uma determinada opinião –, mas a compatibilidade do discurso enquanto ato com a democracia122. A CEDH parte dessa lógica nos seus julgamentos, primeiro buscando determinar se a manifestação sob análise está excluída fora do âmbito de proteção da liberdade de proteção por constituir abuso de direito (art. 17). Não sendo essa a situação, a CEDH considera se uma eventual restrição à liberdade de expressão é justificável no caso concreto (art. 10, §2º).

2.1 A aplicação do art. 17 da Convenção Europeia Por tratar-se de uma cláusula geral, o art. 17 aplica-se a todos os direitos arrolados na Convenção Europeia, assegurando os valores democráticos que deram origem ao documento123. O dispositivo funciona como uma espécie de garantia de que a Convenção não protegerá quaisquer condutas que, abusando de um dos direitos ali consagrados, visem à ruína de outros direitos e liberdades assegurados pelo mesmo instrumento124. No que respeita ao abuso da liberdade de expressão, o art. 17 tem sido aplicado para classificar como “abuso de direito” – e, assim, discurso de ódio – as seguintes condutas: 125

TULKENS, Françoise. When to say is to do: Freedom of expression and hate speech in the case-law of the European Court of Human Rights. In: CEDH – EUROPEAN JUDICIAL TRAINING NETWORK, Seminar on Human Rights for European Judicial Trainers, Estrasburgo, 2012, p. 3. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. 123 “Enfin, la Cour rappelle qu’il ne fait aucun doute que tout propos dirigé contre les valeurs qui sous-tendent la Convention se verrait soustrait par l’article 17 à la protection de l’article 10”. Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00), Estrasburgo, 2004. Disponível: . Acesso em: 8 fev 2013. 124 TULKENS, Françoise. op. cit., p. 4. 125 O art. 17 da Convenção Europeia permite aos Estados-membros que ajam contra ações liberticidas. Já existem discussões, no entanto, afirmando que os Estados não possuem 122

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a) Manifestação de doutrinas totalitárias: por razões históricas, tanto a Comissão quanto a Corte Europeia de Direitos Humanos126 consideraram que a defesa do totalitarismo – tanto em sua versão socialista, quanto capitalista – ia de encontro aos valores democráticos da Convenção Europeia, porquanto resultam na supressão ou ao menos em considerável restrição das liberdades civis127. b) Manifestações negacionistas: posicionamentos revisionistas ou negacionistas em relação ao Holocausto ou outros acontecimentos históricos envolvendo crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade também não estão protegidos pelo art. 10. Segundo a Comissão Europeia de Direitos Humanos, esse tipo de posicionaa faculdade de barrar essas ações, mas o dever de fazê-lo, inclusive de forma preventiva. Por outro lado, há quem considere o art. 17 um dispositivo problemático, pois sumariamente priva condutas – à primeira vista protegidas pela Convenção Europeia – de proteção, ao contrário do §2º do art. 10 que conta com um mecanismo refinado para auferir a convencionalidade das intervenções estatais em prejuízo da liberdade de expressão. Ibidem, p. 4-5. 126 À época dos julgamentos sobre liberdade de expressão e defesa do totalitarismo, a Comissão Europeia ainda existia, intermediando o acesso de indivíduos à CEDH. Com a entrada em vigor do Protocolo 11 à Convenção, em 1º de novembro de 1998, a Comissão foi extinta, tendo o indivíduo, acesso direto à Corte. Cf. Protocol No. 11 to the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, Estrasburgo, 1994. Disponível em: . Acesso em: 8 fev 2013. 127 “The Commission also refers to Article 17 of the Convention which provides that nothing in the Convention shall be interpreted as implying for any group or person any right to engage in any activity aimed at the destruction or limitation of the Convention rights […]. The Commission notes that National Socialism is a totalitarian doctrine incompatible with democracy and human rights and that its adherents undoubtedly pursue aims of the kind referred to in Article 17”. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of B.H., M.W., H.P. and G.K. v. Austria (12774/87), Estrasburgo, 1989. Disponível em: . Acesso em: 8 fev 2013. Cf. CEDH. Case of Schimanek. v. Austria (32307/96), Estrasburgo, 2000. Disponível em: . acesso em: 8 fev 2013; “the pursuit of such ultimate objectives on the apolicants’ own admission, implies transition through the stages advocated by fundamental Communist doctrine, the essential stage being dictatorship of the proletariat; whereas recourse to a dictatorship for the establishment of a régime is incompatible with the Convention”. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Communist Party (KPD) v. the Federal Republic of Germany (250/57), Estrasburgo, 1957.

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mento contraria valores da Convenção, como a justiça e a paz, além de estimular a discriminação religiosa e racial128. c) Declarações evidentemente racistas e odiosas: pessoas que se utilizam de expressões e ideologias claramente racistas – ou mesmo particularmente insultantes para o grupo social visado – não podem invocar a proteção do art. 10, também caracterizando o abuso de direito do art. 17129, porquanto violam outros direitos arrolados na Convenção Europeia. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case Marais v. France (31159/96), Estrasburgo, 1996. Disponível em: . Acesso em: 9 fev 2013; Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Honsik v. Austria (25062/94), Estrasburgo, 1995. Em decisões mais recentes, a Corte chegou a afirmar que “há determinada categoria de fatos históricos – como o Holocausto – cuja negação ou revisão seria removida do campo de proteção do art. 10 pelo art. 17” e que “negar a prática de crimes contra a humanidade é uma das formas mais sérias de difamação racial dos judeus e um incitamento ao ódio contra eles” (traduções não oficiais). Cf. CEDH. Case of Garaudy v. France (65831/01), Estrasburgo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 9 fev 2013. 129 A título de exemplo, pode-se mencionar a análise de admissibilidade no caso Glimmerveen and Hagenbeek v. the Netherlands, o qual envolveu a distribuição de panfletos destinados “aos holandeses brancos”, enfatizando a necessidade de expulsar da Holanda, estrangeiros “indesejados”, como os nacionais do Suriname e turcos, tidos por “não -brancos”. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Glimmerveen and Hagenbeek v. the Netherlands (8348/78), Estrasburgo, 1979. Em outro caso, Jersild v. Denmark, julgado em 1994, a Corte destaca o caráter ofensivo de algumas expressões racistas – “eles [os negros] não são seres humanos, são animais”, “olhe a foto de um gorila e olhe para a foto de um negro, é a mesma estrutura corporal e tudo mais”, “eles estão aqui [os imigrantes] em razão das drogas”, “nós não gostamos quando eles andam com suas roupas “africanas” e falam a sua língua hula-hula na rua” (tradução não-oficial) – afirmando que elas sequer encontram-se no âmbito de proteção do art. 10. Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89), Estrasburgo, 1994, disponível em: , acesso em 10 fev 2013. No contexto do aumento da intolerância contra populações muçulmanas, a CEDH considerou a colocação de um pôster – em uma residência privada, do autor da iniciativa – com as Torres Gêmeas em chamas, o símbolo do Islamismo com um sinal de “proibido” e os dizeres “Islã fora do Reino Unido – Proteja a população britânica”, como constituindo discurso de ódio, um ataque aos muçulmanos que vivem no Reino Unido, porquanto os vinculou a um ato de terrorismo. Assim, considerou que o referido ato era caso de aplicação do art. 17. Cf. CEDH. Norwood v. The United Kingdom (23131/03), Estrasburgo, 2004. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2013.

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2.2 A aplicação do § 2º do art. 10 da Convenção Europeia O § 2º do art. 10 prevê as hipóteses em que a expressão de uma opinião, ainda que se encontre no âmbito de proteção do art. 10, § 1º, pode legitimamente ser objeto de intervenção estatal com a finalidade de restringi-la. Considerando os requisitos mencionados no dispositivo em análise, a Comissão e a CEDH respondem às seguintes perguntas130, para identificar – ou não – a legitimidade de uma determinada restrição ao art. 10: (a) A interferência está prevista em lei no momento da manifestação da opinião? Em síntese, a interferência na liberdade de expressão deverá ser prevista em lei de forma clara e objetiva, sendo possível a qualquer pessoa prever a consequência – ainda que não exata – da externalização da sua opinião. (b) A interferência é justificada com base em um objetivo legítimo? Com base no art. 10, §2º, constituem objetivos legítimos para a restrição da liberdade de expressão: (i) interesse público (segurança nacional ou pública, integridade territorial, proteção da ordem, saúde e moralidade públicas); (ii) proteção de direitos de terceiros (proteção da reputação ou de direitos de terceiros131, impedir a revelação de informações confidenciais); e (iii) manutenção da autoridade e imparcialidade do judiciário. WEBER, Anne. op. cit., p. 30-32. Cf. também TULKENS, Françoise. op. cit., p. 7. Dentre os “direitos de terceiros” as quais alude o art. 10, §2º, deve-se mencionar as crenças religiosas, pois a CEDH já afirmou que os Estados podem adotar medidas para limitar a liberdade de expressão nos casos em que manifestações contrárias a uma determinada crença religiosa forem efetivamente ofensivas. Como o potencial lesivo de uma manifestação dessa ordem varia amplamente a depender do contexto cultural em que acontece, a CEDH opta por conceder maior margem de apreciação aos Estados nesses casos, julgando que as autoridades locais têm maior conhecimento da realidade interna. Ibidem, p. 49.

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(c) A interferência é necessária em uma sociedade democrática? Essa é a questão mais aberta e subjetiva, ensejando detida análise casuística. Em linhas gerais, a CEDH verifica se os motivos alegados pelas autoridades nacionais para a interferência são relevantes, suficientes e proporcionais, havendo uma necessidade social a favor da intervenção do Estado. Levando em conta as diferenças locais – as quais se refletem em uma necessidade social maior ou menor a favor da interferência estatal – a Corte concede margem de apreciação132 mais ampla na avaliação da “necessidade social” que justifica a intervenção. Tendo em vista o caráter subjetivo da análise mencionada no item “c”, a CEDH desenvolveu parâmetros para avaliar determinadas manifestações de opinião como “discurso de ódio”, assinalando a necessidade de intervenção estatal133. Todos os parâmetros são considerados em conjunto, sendo a intenção do autor, o que tem maior peso nas considerações da Corte134. A margem de apreciação é um conceito desenvolvido pela CEDH, implicando a “subsidiariedade da jurisdição internacional”. Em síntese, a Corte analisa a conformidade do arbitramento realizado no plano interno do Estado envolvido com o plano europeu. Não havendo consenso no plano europeu, a Corte geralmente não se pronuncia e concede margem de apreciação ao Estado parte no processo, deixando de reconhecer uma eventual violação de direitos de grupos minoritários. O fundamento seria a maior legitimidade e conhecimento das sociedades locais para decidir questões polêmicas ainda não solucionadas no plano europeu. Cf. CARVALHO RAMOS, André. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 110111. Nos casos envolvendo liberdade de expressão e discurso de ódio, a CEDH concede margem de apreciação menor quando há incitação ao ódio ou à violência, e margem de apreciação menor quando se trata de ofensa a convicções pessoais relativas à moral ou à religião. Cf. WEBER, Anne. op. cit., p. 32. 133 Tulkens assinala, no desenvolvimento recente da jurisprudência da CEDH em matéria de liberdade de expressão e discurso de ódio, três fases distintas: (i) a partir dos anos 2000, o surgimento de casos contra a Turquia tratando da “glorificação da violência” atribuída ao PKK – Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado como uma organização terrorista por alguns Estados; (ii) a partir de 2008, julgamentos abordando o discurso racista e a propaganda odiosa; e (iii) em 2012, a emergência de uma nova dimensão da proteção contra o discurso de ódio: a interferência estatal contra discursos homofóbicos. Cf. TULKENS, Françoise. op. cit., p. 8. 134 Ibidem. 132

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(I) Intenção do autor: aqui a CEDH identifica se o objetivo do autor da opinião manifestada era a disseminação de ideias discriminatórias, sobretudo racistas, ou se ele estava apenas tentando trazer para a esfera pública, informações de interesse público. No caso Jersild v. Dinamarca135, por exemplo, a Corte considerou que o jornalista responsável pela difusão de manifestações racistas e xenófobas na mídia não compartilhava dessas opiniões, desejando apenas trazer para a esfera pública, a notícia de que existem grupos de jovens promovendo atos de intolerância. Por outro lado, no caso Halis Doğan v. Turquia, a CEDH considerou que os artigos publicados em jornal conformam incitação à violência136. (II) Conteúdo da manifestação: a depender do conteúdo da manifestação, a CEDH considera maior ou menor o grau de justificação da intervenção estatal. Nos casos que envolvam discursos políticos ou de interesse públi Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit. No caso Gündüz v. Turquia, a Corte considerou que o líder da comunidade islâmica Tarikat Aczmendi, Müslüm Gündüz, não incorreu em discurso de ódio quando manifestou suas opiniões polêmicas em um programa de televisão. Considerando o contexto, o programa contrabalanceava dois pontos de vista, com a intenção de trazer a público, informações de interesse geral da sociedade turca. Ademais, algumas das colocações do Sr. Gündüz foram excessivamente provocativas porque proferidas oralmente, sem chance de reformulação. Assim, a Corte entendeu que, muito embora tenha se colocado veementemente contra a democracia e o secularismo – além das pessoas que se mostrem favoráveis a ambos – e de promover a Sharia, o Sr. Gündüz não incitou à violência para fazê-lo. Tendo opositores à sua opinião se pronunciando no mesmo contexto, os danos causados pelo discurso seriam mínimos. Cf. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97), Estrasburgo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2013. 136 O responsável pela publicação dos artigos defendeu que era seu dever informar o público e o Estado acerca do movimento nacionalista curdo. No entanto, a Corte considerou que expressões como “a nossa verdadeira garantia é a vontade de nosso povo, que está pronto para qualquer tipo de sacrifício, quebrar os grilhões da escravidão do século 21 para a absoluta liberdade”, “é hora de mobilização nacional” e “hoje é um dia além do dia da honra”, eram susceptíveis de incentivar a violência no Sudeste da Turquia, já que os artigos afirmam ideias do PKK e aludem ao uso de força armada contra o Estado turco. Cf. CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02), Estrasburgo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2013. 135

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co, a CEDH está menos inclinada a reconhecer a necessidade da intervenção estatal, porquanto a liberdade de expressão é essencial em uma sociedade democrática, para viabilizar o livre debate político. No entanto, há situações em que a intervenção se mostra necessária, mesmo em face de discursos políticos137. Já nos casos de discursos de natureza religiosa, a CEDH costuma conceder uma margem de apreciação mais ampla aos Estados-membros para que avaliem, com base no maior conhecimento que detêm acerca da realidade local, a necessidade de uma intervenção do Estado. A regra geral é, contudo, a “obrigação daqueles que manifestam opinião religiosa de evitar o uso de expressões que seja gratuitamente ofensiva para outros e, com isso, uma violação dos direitos dessas pessoas, não contribuindo para qualquer forma de deba No caso Erbakan v. Turquia, a CEDH afirmou que o discurso político tem maior proteção da liberdade de expressão. Contudo, a Corte também ressaltou que a tolerância e o respeito pela igualdade de todos os seres humanos constituem a base de uma sociedade democrática e pluralista e que, no caso, os comentários atribuídos ao Sr. Erbakan revelam uma visão da sociedade organizada exclusivamente em torno de valores religiosos. Essa visão parece difícil de conciliar com o pluralismo que caracteriza as sociedades contemporâneas e democráticas. Usando terminologia religiosa, o Sr. Erbakan teria diminuído bastante a diversidade inerente a qualquer sociedade, com uma simples divisão entre “crentes” e “descrentes”. Seu discurso, proferido na cidade turca de Bingöl – cujos habitantes haviam sido vítimas de atos terroristas perpetrados por uma organização fundamentalista – teria potencial para incitar ao ódio contra minorias religiosas (cristãos, ateus e até aqueles que, apesar de muçulmanos, eram favoráveis ao secularismo). A CEDH considerou, portanto, que os políticos devem evitar manifestações que promovam a intolerância. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00), Estrasburgo, 2006, parágrafos 55-71. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. Mais recentemente, no caso Balsytė-Lideikienė v. Lituânia, a CEDH ressaltou o caráter político do calendário publicado pela requerente. Contudo, considerou que certas expressões empregadas no material (“a nação lituana só irá sobreviver sendo uma nação nacionalista”, “a ocupação soviética, com a ajuda de muitos [...] judeus [...] empreenderam o genocídio e a colonização da nação lituana”, “os poloneses, em época de guerra, realizaram limpeza étnica”, dentre outras) eram dotadas de nacionalismo agressivo e etnocentrismo, além de incitarem potencialmente ao ódio contra judeus e poloneses. No fim, acabou se posicionando pela convencionalidade da intervenção do governo lituano que resultou no confisco dos calendários publicados. Cf. CEDH. Case of Balsytė-Lideikienė v. Lithuania (72596/01), Estrasburgo, 2008, parágrafos 78-80. disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013.

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te público”138. Manifestações que contrariem crenças religiosas, por outro lado, podem até chocar, pois “eles [os seguidores da crença atacada] precisam tolerar e aceitar a negação, por outros, de suas crenças religiosas e mesmo a propagação de doutrinas hostis à sua fé”139. No entanto, da mesma forma que as outras expressões de opinião, não devem: ser gratuitamente ofensivas, direcionar-se a fiéis específicos, constituir insulto aos fiéis ou a símbolos sagrados, atacar o direito de expressar e praticar a religião, denegrir a sua imagem ou incitar ao desrespeito, violência e ódio140. Outra questão relativa ao conteúdo da manifestação levantada pela Corte é a distinção entre afirmações verdadeiras e juízo pautado em valores. Segundo ela, manifestações verídicas (tanto as axiologicamente neutras, quanto aquelas que não o sejam) em geral não devem resultar em intervenção estatal141. Caso “[O]bligation to avoid as far as possible expressions that are gratuitously offensive to others and thus an infringement of their rights, and which therefore do not contribute to any form of public debate”. Essa obrigação decorre dos “deveres” e “responsabilidades” aos quais o art. 10, §2º da Convenção Europeia faz alusão. Cf. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97). Op. cit., parágrafo 37; Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00). Op. cit., parágrafo 55. 139 Cf. CEDH. Case of Otto-Preminger-Institut v. Austria (13470/87), Estrasburgo, 1994, parágrafo 47. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2013. No caso, a CEDH destacou que a medida tomada pelo Estado austríaco de apreender e retirar de circulação o filme Das Liebeskonzil de Werner Schroeter tinha um objetivo legítimo, qual seja, a proteção de direito de terceiros – no caso, do sentimento religioso. Ainda que tenha destacado a necessidade de tolerância face às críticas direcionadas a crenças religiosas em geral, a Corte considerou que a forma provocativa como Deus, a Virgem Maria e Jesus foram retratados no filme poderia ser interpretada como uma ofensa pela maioria da população do Tirol. Assim, concluiu que as autoridades austríacas, tendo maior conhecimento sobre a realidade local e o potencial ofensivo do filme, não excederam a sua margem de apreciação, quando intervieram determinando a apreensão e a retirada de circulação do material. 140 WEBER, Anne. Op. cit., p. 52. 141 No caso Incal v. Turquia, a CEDH decidiu favoravelmente ao Sr. Incal, considerando que a sua condenação pela distribuição de panfletos criticando duramente o governo não era justificável, pois o material distribuído se reportava a eventos – medidas contra comerciantes irregulares de rua e de moluscos – que de fato haviam ocorrido e que eram do interesse dos habitantes de Izmir. Tratando da intenção do Sr. Incal (parâmetro 138

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contrário, a intervenção será considerada necessária. No precedente Lehideux e Isorni v. França, a CEDH faz, inclusive, a diferenciação entre “fatos históricos tidos como certos” e “questões ainda discutidas por historiadores”, sendo que qualquer manifestação tendente a questionar ocorrências, as quais possam ser enquadradas na primeira categoria, sequer encontra-se no âmbito de proteção do art. 10 da Convenção142. (III) Contexto da manifestação: a CEDH identifica como fatores que influenciam no contexto da manifestação, (i) o papel do autor da manifestação na sociedade; (ii) o status social das pessoas visadas pelo discurso; (iii) a disseminação e o impacto da manifestação; e (iv) a natureza e a seriedade da intervenção estatal. Em relação a (i), a CEDH já se manifestou quanto a (aa) políticos – como já mencionado na análise sobre discursos de conteúdo político, a Corte garante maior proteção a manifestações de políticos, tendo em vista a importância do debate político em sociedades democráticas. Contudo, reconhece que os políticos devem evitar discursos que alimentem a intolerância e o preconceito143, porquanto discutido no item “I” acima), a Corte considerou não haver evidências para afirmar que o seu intento ia além de relatar as ocorrências e clamar por uma mobilização política dos interessados (o Sr. Incal menciona a organização de “comitês de bairro”), incitando ao ódio e à violência. Cf. Case of Incal v. Turkey (22678/93), Estrasburgo, 1998, parágrafos 50-51. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2013. 142 CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94), Estrasburgo, 1998, parágrafo 47. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. Um exemplo de fato histórico tido como certo é o Holocausto. Cf. CEDH. Case of Garaudy v. France (65831/01). Op. cit. 143 Cf. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo 46; CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00). Op. cit., parágrafo 64. Em Féret v. Bélgica, o requerente, membro do parlamento e presidente de um partido de extrema direita, foi condenado a cumprir 250 horas de serviço comunitário e proibido de lançar candidatura por dez anos, em virtude de incitação à discriminação e ao ódio racial por meio da publicação de folhetos em período eleitoral. A Corte considerou que a interferência do Estado belga não representou violação ao art. 10 da Convenção Europeia, assinalando, pela

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também têm responsabilidade na luta pela tolerância144; (bb) jornalistas – a Corte distingue entre aquele que se manifestou e o responsável pela disseminação da manifestação. Os jornalistas encontramse, na maioria das vezes, no segundo grupo, vez que suas atividades profissionais consistem justamente na difusão de informações de interesse público por meio da mídia. Assim, a CEDH considera que os jornalistas não podem ser considerados responsáveis pelo discurso de ódio de terceiros que porventura venham a tornar público, se ficar claro que não compartilham da opinião constatada no discurso e não tiverem meios para controlar minimamente o seu conteúdo145. Não obstante, o jornalista deve ser responsabilizado pela incitação ao ódio, violência e intolerância que não tiver o seu potencial nocivo minimizado na revisão editorial, quando possível146; e (cc) funcionários públicos – os Estados-membros, por disciplinarem o regime do funcionalismo público no seu território, detêm maior margem de apreciação para regular a liberdade de expressão de seus funcionários147. No caso Seurot v. França, a Corte reconheceu as responsabilidades especiais de professores, como figuras de autoridade para os seus

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primeira vez, a convencionalidade da limitação da liberdade de expressão de um parlamentar fora do parlamento. No caso, a CEDH deu importância ao fato de o material ter sido distribuído em período eleitoral, o que aumentou o potencial lesivo da manifestação odiosa, tendo em vista o número de destinatários do discurso e o embate de interesses entre grupos étnicos e sociais no contexto eleitoral. Havia, assim, a necessidade de se empreender medidas para salvaguardar os direitos da comunidade imigrantes no país. Cf. CEDH. Case of Féret v. Belgium (15615/07), Estrasburgo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013. WEBER, Anne. Op. cit., p. 37. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit., parágrafos 31-35. A CEDH considerou o sr. Sürek responsável pela publicação de duas cartas de leitores em um periódico semanal que pertencia à empresa de que era sócio majoritário. As cartas em questão incitavam a população curda à violência e ao ódio contra a população turca em geral, alimentando movimentos separatistas. Na condição de dono, o sr. Sürek deveria, no entender da Corte, moldar a direção editorial do periódico. Cf. Case of Sürek v. Turkey (26682/95), Estrasburgo, 1999, parágrafos 10-11, 63, 65. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2013. Situação similar: CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op. cit., parágrafos 36-37. WEBER, Anne. op. cit., p. 38. Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00). Op. cit.

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alunos, no combate à intolerância e promoção de valores democráticos por meio da educação. Quanto a (ii), a CEDH já se pronunciou no sentido de que políticos devem suportar críticas mais intensas do que indivíduos comuns148, devido à função pública que desempenham. Segundo a Corte, essa regra vale especialmente para políticos que compõem o governo, tendo em vista que regimes democráticos envolvem o crivo constante das ações tomadas pelo Estado. Funcionários públicos, também em virtude das atividades que desempenham, devem ser mais tolerantes a discursos críticos, porém não tanto quanto os políticos149. Outro aspecto relevante é o comportamento prévio da pessoa No caso Lingens v. Áustria, a Corte entendeu a condenação do Sr. Lingens pela publicação de dois artigos com críticas duras ao Sr. Kreisky – presidente do Partido Socialista da Áustria – como uma violação ao art. 10 da Convenção Europeia. Os artigos, publicados em um periódico em Viena, atacavam a conduta do Sr. Kreisky de apoiar publicamente o Sr. Peter, presidente do Partido Liberal da Áustria e ex-combatente das forças nazistas, utilizando-se de adjetivos como “imoral”, “indigno” e “vil oportunismo”. No entanto, a Corte afirmou que “o limite de crítica aceitável é consideravelmente maior para casos envolvendo políticos em comparação com casos envolvendo pessoas comuns”, já que os políticos estão conscientemente abertos “ao escrutínio minucioso de cada uma de suas palavras e ações por jornalistas e pelo público em geral” (tradução livre). Cf. CEDH. Case of Lingens v. Austria (9815/82), Estrasburgo, 1986, parágrafo 42. Disponível em: , acesso em 25.02.2013. Cf. também: CEDH. Case of  Vereinigung  Bildender  Künstler v. Austria (68354/01), Estrasburgo, 2007, parágrafo 34. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013 Sobre a necessidade de maior tolerância à crítica dirigida ao governo, Cf. CEDH. Case of  Castells  v.  Spain (11798/85), Estrasburgo, 1992, parágrafos 45-46. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. Cf. também: CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94), Estrasburgo, 1999, parágrafo 50, disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013. 149 “[É] verdade que funcionários públicos, realizando suas atividades profissionais, estão, como políticos, sujeitos a limites mais amplos para aceitar críticas [...] No entanto, não se pode dizer que funcionários públicos conscientemente colocam-se à disposição de um escrutínio minucioso de cada uma de suas palavras e ações na mesma medida que os políticos o fazem” [...] “assim, muito embora o chefe superintendente estivesse submetido a limites mais amplos de aceitação de críticas que um individuo comum, sendo um funcionário público, um policial experiente e líder da equipe da polícia que conduziu uma investigação criminal reconhecidamente controversa, não poderia ser tratado da mesma forma que políticos, no que respeita ao debate público acerca de suas ações” (tradução livre). CEDH. Case of  Pedersen  and Baadsgaard v.  Denmark (49017/99), Estrasburgo, 2004, parágrafo 80. Disponível em: . Acesso em 25 fev. 2013. 148

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visada pelo discurso, já que algumas condutas podem justificar uma reação mais intensa do que o usualmente aceitável150. No que toca a (iii), a Corte decidiu que a disseminação do discurso e o seu impacto (aa) na mídia impressa merecem especial proteção, pois a o papel da mídia é justamente o de informar o público em geral acerca de matérias do seu interesse, sendo, portanto, essencial às sociedades democráticas. Não só a mídia tem esse dever de informar, como as pessoas têm o direito de serem informadas, à exceção de dados que coloquem em risco a segurança nacional, a integridade territorial, a ordem pública ou a prevenção de crimes151. Da mesma forma que a mídia impressa, a (bb) mídia audiovisual tem vital importância para as sociedades democráticas, contribuindo para a divulgação de informações de interesse público. Contudo, o potencial lesivo das transmissões audiovisuais é consideravelmente maior, tendo em vista a propagação de imagens. Assim, fazendo a análise do potencial de impacto do discurso via mídia audiovisual, a CEDH considera o tipo de programa em que a transmissão ocorreu, seus prováveis telespectadores e a forma por meio da qual o programa foi conduzido152. Por outro lado, leva em conta a impossibilidade de No caso Nilsen e Johnsen v. Noruega, a Corte deparou-se com a resposta de representantes da polícia a trabalhos publicados sobre violência policial na cidade de Bergen por um professor universitário. Os requerentes afirmaram que os trabalhos em questão constituíam uma farsa, estavam repletos de mentiras, inclusive fabricando alegações de brutalidade de polícia. Além disso, diziam que a motivação do seu autor era indigna, maliciosa e desonesta. Em sua análise, a Corte deu ênfase na conduta do autor dos trabalhos em questão, entendo que ele fez duras críticas aos métodos e ética da polícia de Bergen e que, portanto, a reação dos requerentes – que atuavam como representante da instituição policial – foi, em geral, aceitável. Cf. CEDH. Case of Nilsen and Johnsen v. Norway (23118/93), Estrasburgo, 1999, parágrafos 45-53. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. 151 Muito embora tenha decidido que a intervenção do poder judiciário turco não violou o art. 10 da Convenção Europeia, a CEDH afirmou que “à imprensa incumbe transmitir informações e ideias sobre questões políticas, inclusive as que constituírem polêmica”. Cf. CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op. cit., parágrafo 32. 152 No caso Jersild v. Dinamarca, a CEDH considerou relevante o fato de as manifestações terem sido transmitidas em um programa de notícias para um público bem informado e de o apresentador não comungar das opiniões expressadas, o que era possível concluir a partir da forma como conduziu o programa. Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit. Consideração semelhante sobre a estrutura do programa fez a 150

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o autor do discurso reformular suas colocações no caso de o programa ser transmitido ao vivo153. Já nos casos envolvendo (cc) expressões artísticas, a Corte considera que o potencial lesivo de manifestações é usualmente menor, porque o acesso a elas não é do interesse de todos, como no caso de poemas, por exemplo154. As sátiras, por sua própria natureza provocativa, só podem implicar interferência estatal após análise criteriosa, para que o direito à liberdade de expressão do autor não seja ilegalmente restringida155. Também importante para avaliar o potencial de impacto da manifestação é (dd) o lugar de sua disseminação: “uma situação particular de uma determinada região e o lugar onde os comentários foram feitos ou disseminados”156. A título de exemplo, pode-se mencionar as diversas menções da Corte à conjuntura na Turquia de combate ao terrorismo157 – concedendo maior margem de apreciação ao país para realizar interferências na liberdade de expressão – e a avaliação do alto potencial dessa disseminação quando realizada no âmbito da escola158.



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Corte no caso Gündüz v. Turquia, quando entendeu que as afirmações do requerente foram contrabalanceadas pelo posicionamento de outras pessoas que integravam um debate televisionado. Cf. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97). Op. cit. Ibidem, parágrafo 49. No caso Karataş v. Turquia, o requerente – de origem étnica curda – publicou uma antologia poética criticando o governo turco, inclusive com “passagens agressivas” e poderiam ser interpretadas como “incitando os leitores ao ódio e uso da violência. Contudo, “o meio utilizado pelo requerente foi a poesia, uma forma de expressão artística que atinge apenas uma minoria de leitores” (tradução não-oficial). CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94). Op. cit., parágrafo 49. No caso da Associação dos Artistas Austríacos v. Áustria, a Corte entendeu que a pintura do Sr. Mühl retratando, dentre outras figuras públicas da Áustria, o Sr. Meischberger – na época, membro da Assembleia Nacional –, em meio a atos sexuais, consistia claramente em uma sátira. Como tal, não visava à reprodução da realidade, mas apenas a uma representação exagerada com a finalidade de provocar e agitar. CEDH. Case of Vereinigung Bildender Künstler v. Austria (68354/01). Op. cit., parágrafo 33. WEBER, Anne. op. cit., p. 43. CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op. cit., “En tout état de cause, à supposer que ce dernier ait réellement eu la volonté de rédiger un texte « humoristique » non destiné à la publication, tant son statut d’enseignant, au demeurant en histoire, que le risque avéré de diffusion du texte au sein de l’établissement scolaire auraient dû l’inciter à faire preuve de prudence et de discernement”. Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00). Op. cit.; No caso Vejdeland e outros v. Suécia – o qual será analisado com maior detalhamento na seção seguinte – um

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Já o critério (iv) – a natureza e seriedade da intervenção estatal – é visto, em geral, como secundário159, ainda que em alguns casos tenha sido determinante. A cumulação de medidas interventivas pode representar um excesso, sendo a postura do Estado considerada desproporcional face ao objetivo visado pelas intervenções160. O mesmo vale para penas tidas como gravosas, sobretudo a privativa de liberdade161, e para medidas preventivas que inviabilizam o próprio exercício da liberdade de expressão (anteriores a qualquer manifestação)162. Até mesmo a pena de multa pode ser desproporcional ao objetivo visado pela intervenção, quando, na prática, impedir o exercício da liberdade de expressão163. Nos casos em que houver meios alternativos menos gravosos de interferência na liberdade de expressão, a CEDH também já concluiu pela desproporcionalidade



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dos aspectos mais relevantes para a decisão da Corte no sentido de que a interferência estatal era justificável foi o lugar da disseminação das manifestações homofóbicas: uma escola. A opinião concorrente do Juiz Boštjan M. Zupančič assinala que as escolas encontram-se mais protegidas, não sendo um espaço público, de modo que a disseminação de informações de qualquer natureza, promovida por um intruso, requer a aprovação das autoridades da instituição de ensino. O juiz afirma, ainda, que se as mesmas palavras fossem publicadas em um jornal, por exemplo, elas provavelmente não resultariam em uma persecução penal. Cf. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07), Estrasburgo, 2012, parágrafos 9 e 12. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013. No caso Gündüz v. Turquia, a Corte afirmou que a proporcionalidade da condenação a pena privativa de liberdade de dois anos não precisava ser analisada, pois já restava evidente que a interferência na liberdade de expressão do requerente não tinha justificativa com base no art. 10 da Convenção. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97). Op. cit., parágrafo 52. Em outro caso, a CEDH ressaltou que o fato de a interferência ter sido mais branda – a imposição de uma pena de multa – não elidia a responsabilidade do Estado pelo ato lesivo à liberdade de expressão do requerente. Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit., parágrafo 35. A Corte considerou que a condenação do Sr. Incal a pena de prisão, somada a multa e suspensão da habilitação de motorista, em conjunto com o impedimento para exercer função pública ou participar de atividades em organizações políticas, associações e sindicatos, constituiu intervenção radical e desproporcional ao fim visado. Cf. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafos 56-59; a Corte também entendeu como “muito severas” as penas de prisão, multa e suspensão de direitos civis e políticos prescritas cumulativamente para o requerente. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00). Op. cit., parágrafo 69. CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94). Op. cit., parágrafo 53. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo 56. WEBER, Anne. op. cit., p. 44.

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das medidas adotadas164. Além disso, o Estado deve tomar medidas interventivas dentro de um prazo razoável165 e instituí-las de forma coerente166.

2.3 A jurisprudência da CEDH em matéria de minorias sexuais e o caso Vejdeland e outros v. Suécia167 O sistema europeu de proteção dos direitos humanos – notadamente, a CEDH – teve e ainda tem um papel de destaque na afirmação de direitos das minorias sexuais no cenário da Europa. A Corte já se pronunciou sobre uma série de questões caras à população LGBT, impondo aos Estados-membros, a observância dos direitos dessas pessoas. Foi a partir de condenações pela violação dos direitos dessa parcela da população que muitos Estados-membros implementaram mudanças significativas no âmbito interno, de modo a adequar a sua legislação e a aplicação da lei às exigências do sistema europeu de proteção dos direitos humanos. No caso Incal v. Turquia, a Corte afirmou que o comitê executivo do Halkın Emek Partisi pediu autorização à prefeitura de Izmir para distribuir os informativos que foram considerados como “propaganda separatista”. Ao invés de tomar medidas duras mencionadas na nota 51, a Corte assinalou que as autoridades poderiam solicitar mudanças aos textos, para que eles pudessem ser distribuídos normalmente, sem representar um perigo à unidade do país. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo 55. Em Lehideux e Isorni v. França, a Corte também considerou excessiva condenação criminal pela publicação de anúncio justificando ações de Philippe Pétain – chefe de Estado da França de Vichy – e omitindo fatos históricos conhecidos. Apesar de tendencioso, o anúncio visava a revisão da condenação de Pétain, e não do Holocausto – inclusive repudiando atrocidades nazistas –, de modo que o emprego de remédios cíveis pelas autoridades judiciárias francesas seria mais adequado. Cf. CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94). Op. cit., parágrafo 57. 165 A Corte avaliou a demora em quatro anos e cinco meses para a instauração de um processo criminal após os fatos, no caso Erbakan v. Turquia, como “não razoavelmente proporcional aos objetivos visados”. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00). Op. cit., parágrafo 70. 166 Também no caso Lehideux e Isorni v. França, a CEDH advertiu que o anúncio, o qual resultou no processo criminal contra os requerentes, integrava o objeto de duas associações legalmente constituídas, as quais não sofreram qualquer intervenção em suas atividades. Cf. CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94). Op. cit., parágrafo 56. 167 CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07). Op. cit. 164

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Em síntese, a CEDH determinou a ilegalidade da criminalização de atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo, além de estabelecer como contrária à Convenção Europeia, a diferença na idade legal para o consentimento ao ato sexual entre homossexuais e heterossexuais. Ademais, afirmou que militares homossexuais não devem ser banidos das forças armadas e que a população LGBT também é titular do direito de reunião. Em 2003, assegurou aos casais homossexuais, os mesmos direitos de sucessão à locação ou ao arrendamento existentes a casais heterossexuais. Mais recentemente, em 2008 – e de novo, em 2013 –, a CEDH afirmou que a exclusão de indivíduos do processo de adoção de crianças em virtude da orientação sexual é discriminatória, sendo incompatível com a Convenção Europeia, portanto, qualquer tratamento diferenciado a casais hetero e homossexuais para fins de adoção168. Além das decisões mencionadas, a Corte já se posicionou quanto a direitos dos transexuais como, por exemplo, a alteração de documentos de identidade após a cirurgia de redesignação sexual169. Já o caso Vejdeland e outros v. Suécia, julgado em 9 de fevereiro de 2012, foi o primeiro no qual a CEDH se deparou com manifestações de ódio de ordem homofóbica. Em dezembro de 2004, os requerentes, juntamente com mais três pessoas, dirigiram-se a uma escola secundária e distribuíram cerca de cem folhetos a alunos da instituição, colocando o material em seus armários. Os folhetos foram produzidos por uma organização chamada “National Youth” e continham as seguintes afirmações: Como o objetivo do presente estudo é tratar especificamente do discurso de ódio, mostra-se desnecessário o aprofundamento no estudo da jurisprudência da CEDH acerca de outros direitos das minorias sexuais. Para verificar os julgamentos mencionados acima sucintamente, cf. SWIEBEL, Joke; VEUR, Dennis van der. Hate crimes against lesbian, gay, bisexual and transgender persons and the policy response of international governmental organizations. In: Netherlands Quarterly of Human Rights, v. 27, n. 4, Antuérpia: Intersentia, p. 19-20. Cf. também: INTERNATIONAL COMISSION OF JURISTS. Sexual orientation and gender identity in human rights law – Jurisprudential, Legislative and Doctrinal References from the Council of Europe and the European Union. Genebra: International Comission of Jurists, 2007, 234 p. 169 CEDH. Case of Christine Goodwin v. UK, Estrasburgo, 2002. Disponível: . Acesso em 22 mar. 2013. 168

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Propaganda Homossexual – no decurso das últimas décadas, a sociedade passou da rejeição da homossexualidade e de outras formas de desvios sexuais para a aceitação dessa inclinação sexual desviante. Os seus professores ‘anti-suecos’ sabem muito bem que a homossexualidade tem um efeito moral destrutivo sobre a base da sociedade, mas tentarão apresentá-la como algo natural e bom. – Digam a eles que o HIV e a AIDS apareceram inicialmente com os homossexuais e que o seu estilo de vida promiscuo é uma das principais razões pelas quais essa praga da atualidade ainda encontra ponto de apoio. – Digam a eles que as organizações homossexuais que fazem lobby estão tentando subestimar a pedofilia e perguntem se esse desvio sexual deve ser legalizado.170

Na Suécia, a “agitação contra homossexuais enquanto grupo” consiste em ofensa penal desde janeiro de 2003. Logo, os requerentes foram indiciados pela prática do referido tipo penal com base na distribuição dos panfletos mencionados acima. O caso chegou até a Corte Suprema da Suécia, a qual acabou por confirmar a decisão de primeira instância – que havia sido revertida em sede de apelação –, condenando os requerentes em julho de 2006 (três deles tiveram a sentença suspensa por meio do pagamento de multas, enquanto que o quarto obteve liberdade condicional). Na análise do caso, a Corte Sueca ponderou o fato de os panfletos terem sido distribuídos em uma escola, à qual os acusados não tinham livre acesso. Na prática, a colocação dos papéis nos armários dos alunos tirava deles a possibilidade de recusar o recebimento do material. Apesar dos requerentes afirmarem que a sua intenção, ao distribuir os panfletos, era de iniciar um debate entre os alunos e os professores acerca de questões de interesse público – a educação na Suécia –, a Corte do país entendeu que o material continha CEDH. Case of Christine Goodwin v. UK, Estrasburgo, 2002. Disponível: . Acesso em: 22 mar. 2013, parágrafo 8, tradução não oficial.

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expressões desnecessariamente ofensivas e depreciativas para os homossexuais enquanto grupo social. As palavras utilizadas nos panfletos violavam direitos do referido grupo, além de não contribuir para um debate público que culminasse com um entendimento mútuo. A CEDH, acionada pelos requerentes, fez uma nova ponderação entre a liberdade de expressão dos responsáveis pela distribuição dos panfletos, garantida pelo art. 10 da Convenção Europeia, e o direito à não-discriminação dos homossexuais – no caso, “a proteção da reputação ou de direitos de terceiros”, a que aduz o § 2º do art. 10 da mesma Convenção171. Inicialmente, a Corte determinou que a interferência do poder judiciário sueco era prescrita em lei, porquanto os requerentes foram condenados pela prática de “agitação contra um grupo nacional ou étnico”, nos termos do Capítulo 16, Artigo 8º do Código Penal Sueco e porque, na época dos acontecimentos, a ofensa penal poderia ser praticada em detrimento de pessoas caracterizadas como grupo em virtude da sua orientação sexual172. Quanto à legitimidade do fim Interessante mencionar que a opinião concorrente da Juíza Yudkivska, compartilhada pelo juiz Villiger, afirma não ser possível sequer garantir a proteção do art. 10 da Convenção a uma manifestação que vincula o grupo social dos homossexuais à “praga do século vinte”. Segundo a juíza, o caso em questão não trata unicamente da ponderação entre o exercício da liberdade de expressão e do direito de um determinado grupo de pessoas à reputação: o discurso de ódio empregado é destrutivo para a sociedade democrática como um todo, pois ‘mensagens prejudiciais ganharão crédito, com concomitante resultado de discriminação e talvez até violência contra grupos minoritários. Assim, não deveria receber qualquer proteção’. A juíza vai além, afirmando que “as estatísticas de crimes odiosos mostram que a propaganda do ódio gera danos, sejam imediatos ou potenciais”. Cf. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) - Concurring Opinion of Judge Yudkivska Joined by Judge Villiger, parágrafos 9-11 (tradução não oficial). 172 A opinião concorrente do juiz Spielmann, compartilhada pela juíza Nußberger, destaca, inclusive, a Recomendação CM/Rec(2010)5 do Comitê de Ministros dos Estados-membros do Conselho da Europa, segundo a qual “o tratamento não-discriminatório por atores estatais, bem como, quando apropriadas, as medidas estatais positivas para a proteção pelo tratamento discriminatório, inclusive por agentes não-estatais, são componentes fundamentais do sistema internacional de proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) 171

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visado pela intervenção, a CEDH considerou apropriada a colocação do governo Sueco, no sentido de que a condenação dos requerentes objetivou a “proteção da reputação ou de direitos de terceiros”, nos termos do § 2º do art. 10 da Convenção Europeia173. Como de praxe, a análise da necessidade da medida interventiva em uma sociedade democrática é a que envolve a maior ponderação das especificidades do caso, a partir dos parâmetros desenvolvidos pela jurisprudência da CEDH ao longo dos anos. Impende ressaltar, ademais, que é na análise da necessidade social da medida que a Corte concede maior margem de apreciação aos Estados, ainda que exerça uma espécie de supervisão da conformidade da medida com a Convenção Europeia. No caso em tela, a CEDH começa pelo exame da intenção dos requerentes por trás da distribuição dos panfletos. Eles alegam que a finalidade da sua conduta era suscitar um debate entre alunos e professores sobre a falta de objetividade na educação em escolas suecas. A Corte interpreta a referida intenção como legítima, na linha do que já havia mencionado a Suprema Corte Sueca. No entanto, quando trata do conteúdo da manifestação, a CEDH, apesar de reconhecer que a questão poderia constituir matéria de interesse público, não acata o argumento dos requerentes de que as expressões empregadas nos panfletos não incitavam ao ódio ou à violência. Nesse sentido, destaca que [...] incitar ao ódio não necessariamente demanda um ato de violência ou outra conduta criminosa. Ataques contra pessoas praticados por meio de insulto, expondo ao ridículo ou difamando um grupo específico da população, podem ser suficientes para as autoridades favorecerem o combate - Concurring Opinion of Judge Spielmann Joined by Judge Nussberger, parágrafo 6. Cf. também COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation CM/ Rec(2010)5 of the Committee of Ministers on measures to combat discrimination on grounds of sexual orientation or gender identity, 2010. 173 CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07), parágrafo 49.

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ao discurso racista em detrimento da liberdade de expressão exercida de maneira irresponsável.174

A Corte acabou por concluir que a manifestação era desnecessariamente ofensiva aos homossexuais, envolvendo alegações sérias e prejudiciais ao grupo social em questão. É importante frisar, além disso, o pronunciamento da Corte no sentido de que a discriminação baseada na orientação sexual “é tão séria quanto a discriminação baseada em ‘raça, origem ou cor’”175. A partir dessa colocação, a CEDH deixa claro o seu posicionamento de que o discurso de ódio não é repreensível, com base na Convenção Europeia, apenas quando dirigido a uma minoria racial, étnica, nacional ou religiosa, mas também a uma minoria sexual. Ao final, a CEDH destaca dois aspectos relevantes do contexto da manifestação: o local onde ela ocorreu e a natureza e seriedade da intervenção das autoridades suecas. Apesar de geralmente constituir um elemento secundário dentre os parâmetros da Corte para determinar a conformidade de uma intervenção estatal face à Convenção Europeia, o local da manifestação homofóbica teve, no presente caso, grande importância. Os juízes da CEDH entenderam por relevante o fato de os panfletos terem sido distribuídos em uma escola na qual os requerentes não estudaram ou sequer tinham “[I]nciting to hatred does not necessarily entail a call for an act of violence, or other criminal acts. Attacks on persons committed by insulting, holding up to ridicule or slandering specific groups of the population can be sufficient for the authorities to favour combating racist speech in the face of freedom of expression exercised in an irresponsible manner” (tradução não oficial). Ibidem, parágrafo 55. 175 Ibidem. A CEDH já havia se posicionado a esse respeito no caso Smith e Grady v. Reino Unido. O caso abordou o banimento de homossexuais das forças armadas, em virtude de alegados sentimentos negativos de colegas heterossexuais, o que prejudicaria a coesão e moral das unidades militares. O caso culminou com a declaração da Corte de que esse sentimento negativo não pode justificar uma interferência do Estado – como o banimento dos homossexuais das forças armadas – da mesma forma como está justificada a intervenção para apaziguar sentimentos negativos contra pessoas de outra raça, origem e cor. Cf. CEDH. Case of Smith and Grady v. The United Kingdom, Estrasburgo, 1999, parágrafo 97. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. 174

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acesso livre, para jovens que, em função da sua idade, eram impressionáveis e vulneráveis às expressões empregadas176. Ademais, não tiveram a possibilidade de recusar os panfletos, já que eles foram colocados em seus armários sem permissão prévia. O juiz Boštjan M. Zupančič destaca, em sua opinião concorrente, o caráter fechado do ambiente escolar, advertindo que a distribuição de qualquer material por um estranho à instituição de ensino deveria ser precedida da autorização das autoridades da escola177. Contra o pedido dos requerentes pesa, também, o grau de seriedade da intervenção das autoridades suecas: para a CEDH, a imposição das penas de multa e da liberdade condicional, ao invés da pena de prisão, se mostra como uma intervenção mais leve e, portanto, proporcional à conduta dos requerentes178.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No dispositivo da sentença do caso Vejdeland e outros v. Suécia, os juízes decidiram, unanimemente, que a medida adotada pela Suécia para proteger os direitos dos homossexuais enquanto grupo social não violou o art. 10 da Convenção Europeia, porquanto justificável a limitação da liberdade de expressão no caso, nos termos do § 2º do mesmo dispositivo legal. Desta forma, o caso coloca fim a qualquer argumento contrário à proteção das minorias sexuais face ao discurso de ódio. Evidenciou-se, a partir da menção a outros precedentes da Corte e do raciocínio jurídico empregado por ela, que a proteção das minorias sexuais contra discursos homofóbicos segue os mesmos Aqui é interessante frisar a informação trazida pelos juízes Spielmann e Nußberger com base em estudos financiados por alguns dos Estados-membros, de que os estudantes LGBT sofrem bullying tanto de seus colegas, quanto de seus professores. Cf. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) - Concurring Opinion of Judge Spielmann Joined by Judge Nussberger, parágrafo 7. 177 Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) - Concurring Opinion of Judge Boštjan M. Zupančič, parágrafo 9. 178 CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07). Op. cit., parágrafo 58. 176

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padrões aplicados aos casos que envolveram ataque a minorias étnicas, nacionais e religiosas. Ainda que existam indagações a respeito da expansão dos grupos minoritários protegidos pelo art. 10, §2º da Convenção Europeia179, o caso Vejdeland e outros v. Suécia assinala a consolidação das minorias sexuais enquanto vítimas em potencial do discurso de ódio, ao menos no cenário europeu. Esse passo significativo rumo à proteção contra a homofobia deve servir de referência para outros sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos – como o interamericano – e mesmo para o direito interno de países não-europeus.

4 REFERÊNCIAS CARVALHO RAMOS, André. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. CEDH. Case of Balsytè-Lideikienè v. Lithuania (72596/01), Estrasburgo, 2008. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013. CEDH.Case of Castells v. Spain (11798/85), Estrasburgo, 1992. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. CEDH. Case of Christine Goodwin v. UK, Estrasburgo, 2002. Disponível: . Acesso em: 22 mar. 2013. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00), Estrasburgo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. CEDH. Case of Féret v. Belgium (15615/07), Estrasburgo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97), Estrasburgo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2013. CEDH. Case of Garaudy v. France (65831/01), Estrasburgo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 9 fev. 2013. CEDH.Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02), Estrasburgo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2013. TULKENS, Françoise. Op. cit., p. 15.

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CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93), Estrasburgo, 1998. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89), Estrasburgo, 1994. Disponível em: . Acesso em: 10 fev 2013. CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94), Estrasburgo, 1999. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013. CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94), Estrasburgo, 1998. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. CEDH. Case of Lingens v. Austria (9815/82), Estrasburgo, 1986. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. CEDH. Case of Nilsen and Johnsen v. Norway (23118/93), Estrasburgo, 1999. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. CEDH. Norwood v. The United Kingdom (23131/03), Estrasburgo, 2004. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2013. CEDH. Case of Otto-Preminger-Institut v. Austria (13470/87), Estrasburgo, 1994. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2013. CEDH. Case of Pedersen and Baadsgaard v. Denmark (49017/99), Estrasburgo, 2004. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. CEDH. Case of Schimanek. v. Austria (32307/96), Estrasburgo, 2000. Disponível: . Acesso em: 8 fev. 2013. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00), Estrasburgo, 2004. Disponível: . Acesso em: 8 fev. 2013. CEDH. Case of Smith and Grady v. The United Kingdom, Estrasburgo, 1999. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. CEDH. Case of Sürek v. Turkey (26682/95), Estrasburgo, 1999. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07), Estrasburgo, 2012. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013.

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CEDH. Case of Vereinigung Bildender Künstler v. Austria (68354/01), Estrasburgo, 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2013. COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation No. R (97) 20 of the Committee of Ministers to member states on “hate speech”, 1997. COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation no. R (97) 21 of the Committee of Ministers to member states on the media and the promotion of a culture of tolerance, 1997. COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recomendação CM/ Rec(2010)5 do Comitê de Ministros aos Estados-Membros sobre medidas para o combate à discriminação em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero, 2010. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of B.H., M.W., H.P. and G.K. v. Austria (12774/87), Estrasburgo, 1989, disponível: . Acesso em: 8 fev. 2013. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Communist Party (KPD) v. the Federal Republic of Germany (250/57), Estrasburgo, 1957. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Glimmerveen and Hagenbeek v. the Netherlands (8348/78), Estrasburgo, 1979. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Honsik v. Austria (25062/94), Estrasburgo, 1995. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Marais v. France (31159/96), Estrasburgo, 1996, disponível: . Acesso em 09.02.2013. INTERNATIONAL COMISSION OF JURISTS. Sexual orientation and gender identity in human rights law – Jurisprudential, Legislative and Doctrinal References from the Council of Europe and the European Union. Genebra: International Comission of Jurists, 2007. SWIEBEL, Joke; VEUR, Dennis van der. Hate crimes against lesbian, gay, bisexual and transgender persons and the policy response of international governmental organizations. In: Netherlands Quarterly of Human Rights, Vol. 27, nº 4, Antuérpia: Intersentia, p. 485-524. TULKENS, Françoise. When to say is to do: Freedom of expression and hate speech in the case-law of the European Court of Human Rights. In: CEDH – EUROPEAN JUDICIAL TRAINING NETWORK, Seminar on Human Rights for European Judicial Trainers, Estrasburgo, 2012. WEBER, Anne. Manual on hate speech. Estrasburgo: Council of Europe, 2009.

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A PROTEÇAO AOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES À LUZ DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL: um estudo da normativa internacional e interna em face da exposição dos sujeitos à publicidade mercadológica Fernanda da Silva Lima Doutoranda em Direito (PPGD/UFSC); Mestra em Direito (PPGD/UFSC); Bacharel em Direito (CSA/UNESC). Professora do Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE, campus Orleans/SC) e na Escola Superior de Criciúma/SC (ESUCRI). Coordenadora do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Criminologia Crítica (GEDIF/ESUCRI) e pesquisadora no Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC). ([email protected]) Josiane Rose Petry Veronese Orientadora. Doutora e Mestre em Direito (PPGD/UFSC); Pós-doutora pela PUC/POA (2012); professora dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito (PPGD/UFSC); Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC); Professora titular da disciplina de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenadora do Curso de Direito/UFSC, autora de vários livros e artigos. ([email protected])

Resumo: O estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos situa o ser humano como verdadeiro sujeito do direito internacional, cuja proteção intrínseca é a de resguardar a sua dignidade humana, o que envolve também a revisão da própria noção tradicional de soberania estatal. Neste breve estudo, procurou-se demonstrar em linhas gerais a trajetória história do Direito Internacional dos Direitos Humanos e relacioná-lo com o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil. O principal objeto desta pesquisa envolve situar a criança e o adolescente como sujeito de direitos, bem como, sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e como tal, tentar verificar qual resposta normativa o sistema internacional e o sistema internam dão para os riscos a que estão expostos estes sujeitos à publicidade mercadológica. E isso porque devido ao processo de desenvolvimento em que se encontram, crianças e adolescentes

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são indivíduos incapazes de absorverem os anúncios publicitários de forma crítica e reflexiva como fazem os adultos e são diretamente impulsionados e incutidos à valores que os levam ao consumismo precoce. . É imprescindível para que haja efetiva mudança, pensar em ações conjuntas envolvendo a sociedade, a família e o Estado. Palavras-chave: Criança e adolescente – Direitos Humanos – Doutrina da Proteção Integral – Publicidade mercadológica. Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito Internacional dos Direitos Humanos: apontamentos iniciais e a força normativa das convenções no sistema jurídico brasileiro. 3. Conhecendo os direitos de crianças e adolescentes: um olhar para o sistema normativo brasileiro. 4. Publicidade mercadológica versus a proteção integral: conhecendo o âmbito internacional e interno na perspectiva de garantia de direitos humanos. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO A proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes está consagrada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989 e outros documentos internacionais. No Brasil esta proteção foi garantia a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no qual conferiu às crianças e adolescentes o reconhecimento de sujeitos de direitos, sendo-lhes reconhecido a condição de pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento. Por essa razão gozam de absoluta prioridade na efetivação dos seus direitos fundamentais, assegurados de forma compartilhada pelo Estado, família e sociedade. Passados mais de 20 anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, os desafios impostos à efetivação dos direitos fundamentais da infância e adolescência ainda são imensos. E, diante disso é imprescindível estudar a efetividade da proteção integral de crianças e adolescentes expostas à informação publicitária mercadológica no plano internacional e verificar se o modelo de proteção brasileiro é adequado para a proteção e a garantia de direitos à infância e adolescência, uma vez

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que ao dirigir seus anúncios, as agências de publicidade apostam no mercado infantil procurando a vulnerabilidade de cada faixa-etária para criar consumidores precoces. Toda propaganda mercadológica dirigida ao público infanto -adolescente o expõe a variados riscos, justamente porque devido a fase de desenvolvimento em que se encontram, tem dificuldades para absorver os anúncios publicitários de forma crítica e reflexiva como fazem os adultos. Assim, as agências apropriam-se dessas vulnerabilidades inerentes a fase da infância e adolescência para criar anúncios e incutir no imaginário de crianças e adolescentes o consumismo excessivo, o que pode provocar: obesidade infantil, erotização precoce, estresse e conflitos familiares, banalização da agressividade e violência, entre outros riscos. Atualmente no Brasil não há regulamentação normativa voltada para combater a publicidade mercadológica para crianças e adolescentes, há apenas a autoregulamentação imposta para as agências de publicidade pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação (CONAR). O CONAR é um órgão não-governamental formado por membros da sociedade civil, sendo que muitos destes são vinculados às próprias agências de publicidade, o que resta apenas confiar que dêem uma atenção devida ao tema. É importante enfatizar que a publicidade mercadológica tratada nesta pesquisa abrange todos os veículos de comunicação: televisão, jornais e revistas, internet, outdoor, e outros. Dentre esses veículos de comunicação a televisão é considerada como a principal ferramenta do mercado para a persuasão do público infanto-adolescente. E isso porque no ano de 2005 ficou constatado que as crianças brasileiras de 4 a 11 anos passam em média 4 horas e 51 minutos e 19 segundos na frente da televisão. E esse tempo é, muitas vezes, maior do que aquele em que passam na escola ou em convivência com sua família. A publicidade mercadológica tem como objetivo principal a persuasão para o consumo do item anunciado. O desenvolvimento desta pesquisa é de fundamental importância porque o consumis268

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mo infantil é uma questão urgente e de interesse geral que envolve questões éticas (valores) decorrentes deste processo. É de fundamental importância verificar se a autoregulamentação imposta às agências de publicidade é mecanismo suficiente para resguardar os direitos de crianças e adolescentes. Para a compreensão dos temas que envolvem a garantia dos direitos da infância e adolescência e questões referentes aos estudos sobre publicidade versus consumismo precoce, é imprescindível um estudo aprofundado sobre Direito da Criança e do Adolescente e sobre as questões éticas, sociais e jurídicas que envolvem o consumismo decorrente das informações publicitárias mercadológicas. Indivíduos conscientes e responsáveis são à base de uma sociedade mais justa e fraterna, que tenha a qualidade de vida não apenas como um conceito a ser perseguido, mas com uma prática a ser vivida. É necessário que o processo de mudança e conscientização sobre a temática envolva toda sociedade, capaz de acionar um processo de mobilização da opinião pública que abarque a proteção de crianças e adolescentes expostas à publicidade mercadológica. Destaca-se, a urgência que o Estado, a família e a sociedade têm em cumprir o seu papel, enquanto garantidores dos direitos de crianças e adolescentes. Trata-se de proposta de pesquisa em relação a um tema preocupante o qual poderá trazer contribuição histórica significativa.

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O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: APONTAMENTOS INICIAIS E A FORÇA NORMATIVA DAS CONVENÇÕES NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

As convenções internacionais são fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ramo jurídico que surgiu no cenário mundial no início do século passado e que tem precedentes históricos no Direito Humanitário, na Liga das Nações e na Organização Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Internacional do Trabalho – OIT. Piovesan (1997, p. 132-133) afirma que embora a concepção dos direitos humanos estivesse intrinsecamente interligada com a noção de “igualdade” e “liberdade” inerentes a qualquer pessoa humana, foi somente no período pós Segunda Guerra Mundial que o Direito Internacional dos Direitos Humanos teve realizado seu processo de universalização, principalmente como alternativa para repudiar o holocausto e combater possíveis atrocidades como aquelas cometidas pelo regime nazista. Lafer (1995, p. 174) complementa Piovesan, informando que foram os desmandos do totalitarismo que aterrorizaram vários países europeus no período da Segunda Guerra, o que propiciou, a partir de então, consolidar a percepção Kantiana de que os regimes democráticos apoiados nos direitos humanos eram os mais propícios à manutenção da paz e da segurança internacional. “Se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução” (PIOVESAN, 2000, p. 94) E, a partir desse processo de universalização, é que os Direitos Humanos aponta como ramo jurídico do Direito Internacional, cuja peculiaridade passou a redefinir o próprio conceito de soberania dos Estados e assim como o “[...] status do indivíduo no cenário internacional, para que se tornasse verdadeiro sujeito de direito internacional.” (PIOVESAN, 1997, p. 133) Ferrajoli (2002, p. 41) faz uma crítica a soberania no mundo moderno e para isso discorre sobre como a “soberania” dos Estados foi remoldada ao longo de vários períodos históricos e destaca que: A soberania, que já se havia esvaziado até o ponto de dissolver-se na sua dimensão interna com o desenvolvimento do estado constitucional de direito, se esvanece também em sua dimensão externa na presença de um sistema de normas internacionais caracterizáveis como ius cogens, ou seja, como direito imediatamente vinculador para os Estados-membros. No novo ordenamento, são de fato sujeitos de direito internacional não somente os Estados, mas também os indiví-

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duos e os povos: os primeiros como titulares, nos confrontos de seus próprios Estados, dos direitos humanos a eles conferidos pela Declaração de 1948 e pelos Pactos de 1966; os segundos enquanto titulares do direito de autodeterminação, reconhecidos pelo artigo 1 dos mesmos Pactos.

Logo, o entendimento do que seja os Direitos Humanos na esfera global, perpassa exclusivamente pelo entendimento de duas premissas básicas no Direito Internacional dos Direitos Humanos. A primeira apontando a necessidade urgente, como já mencionado por Ferrajoli (2002), da revisão da noção tradicional acerca da soberania dos Estados, e que de fato eles deverão ser curvar ao sistema global para a garantia de proteção aos direitos humanos; e a segunda parte da ideia de que o indivíduo tem direitos protegidos na esfera internacional, e que logo, os indivíduos são, assim como os Estados, verdadeiros sujeitos (atores) do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O Direito Internacional fez emergir a “[...] necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético para orientar a nova ordem internacional” (PIOVESAN, 2008, p. 20), ancorada principalmente pelo respeito à dignidade humana. E diante disso, a proteção aos direitos humanos tornou-se preocupação frequente em âmbito internacional, sendo necessária a criação de um amplo sistema de proteção capaz de limitar a atuação dos Estados em face de qualquer violação aos direitos humanos. A Organização das Nações Unidas – ONU, foi oficialmente criada em 24 de outubro de 1945, e é formada atualmente por 193 países membros que se reúnem de forma voluntária para trabalhar pela paz e desenvolvimento mundial. Na Carta das Nações Unidades estão definidos os principais objetivos da ONU, quais sejam: Defesa dos direitos fundamentais do ser humano; Garantir a paz mundial, colocando-se contra qualquer tipo de conflito armado; Busca de me-

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canismos que promovam o progresso social das nações; Criação de condições que mantenham a justiça e o direito internacional. “Os membros são unidos em torno da Carta da ONU, um tratado internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comunidade internacional.” (ONU-Brasil, 2013) No Brasil, pode-se dizer, que os tratados internacionais em matéria de direitos humanos foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro acompanhados da redemocratização do país a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.180 Portanto, nas relações internacionais a atual Constituição consagra como um dos princípios basilares a prevalência dos direitos humanos (inciso II, art. 4º CF/88). Como bem observa Piovesan (1997, p. 141), além dos avanços trazidos no texto constitucional em matéria de direitos humanos em âmbito internacional, foi essencial a mudança de postura do Estado brasileiro diante do sistema global. De acordo com a autora foi necessário que o país reorganizasse [...] a sua agenda internacional, de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes do processo de democratização. Esse esforço se conjuga com o objetivo de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador e garantidor dos direitos humanos. Adicione-se que a subscrição do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza ainda o aceite do Brasil para com a idéia contemporânea de globalização dos direitos humanos, bem Entre os tratados internacionais em matéria de direitos humanos ratificados pelo Brasil após a Constituição Federal de 1988 estão: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e culturais, em 24 de janeiro de 1992; Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a Venda, Prostituição e Pornografias infantis, em 27 de janeiro de 2004. E outros instrumentos. (PIOVESAN, 2008, p. 24) 180

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como para com a idéia da legitimidade das preocupações da comunidade internacional, no tocante a matéria. (PIOVESAN, 2008, p. 25)

A partir da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, os tratados e convenções internacionais em matéria de direitos humanos ganharam status de norma constitucional, desde que sejam aprovados nas duas Casas do Congresso Nacional – Câmara e Senado, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos membros (ver § 3º, artigo 5º Constituição Federal de 1988). Observa-se que a Constituição Federal brasileira assegura uma proteção especial apenas aos tratados e convenções internacionais em matéria de Direitos Humanos, pois estes têm um caráter especial de proteção, distinguindo-se dos tratados de matéria comum, pois estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade das relações entre Estados-partes, já os tratados de direitos humanos “[...] transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetiva a salvaguarda dos direitos do ser humano [...]”(PIOVESAN, 2008, p. 26) E nessa perspectiva, sob o âmbito de incidência das normas em matéria de direitos humanos internacionais, Annoni (2008, p. 32) entende que é importante repensar o direito [...] percebendo-o como algo dinâmico cujo objeto primeiro é o respeito à dignidade da pessoa humana, suas necessidades e práticas sociais. É preciso compreender o fenômeno jurídico não apenas como uma relação de poder hierárquico que divide competências e garantias em serviço do Estado, mas sim, como um verdadeiro instrumento de promoção de satisfações e desejos coletivos, a serviço de toda a sociedade.

Por isso os tratados e convenções internacionais de direitos humanos devem atuar com força normativa no ordenamento jurídico interno para prevenir ou atuar em defesa da ameaça ou lesão aos direitos inerentes ao indivíduo ou a coletividade.

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Assim, como esta pesquisa tem como premissa compreender a violação ou não de direitos a crianças e adolescentes expostos a publicidade mercadológica, o que pode ferir os seus direitos humanos enquanto pessoa em estado peculiar de desenvolvimento, é compreensível que, em matéria de direitos humanos internacionais, percorra-se os instrumentos normativos importantes e relevantes nesta discussão, incluindo o estudo da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU no ano de 1989. Trindade (1997, p. 21) reforça a ideia da necessidade de haver interação entre os diversos tratados e convenções internacionais cuja, materialidade normativa procura ser o mais eficaz possível no combate a violações de direitos humanos, contribuindo por derradeiro para dar maior “[...] precisão ao alcance das obrigações convencionais e a assegurar uma interpretação uniforme do direito internacional dos direitos humanos”. E essa interação entre as normativas internacionais deve ser a guia mestra a conduzir os argumentos jurídico-políticos que se pretende desenvolver neste artigo, na medida em que a eficácia das convenções internacionais em matéria de direitos humanos possam garantir a proteção integral à criança e ao adolescente no Brasil, a partir dos modelos normativos expostos nos documentos internacionais e à luz do sistema de proteção internacional.

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CONHECENDO OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O SISTEMA NORMATIVO BRASILEIRO

Em âmbito internacional, pode-se dizer que o período da infância passou a ser considerado como uma fase em formação e em pleno desenvolvimento, necessitando, portanto, uma proteção especial. Diversos instrumentos normativos internacionais são representativos da luta por melhores condições de vida e proteção aos direitos da população infantil.

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A Declaração de Genebra de 1924 foi a primeira normativa internacional a garantir direitos e uma proteção especial à crianças e adolescentes. Algumas décadas mais tarde a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que é representativa do avanço nos direitos e liberdades individuais do ser humano e no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Em 1959 a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração dos Direitos da Criança, sendo o Brasil signatário. É possível ainda citar outros instrumentos normativos que impulsionaram a luta em favor de direitos à infância. Dentre os quais destacam-se: as Regras de Beijing para a administração da Infância e da Juventude, Resolução nº 40.33 de 29 de novembro de 1985 da Assembleia Geral da ONU; A Convenção Americana de Direitos Humanos que foi ratificada pelo Brasil em 1992; e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 99.710 em 21 de novembro de 1990. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é o instrumento legal em âmbito internacional mais representativo das conquistas e direitos implementados em favor da infância e adolescência. E seguindo esse movimento internacional é que começa a surgir, na década de 1980, o Direito da Criança e do Adolescente no cenário jurídico brasileiro, também representativo das mobilizações dos novos movimentos sociais no país, indignados com a realidade social vivenciada por crianças e adolescentes brasileiros “afrontados na quase totalidade de sua cidadania” (VERONESE, 2006, p. 7). Como se viu, a análise sócio-jurídica da infância no Brasil remete a constatar-se que durante o período menorista, o país caminhava na contramão da história. E isso porque em âmbito internacional, a ONU já consagrava desde 1959 a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que o país, embora tendo ratificado, deixou de aplicá-la legalmente.

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De acordo com Marcílio, com a edição da Declaração dos Direitos da Criança em 1959: [...] a ONU reafirmava a importância de se garantir a universalidade, objetividade e igualdade na consideração de questões relativas aos direitos da criança. A criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história, prioridade absoluta e sujeito de Direito, o que por si só é uma profunda revolução. A Declaração enfatiza a importância de se intensificar esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação. (MARCÍLIO, 2008)

De fato, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 não passou de letra morta, pois o Estado brasileiro foi signatário apenas no papel, e suas ações políticas e a normativa interna estavam na realidade às avessas do projeto de proteção à infância que se discutia em âmbito internacional. Logo, a consagração do Direito da Criança e do Adolescente como ramo jurídico autônomo e amparado pela Doutrina da Proteção Integral, somente se efetivou no sistema jurídico brasileiro após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988181 e consequentemente com a aprovação da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, então denominada Estatuto da Criança e do Adolescente. A Doutrina da Proteção Integral garantiu que meninos e O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 recentemente sofreu alterações decorrentes da Emenda Constitucional nº 65, de 13 de julho de 2010 e passou a vigorar com a seguinte redação: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Embora a categoria “jovem” tenha sido incluída na redação do artigo que regulamenta o Direito da Criança e do Adolescente neste país, esta pesquisa não abarcará os direitos de juventude, pois entende em que em muitos casos há incompatibilidade entre as duas doutrinas. Assim, esta pesquisa será destinada a pesquisar sobre os direitos da infância e adolescência sob os preceitos jurídicos, sociais e políticos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

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meninas com menos de 18 anos de idade passassem a categoria de sujeitos de direitos182, necessitando de uma proteção especial e prioritária para concretização de seus direitos fundamentais tendo em vista que estão em fase peculiar de desenvolvimento. Para Veronese (2006, p. 9-10), Quando a legislação pátria recepcionou a Doutrina da Proteção Integral fez uma opção que implicaria num projeto político-social para o país, pois ao contemplar a criança e o adolescente como sujeitos que possuem características próprias ante o processo de desenvolvimento em que se encontram, obrigou as políticas públicas voltadas para esta área a uma ação conjunta com a família, com a sociedade e o Estado.

A Doutrina da Proteção Integral, portanto, recepcionada para a garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes reconhece o status de prioridade absoluta na efetivação de direitos, principalmente no campo das políticas públicas. Além disso, permite que seja implementado em âmbito local um sistema de garantia de direitos capaz de se mobilizar e atuar na promoção e efetivação dos direitos das quais à população infanto-adolescente é titular. O Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança aquela pessoa entre 0 e 12 anos incompletos e adolescente a pessoa entre 12 e 18 anos. Essa diferenciação deve-se ao fato de crianças e adolescentes estarem em estágios de desenvolvimento diversos. Esta Lei tornou-se o principal instrumento jurídico de luta pela efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes no país e, além disso, é representativa do rompimento definitivo com a doutrina jurídica da situação irregular, que coisificava a infância, para redimensionar toda uma visão social. (VERONESE; COSTA, p. 52) De acordo com PEREIRA (1999, p. 15), “ser sujeitos de direitos significa, para a população infanto-juvenil, deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos.”

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O Estatuto da Criança e do Adolescente reveste-se de caráter inovador ao dispor os direitos fundamentais das quais crianças e adolescentes são titulares e ainda cria um sistema de garantia de direitos que prevê a aplicação de medidas de prevenção e proteção para a concretização desses novos direitos atribuindo responsabilidades compartilhadas à família, ao Estado e a sociedade.

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PUBLICIDADE MERCADOLÓGICA VERSUS A PROTEÇÃO INTEGRAL: CONHECENDO O ÂMBITO INTERNACIONAL E INTERNO NA PERSPECTIVA DE GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS

Esta pesquisa, cujo caráter é interdisciplinar também tem como objetivo o estudo da sociedade de consumo e da qual, inexoravelmente abrange em seu contexto crianças e adolescentes. O enfoque deste estudo é permeado pela constatação de que a publicidade mercadológica, que alimenta a sociedade de consumo, quando dirigida às crianças e adolescentes prejudica a efetivação dos seus direitos fundamentais. Nesse sentido, questiona-se: Sendo as crianças e adolescentes sujeitos de direitos e ainda, sujeitos do Direito Internacional, como é garantida a sua proteção em face dos riscos que estão expostos à publicidade mercadológica? Obviamente, que para responder o questionamento complexo, é imprescindível que se faça uma primeira análise do sistema normativo internacional e de que forma os documentos internacionais dão conta de resolver a questão; e no segundo momento, como se dá esta proteção no âmbito interno, ou seja, no sistema normativo brasileiro. Considerando que crianças e adolescentes são sujeitos que estão em fase peculiar de desenvolvimento, são eles indivíduos incapazes de absorverem os anúncios publicitários de forma crítica e

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reflexiva como fazem os adultos, e são diretamente impulsionados e incutidos à valores que os levam ao consumismo precoce (HENRIQUES, 2007, p. 15). Pesquisas apontam que as crianças e adolescentes acreditam fielmente no que o anúncio publicitário transmite de informações acerca dos seus produtos (BJURSTRÖM, 2000, p. 22-23) Primeiramente é importante distinguir conceitualmente os termos “propaganda” e “publicidade”, pois em muitos textos são encontrados como se sinônimos fossem. De acordo com Henriques (2007, p. 35), a palavra propaganda em seu aspecto terminológico significa “[...] propagação de ideologia de caráter ético, moral, político, religioso, social ou econômico, sem qualquer intuito comercial [...]”. Já publicidade é definida por Denari (1992, p. 135) como a “oferta de bens ou serviços no mercado de consumo, patrocinada por anunciante mediante estipulação de preço, prazo ou condições de pagamento.” No plano internacional a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989 reconhece a importância em proteger a criança contra toda informação e material prejudicial ao seu bem-estar, conforme disposto no art. 17. Art.17 1 – Os Estados Partes reconhecem a função importante desempenhada pelos meios de comunicação e zelarão para que a criança tenha acesso a informações e materiais procedentes de diversas fontes nacionais e internacionais, especialmente informações e materiais que visem promover seu bem-estar social, espiritual e moral e sua saúde física e mental.

Para tanto, os Estados-Parte:  a) incentivarão os meios de comunicação a difundir informações e materiais de interesse social e cultural para a criança, de acordo com o espírito do Artigo 19;

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b) promoverão a cooperação internacional na produção, no intercâmbio e na divulgação dessas informações procedentes de diversas fontes culturais, nacionais e internacionais; c) incentivarão a produção e a difusão de livros para crianças;  d) incentivarão os meios de comunicação no sentido de, particularmente, considerar as necessidades lingüísticas da criança que pertença a um grupo minoritário ou que seja indígena; e) promoverão a elaboração de diretrizes apropriadas a fim de proteger a criança contra toda informação e material prejudiciais ao seu bem estar, tendo em conta as disposições dos Artigos 13 e 18.

Acerca da comunicação social a Constituição Federal de 1988 reservou um espaço para tratar deste assunto no capítulo V e em linhas gerais a Constituição torna livre a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, sem restrição, ou seja, sem censura. (art. 220) Mas enfatiza-se, que a publicidade mercadológica dirigida para crianças e adolescentes não pode ser entendida neste caso como mera “liberdade de expressão e comunicação”. Por isso, não se entende como censura a restrição de propaganda para crianças e adolescentes que ferem os próprios preceitos sobre a comunicação social contidos na Constituição no seguinte dispositivo: Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (grifou-se) 280

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Neste sentido, deve-se entender que as informações publicitárias mercadológicas dirigidas para crianças e adolescentes estão inseridas na programação das emissoras de rádio e de televisão e que, sob estes aspectos devem apresentar conteúdo apropriado em consonância com o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. O que significa afirmar-se que incutir valores consumistas nas crianças e adolescentes pela via da publicidade mercadológica fere os princípios constitucionais de proteção aos direitos de crianças e adolescentes. No mesmo sentido o Código de Defesa do Consumidor, aprovado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 tem uma seção especial que aborda a questão da publicidade. Assim como o Direito da Criança e do Adolescente, o Direito do Consumidor tem uma legislação especial regido por regras e princípios. A redação do artigo 36 informa que: “A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.” Este dispositivo é elucidativo da influência negativa que a publicidade mercadológica dirigida para crianças e adolescentes exerce sobre elas, e de tal forma fere o princípio da identificação publicitária183, uma vez que devido a sua fase peculiar de desenvolvimento, estes sujeitos não conseguem diferenciar programas de propagandas publicitárias (BJURSTRÖM, 2000, p. 25-26), e/ ou muitas vezes são induzidos a erro (art. 37, § 1º). A redação do § 2º do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor é ainda mais precisa sobre esta questão ao disciplinar que: § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de jul Outros princípios regidos pelo Direito do Consumidor deverão ser estudados ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, entre os quais destacam-se: 1) princípio da boafé e da equidade; 2) princípio da veracidade da mensagem publicitária; 3) princípio da não-abusividade da publicidade; 4) princípio da reparabilidade objetiva dos danos publicitários.

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gamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. (grifou-se)

Embora a legislação se refira apenas a falta de maturidade da criança, a Doutrina da Proteção Integral consubstanciada pelo Direito da Criança e do Adolescente entende que os adolescentes (pessoas de 12 à 18 anos de idade) também encontram-se em fase peculiar de desenvolvimento e que por isso, os anúncios publicitários dirigidos à eles também merecem atenção e proteção do Estado, da família e da sociedade, porque também são facilmente influenciáveis ao consumismo, assim como, as crianças. Considerando que o objetivo principal da publicidade mercadológica é a comunicação e a persuasão para o consumo do item anunciado, para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes se faz necessário uma análise sistemática dos tratados e convenções internacionais, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa do Consumidor. A busca pela efetividade normativa, neste caso, também precede da compreensão sobre a sociedade contemporânea e sua relação intrínseca com o consumismo. É preciso também estudar a sociedade de consumo que transforma pessoas em mercadorias, que o “ter” antecede ao “ser” nas relações que se estabelecem entre as pessoas (BAUMAN, 2008). É preciso também estabelecer as diferenças conceituais em torno dos termos “consumo” e “consumismo” para, a partir disso, verificar a importância que o consumo desempenha na formação de identidades na sociedade e, da qual, abrange também a formação e/ ou construção de identidades/ e valores a partir do que se consome, do que se compra. Crianças e adolescentes estão indiscutivelmente presentes como consumidoras na sociedade contemporânea e, por

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isso a publicidade mercadológica é agente preponderante e talvez determinante para isso. Para Barbosa e Campbell (2006, p. 26), [...] na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea.

No mesmo sentido é o entendimento de Bjurström (2000) ao afirmar que a publicidade pode contribuir para moldar a visão de vida das pessoas, assim como transformar e/ou modificar os seus valores morais, atitudes e ideias culturais baseando-se naqueles que predominam na sociedade de consumo. De acordo com o autor essas influências exercidas pela informação publicitária podem durar muito tempo, sendo difícil isolá-las na sociedade de consumo. Um estudo patrocinado pela Organização Mundial da Saúde destaca que nas questões envolvendo publicidade para crianças e adolescentes: Há grandes diferenças nas abordagens utilizadas pelos países na regulamentação da publicidade televisiva. Alguns se fundamentam somente em regulamentações estatutárias (aquelas estabelecidas por leis, estatutos ou regras destinadas a complementar os detalhes de conceitos amplos determinados pela legislação). Outros preferem a auto-regulamentação (aquela colocada em vigor por um sistema auto-regulatório, no qual a indústria, que tem participação ativa, acaba sendo responsável por sua própria regulamentação). Em muitos casos, ambas as formas de regulamentação coexistem. O

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princípio subjacente a muitas regulamentações é que a publicidade não dever ser enganosa ou abusiva. A maioria das regulamentações nacionais reconhece as crianças como um grupo especial que necessita de considerações específicas e estipula que a publicidade não deve ser prejudicial ou exploradora da sua credulidade. (HAWKES, 2006, p. 7)

É importante, portanto, compreender o papel que a informação publicitária exerce no cotidiano das pessoas e ao mesmo tempo verificar de que forma a propaganda mercadológica pode influenciar crianças e adolescentes ao consumismo precoce. E desta forma, pensar de que forma, ou ainda, se é possível proteger a criança e o adolescente destas informações. Esta é uma preocupação que não só do Brasil, mas de muitos países. Um estudo sobre o cenário global das regulamentações da propaganda voltada para produtos alimentícios constatou-se que: Nos últimos anos, propostas para restringir a publicidade televisiva para crianças têm sido feitas em diversos países, incluindo Alemanha, Austrália, Brasil, França, Índia, Irlanda, Itália, Malásia, Nova Zelândia, Polônia e Reino Unido. Várias dessas propostas se referem especificamente aos produtos alimentícios. No Brasil, por exemplo, um projeto de lei, colocado em pauta em fevereiro de 2003, fundamenta-se na saúde infantil para tentar restringir a publicidade de produtos alimentícios. Na França, uma ementa à Lei da Saúde Pública para proibir comerciais de produtos com teores elevados de açúcar e gordura durante o horário infantil de televisão foi proposta ao parlamento. No Reino Unido, um projeto de lei para proibir certos comerciais de alimentos dirigidos a crianças foi reintroduzido em novembro de 2003, e, no mês seguinte, o parlamento irlandês discutiu (mas não aprovou) um projeto de lei proposto por parlamentares que proibiria comerciais de alimentos considerados não saudáveis (junk food)” Também no final de 2003, a Coalizão para a Publicidade de Alimentos para Crianças (Coalition on Food Advertising to Children – CFAC) da Austrália reiterou sua de-

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manda de proibição de um comercial de alimentos dirigido a crianças abaixo dos 12 anos de idade. (HAWKES, 2006, p. 7)

No plano internacional já há o desenvolvimento de códigos auto-regulatórios para estabelecer algumas regras sobre a publicidade voltada para o público infantil que têm sido discutidas pela International Chamber of Commerce (Câmara Internacional do Comércio - ICC). A International Chamber of Commerce – ICC é uma organização que atua como ‘a voz internacional do mundo dos negócios’ e elabora ‘regras e padrões acordados internacionalmente que as empresas adotam de forma voluntária. A ICC – Câmara Internacional do Comércio – desenvolveu uma série de códigos de prática que estabelecem padrões éticos para diferentes tipos de marketing, cada um deles incluindo uma cláusula sobre crianças. Muitos países têm aplicado ou adaptado os códigos da ICC para formar a base dos seus próprios sistemas nacionais de auto-regulamentação publicitária. A publicidade televisiva é coberta pelo Código Internacional de Prática Publicitária (International Code of Advertising Practice) da ICC, que lançado em 1997, ainda encontra-se em fase de revisão. De acordo com esse código, a publicidade não deve ser abusiva ou enganosa, entendendo a publicidade conforme os artigos abaixo: Artigo 1. Toda publicidade deve ser legal, decente, honesta e verdadeira. Artigo 5. A publicidade não deve conter qualquer declaração ou apresentação visual que, diretamente ou por implicação, omissão, ambigüidade ou apelo exagerado, possa confundir o consumidor. Artigo 12. A publicidade deve ser claramente distinguível como tal, seja qual for sua forma ou o meio em que esteja sendo veiculada.

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Artigo 14. As seguintes provisões aplicam-se à publicidade dirigida a crianças e jovens menores sob a lei nacional aplicável. Inexperiência e credulidade a. A publicidade não deve explorar a inexperiência ou credulidade de crianças e jovens. b. A publicidade não deve subestimar o grau de habilidade ou nível de idade geralmente exigido para utilizar ou usufruir de um produto. i. Deve-se tomar cuidado especial para assegurar que a publicidade não engane as crianças e jovens com relação ao real tamanho, valor, natureza, durabilidade e desempenho do produto divulgado. ii. Se forem necessários itens extras para usá-lo, como pilhas, ou produzir o resultado mostrado ou descrito, como tinta, isso deve ser deixado claro. iii. Deve-se indicar claramente quando um produto for parte de uma série, bem como o meio de se adquirir a série. iv. Quando os resultados do uso do produto forem mostrados ou descritos, a publicidade deve representar o que pode ser razoavelmente obtido pela média das crianças ou um jovem na faixa etária para a qual o produto se destina. c. A indicação do preço não deve ser feita de forma a conduzir as crianças e jovens a uma percepção irreal do verdadeiro valor do produto, por exemplo, pelo uso da palavra ‘só’. Nenhuma publicidade deve sugerir que o produto divulgado está imediatamente ao alcance do orçamento de toda família.

No relatório produzido pela Organização Mundial da Saúde em 2006, há informação de que há muitas divergências entre os países na forma como regulamentar a publicidade abusiva voltada para a o público infantil. De acordo com o documento: Organizações como a ICC, a Federação Mundial de Anunciantes (World Federation of Advertisers – WFA), o Grupo

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Europeu de Publicidade Televisiva (EGTA) e a Aliança Européia de Padrões Publicitários (Easa) argumentam que a publicidade para crianças já é rigorosamente regulamentada tanto pelo governo quanto pelas SROs, e que controles mais estatutários são desnecessários. O raciocínio é que com relação à legislação, a auto-regulamentação é mais rápida, mais custo-eficaz e flexível. Também reverte o princípio da obrigação de apresentar provas; assegura que as sanções sejam proporcionais e eficazes; facilita o estabelecimento de posturas pró-ativas e preventivas; e – uma questão crucial quando se trata de sanções – promove o cumprimento ao invés de incentivar a evasão. Em resposta ao argumento das “raposas vigiando o galinheiro”, as SROs afirmam que “na indústria publicitária, a auto-regulamentação, apoiada por sanções apropriadas e suporte legal, é altamente eficaz”. (HAWKES, 2006, p. 34)

No Brasil, atualmente a propaganda mercadológica é autoregulamentada pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária (CONAR). O CONAR é uma organização não-governamental criada em 1980 com o objetivo de frear a sanção de uma lei federal que previa censura prévia à propaganda. O CONAR que tem em sua composição pessoas da sociedade civil, sendo constituído por publicitários e profissionais de outras áreas, foi responsável pela criação de um Código Brasileiro de Autoregulamentação Publicitária. Além de autoregulamentar o mercado publicitário no país, o CONAR tem como atribuição principal o atendimento a denúncias de consumidores, autoridades, associados ou formuladas pelos integrantes da própria diretoria. As denúncias são julgadas pelo Conselho de Ética, com total e plena garantia de direito de defesa aos responsáveis pelo anúncio. Quando comprovada a procedência de uma denúncia, é sua responsabilidade recomendar alteração ou suspender a veiculação do anúncio. O CONAR não exerce censura prévia sobre peças publicitárias, já que se ocupa somente do que está sendo ou foi veiculado.

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Mantido pela contribuição das principais entidades da publicidade brasileira e seus filiados – anunciantes, agências e veículos –, tem sede na cidade de São Paulo e atua em todo o país.184

De acordo com o grifado, observa-se que o CONAR por ser um Conselho de Autoregulamentação não impõe de forma coercitiva nenhuma medida as agências de publicidade que veicularem propaganda contrária aos princípios éticos e jurídicos previsto na legislação brasileira, apenas recomenda a sua não veiculação. E também não regula a informação publicitária que é lançada na sociedade, uma vez que sua atuação na maioria das vezes ocorre por meio de denúncias. Não há efetiva fiscalização à propaganda mercadológica que são anunciadas, cabendo as agências apenas seguir “por espontânea vontade” o Código Brasileiro de Autoregulamentação Publicitária criado pelo CONAR. A seção 11 do Código Brasileiro de Autoregulamentação Publicitária discorre sobre os interesses de crianças e adolescentes e informa que “nenhum anúncio publicitário dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança.” (art. 37) E mais: Art. 37, II - Quando os produtos forem destinados ao consumo por crianças e adolescentes seus anúncios deverão:

a. procurar contribuir para o desenvolvimento positivo das relações entre pais e filhos, alunos e professores, e demais relacionamentos que envolvam o público-alvo; b. respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade, inexperiência e o sentimento de lealdade do público-alvo; c. dar atenção especial às características psicológicas do público-alvo, presumida sua menor capacidade de discernimento; d. obedecer a cuidados tais que evitem eventuais distorções psicológicas nos modelos publicitários e no público-alvo; Informação disponível em: . Acesso em 20 abr. 2013.

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e. abster-se de estimular comportamentos socialmente condenáveis. (grifou-se)

Observa-se que o inciso II do art. 37 informa que a publicidade mercadológica pode ser destinada à crianças e adolescentes, observados alguns requisitos, quando sob os preceitos da Doutrina da Proteção Integral, esses anúncios que envolvam crianças e adolescentes como público alvo deveriam ser direcionados aos pais e/ou responsáveis. A redação das alíneas “b” e “c” indicam que a criança e o adolescente, por estar em processo de desenvolvimento não tem capacidade reflexiva e crítica sobre o conteúdo publicitário que lhes é anunciado, o que pode vir a acarretar no consumismo precoce. Por isso, ao se considerar que o foco desta pesquisa é a preocupação com a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes expostas à propaganda mercadológica, resta saber se a autorregulamentação do CONAR no Brasil, e as demais medidas protetivas que se tem adotado no âmbito internacional são mecanismos suficientes para evitar o consumismo precoce. É imprescindível para que haja efetiva mudança, pensar em ações conjuntas envolvendo a sociedade, a família e o Estado, e a compreensão de que este é um fenômeno complexo e que não se limita ao território de um país apenas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos que passa a situar o ser humano como verdadeiro sujeito do direito internacional, cuja proteção intrínseca é a de resguardar a sua dignidade humana, envolve revisar também a própria noção tradicional de soberania estatal. Neste breve estudo, procurou-se demonstrar em linhas gerais a trajetória história do Direito Internacional dos Direitos Humanos e relacioná-lo com o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil.

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O principal objeto desta pesquisa envolve situar a criança e o adolescente como sujeito de direitos, bem como, sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e como tal, tentar verificar qual resposta normativa o sistema internacional e o sistema internam dão para os riscos a que estão expostos estes sujeitos à publicidade mercadológica. Atualmente no Brasil não há regulamentação normativa voltada para combater a publicidade mercadológica para crianças e adolescentes, há apenas a autoregulamentação imposta para as agências de publicidade pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação (CONAR). O CONAR é um órgão não-governamental formado por membros da sociedade civil, sendo que muitos destes são vinculados às próprias agências de publicidade, o que resta apenas confiar que dêem uma atenção devida ao tema.  Como se viu, outros países também dão atenção ao tema e a própria Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, embora não mencione o termo publicidade em seu catálogo normativo, menciona que a criança e o adolescente deverão receber proteção contra toda a informação que prejudique o seu bem estar. Indivíduos conscientes e responsáveis são à base de uma sociedade mais justa e fraterna, que tenha a qualidade de vida não apenas como um conceito a ser perseguido, mas com uma prática a ser vivida. É necessário que o processo de mudança e conscientização sobre a temática envolva toda sociedade, capaz de acionar um processo de mobilização da opinião pública que abarque a proteção de crianças e adolescentes expostas à publicidade mercadológica. Destaca-se, a urgência que o Estado, a família e a sociedade têm em cumprir o seu papel, enquanto garantidores dos direitos de crianças e adolescentes. Trata-se de proposta de pesquisa em relação a um tema preocupante o qual poderá trazer contribuição histórica significativa.

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A publicidade mercadológica tem como objetivo principal a persuasão para o consumo do item anunciado. É importante que se comece a desenvolver pesquisas sobre este tema de tamanha importância na sociedade atual, porque o consumismo infantil é uma questão urgente e de interesse geral que envolve questões éticas (valores) decorrentes deste processo. É de fundamental importância verificar se a autoregulamentação imposta às agências de publicidade é mecanismo suficiente para resguardar os direitos de crianças e adolescentes. Para a compreensão dos temas que envolvem a garantia dos direitos da infância e adolescência e questões referentes aos estudos sobre publicidade versus consumismo precoce. É imprescindível um estudo aprofundado sobre Direito da Criança e do Adolescente e sobre as questões éticas, sociais e jurídicas que envolvem o consumismo decorrente das informações publicitárias mercadológicas.  Essa reflexão, portanto, interdisciplinar possibilita a compreensão da necessidade urgente em estudar o Direito da Criança e do Adolescente a partir também da perspectiva da sociedade de consumo. A escolha por esses dois marcos teóricos permitirá uma análise mais concisa acerca da necessidade de implantação de mecanismos jurídicos que protejam de forma efetiva os direitos de crianças e adolescentes para além, se necessário, da via da autoregulamentação. 

6 REFERÊNCIAS ANNONI, Danielle. Os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas: contribuições e perspectivas. In: Direito, Estado e Sociedade. v. 4, n. 33, p. 19-35, São Paulo: PUC, 2008. BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (Orgs.). Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. O estudo do consumo nas ciências sociais contemporâneas. In: BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. (Orgs.) Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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BJURSTRÖM, Erling. A criança e a propaganda na TV: um estudo crítico das pesquisas internacionais sobre os efeitos dos comerciais da TV em crianças. Tradução Interverbum. 2 ed. Impresso em Lenanders Trykeri, Kalmar, 2000. ISBN: 91-7398456-8. BONAVIDES, Paulo. A evolução Constitucional do Brasil. Estudos Avançados. 14 (40), Scielo: 2000. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial [da] União, Poder Legislativo, Brasília, n. 191A, 05 de out. 1988. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 16 de jul. 1990. DENARI, Zelmo, A comunicação social perante o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. n. 4. São Paulo, 1992. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado Nacional. Tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho; revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002. HAWKES, Corina. Marketing de alimentos para crianças: o cenário global das regulamentações. Organização Mundial da Saúde. Tradução de Gladys Quevedo Camargo. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2006, p. 7. HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2007. LAFER, Celso. A ONU e os direitos humanos. ESTUDOS AVANÇADOS 9 (25), 1995. MANCEBO, Deise; OLIVEIRA, Dayse Marie; FONSECA, Jorge Guilherme Teixeira da and SILVA, Luciana Vanzan da. Consumo e subjetividade: trajetórias teóricas. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2002, v. 7, n. 2, p. 325-332. ISSN 1413-294X. MARCÍLIO, Maria Luiza. A lenta construção dos direitos da criança brasileira - Século XX. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2008. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Brasília: Senado Federal, 1995. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. Disponível em: . Acesso em 13 de out. 2012. PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. PEREIRA, Tânia da Silva (coord). O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos Globais, Justiça Internacional e o Brasil.

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XENOFOBIA E PRECONCEITO NAS POLÍTICAS EUROPEIAS DE IMIGRAÇÃO: A DIRETIVA DE RETORNO E SEU IMPACTO NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA CRIANÇA Caroline Santos de Viera Mestre em Ciências Criminais, Especialista em Ciências Penais, Bacharel em Direito pela PUCRS. Advogada. ([email protected])

Gustavo Oliveira de Lima Pereira Doutorando em Filosofia pela PUC\RS. Bolsista CNPq. Mestre em Direito pela Unisinos. Professor de Direito Internacional e Teoria do Direito da PUC\RS. ([email protected])

Resumo: O conflituoso cenário geopolítico mundial traz novos desafios aos direitos humanos, no ímpeto de realização do sonho de uma comunidade internacional cosmopolita. No contexto político mundial, a diretiva de retorno, desenvolvida na Europa como instrumento para neutralização e afastamento de imigrantes, são circunstâncias que possibilitam diagnosticar que há um contexto de criminalização do estrangeiro em importantes centros políticos internacionais e que esta aversão ao acolhimento da diferença pode representar um retrocesso em termos de internacionalização do direito. Nos termos do retorno a xenofobia europeia, quem mais sofre na pele são as crianças estrangeiras, pois a diretiva de retorno, em muitos pontos, atua assimetricamente às Convenções Internacionais de proteção à criança. Neste sentido, o presente artigo visa problematizar os flancos e aporias que o direito internacional se situa, em relação à proteção das crianças estrangeiras. Palavras-chave: diretiva de retorno, direitos humanos, criança. Sumário: 1. Introdução. 2. A Diretiva de retorno: o repúdio à diferença e a criminalização do estrangeiro. 3. O Sistema Internacional de proteção aos direitos da criança. 4. Considerações Finais. 5. Referências.

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1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa analisar o atual tratamento jurídico internacional do fenômeno da migração de crianças. Para tanto, analisaremos a Diretiva de Retorno desenvolvida na Europa, que pode ser vista como um instrumento que intenta obstaculizar o trânsito de estrangeiros, facilitar a sua exclusão das nações europeias e até criminalizar imigrantes bem como aqueles que os auxiliam. Evidentemente, o recrudescimento das políticas imigratórias em relação aos estrangeiros. Neste grupo, evidentemente, estão as crianças que acompanham seus pais, bem como aquelas que estão desacompanhadas e ou separadas dos mesmos e é este o ponto que pretendemos focar: o descaso em relação às crianças estrangeiras. Para tanto, apresentaremos os diplomas de direitos internacionais humanos relativos aos direitos da criança, a fim de demonstrar a construção teórica pertinente ao tema no que tange ao Direito Internacional e sua disparidade em relação a diretiva de retorno. A pesquisa possui relevância acadêmica e social, pois o fenômeno da migração não é uma novidade, ocorre desde que a vida humana iniciou, como um processo econômico, social e político que afeta todas as pessoas envolvidas direta e indiretamente nesse processo. As pessoas atravessam fronteiras para buscar melhores oportunidades de emprego, para oferecer um futuro melhor para suas famílias185, para fugir da violência, do desastre e da fome, razão pela qual cada vez mais as crianças protagonizam essas migrações. Neste sentido Jacqueline Babha186 alerta:

REYES, Melanie M. et all. Migration and Filipino Children Left-Behind: A Literature Review. p. 1. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2013. Traduzido pelos autores. 186 BHABHA, Jaqueline. Arendt’s chuldren: Do today migrant children have a right to have rights? p. 412. In: Human Rights Quarterly, v. 31, n. 2, maio/2009. p. 410-451. 185

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The above-cited definition of a stateless person in international law is straightforward. It divides the universe into two groups of people—those who are “considered nationals” by a state and those who are not. But the reality of child statelessness today is anything but straightforward. The unenforceability of fundamental rights related to nationality impinges on a heterogeneous group of children that includes undocumented immigrants, “irregular” migrants, and trafficking victims. By some accounts, the group also includes children whose birth is never registered and who therefore lack a legal identity or the ability to prove one—a group that encompasses approximately forty percent of annual births globally.8

Na Europa, o controle do fluxo migratório se mostra xenofóbico, sobretudo tendo em vista a postura exercida pelo Presidente da França Nicolas Sarkozy (de 2002 a 2007), que ficou conhecido pelas suas políticas de repressão extrema aos imigrantes ilegais na França chegando a prometer, em campanha presidencial, o corte de novos imigrantes em território francês pela metade. Em outubro de 2009, Sarkozy convocou um debate sobre a identidade nacional, afirmando que a burca é contra a cultura francesa. A partir disso foi desenvolvida uma lei que impunha multas de até 750 euros para quem saísse em território francês com o rosto inteiramente mascarado (permitindo-se exceções festivas como no período do carnaval). Não há como não se notar que o ataque supostamente laico e em nome da dignidade dos direitos humanos (cuja França reivindica ser o seu berço) acaba reiterando a absoluta intolerância à diferença e reforçando a defesa do específico modo de vida francês187. No ano de 2010, aproximadamente 1.700 ciganos em situação “irregular” foram expulsos do território francês com a aprovação do presidente Nicolas Sarkozy, gerando um intenso embate entre o governo francês e a Comissão Europeia. A polêmica, que repercutiu a patamares internacionais, promoveu uma situação conflitante entre Paris e Bruxelas, cidade considerada a capital de fato da União ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: boitempo, 2012. p. 17-18.

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Europeia. O desconforto surgiu em virtude de uma diretriz emitida pelo Ministério do Interior. Uma circular oficial mencionava explicitamente como “prioritário o desmantelamento de acampamentos ilegais de ciganos188. A população dos ciganos na França é estimada em 15 mil pessoas. (Da mesma maneira o governo italiano seguiu os procedimentos de expulsão da população cigana, estimada em 152 mil pessoas, um terço de nacionalidade italiana189). O dia 6 de maio de 2012 trouxe novas expectativas ao cenário político europeu. A eleição de François Hollande como novo presidente da França, com 51,6 % dos votos, significa a retomada da esquerda ao governo francês, após 17 anos de hegemonia direitista. O resultado demonstrou o descontentamento público com a política de Nilcolas Sarkozy, apesar da apertada diferença de votos. Em meio a crise econômica vivenciada pela Europa, o povo francês optou pela mudança; mas o que seduziu os eleitores do novo presidente guarda relação com as propostas de flexibilização da política imigratória francesa por ele proposta? François Hollande, em sua plataforma, acentuou e prometeu manter restrições na política imigratória do país, porém enfatizou que em seu governo haverá uma flexibilização nesta guerra de força contra os estrangeiros. É sabido que o recrudescimento da política imigratória no país conta com o apoio popular há tempos. “Eles roubam nossos espaço de empregos, hospitais e escolas!”. Está frase é disseminada pelos arredores de Paris. O que não é sabido ainda é o alcance da flexibilização desta política no novo governo. De fato ocorrerá ou entrará para os anais do falatório político europeu sobre a questão da imigração? Atenuará a forte hostilidade destinada aos estrangeiros desenvolvida, principalmente, após a criação da diretiva de retorno Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2013. 189 Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2013. 188

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europeia? Estas questões são de suprema importância para o horizonte dos direitos humanos.

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A DIRETIVA DE RETORNO: O REPÚDIO À DIFERENÇA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ESTRANGEIRO

A diretiva de retorno (também reverenciada como diretiva da vergonha) foi desenvolvida na Europa para obstaculizar o trânsito de estrangeiros, facilitar a sua exclusão das nações europeias e até criminalizar imigrantes bem como aqueles que os auxiliam. Esta criminalização, a título exemplificativo, é prevista no artigo 318 do código penal espanhol, que prevê uma pena de até 8 anos de prisão para aqueles que conferem assistência para algum imigrante ilegal ou clandestino (circunstância que ficou conhecida como crime de hospitalidade190), além de não possibilitar medidas alternativas à expulsão. Aos países da União Europeia não é permitido a não aplicação da diretiva de retorno, porém nada obsta a confecção de leis mais benéficas aos estrangeiros do que aquelas previstas na diretiva. Portugal, por exemplo, pode aplicar a sua legislação sobre o tema, que traz consideráveis benefícios aos imigrantes ilegais em comparação com a diretiva de retorno. O argumento principal para o desenvolvimento da Diretiva se direcionou no sentido de sustentar que a imigração é vista como algo problemático nas populações de destino e também fortalecer o controle migratório interno dos países que recebem pessoas em condição ilegal, consagrando a soberania do Estado. A União Europeia deliberou e concluiu que a figura do estrangeiro ilegal é capaz de despertar um sentimento de medo ou de ameaça em relação a aspectos tais como o emprego, a cultura, identidade, a segurança e a ordem econômica. Para tanto, a ideia seria tolher os imigrantes Sobre o tema, conferir também o tocante filme “Bem-Vindo” do diretor Phhilipe Lioret, produzido em 2009.

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ilegais, ou seja, eliminar, em tese, somente àqueles que estariam em território europeu de forma irregular. Cabe aqui brevemente referir que o termo “ilegal”, além de estigmatizar, também sugere uma subcategoria de ser humano que pelo simples fato de ter deixado o seu país de origem, em grande parte por necessidade sociais e econômicas, são considerados criminosos191. A tensão ganha outros contornos quando se trata dos imigrantes que estão em condição legal, pois estes também podem, a qualquer momento, ter seu direito de permanência, apesar da condição jurídica regular (frise-se uma vez mais), suprimido, pois, conforme disposição literal da diretiva, em seu artigo 6, n. 6: “a presente diretiva não obsta a que os Estados-Membros tomem a decisão de pôr termo a uma permanência legal, juntamente com uma decisão de regresso e/ou uma ordem de afastamento, e/ou uma interdição de entrada, no âmbito de uma decisão ou ato administrativo ou judicial previsto no seu direito interno”. Uma rápida análise deste dispositivo nos permite afirmar, sem hesitar, que embora o discurso oficial que legitima a Diretiva se afirme no sentido de combater a imigração ilegal, com a expressa possibilidade de tal política se estender também aos estrangeiros legais, o verdadeiro interesse da União Europeia está na, discricionária, exclusão geral dos estrangeiros, vistos como seres que infestam, sujam e conspurcam os interesses da Europa. Ousamos afirmar, sem reticências, que a diretiva de retorno representa o símbolo da xenofobia europeia em detrimento da diversidade intercultural e do reconhecimento e acolhimento do outro; – tido como inimigo –, ganhando, em algum sentido, a tonalidade totalitária que tornou a Europa um barril de pólvora durante as guerras mundiais. A diretiva de Retorno é composta por 23 artigos. Exporemos alguns deles para explicitar nossa tese. LEITE, Rodrigo de Almeida. Os paradoxos do tratamento da imigração ilegal na União Europeia frente à Diretiva de Retorno. Revista Espaço acadêmico. n. 108. Maio de 2010, p. 61-70, p. 64.

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A diretiva de retorno representa o posicionamento adotado pela comunidade europeia em relação ao imigrante, a exemplo da proposta do governo Berlusconi, aprovada pelo parlamento italiano, segundo a qual a entrada e permanência ilegal na Itália seria punível como crime com pena de até 3 anos, obrigando, ainda, os funcionários públicos a denunciarem imigrantes ilegais. O quórum de votação desta normativa foi de 369 votos a favor, 197 contra e 106 abstenções, e, após receber alterações do parlamento europeu, foi recepcionada por todos os países da União Europeia em 2010. O artigo 19 prevê a entrega ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de três em três anos, um relatório, por parte da Comissão da diretiva, informando como vem sendo a sua aplicação da Diretiva por parte dos Estados-membros. Percorrendo o procedimento de regresso do estrangeiro ilegal em território europeu, disposto na diretiva, analisa-se a existência do sistema de retorno: segundo o artigo 7º, n. 1, é emitida uma ordem voluntária para que o imigrante deixe a União Europeia, no prazo entre 7 e 30 dias. Cabe ressaltar que o Estado europeu pode eliminar este prazo ou troná-lo inferior aos 7 dias caso entenda, discricionariamente, que o estrangeiro representa uma ameaça a ordem ou segurança pública ou nacional do país (art. 7, n. 4). Se não incorrer em ameaça à segurança nacional, o estrangeiro ilegal poderá ter ampliado o prazo, quando as especificidades no caso concreto permitirem, como a existência de filhos ou outros membros da família em período escolar (art. 7, n. 2). Neste caso, podem ser impostas determinadas obrigações para evitar o risco de fuga, como a exigência de apresentações periódicas às autoridades, o depósito de caução adequada, a apresentação de documentos ou a obrigação de permanecer em determinado local durante o referido período, sem deslocar-se pelo território europeu (art. 7, n. 3). Não cumprido o prazo previsto para retorno voluntário por parte do imigrante, estará legitimado o Estado europeu a expulsá-lo de seu território. A possibilidade de regresso do estrangeiro expulso ao território europeu também está regulada pela diretiva de retorno, 300

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que prevê, em seu artigo 11, n. 2 e 3, que no instante onde é decidido o retorno do imigrante, deve o Estado também estipular o prazo de proibição de regresso. Segundo a diretiva, este prazo não deverá exceder a cinco anos. No entanto, se o Estado europeu entender que o estrangeiro é nocivo a segurança pública e a segurança nacional, este prazo poderá ser, discricionariamente, ampliado. Além de estipular o prazo de regresso, a decisão pelo retorno do estrangeiro deverá ser escrita e fundamentada, explicitando as razões de fato e de direito para tal resolução. Tal situação está regulada pelo artigo 12 da diretiva, que é destinado a tratar a respeito das garantias processuais ao imigrante ilegal, cujo Estado decidiu por seu retorno. Importante ressaltar que a divulgação das razões de fato pode ser suprimidas, caso o Estado entenda que elas ameaçam a segurança nacional do país. Assim, é possível observar que a publicização dos motivos da exclusão são absolutamente discricionários (art. 12, n. 1). Além disso, o tópico que trata das garantias processuais também traz outra dimensão curiosa: os Estados podem fornecer uma tradução escrita ou oral dos principais elementos das decisões relacionadas com o imigrante, mas farão isso somente a pedido do interessado (art. 12, n. 2). Ou seja, não é garantia fundamental do imigrante ter consigo a decisão que decide seu iminente destino. É somente se conseguir requerê-la. E como terá ele condições de requerê-la? Quem pode acreditar na transparência dos órgãos envolvidos no sentido que informar ao imigrante esta condição? No mesmo sentido está disposto o artigo 13, n. 1, que confere a mera possibilidade de assistência judiciária ao estrangeiro, para poder questionar e recorrer das decisões que decretam o retorno, sem que isso implique efetivamente uma garantia fundamental ou uma obrigação primária do Estado; situação que evidentemente fere tudo que se possa entender por devido processo legal192. FREITAS, Isis Hochmann de. O inimigo estrangeiro: a Diretiva de Retorno à luz da internacionalização dos direitos humanos. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Ciências Criminais - PUC/RS, 2011. p. 114.

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O artigo 15 (n. 1) da diretiva prevê as possibilidades de prisão do imigrante ilegal, nos casos onde o país europeu suspeite, discricionariamente, que há risco de fuga do estrangeiro ou quando ele tenta retardar o seu regresso voluntário ou o procedimento de retorno. O prazo de detenção máximo é estipulado em seis meses, podendo ser prorrogado por mais doze meses, perfazendo um total de dezoito meses de detenção de um estrangeiro ilegal, por falta de cooperação do estrangeiro ilegal, ou por atrasos na obtenção da documentação necessária junto de países terceiros (art. 15, n. 5 e 6). Assim, por questões alheias à vontade do imigrante ilegal, ele poderá ficar detido por um prazo de dezoito meses unicamente por não possuir um documento de identificação (algo que segundo as regras do direito internacional, no que tange a solicitação do status de refugiado, não pode ser levado em conta), e, também em virtude da burocracia do seu país de origem em fornecer a documentação. Destaco também a possibilidade de prisão de menores, prevista pela diretiva de retorno (tratada no art. 17), contrariando inúmeros Tratados e Convenções internacionais a respeito da proteção da criança e do adolescente e contrariando, inclusive, os próprios preceitos da Diretiva, que estabelece, em seu artigo 5, que a presente normativa se compromete com “o interesse superior da criança” e com “a vida familiar”193. A decisão que estipula a pena de prisão do imigrante é passível de revisão. Aqui há outro ponto de importante destaque a se observar: a versão original da diretiva determinava que as ordens de internamento deveriam ser reexaminadas pelo menos uma vez por mês194, sempre por uma autoridade judicial. Esta versão sofreu alteração, onde se estabeleceu que a detenção será reapreciada a intervalos razoáveis (a critério do país europeu) (artigo 15, n. 3). FREITAS, Isis Hochmann de. O inimigo estrangeiro: a Diretiva de Retornoà luz da internacionalização dos direitos humanos. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Ciências Criminais - PUC/RS, 2011. p. 116. 194 LEITE, Rodrigo de Almeida. Os paradoxos do tratamento da imigração ilegal na União Europeia frente à Diretiva de Retorno. Revista Espaço acadêmico. n. 108. Maio de 2010, p. 61-70, p. 66. 193

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Os imigrantes irregulares cuja prisão fora decretada permanecerão em um Centro de internamento de estrangeiros, onde deverão permanecer enquanto não retorna ao seu país de origem. A regra geral para a detenção dos estrangeiros ilegais são esses chamados centros especializados, que por si só já configuram verdadeiras prisões. Não há acesso a visitas nem tão pouco a advogados, por se tratar se uma retenção e não de uma detenção legal, segundo o discurso oficial195. Além disso, segundo estudos de entidades não governamentais, os imigrantes retidos não podem realizar atividades ao ar livre, além de contar com assistência médica e de higiene minimamente satisfatórias196, sendo, inclusive, dificultado ingresso de ONGs aos centros. Mesmo sabendo-se que os centros de internamento são, de fato, já prisões, caso algum Estado-Membro não detenha os centros, autoriza-se a detenção em estabelecimento prisional comum, podendo, a pedido, contatar representantes legais, familiares ou autoridades consulares (art. 16, n. 1 e 2). Ressalta-se, uma vez mais, a expressão “a pedido”, contida na diretiva. Significa que contatar um advogado não se trata de um direito fundamental evidentemente indiscutível. Ele terá contato com alguém que o defenda somente se assim o requerer. Mais uma vez evidencia-se que o plano formal não dá conta de questões desta envergadura. De que adianta a Declaração Universal dos Direitos Humanos prever, em seu artigo 13, que “toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”, se vemos que os critérios discricionários dos Estados, garantidos também pela estrutura formal, permitem subvertê-la197. TORRES, Gabriela. Encerrados sin ser culpables. Disponível em: . Acesso em: 12 março 2013. 196 Um estudo realizado pela consultoria Steps Consulting Social, a pedido do próprio parlamento europeu, demonstrou a precariedade dos centros de internamento, dando destaque às debilidades do centro espanhol. Disponível em: .Acesso em: 18 maio 2013. 197 É válido também mencionar que a diretiva também afronta Convenção Internacional para a Convenção de Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migratórios e suas Famílias, de 1990, principalmente em seu artigo 8º. 195

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Por óbvio, tal dinâmica de rechaço ao estrangeiro ilegal afeta também a dinâmica da proteção internacional dos direitos humanos aos apátridas e refugiados (que também são tidos, a primeira vista, como imigrantes ilegais). É claro que os imigrantes indesejados são somente aqueles que podem ser retratados como a “sujeira da Europa” – Os sem papéis –. Aos estrangeiros capacitados economicamente e cientificamente, o tapete de boas vindas é estendido. Esquece a Europa de seu passado recente, onde em meados do século XX, milhares de imigrantes europeus necessitaram migrar para os demais continentes em virtude dos regimes totalitários. Percorrida a breve análise a respeito da diretiva de retorno e sua implicação perante os estrangeiros, direcionamos nosso olhar neste instante para a implicação da diretiva em relação as crianças. A criança estrangeira talvez seja quem mais sofra na pele os efeitos da Diretiva. A Diretiva de Retorno pode ser tida como um retrocesso no que tange aos diplomas internacionais de proteção da criança. Neste sentido, faremos uma breve exposição a seguir, contemplando os principais Tratados Internacionais a respeito da proteção da criança no horizonte do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA CRIANÇA

O sistema especial de proteção está respaldado pela “Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança”, documento que possui força coercitiva para os Estados signatários, entre os quais o Brasil198. O documento é formado por diversos diplomas, dentre os quais, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959, reconhece que Para fins de pesquisa acerca da trajetória histórica da elaboração dos diplomas de direitos humanas indicamos o seguinte trabalho: SCHMIDT, Fabiana. Adolescentes privados de liberdade: a dialética dos direitos conquistados e violados. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Faculdade de Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. p. 17.

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a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, acabando por estabelecer dez princípios norteadores do sistema de proteção. Este diploma invoca o reconhecimento de condições de proteção e igualdade para as crianças, trazendo em seu segundo princípio a definição do objetivo primordial do novo paradigma jurídico que demanda a adoção, pelas nações signatárias, de ações que garantam o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal, em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança.199 Outro instrumento integrante da Doutrina, a Convenção das Nações Unidas de 1989200, ratificada pelo Brasil em 21.11.1990, através da publicação do Decreto n. 99.710, seguindo pelos princípios da Declaração de 1959, especifica e detalha ainda mais os direitos decorrentes do novo paradigma, estabelecendo em seu artigo 3º que o interesse superior da criança será uma consideração primordial para toda e qualquer medida inerente ao direito da criança. A convenção estabelece o direito à reunificação da família, em seu artigo 10, no qual consta que todos os pedidos formulados por uma criança ou por seus pais para entrar num Estado Parte ou para o deixar, com o fim de reunificação familiar, são considerados pelos Estados Partes de forma positiva, com humanidade e diligência. O artigo referido condiciona ainda que a apresentação de eventual pedido não deve acarretar, por parte dos Estados, consequências adversas para os seus autores ou para os membros das suas famílias. O artigo da Convenção 22 assegura proteção especial à criança refugiada, determinando que os Estados Partes adotem as medidas necessárias para que a criança requeira esta condição ou que seja considerada Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2012. 200 Disponível em: .. Acesso em: 18 out. 2012. 199

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refugiada, cooperando com os esforços desenvolvidos pela ONU e outras organizações governamentais ou não-governamentais no sentido de oferecer toda a proteção e assistência humanitária à criança. O mesmo texto normativo adota, entre outros critérios fundamentais, que nenhuma criança seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, com a vedação a pena de morte e a prisão perpétua, trazendo a privação de liberdade apenas em conformidade com a lei e como último recurso, de forma breve, o acesso a justiça e o direito a impugnar a legalidade da privação de sua liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, além de uma rápida decisão a respeito de tal ação. Este diploma atingiu importante avanço no sentido de estabelecer o imperativo de respeito e eficácia dos direitos fundamentais, impondo a observância do princípio da legalidade, da presunção de inocência, ao contraditório, à defesa técnica e à proporcionalidade entre a infração cometida e a medida a ser aplicada. O Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em sua Observação Geral nº 6 (2005) mostra-se uma importante fonte de interpretação sobre o princípio do superior interesse da criança, elaborando orientações sobre o tratamento de menores desacompanhados e separados de sua família fora do seu país de origem. (Doc. ONU CRC/GC/2005/6 de 01/09/05. Pár. 12-18), assim como outros instrumentos internacionais e regionais201. A peculiaridade que caracteriza a criança no sistema jurídico é a sua condição de pessoa humana em desenvolvimento, razão pela qual construiu-se um sistema especial de proteção, no qual impera o respeito ao princípio do superior interesse da criança, contemplado em diversos instrumentos normativos internacionais. Vale conferir o documento elaborado pelo ACNUR, listando uma série de diplomas internacionais e regionais de suma relevância. In: ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008, p. 15. Documento disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013.

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O princípio do superior interesse do menor é contemplado pelos tratados internacionais de Direitos Humanos, os quais se desenvolvem em uma longa trajetória de acordos entre as nações. Segundo Munir Cury et all, a inspiração de reconhecer proteção especial para a criança e o adolescente não é nova. O autor relata que a Declaração de Genebra de 1924 determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial, enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirmava o direito a cuidados e assistência especiais, e o Pacto de São José de 1969 trazia em seu artigo 19 que toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado202. Muito embora tais diplomas não abordem uma definição conceitual exaustiva sobre o princípio, concordamos com SANCHEZ MOJICA, ao afirmar que se trata da busca do bem estar integral do menor, tendo em conta as circunstâncias particulares do mesmo, sobretudo de acordo com a sua idade, grau de maturidade, gênero, presença de seus pais ou tutores, pertencimento cultural e étnico, assim como as circunstâncias de especial fragilidade em que se encontre203. A despeito de seu conceito formal, entendemos que importante é identificar, em cada caso concreto, qual atitude respeita o princípio do melhor interesse da criança, como forma de efetivar os direitos consagrados nos diplomas internacionais e regionais. Por este motivo é importante considerar a elaboração, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), das Diretrizes para a determinação do superior interesse da criança, entendida enquanto pessoa menor de dezoito anos de idade204. As Diretrizes dirigem-se às crianças migrantes solicitantes de CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 18. 203 SANCHEZ MOJICA, Beatriz Eugenia. Em la frontera. El papel de la corte interamericana de derechos humanos en la protección de los derechos de los menores migrantes en situación irregular. In: Hendu 3 (1): 57-89, 2012. P. 66. Traduzido pelos autores. 204 ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008, p. 8. Documento disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013 202

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asilo, refugiadas, migrantes internas, devolvidas, acompanhadas de seus pais ou desacompanhadas, independentemente da legalidade da migração. O documento elaborado dispõe de um processo formal de avaliação do interesse superior do menor (DIS), no qual são analisadas as circunstâncias específicas de cada caso concreto com o objetivo de oferecer a melhor resposta à situação da criança sob a competência deste órgão. Prevê uma série de garantias processuais, proporcionando sempre que a criança possa externar sua opinião, através da atuação de profissionais especializados de múltiplas áreas do conhecimento. O procedimento de apuração do superior interesse do menor (DIS) passa pelos estágios da identificação e encaminhamento a tratamentos de saúde que se façam necessários, com a adoção de medidas de caráter provisório caso sejam crianças separadas e ou desacompanhadas de seus pais ou de caráter duradouro, no caso das crianças consideradas refugiadas, visando a reunificação familiar do menor, através da a busca pelos familiares adultos da criança, podendo prever a nomeação de tutor, encaminhamento a cuidadores temporários ou a pais de acolhida205. Infelizmente as diretrizes do ACNUR não possuem efeito vinculativo para os países, sendo estimado que cerca de cem mil crianças se encontrem atualmente vivendo na Europa separadas de seus pais e ou de seus tutores legais206. E diante desse contexto vivenciamos casos de violações aos diretos das crianças, como o ocorrido em Lampeduza, na Itália, em 2006 quando um menino de dezesseis anos de idade foi levado ao centro de detenção e obrigado a se despir completamente para que sofresse uma revista corporal. ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008, p. 19. Documento disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013 206 SMITH, Terry. Separated children in Europe programme, separated children in Europe: policies and practices in European Union member states: a comparative analusis 5 (2003). P. 5. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2013. 205

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No centro de detenção ele passou dois dias dormindo em um quarto com seis homens adultos, sendo posteriormente transferido a outro centro, mais ao sul da Itália, passando a dividir um quarto com mais 12 adultos por um mês. Passados cinco meses desde que o menino chegou na Itália não havia lhe sido sequer nomeado um tutor207. Outro caso digno de nota ocorreu no Reino Unido, em 2005, com uma menina que foi encontrada desacompanhada de seus pais, de cuja idade foi posta em dúvida pelas autoridades, sendo narrado da seguinte forma: L was a female asylum seeker from Guinea who fled after being imprisoned and tortured with her mother and brother on account of her father’s political activi- ties. The Asylum Screening Unit disputed her age and her local authority told her that it would not support her until she obtained medical confirmation of her age and the Immigration and Nationality Directorate accepted that she was a minor. She commented, “Social services treated me like a dog . . . because the Home Office said I was not under 18. They just told me to go away. I was so sad. They need to treat people as humans and give them food and shelter208.

Salientamos ainda o que aconteceu com Tabitha Kaniki Mitunga , uma menina congolesa de cinco anos de idade, imigrante ilegal na Bélgica, que estava sendo enviada por seu tio ao Canada, para encontrar sua mãe, a qual possuía o status de refugiada desde 2001. O tio de Tabitha trouxe-a do Congo para Bruxelas, para então poder enviá-la ao encontro de sua mãe. Contudo, chegando ao aeroporto de Bruxelas o setor de imigração deteve a criança, pois ela não possuía os documentos suficientes para ingressar no país. Tabitha fi209

Amnesty int’l, Invisible children: the human rights of migrant and asylum-seeking minors detained upon arrival at the maritime border in Italy (Fevereiro, 2006). Disponível em: . 208 BHABHA, Jacqueline; FINCH, Nadine. Seeking asylum alone: Unaccompanied and separated children and refugee protection in the U.K. 56 (Nov. 2006). Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2013. 209 TEDH, Caso Mubilanza Mayeka anda Kaniki Mitunga v. Belgium, sentença de 12/10/2006. 207

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cou presa por dois meses em um Centro de Detenção de imigrantes, sendo posteriormente deportada, retornando à República Democrática do Congo. Apenas após a intervenção dos Primeiro Ministros da Belgica e do Canadá conseguiu unir-se à sua mãe. Ambos os casos retratam o descaso e descompromisso das autoridades com a situação da criança, em total desrespeito ao princípio do superior interesse do menor, revelando o resultado de uma política de xenofobia que se incrementou após o 11 de setembro, com o discurso de guerra ao terror. Em termos quantitativos tem-se os dados oficiais210 de que a França, utilizando-se da Diretiva de Retorno, efetuou 160 (cento e sessenta) retornos forçados em 2009, em detrimento de 46 (quarenta e seis) retornos voluntários de crianças desacompanhadas de 2003 a 2009. Além disso, a Noruega realizou 158 (cento e cinquenta e oito) retornos forçados de crianças desacompanhadas e 583 (quinhentos e oitenta e três) retornos forçados de crianças com familiares. No mesmo relatório constatamos que na França 698 (seiscentas e noventa e oito) crianças desacompanhadas foram detidas em 2009, enquanto 318 (trezentas e dezoito) crianças acompanhadas de suas famílias ficaram detidas antes de serem retornadas. Em seguida, o documento afirma que 1.160 (mil cento e sessenta) crianças deixaram a detenção no Reino Unido211. Aliado a este contexto de violações verificadas no plano da realidade, entendemos que a Diretiva de Retorno acaba por legitimar formalmente, através de um instrumento legislativo, a política de repulsa ao estrangeiro, possibilitando, através do respaldo legal, a violação dos direitos das crianças em situação de vulnerabilidade, ignorando toda a normativa internacional construída por décadas. European Comission Directorate – General Home. Comparative Study on parctices in the field of return minors. Home/2009/RFXX/PR/1002. Final Report,2011. p. 28. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2013. 211 Idem, p. 34. 210

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Curiosamente, a Comissão Europeia menciona em documento um Plano de Ação para menores desacompanhados, no ano de 2010, prevendo a elaboração de um relatório entre os anos de 2012 a 2015, que possibilite avaliar estatisticamente qual a situação em que efetivamente se encontram essas crianças para, de acordo com os dados coletados, elaborar um novo plano de ação que responda mais adequadamente ao interesse superior do menor. Ficaremos atentos aos resultados, para o prosseguimento desta pesquisa. 212

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conflituoso cenário geopolítico mundial traz novos desafios aos direitos humanos, no ímpeto de realização do sonho de uma comunidade internacional cosmopolita. Verificamos que no contexto político mundial, a Diretiva de Retorno, desenvolvida na Europa como instrumento para neutralização e afastamento de imigrantes, são circunstâncias que possibilitam diagnosticar que há um contexto de criminalização do estrangeiro em importantes centros políticos internacionais. Nos termos do retorno a xenofobia europeia, quem mais sofre na pele são as crianças estrangeiras, pois a Diretiva de Retorno, em muitos pontos, atua assimetricamente às Convenções Internacionais de proteção a criança. Isto porque, diferentemente de todos os diplomas internacionais de direitos humanos analisados, a Diretiva prevê a possibilidade de prisão de menores, tratada no artigo 17, caso seja necessário sob a perspectiva da segurança nacional. A Diretiva de Retorno afronta os direitos humanos assegurados à criança, pois não prevê qualquer meio de proteção à criança retornada, que possivelmente não deteria condições de realizar o retorno voluntário, no prazo de sete a trinta dias, previsto no artigo 7 da referida Diretiva. Sobretudo no caso da criança desacompanhada European Comission. COMMUNICATION FROM THE COMMISSION TO THE EUROPEAN PARLIAMENT AND THE COUNCIL. Action Plan on Unaccompanied Minors (2010 – 2014). SEC(2010)534. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2013.

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de seus pais, que enfrenta todo o tipo de privações, certamente acabariam por serem deportadas, na modalidade de retorno compulsório previsto pela mesma norma, o que significa, a nosso ver, uma total incompatibilidade com o direito à reunificação familiar, prevista no artigo 22 da Convenção dos Direitos da Criança. De modo diametralmente oposto, o ACNUR, com a elaboração de suas Diretrizes para a determinação do interesse superior da criança estabelece, no documento examinado no subtítulo acima, um procedimento dotado de garantias fundamentais, que possibilita a identificação da criança, para o atendimento ágil de suas necessidades básicas, levando em conta a opinião da criança envolvida, para a adoção de medidas de caráter provisório e duradouro de proteção. Interessante notar, que as Diretrizes trazem mecanismos de determinação do superior interesse da criança refugiada, desacompanhada e separada de seus pais, visando primordialmente a possibilidade de reunificação familiar. Enquanto isto, constatamos que a realidade apresenta casos de sérias violações aos direitos propugnados por toda a normativa internacional, com detenções arbitrárias, constrangimentos ilegais, e tratamento degradante de crianças sujeitas à soberania dos países europeus mencionados no trabalho. Aliado ao dado qualitativo, percebemos que a análise quantitativa dos números apresentados, de acordo com o relatório elaborado pela Comissão Europeia também dá conta dos efeitos da utilização da Diretiva pelos países europeus, com nítida inclinação ao rechaço de crianças estrangeiras. Por fim, acreditamos que a Diretiva de Retorno pode se tornar um meio de legitimação formal das arbitrariedades já praticadas no plano da realidade, sendo um instrumento autorizador da ofensa aos Direitos da Criança, podendo representar um retrocesso em termos de internacionalização do direito, pois segue na contramão dos esforços humanitários para o tratamento do fenômeno da migração de crianças.

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5 REFERÊNCIAS ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008. Documento disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013. BHABHA, Jacqueline; FINCH, Nadine. Seeking asylum alone: Unaccompanied and separated children and refugee protection in the U.K. 56 (Nov. 2006). Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2013. Convenção das Nações Unidas de 1989. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2012. CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 2009. European Comission. COMMUNICATION FROM THE COMMISSION TO THE EUROPEAN PARLIAMENT AND THE COUNCIL. Action Plan on Unaccompanied Minors (2010 - 2014). SEC(2010)534. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2013. European Comission Directorate – General Home. Comparative Study on parctices in the field of return minors. Home/2009/RFXX/PR/1002. Final Report,2011. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2013. FREITAS, Isis Hochmann de. O inimigo estrangeiro: a Diretiva de Retorno à luz da internacionalização dos direitos humanos. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Ciências Criminais - PUC/RS, 2011. LEITE, Rodrigo de Almeida. Os paradoxos do tratamento da imigração ilegal na União Europeia frente à Diretiva de Retorno. Revista Espaço acadêmico. n. 108. maio de 2010. p. 61-70. SANCHEZ MOJICA, Beatriz Eugenia. Em la frontera. El papel de la corte interamericana de derechos humanos en la protección de los derechos de los menores migrantes en situación irregular. In: Hendu 3 (1): 57-89, 2012. SCHMIDT, Fabiana. Adolescentes privados de liberdade: a dialética dos direitos conquistados e violados. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Faculdade de Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. 57-89, 2012. SMITH, Terry. Separated children in Europe programme, separated children in Europe: policies and practices in European Union member states: a comparative analusis 5 (2003). Disponível em: http://www.evasp.eu/attachments/066_Separated%20 Children%20in%20Europe,%20Policies%20and%20Practices%20in%20European%20Union%20Member%20States,%20a%20comparative%20analysis.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2013. TORRES, Gabriela. Encerrados sin ser culpables. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013. ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: boitempo, 2012.

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OS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DO PARADIGMA DA SOCIEDADE INTERNACIONAL: traços poermanentes e duradouros de uma comunidade internacional global Juliana Graffunder Barbosa Graduanda do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora do Núcleo PRISMA – Pesquisas em Relações Internacionais de Santa Maria. ([email protected]) José Renato Ferraz da Silveira Doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Ciência Política e bacharel em Relações Internacionais pela mesma instituição. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Ciências Econômicas, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e líder do Núcleo PRISMA – Pesquisas em Relações Internacionais de Santa Maria. ([email protected])

Resumo: O presente trabalho busca mostrar o papel dos Direitos Humanos como um dos traços fundamentais e permanentes de uma comunidade internacional em gestação. Utilizando o ferramental teórico da Sociedade Internacional, analisaremos primeiramente o debate e a complexa busca por graus de convergência ao consenso universal dos Direitos Humanos; em segundo, apresentaremos a tensão entre as forças centrípetas (integração) e centrífugas (fragmentação) que limitam a construção de uma comunidade internacional global no confronto entre o princípio da seletividade e a universalização dos direitos humanos; e, por último, avaliaremos os avanços e retrocessos da universalização dos Direitos Humanos tendo como interlocutor a Organização das Nações Unidas. Como método de pesquisa, foi empregado a revisão bibliográfica de livros e artigos que englobam as áreas de Relações Internacionais e Direitos Humanos. Palavras-chave: Sociedade Internacional – Universalização dos Direitos Humanos – Princípio da Seletividade. Governança Global. Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Considerações Finais. 4. Referências.

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1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa é oriunda das visões interpretativas de Martin Wight (2002) e Hedley Bull (2002), teóricos do paradigma da Sociedade Internacional das Relações Internacionais. Notamos que a teoria da Sociedade Internacional denominada também de Escola Inglesa213, é melhor compreendida como uma tradição de diálogos, marcados entre outros pelo seu foco nos “três erres” de Wight214 como um conjunto no qual as pessoas podem participar sem estarem comprometidas a determinadas linhas. Partimos do seguinte pressuposto teórico, os Direitos Humanos são traços fundamentais e duradouros da sociedade internacional, como as potências, potências dominantes, as grandes potências, as revoluções internacionais, a anarquia internacional, o equilíbrio de poder, a guerra e as intervenções. Isto posto, a pesquisa utilizou do método bibliográfico, e opera a partir de um rigoroso pluralismo teórico sob as dimensões realista, racionalista e revolucionista e, em outros momentos, podemos considerar como maquiavélica, grociana e kantiana. O objetivo geral deste artigo é mostrar que existem traços fundamentais e permanentes de uma comunidade internacional em gestação. De fato, reiteramos que a promoção e a defesa dos direitos humanos pode ser apontada como representativa das forças centrípetas (integração) da sociedade mundial (identidades e culturas compartilhadas entre os Estados).

Jackson e Sorensen (1999, p. 34) qualificam como teoria das Relações Internacionais o Realismo, o Liberalismo, a Sociedade Internacional e a Economia Política Internacional. 214 Os “três erres” são as três óticas nas quais a Sociedade Internacional enxerga os fatos no contexto internacional, utilizadas concomitantemente. Elas são compostas pelo Realismo, que tem como expoentes os autores clássicos Maquiavel e Hobbes, o Racionalismo, com base no pensamento de Grotius, e o Revolucionismo, que utiliza as ideias de Kant. 213

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Destarte, a abordagem da pesquisa quanto a expansão dos direitos humanos data a partir do fim da II Guerra Mundial (1945) e transcorre no surgimento da Carta de São Francisco (1948), nas polaridades definidas da Guerra Fria e polaridades indefinidas da Nova Ordem Internacional. Relativo aos objetivos específicos, analisamos: primeiro, debater e apontar a complexa busca por graus de convergência, - o consenso universal dos Direitos Humanos; segundo, revelar a tensão entre as forças centrípetas (integração) e centrífugas (fragmentação) que limitam a construção de uma comunidade internacional global no confronto entre o princípio da seletividade - componente maquiavélico-hobbesiano - e a universalização dos direitos humanos - consenso kantiano; terceiro, avaliar os avanços e retrocessos da universalização dos Direitos Humanos tendo como interlocutor a Organização das Nações Unidas.

2 DESENVOLVIMENTO O término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) demarcou a presença de duas revoluções internacionais que definiriam os contornos institucionais e o nova ordem da sociedade internacional: a bipolaridade do choque de concepções entre americanos e soviéticos; e a universalidade advinda com a criação das Nações Unidas. A etimologia da palavra revolução, do latim revolutio, significa a passagem de um estado a outro. Uma revolução internacional, conforme elucida Wight (2002), repercutem por toda a sociedade internacional, demostrando certo grau de unidade desta e, ao mesmo tempo, o desafio aos fundamentos da mesma. Essas doutrinas revolucionárias internacionais transpõem a essência da política do poder para um novo plano. Elas introduzem a paixão e o fanatismo nos cálculos de utilidade política, e a doutrina algumas vezes sobrepuja ou reinterpreta o interesse. Elas tornam difusa a distinção entre a política

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doméstica e a externa; transformam a diplomacia e transformam a guerra. (WIGHT, 2002, p. 76-77)

Segundo Kissinger (1999), a Guerra Fria inicia antes mesmo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) chegar ao seu término, de fato. A corrida pelos despojos da Alemanha Nazista entre os aliados de guerra Estados Unidos e União Soviética em 1944 ilustra a competição que se transformará em conflito ideológico. Neste contexto a sociedade internacional passa por uma revolução que transmutará o concerto de múltiplas potências em alinhamento leste-oeste. A Guerra Fria dividiu o mundo em duas zonas de influências que possuíam visões de mundo, organização do Estado e produção diametralmente opostas. Outra característica em destaque foi a emergência de superpotências que se destacavam das demais potências pela autossuficiência de modelo econômico (capitalismo e socialismo) e potencial de destruição em massa. Entrementes, outra revolução internacional emana dos destroços do período das Grandes Guerras (1914-1945), considerando aqui a Segunda Guerra como continuação da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Conferência de São Francisco (1945) produziu a Carta de São Francisco que, segundo Dupuy “fez dos direitos humanos um dos axiomas da nova organização, conferindo-lhes idealmente uma estatura constitucional no ordenamento do direito das gentes.” (DUPUY APUD REZEK, 2000, p.211), que estabeleceu uma nova ordem internacional fundada na universalização dos direitos humanos, ou seja, a necessidade de alicerçar o ideal dos direitos humanos através de normas internacionais. Sem dúvida, o marco fundador é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), como argumenta Lafer (1999, p.141), “tem como objetivo civilizar o anárquico “estado de natureza” da guerra de todos contra todos, que o “realismo” da visão hobbesiana, tal como a maquiavélica, identificam como sendo a característica definidora da vida internacional”.

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A Carta das Nações Unidas - que inaugura, no plano internacional, a abrangente positivação dos direitos humanos - consagrou, assim, em vários artigos, com uma amplitude que não tinha o Pacto da Sociedade das Nações, uma leitura kantiana dos direitos humanos. Vale dizer, admitiu a possibilidade da inserção operativa de uma razão-abrangente da humanidade que poderia, no tempo, conter a “raison-d´État” discricionária das soberanias” impeditivas da tutela jurídica internacional da pessoa humana. A Carta das Nações Unidas representou assim um “direito novo”, axiologicamente sensível à tradição kantiana e por isso mesmo crítico da tradição maquiavélico-hobbesiana. Traçou, consequentemente, uma política do Direito para tornar realizável, no plano internacional, a prevalência de uma visão kantiana dos valores inerentes à tutela dos direitos humanos. (LAFER, 1999, p. 189)

Na concepção de Fonseca Jr. (2010), ainda que a Carta tivesse força legal – era uma “declaração de intenções” –, a declaração preconiza direitos e liberdades que eram vistos como “ameaça potencial” pelos países socialistas, autoritários, racistas (como a África do Sul) etc. Indubitavelmente, seu texto inspira e modela tudo o que será feito daí em diante no sistema multilateral na área de Direitos Humanos. Os direitos humanos, como valores fundamentais da convivência coletiva, logicamente correlacionados com a democracia no plano interno e a paz no plano internacional, na lição de Norberto Bobbio, podem ser considerados como um “adquirido axiológico” de alcance universal. Este “universal”, dadas as rupturas e descontinuidades que caracterizam o processo histórico, é fugidio. (LAFER, 1999, p. 200)

O conflito entre as duas superpotências mundiais ocasionou em uma paralização do principal órgão decisório da ONU, o Conselho de Segurança, onde seus membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) utilizaram 279 vezes o direito de veto entre 1946 e 1990 (FUJITA, 1996). 318

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Evidentemente, como pondera Lafer (1999, p. 192), “as forças centrípetas predominaram de maneira bastante avassaladora, na primeira etapa do pós Guerra Fria - a que se estende da queda do Muro até a Guerra do Golfo”. Não obstante, na Conferência de Viena (1993), notamos o fortalecimento da universalização dos Direitos Humanos. De acordo com Lafer (1999, p. 193), “no campo dos valores, em matéria de direitos humanos, democracia e paz, a Conferência de Viena de 1993 é uma admirável expressão do melhor de uma “ilustrada” lógica de globalização, que dá sequência à Declaração Universal de 1948”. Ainda segundo Lafer (1999), o consenso de 171 Estados, reforçado pela atuação da sociedade civil através da presença de organizações não governamentais, foi uma verdadeira leitura kantiana das formas de conceber a vida em sociedade. Superou a seletividade maquiavélico-hobbesiana e foi além da “coexistência pacífica” grociana, ao asseverar a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos (e também dos seus feixes axiológicos), nas suas múltiplas gerações, transcendendo, assim, através de uma razão abrangente da humanidade, a razão mais circunscrita dos interesses da polaridades Leste-Oeste, Norte-Sul, até então prevalecentes na matéria. A Conferência de Viena endossou a democracia como forma de governo mais favorável para a tutela dos direitos humanos. Registrou que a sua observância contribui para as relações amistosas e pacíficas entre as nações. Reconheceu, consequentemente, os direitos humanos como um tema global, ou seja, como um ingrediente positivo para a governabilidade do sistema mundial, legitimando e legalizando, desta maneira, em novos moldes, a preocupação internacional com a sua promoção e afastando a objeção de que o tema dos direitos humanos está no âmbito exclusivo da competência soberana dos Estados (LAFER, 1999, p. 194). No entanto, o consenso kantiano viabilizado na Conferência de Viena (1993), sofre revezes importantes na década de 90, princi-

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palmente diante de um sistema internacional de polaridades indefinidas e por obra da lógica de fragmentação. Na contribuição valiosa de Lafer (1999, p. 192), “as forças centrífugas, derivadas do aflorar dos particularismos e das especificidades, fizeram sentir o ímpeto de sua presença no segundo pós-Guerra Fria”. Os padrões ideológicos dos anos 90 que prevalecem são o neoliberalismo quanto as desconstruções pós modernas. No primeiro caso, porque exacerbam os mecanismos competitivos entre as nações; no segundo, porque ao transformar os ideais de justiça em narrativa, enfraquecem a própria natureza universal da luta, concedendo razão aos que relativizam qualquer organização de justiça (FONSECA JR APUD NASSER, 2010, p. 26).

Como alerta Gelson Fonseca Jr. apud Nasser (2010), a primeira observação é a de que a universalização deve se apoiar em um consenso amplo, que permitiria realizar os ideais que incorpora. E isso não se dá. “Ou melhor, se dá em planos regionais, onde a base da cultura é mais sólida - especialmente na Europa e nas Américas, que tem instituições de proteção de Direitos Humanos que vão além das universais” (FONSECA JR APUD NASSER, 2010, p. 26). Por outro lado, o otimismo liberal do início dos anos 90, que acreditava nas forças de globalização ao estimular consensos e, nesse sentido, permitindo ganhos razoáveis de governabilidade em um mundo de crescente interdependência não vingou. Acreditava-se no consenso que valeria para o mundo da economia (especialmente no que tange o comércio e o fluxo de capitais), para questões relativas ao meio ambiente (mudanças climáticas, derretimento das calotas polares, poluição, extinção da fauna e da flora) e, especialmente, para os Direitos Humanos. Como infere Minc (1999, p. 10): A nova ordem será ameaçada por alguns imprevistos que, no mínimo, a deixarão abalada. Imprevistos estratégicos: acabamos de sair de um mundo ameaçado, mas sem riscos para

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entrar num outro mundo, sem ameaças, mas com riscos. Imprevistos sociais: o reino de mercado que chega anda de par com um ciclo crescente de desigualdades. E, finalmente, imprevistos culturais: surge uma tensão entre a tendência à uniformidade dos modos de vida e até dos pensamentos, nascida da globalização dos produtos, e a aspiração, cada vez maior, à identidade. A globalização pode ser vantajosa, se assim o quisermos, mas não condiz com o fim da História.

Oran Young destaca o papel dos regimes internacionais, onde arranjos transnacionais que formam sistemas de governabilidade ou governança orientariam práticas sociais de indivíduos e grupos, pari passo que Estados exerceriam a governança (SATO, 2000). Entretanto, Andrew Hurrell sublinha que os movimentos estruturais facilitam os consensos e geram solidariedade, “ao mesmo tempo que as desigualdades de poder bloqueiam, “deformam” o movimento por um grau maior de governança na ordem internacional” (HURRELL, 2007, p. 144). Conforme atesta Wight (2002), o mundo de relações interestatais, anárquicas ou descentralizadas, são os próprios estados soberanos que, acima de tudo, são os responsáveis pela função de transformar as regras efetivas. “São os Estados que fazem as leis e as comunicam, administram, interpretam, aplicam, legitimam, adaptam e protegem” (ALTEMANI, apud WIGHT, 2002, p. 22), e através da atuação destes, sujeitos primários ou imediatos da ordem jurídica internacional, é que organizações internacionais também ganham legitimidade de atuação e autoridade, na medida em que produzem bens públicos (HERZ, 2004). Sendo assim, os direitos humanos alcançaram, no plano universal, por obra da integração dos valores da convivência coletiva, normativamente positivados, o status de valores fundamentais. Como afirma Lafer (1999, p. 194), “tornaram-se pois parâmetros das formas de conceber a vida em sociedade, standards da legitimidade do poder das soberanias e como tal indicadores e balizas do locus

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standi e da credibilidade dos Estados e de seu acesso à cooperação internacional”. E nas palavras de José Guilherme Merquior (apud LAFER, 1999, p. 195), “na sua análise da relação entre os valores e a história, na obra de Miguel Reale, os direitos humanos seriam, em outras palavras, um ‘adquirido axiológico’ desvendado pelo ‘senso majestoso da História’”. Especialmente após a criação das Nações Unidas e a elaboração da Carta de São Francisco, verificamos em nosso estudo, sob um prisma multidimensional, a tensão entre as forças de integração e fragmentação no que concerne aos direitos humanos. O que podemos chamar de consenso kantiano ou a estruturação da Pax Universalis (JAGUARIBE, 2008), em um movimento universalista de Direitos Humanos é admitido na concepção de Lafer (1999) como um consenso frágil, do ponto de vista da realizabilidade. Do ângulo institucional, dois avanços importantes são registrados. O primeiro foi a instituição do Tribunal Penal Internacional, que atua na condenação de indivíduos (não de Estados, como a Corte Internacional de Justiça) que cometem crimes contra a humanidade, agressão e, crimes de guerra e de genocídio (ESTATUTO DE ROMA, 1998); e o segundo, a criação do Conselho de Direitos Humanos (UNHRC) pela Assembleia Geral da ONU, com a finalidade de fortalecer a promoção e proteção dos Direitos Humanos, além de fazer recomendações ao Conselho de Segurança sobre a violação destes (ONU, 2006). Ademais, notamos dois aspectos normativos como positivos. A I Conferência Mundial de Direitos Humanos, mas conhecida como Conferência de Teerã, realizada em 1968 com a participação de 84 Estados, além de Organizações Não-Governamentais e Organizações Internacionais, “resultou fortalecida a universalidade dos direitos humanos mediante, sobretudo, a asserção enfática da indivisibilidade destes” (TRINDADE, 1997, p. 178). Já a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, resultou na Declaração de Viena, que objetiva aperfeiçoar os princípios universais de direitos humanos; e, o Pla-

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no de Ação, que buscou efetivar o primeiro, incentivando a ratificação sem reservas por toda a sociedade internacional. De acordo com Lima Jr (2002, p. 14): Ambos foram adotados pelo consenso de 171 Estados, perfazendo como objetivo comum da comunidade internacional o fortalecimento e o aperfeiçoamento da proteção dos direitos humanos em nível mundial, de modo a assegurar a observância universal dos direitos humanos decorrentes da dignidade inerente à pessoa humana. Embora imbricado de fatores políticos, os temas de Direitos Humanos que “entram” na agenda de segurança internacional. “A responsabilidade de proteger passa a ser um tema na agenda das Nações Unidas” (FONSECA JR, apud NASSER, 2010, p. 27). É notório como os fatores políticos e estratégicos pesam sobre os valores morais, visualizando o contraste entre a intervenção em Kossovo, com o potencial risco de migração em massa de refugiados para a Europa desenvolvida, tendo em vista a proximidade geopolítica regional; e a “abstenção” diante do genocídio em Ruanda, perpetrado por grupos étnicos locais (hutu e tutsi), distante geopolítica e estrategicamente das áreas de interesse nacional e econômico das potências. As resistências, a lógica da fragmentação, a razão de Estado inerentes ao campo estratégico militar, a insistência na prevalência centrífuga de tradições, costumes e visões de mundo vem redundando na sublevação dos particularismos, em especial, os de cunho fundamentalista, intolerante e excludente dificultando a realizabilidade do consenso. Nas considerações de Gelson Fonseca Jr. (apud NASSER, 2010, p. 26), “é evidente que a latitude do ingrediente particular é indefinida e, de uma maneira ou de outra, será argumento dos que resistem à universalização”. É possível, assim, dizer que a expansão dos Direitos Humanos, com vocação universalista, se torna um ingrediente necessário da ordem internacional e elemento primordial para a evolução da sociedade internacional global, em que vivemos, na conformação da ius gentium do ser humano, não mais da nação, o sentimento de

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comunidade que extrapola da noção de fronteira, e da gestação da sociedade mundial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o mundo internacional, parafraseando Wight e Butterfield (1966), é necessariamente do conflito, do medo e da desconfiança que notamos avanços significativos no universalismo dos Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, inegavelmente, é um documento que consagra o racionalismo grotiano nas relações internacionais. Deste modo, somente após o desfecho da bipolaridade, interpretado como parte de um amplo processo de transformações que se apresentava em andamento duas décadas antes de sua derrocada final (SATO, 2000), e o retorno a um cenário multipolar, supunha-se que a universalidade se realizaria de fato. A fragilidade dos modos de ordenação do sistema somados ao declínio relativo da Hegemonia Norte Americana que está longe de produzir public goods, como assevera Gelson Fonseca Jr., reforçado pelo unilateralismo que marca as gestões presidenciais de Clinton e, de modo, muito mais contundente, a de Bush. Acrescenta-se a isso, o “desserviço” americano à causa dos Direitos Humanos, a prática da negação do devido processo legal e tortura a muitos prisioneiros sob a alegação de participação em atentados terroristas. Constatamos que o desenvolvimento e a legitimidade na área dos Direitos Humanos é permeada por graus de consenso variados, processos deliberativos frágeis, diferenças culturais significativas, difíceis pontos de equilíbrio e assimetrias profundas. Conforme Hélio Jaguaribe (2008, p. 265) reconhece “nas condições de um mundo tecnologicamente globalizado, somente uma ordenação racional e eqüitativa [sic] do conjunto do mundo dispõe da possibilidade de lhe assegurar um equilíbrio estável, conveniente para todos e única alternativa para uma autaniquilação do mundo”.

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Deste modo, em nossa avaliação, apesar dos movimentos de resistência e particularistas, os direitos humanos são valores unificadores, que nunca se esgotam como um dado da realidade, mas que se inovam e se projetam no futuro enquanto vis diretiva de conduta. Apesar das reconhecidas limitações e deficiências da ONU, sem dúvida, é uma organização essencial na promoção dos ideais éticos, em geral, e dos direitos humanos, em particular. O triunfo definitivo das ideias universais dos direitos humanos, ou mesmo o “retorno às origens” de um novo jus gentium como propõe Cançado Trindade (2002), tendo a ONU como criadora dos mecanismos e defensora dos mesmos é uma incógnita.

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O “GLOBALISMO” DE IMMANUEL KANT E HANS KELSEN: ideias sobre um projeto filosófico e um projeto jurídico para alcançar a paz Brenda Luciana Maffei Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CAPES. Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. Advogada pela Facultad de derecho de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Membro do Grupo Núcleo de Pesquisas sobre Integração Regional, Paz e Segurança Internacional EIRENÈ. Diretora de projeto de pesquisa da Faculdade de Direito da UBA. DECYT 1223. El Parlamento del Mercosur: aspectos amplio y estrictos de la cuestión democrática en el bloque.

Resumo: O presente trabalho estuda as concepções sobre a conformação de uma Federação de Estados livres, na construção teórica de Immanuel Kant e a conformação de um Estado Mundial na elaboração teórica de Hans Kelsen. As duas teorias visam ser construções teóricas para a paz mundial. Com isso não é objetivo deste trabalho nem apontar para a possibilidade de uma aplicação prática dessas teorias, nem apontar alguma conclusão sobre um possível fracasso ou sucesso dessas teorias na atualidade, simplesmente oferece o estudo de um marco teórico comparativo de dois projetos teóricos para alcançar a paz. Palavras-chave: Federação de Estados livres – Estado mundial – Paz.

Sumário: 1. Introdução. 2. Immanuel Kant. 2.1 A guerra como um estado natural que deve ser superado. 2.2 A criação de uma federação de Estados livres como garantia de paz. 3. Kelsen. 3.1 O Direito Internacional como forma primitiva de Direito: a guerra como sanção. 3.2 A evolução do Direito Internacional como garantia para a paz: formação do Estado mundial. 4. Kant e Kelsen: influências e diferenças no “globalismo pacifista”. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

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1 INTRODUÇÃO Antes de mencionar quaisquer ideias que nos introduzam na exposição deste trabalho, é importante determinar o que se pretende dizer quando utilizamos a palavra “globalismo” no título do presente trabalho. A palavra “globalismo” pode ser identificada, também, como universalismo e, em termos bem sucintos, denota a ideia de uma conformação ou de uma união mundial de Povos215 ou de Estados. Essa conformação ou união mundial de Povos ou de Estados é equiparada à união ou conformação que deu origem ao Estado nacional, tal qual hoje o conhecemos. Isto quer dizer que o termo “globalismo” ou “universalismo” tem uma estreita relação conceitual com aquilo que se entende como Estado nacional, como se aquele termo fosse uma “reprodução” do último, em um nível superior no processo de união entre povos216. Havendo efetuado essa breve definição, agora estamos em condições de marcar os principais objetivos do presente trabalho. Assim sendo, o que este trabalho pretende estudar são as concepções sobre a conformação de uma Federação de Estados livres, na construção teórica de Immanuel Kant e a conformação de um Estado Mundial na elaboração teórica de Hans Kelsen. As duas teorias visam ser construções teóricas para a paz mundial. Resulta de Utiliza-se o termo “povos” não em um sentido retórico, pelo contrário, identifica-se o termo com o conceito de: Povo, “Direito dos povos” e “Sociedade dos Povos” utilizados por John Rawls em: RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. Martins Fontes. São Paulo, 2004. 216 Danilo Zolo identifica como “globalismo jurídico” a ideia kantiana da unidade moral do gênero humano. Sustenta que essa concepção jusnaturalista e ilustrada é articulada por Kelsen nas ideias da unidade e objetividade do ordenamento jurídico, da primazia do Direito Internacional, do caráter parcial dos ordenamentos jurídicos nacionais e da ideia de desalojar a concepção mesma de soberania. Sustenta Zolo, ademais, que o globalismo jurídico é hoje uma teoria do Direito que triunfa e que ela pretende levar à sociedade mundial contemporânea, o sucesso da centralização jurídica e política elaborada no interior do Estado. Veja: ZOLO, Danilo. Una crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. Trad. Pedro Mecardo Pacheco. Univesidad de Granada. Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 36 (2002), 197-218. Disponível em: . Acesso em: 23 nov. 2012. 215

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importância ressaltar, então, que não é objetivo deste trabalho nem apontar para a possibilidade de uma aplicação prática dessas teorias, nem apontar alguma conclusão sobre um possível fracasso ou sucesso dessas teorias na atualidade. As bases bibliográficas são principalmente as obras: “À Paz Perpétua. Um projeto filosófico217” de Immanuel Kant e “Direito e Paz nas relações Internacionais218” e “A paz por médio do Direito219” de Hans Kelsen. A partir do estudo das concepções dos dois autores sobre a ideia de um “globalismo pacifista220”, tentaremos identificar se existem diferenças substanciais entre ambos no que diz respeito à forma de atingir o objetivo da paz com base na institucionalização de um direito internacional. Os escritos desses autores estão separados por ao redor de 150 anos de história e vale lembrar o contexto em que eles foram elaborados. O trabalho do primeiro dos autores, resumidamente, foi o resultado do contexto intelectual dos séculos XVI e XVII e de dois fatos históricos relevantes: a independência dos Estados Unidos da América (EUA) em 1776 e a posterior adoção de uma Constituição em 1787 e a Revolução Francesa em 1789. No que diz respeito ao contexto intelectual, por uma lado é uma crítica à concepção grociana de que existia, por parte dos Estados, um direito a fazer a guerra221. Kant, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico. Traducción: Macarena Marey y Juliana Udi. Universidad Nacional de Quilmes. Buenos Aires, 2007. 218 KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Versión española de: Florencio Acosta. Fondo de cultura Económica. México, 1943 219 KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. Traducción: Luis Echávarri. Editorial Losada S.A. Buenos Aires, 1946. 220 Veremos no transcurso deste trabalho que o objetivo, tanto de Kant como de Kelsen ao falar da conformação, tanto de uma federação de Estados quanto da conformação de um Estado mundial, é alcançar a paz como fim último e, por esse motivo, utilizamos o termo “globalismo pacifista”. 221 Considerado o primeiro grande sistematizador do direito internacional moderno, sustentava que a guerra não era contrária ao direito natural. Grócio apontava três causas como legítimas para a guerra externa: a defesa contra uma injúria, atual ou ameaçadora, a recuperação do que é legalmente devido para o Estado prejudicado e a punição do 217

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Por outro lado é uma retomada das ideias desenvolvidas pelo Abade de Saint Pierre222. Já o trabalho do segundo autor, coloca-se no contexto de entre guerras e foi contemporâneo à criação da Liga das Nações e da Organização das Nações Unidas. Vale ressaltar, também, que o autor foi alvo da perseguição nazista. O trabalho segue dividido em dos pontos centrais. O primeiro traz elementos da teoria de Kant, fazendo especial menção a sua concepção sobre guerra, paz e conformação de uma federação de Estados livres. Já no segundo, tratam-se das mesmas questões, mas elaboradas por Kelsen na sua obra. O terceiro ponto do trabalho tenta dar resposta ao objetivo do trabalho e realizar uma comparação teórica sobre ambos os projetos.

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IMMANUEL KANT

2.1 A guerra como um estado natural que deve ser superado [...] el mecanismo de la naturaleza, merced al cual las inclinaciones egoístas se oponen externamente unas a otras de manera natural, Estado injuriador. O objetivo da guerra era, precisamente, assegurar a conservação da vida e do corpo. A alternância entre a guerra e a paz era aceita como natural. Com isso, o direito das gentes do século XVII entendia que os Estados possuíam um direito à guerra como possibilidade da expansão da sua soberania, que era entendida em termos absolutos e como um poder supremo, quer dizer, aquele que não dependia de outro superior. GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. v. 1 e 2. Trad. Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2004. 222 Em seu projeto, o Abade de Saint Pierre tentou demonstrar que a criação de uma sociedade permanente, entre os Estados da Europa, consistia na única solução possível para frear as guerras e garantir a segurança suficiente para a execução dos tratados. Para isso, ele propõe uma Santa Aliança entre os Estados cristãos da Europa. O trabalho não foi reconhecido pela maioria dos intelectuais, acadêmicos e estudiosos da época. Além disso, o escrito foi acusado de utópico e plenamente rechaçado pela política francesa que considerava a proposta de aliança europeia uma diminuição do seu poder. Por esses motivos a obra foi desaparecendo pouco a pouco, permanecendo esquecida até 1981, momento em que os volumes foram reeditados. SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para Tornar a Paz na Europa. 1ª edição. Trad. Sérgio Duarte. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 2003. No original: “Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe”.

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puede ser utilizado por la razón como medio para darle curso a su propio fin, la prescripción jurídica, y con ésta, a su vez, para fomentar y asegurar la paz, tanto exterior como al interior de Estado, dado que ello depende del Estado mismo…223

Segundo Kant, a situação de paz não é a forma em que a natureza faz ou, o que é o mesmo, a natureza quer que os homens vivam. Ao utilizar a construção “a natureza faz” ou “a natureza quer”, Kant pretende indicar que o estado de guerra entre os homens consiste em uma situação em que a própria natureza coloca o homem, querendo ele ou não. O estado de guerra seria alheio a toda vontade humana. Assim, por mais que não tenha sido declarada uma guerra entre determinados sujeitos, existe uma ameaça constante de que a guerra acontecerá a qualquer momento e em qualquer lugar. O estado de guerra pode ser considerado, então, tanto como indicando uma situação bélica determinada, como também a situação de ameaça de guerra constante. Dessa forma, o homem – e também o povo – que se encontre nesse estado natural seria uma ameaça permanente para os outros homens ou os outros povos. No estado natural, sem nenhuma classe de direito público sancionado, não existem critérios que determinem qual reivindicação pode ser considerada justa. Ao não contar com tal instância, o exercício da violência se transforma no único modo disponível para resolver as disputas. A violência, por mais que possa ser a única forma de exercer uma reivindicação, não pode, segundo o autor, ser considerada um modo legítimo de reivindicar um direito. Pode-se extrair do seu escrito que a guerra se daria pela não sujeição dos povos a uma lei externa. Assim como o estado de guerra entre os indivíduos se dá pela não sujeição de suas liberdades a uma lei externa, da mesma forma, acontece com os povos (grupo de indivíduos que conformam o Estado), que não se submetem a um poder superior. Dessa forma, o homem e também o povo, que se encontre Kant, Immanuel. Hacia la paz perpetua... p. 76.

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nesse estado natural, seria uma ameaça constante para os outros. Para ele, então, será necessário que todos os homens formem parte de alguma Constituição civil. Ela é caracterizada como sendo: 1) ius civitatis: Constituição baseada no Direito civil político dos homens do povo 2) ius gentium: Constituição baseada no Direito de gentes dos Estados nas suas relações mútuas 3) ius cosmopoliticum: Constituição baseada no Direito cosmopolita dos homens e do estado nas suas relações externas como cidadão de um Estado universal da humanidade. Pode ser observado em Kant que, apesar de a natureza ter posto o homem em um estado de guerra, para ele é também a mesma natureza que pode dar garantias para atingir a paz perpétua. Em outras palavras, para Kant, a natureza estabeleceu um estado de coisas que podem ser tomados a favor e não em contra do objetivo de atingir a paz. Isso porque, em primeiro lugar, a natureza fez com que os homens pudessem viver em todas as partes do mundo; em segundo lugar, fez com que os homens fossem distribuídos, mediante a guerra, por todas as partes; e, em terceiro lugar, é essa mesma guerra que obriga os homens entrarem em relações mútuas. A ideia da natureza como garantidora da paz pode ser resumida da seguinte forma: a natureza quis com que o homem (por natureza egoísta e guerreiro), por meio da guerra, habite o mundo e, também, a natureza é a responsável pela criação dos diferentes povos pelo fato de terem diferentes línguas ou, mesmo tendo a mesma língua, pelo fato de estarem separados por grandes extensões de terra. Apresentados os fatos em que a natureza colocou o homem, esses obrigaram aos povos, apesar de ir contra a natureza egoísta, a se unirem e a se organizarem para se defender do vizinho que o acossa e o ameaça constantemente. Eis aqui a Constituição baseada no Direito civil político dos homens do povo que, para Kant, não requer o me-

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lhoramento moral dos homens. Simplesmente requer deles o mero entendimento para saber que a boa organização do Estado é a forma de neutralizar os efeitos destrutivos de uma liberdade sem lei224. A outra forma de Constituição, i.e. aquela baseada no Direito de gentes dos Estados nas suas relações mútuas, requer dos homens a superação dos mecanismos da natureza (que fez com que os povos tivessem diferentes línguas e religiões) mediante o fortalecimento da cultura e do consenso dos princípios. Por último, mediante o espírito de comércio, os povos se unem e os Estados estão compelidos a frear a guerra e promover a paz.

2.2 A criação de uma federação de estados livres como garantia de paz [...] La idea del derecho de gentes presupone la separación de muchos Estados vecinos, independientes unos de otros, y, aunque una condición de este tipo es ya en sí misma un estado de guerra (si no hay una unión federativa de Estados que prevenga el estallido de las hostilidades), según la razón esta situación es mejor que la fusión de los Estados operada por una potencia que controle a todos y dé lugar a una monarquía universal…225

Nas últimas linhas do parágrafo anterior, foram esboçadas as ideias kantianas sobre Constituição baseada no Direito civil político, no Direito de gentes e no Direito Cosmopolita. No primeiro dos casos, a única forma de governo que pode estabelecer uma Consti Os objetivos decorrentes da conformação dessa organização, segundo Kant, podem ser resumidos nas seguintes linhas do seu texto: “...Ordenar uma multitud de seres racionales que, en conjunto, demandan leyes universales para su preservación pero que, por separado, tienden secretamente a exceptuarse de ellas, y organizar su constitución de modo tal que, aún cuando se opongan mutuamente en sus intenciones privadas, éstas se refrenen unas a otras a fin de que aquellos se comporten publicamente como si no tuvieran estas malas intenciones...” (KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 75. 225 KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 76. 224

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tuição baseada no Direito civil político é a republicana. No segundo caso, a única forma de alcançar o Direito de gentes é a que deriva da fundação de uma federação de Estados livres. Finalmente, a Constituição baseada no Direito cosmopolita será de possível realização quando as formas anteriores tenham sido alcançadas. A analogia se faz presente na teoria sobre o Direito de gentes de Kant. Isso quer dizer que os Estados podem ser assemelhados aos indivíduos onde na sua condição natural causam danos uns aos outros (pelo uso da força e de uma liberdade sem lei). Por outro lado, também, a federação de Estados livres pode ser considerada, segundo Kant, como sendo uma analogia da Constituição civil, pela qual todos têm garantidos seus direitos. Contudo, essa federação de Estados não deve ser um “Estado de povos”. Essa ideia é fundamental para o conceito de “globalismo pacifista kantiano”, já que ela parte da unidade mínima (o indivíduo) que decide se unir num Estado. Assim, o Estado implica a relação entre um superior (o legislador) e o inferior (o povo, ou conjunto de indivíduos) baseado numa forma republicana de governo. Agora bem, a fusão de muitos povos em um único Estado faria um único povo, o que, no seu modo de raciocinar, contrairia o fato de existirem diferentes Estados e diferentes povos226. A origem dessa federação livre de Estados se encontraria em uma espécie de “contrato originário internacional” onde se instaura e se garante a situação de paz. Como já se mencionou no parágrafo anterior, a ideia de federação de estados livres em Kant, supõe conservar e salvaguardar a liberdade de todos e cada um dos Estados, sem se submeter a leis públicas ou a sua coação. Essa é a diferença substancial entre a Constituição baseada no Direito civil (criada entre indivíduos que se submetem a um poder superior) e a Constituição baseada no Di-

Determina claramente que: “...Un Estado mundial es contradictorio con el derecho de soberanía que retienen los pueblos en el sentido de que lo viola…” (KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 57.

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reito de gentes (criada para garantir a paz entre os povos, mas sem nenhuma classe de submissão desses povos a um poder superior)227.

3 KELSEN 3.1 O direito internacional como forma primitiva de direito: a guerra como sanção [...] En cuanto a sus cualidades técnicas, el Derecho internacional general es un Derecho primitivo, como lo hace patente, entre otros aspectos el hecho de que carece enteramente de un órgano especial encargado de la aplicación de las normas jurídicas a los casos concretos […]

Segundo a concepção teórica de Kelsen, a guerra é a sanção do Direito Internacional. A paz é considerada por ele a situação onde não existe a força. Contudo, a ausência absoluta de força derivaria em anarquismo, razão pela qual a força é reservada à comunidade, nas relações entre os indivíduos. Em outras palavras, na concepção de Kelsen, sempre que seja considerada uma sanção e que o indivíduo atue como um órgão da ordem social ou como um agente da comunidade, a força está permitida. Não só é permitida, mas também é necessária para não cair no anarquismo. Quando quem atua na comunidade é um agente dela e utiliza a força contra o indivíduo ou grupos de indivíduos responsáveis A ideia kantiana de federação de Estado livres é criticada, p.ex., por Habermas e sustentada por Rawls. Habermas indica um paradoxo nesse raciocínio. Ele sustenta que, por um lado, Kant pretende um agrupamento de Estados que preservam suas soberanias, o que daria a possibilidade, a qualquer Estado, de dissolver o “contrato” em qualquer momento, mas, por outro lado, essa aliança deve fomentar uma paz duradoura. Para ele, a pergunta que Kant não responde é como assegurar a permanência voluntária dos Estados, uma vez que continuam a ser soberanos. Veja: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Layola, 2002. p. 190-191. Ralws, ao sustentar a formulação de certos princípios para o Direito dos Povos, admite a possibilidade de criação de certas associações ou federações cooperativas, mas não a conformação de um Estado mundial, coincidindo plenamente com Kant. Veja: RAWLS, John. O Direito dos povos... p. 46.

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pela violação do Direito, a utilização da força, ou também chamada “vingança de sangue” tem o caráter de sanção e está permitida. Essas comunidades são do tipo “primitivas”. Isso porque não estabelecem um órgão diferente dos indivíduos, que determine e aplique a sanção. O fato de serem sociedades primitivas não quer dizer, para Kelsen, que não sejam comunidades jurídicas. Isso porque, ao estabelecerem uma ordem coercitiva e atos como sanções, têm natureza jurídica. A contrario sensu, as sociedades que delegam a um órgão central o direito de empregar a força como sanção são sociedades mais evoluídas. Nesse sentido, o Estado mostraria ser o tipo mais perfeito de ordem social pela centralização do uso da força e, dessa forma, pode ser alcançada a paz nacional. Assim, o uso da força (salvo por uma revolução ou guerra civil) é retirado das potestades dos cidadãos de um Estado e reservados a um órgão autorizado para utilizar a força (governos, tribunais). De tal modo, para Kelsen, os Estados nas suas relações mútuas se comportam como os indivíduos nas sociedades primitivas. Mediante o conceito de bellum justum, a guerra só é permitida como reação contra a violação do Direito Internacional. A relação entre os Estados e as sociedades primitivas deriva do fato de que, no Direito Internacional, não contamos com um órgão central suscetível de determinar a sanção e aplicá-la. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que ao homem primitivo é permitida a “vingança de sangue” como sanção, da mesma forma pode caracterizar-se a guerra como um delito ou uma reação contra esse delito e, portanto, como uma sanção. No Direito Internacional, de caráter primitivo, se os Estados não chegam a um acordo, cada Estado tem direito para decidir, ele mesmo, a questão de se o outro Estado violou ou não seu direito. Nesse caso, o Estado prejudicado está autorizado a pôr em vigor o Direito, recorrendo à guerra contra o transgressor.

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3.2 A evolução do direito internacional como garantia para a paz: formação do Estado Mundial [...] cuando se plantea la cuestión de cómo puede asegurarse la paz internacional, de cómo puede eliminarse el empleo más terrible de la fuerza, a saber, la guerra, de las relaciones entre los Estados, ninguna respuesta puede ser más evidente por sí misma que ésta: uniendo a todos los Estados individuales, o por lo menos el mayor número de ellos posible, en un Estado mundial[...]228

A analogia entre o ordenamento jurídico interno e o ordenamento jurídico internacional, como se pode ver no ponto anterior, está presente na teoria kelseniana sobre o “globalismo pacifista”. Nesse sentido, se o Estado moderno é o tipo mais perfeito de ordem social garantidora da paz nacional, uma estrutura garantidora da paz mundial, com as mesmas características, deve ser possível em nível internacional, mediante a evolução do Direito internacional (isto é, mediante a centralização e o monopólio da força em um ente superior aos Estados)229. A criação desse Estado Mundial em Kelsen não deriva, exclusivamente, do fato de se estabelecer um contrato originário internacional. Para ele, a teoria sobre o nascimento do Estado mediante o contrato social foi abandonada na sua época. O que imperava era a ideia do nascimento do Estado mediante conflitos entre grupos sociais. Contudo, ele não descarta nem uma nem outra postura. Indica KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. p. 29 Essa ideia recebe algumas críticas de Danilo Zolo: ele sustenta que essa visão é uma forma de idealizar a justiça internacional, sem ter em consideração a estreita conexão que existe entre o Direito Internacional, a política internacional e a força militar. Por outro lado, considera que tais ideias sobreestimam o papel do Direito e da jurisdição penal no seu objetivo de acabar com a guerra e duvida de que a aplicação de sanções contra os indivíduos responsáveis pelos ilícitos internacionais incida, de alguma forma, sobre as razões profundas da agressividade humana do conflito e da violência armada. (ZOLO, Danilo. Una crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. p. 200)

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que não seria possível criar um estado de paz duradouro sem um mínimo de consentimento, mas que também é necessário um poder para colocar em ordem a comunidade. ‘... O Direito é uma organização da força...”230. Não poderia negar Kelsen que a conformação de um Estado mundial é um processo lento e de uma evolução longa e chega a afirmar que só será possível no momento em que as diferenças culturais entre as nações se igualarem231/232. Afirma, entretanto, que no seu momento atual233, uma conformação de tal tipo não estava ao alcance da realidade. A única coisa que era factível era a organização de uma união internacional de Estados e não de um Estado mundial federal. O primeiro passo para se chegar a uma união de Estados, segundo Kelsen, é lograr a assinatura de um Tratado internacional, pela maior quantidade de Estados, criando um Tribunal Internacional que tenha jurisdição obrigatória, submetendo todas as disputas à decisão dele e cumprindo-as de boa fé. A pergunta que segue, então, é a seguinte: o que acontece se um Estado não cumpre com aquilo que foi determinado pelo Tribunal? Pois bem, continuando com a sua linha argumentativa, Kelsen leva sua analogia até as últimas consequências, dizendo que será necessária que uma polícia internacional que faça cumprir as ordens do tribunal. Não obstante isso, continua dizendo que, enquanto não exista um executivo centralizado que crie essa força armada internacional, os Estados, mediante o emprego das suas próprias forças armadas e KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. p. 33. Ibidem, p. 39 232 Essa ideia também é fortemente criticada por Danilo Zolo para quem o “globalismo jurídico” implica uma espécie de etnocentrismo (europeu e ocidental) que se mostra indiferente a tradições culturais, políticas e jurídicas diferentes da ocidental. (ZOLO, Danilo. Uma crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas...p. 201) 233 Cabe lembrar que o livro foi escrito durante o período de guerras, acontecido entre 1939 e 1945, razão pela qual, poderia ser considerada uma absoluta utopia a conformação de um Estado mundial. 230 231

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com a direção daquele órgão central, poderão fazer com que o Estado inadimplente cumpra. A criação da força armada central seria um dos últimos passos no caminho até a conformação do Estado mundial.

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KANT E KELSEN: INFLUÊNCIAS E DIFERENÇAS NO “GLOBALISMO PACIFISTA”

Dos dois autores que acabamos de apresentar neste breve trabalho não cabe outra conclusão de que resulta evidente a influência que Kant exerceu na teoria de Kelsen sobre o Direito Internacional. No entanto, apesar dessa influência, em aparência bem evidente, apontamos uma diferença substancial entre ambas as teorias. Enquanto para Kant a guerra é um estado natural do ser humano (liberdade sem lei), Kelsen utiliza a guerra para lhe dar uma forma jurídica: a sanção. Os dois autores utilizam uma analogia entre o “doméstico” e o “internacional”. Kant faz uma analogia entre o estado natural em que se encontram os indivíduos antes da conformação de uma sociedade civil e o estado em que se encontram os diferentes povos nas suas relações mútuas internacionais. Kelsen faz uma analogia entre as sociedades primitivas (onde a sanção é aplicada pelo danificado ou “vingança de sangue” e onde a determinação e a aplicação da sanção não se encontram centralizadas) e as relações entre os diferentes Estados no Direito internacional, também primitivo, por apresentar-se semelhante a essa sociedade primitiva. Nos trabalhos analisados, não se pode determinar com clareza o que entende Kelsen por estado de natureza. Isso porque ele parte de uma sociedade jurídica onde existe um Direito, apesar de primitivo. Por outro lado, no livro analisado de Kant, o autor não faz menção a uma sociedade primitiva. Ele parte de um estado natural (o estado de guerra) até a conformação de um Estado civil legal (que

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segue o princípio de que um individuo não está permitido a proceder de modo hostil contra outro, salvo que tenha sido danado por essa pessoa). Kant não explica, claramente, mas parece que as relações que se estabelecem entre os indivíduos sob esse princípio podem ser consideradas uma sociedade primitiva, para logo depois estabelecer uma constituição (jurídica) baseada no direito civil político dos homens de um povo (ius civitas). Para Kant, os Estados, nas suas relações mútuas, podem ser considerados como homens individuais na sua condição natural. Para Kelsen, os Estados, nas suas relações mútuas, podem ser considerados como indivíduos das sociedades primitivas. Nesse sentido, Kant coloca a relação entre os Estados fora de qualquer relacionamento jurídico. Kelsen, pelo contrário, indica que a relação que se estabelece entre os Estados encontra-se regulada pelo Direito, o Direito Internacional geral, que é primitivo. Para Kant, é bem claro indicar os motivos pelos quais os Estados têm de sair do estado natural em que se encontram. No estado natural (de guerra constante, de liberdade sem lei) os povos causam dano uns aos outros. Para acabar com o dano e as hostilidades, a guerra deve acabar para sempre. Para Kelsen, os motivos pelos quais os Estados devem sair do Estado em que se encontram (por estarem regulados por um Direito primitivo) é o fato de se encontrar no Estado moderno o tipo mais perfeito de ordem social, que centraliza o monopólio da força e garante a paz. Mas a pergunta em Kelsen continua vigente: por qual motivo os Estados devem sair do estado primitivo em que se encontram? Por que, se a guerra é considerada uma sanção e a comunidade internacional concorda com isso, os Estados devem sair desse estado primitivo e compor um órgão tão centralizado que chegue a conformar um Estado mundial? Uma resposta que se pode dar para essas perguntas é a seguinte: Kelsen não pretende alcançar uma “paz perpétua”, a ausência de força, para ele, não é possível. O emprego da força entre os

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indivíduos se evita reservando-o para a comunidade. Desse modo, quando ele fala de “paz nacional”, provocada pela conformação do Estado moderno, não quer significar que exista ausência de força no plano interno, mas que existe o monopólio da força. Sua intenção de criar uma paz internacional não pretende significar a ausência completa do uso da força, mas sim que ela seja utilizada por um órgão internacional centralizado. Em Kant, essa mesma pergunta pode ser colocada. Acontece que, seguindo a analogia entre indivíduos e Estados, se do princípio de que a um individuo não lhe está permitido proceder de modo hostil contra outro, salvo que tenha sido lesado por essa pessoa segue a mesma consequência para os Estados: porque seria importante e benéfico sair de esse “estado civil primitivo” onde a guerra é aplicada como resposta a um dano anterior? A guerra é o estado natural (de liberdade sem lei) ou é o método que os Estados encontram para se protegerem? O fato é que ambos os autores se empenham por demonstrar que a situação na que se encontram os Estados nas suas relações mútuas é um estado natural (segundo Kant) ou um estado onde existe um direito primitivo (segundo Kelsen) e que, para garantir a paz é importante sair desses estados. Eis aqui outra diferença entre ambas as teorias. Para Kant, a forma de sair desse estado natural requer, principalmente, o entendimento dos homens para saber que a boa organização do Estado é a forma de neutralizar os efeitos destrutivos de uma liberdade sem lei. A partir desse entendimento, será possível estabelecer entre os diferentes povos, relações mútuas pacíficas mediante a conformação de uma federação de Estados livres. Para Kelsen, a forma de sair do estado primitivo é mediante a técnica de aperfeiçoamento do Direito internacional geral ou, o que é o mesmo, a sua evolução. Contudo, os dois coincidem em que, para sair desses estados, é necessário um processo lento e contínuo. Por último, pareceria existir outra diferença substancial no que diz respeito ao que denominamos aqui de “globalismo pacifis-

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ta”. Isso porque, segundo o que se pode ler no desenvolvimento deste trabalho, Kelsen advoga pela conformação de um Estado mundial, enquanto Kant parece ser contrário à essa ideia. Não obstante essa afirmação não pode ser traçada claramente, já que, Kant não é claro neste tópico e as passagens em que expressa suas ideias sobre a conformação de uma federação de estados livres podem ser interpretadas de vários modos234. Alguns autores sustentam que Kant propôs a formação de um governo mundial, seguindo uma analogia doméstica plena. Um segundo grupo de autores sustenta que Kant propôs a formação voluntária de uma liga das nações, devido à situação cultural e política da sua época (argumento pragmático)235. Nesse sentido, se considerarmos que Kant resistia a qualquer criação de um Estado mundial para continuar intacta a soberania plena dos Estados, encontrar-se-ia uma contradição na sua teoria (não seguindo uma analogia plena), segundo o que foi dito na nota de rodapé 13. Assim, Kelsen viria salvar essa teoria de sua contradição interna, fazendo uma analogia total e levando-a até as últimas consequências. Se considerarmos, ao contrário, que Kant pretendeu marcar um ideal “com a conformação de um Estado mundial”, mas que, na situação atual, não era concebível e, por esse motivo, só seria possível uma confederação de Estados livres, então, Kelsen, em O parágrafo que deu lugar a várias interpretações determina: ‘... para los Estados en relaciones recíprocas no puede haber, según la razón, ninguna otra manera de salir de la condición sin ley, que consiste únicamente en la guerra, que renunciar, como los hombre individuales, a su libertad salvaje (sin ley), acomodarse a un derecho público coactivo y formar, así, un Estado de pueblos (civitas gentium) en aumento constante, que englobaría finalmente a todos los pueblos de la tierra. Pero considerando que, según su idea del derecho de gentes, en absoluto quieren esto –con lo cual lo que es correcto in thesi lo rechazan in hypothesi-, entonces (si es que no todo ha de perderse) en lugar de la idea positiva de una república mundial, sólo el sustituto negativo de una alianza de defensa contra la guerra, permanente y siempre en expansión, puede detener el torrente de las inclinaciones hostiles que le temen al derecho, si bien con el constante peligro de su estallido…” (KANT Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 63). 235 Ibidem, p. 27. 234

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verdade, deu continuidade a essa teoria e indicou o modo como a criação de um Estado mundial pode ser levado à prática jurídica: mediante a evolução da técnica do Direito internacional. Nesse sentido, ambos os trabalhos poderiam ser vistos como uma unidade, em que Kelsen pretende reposicionar o projeto filosófico kantiano no plano da técnica do Direito.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho pretendeu apontar algumas convergências e diferenças entre dois projetos teóricos elaborados em contextos históricos diversos. Os dois, contudo, pretenderam oferecer soluções teóricas para garantir a paz. Para isso estabeleceram uma proposta para que a guerra (o uso da força) não seja utilizada, pelos Estados, como mecanismo para defender ou conquistar um direito. O trabalho, contudo, não teve como objetivo identificar a aplicação prática dessas teorias na atualidade. Fica, dessa forma, para reflexão dos leitores analisarem os benefícios ou não que elas podem trazer para a manutenção da paz. O que se pode apontar aqui é que resulta evidente que ambos os autores pretendiam, com as suas teorias, modificar uma realidade que eles observavam como sendo indesejável atuando, dessa forma, como teóricos políticos normativos. Nesse sentido, Como indica Antonio Valdecantos, o teórico político normativo, “está convencido de que a formulação da sua teoria conduzirá determinado tipo de recepção por uma comunidade de destinatários (a opinião pública, o soberano, certa classe social) que a entenderão da maneira prevista por ele sem distorções nem equívocos e de que essa recepção culminará, caso a teoria triunfe, na aplicação ou execução da teoria por seu grupo receptor, de modo que a organização da sociedade se leve a cabo conforme aquilo que a teoria considerava ser uma sociedade boa ou justa”. Assim, os receptores da teoria têm a capacidade de compreender as teorias e de poder levar à prática seus conceitos.

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Nesse sentido: El actor dramático competente entiende bien el texto de un drama y sabe, por tanto, sobre la acción lo mismo que sabe el autor. Pero el actor tiene el privilegio de alterar el texto en múltiples formas que el autor no podría haber previsto. De modo que el actor sabe lo que sabe el autor y sabe además lo que el propio actor va a hacer con el texto. Las previsiones del autor sobre la conducta de los actores son falibles y precarias, pero las del actor sobre su propio obrar son profecías que pueden autocumplirse. La representación de una obra dramática presupone que los actores obedecen los mandatos del autor, pero también, que éste ha perdido la autoridad sobre su texto: a la hora de actuar, los actores mandan y los autores obedecen. Los usuarios de teorías políticas son actores rebeldes que doblegan a su antojo a los teóricos. (VALDECANTOS, 1996, p. 309)

6 REFERÊNCIAS BOBBIO, N. y ZOLO, D. Hans Kelsen, the Theory of Law and the International Legal System: A talk. In: European Journal of International law 9, 1998, 355-367 HABERMAS, J. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad., George Sperber. Edições Loyola. São Paulo, 2002. KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico. Trad. Macarena Marey e Juliana Udi. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2007. KANT, Immanuel. À paz perpétua. Trad. Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. Trad. Arturo Morão. In: Immanuel Kant. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70. 1988. p. 21-37. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Trad. Florencio Acosta. México: Fondo de Cultura Económica, 1943. KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. Trad. Luis Echavarri. Revisión. Genaro Rubén Carrió. Buenos Aires: Losada, 1946.

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KELSEN, Hans. Princípios do Direito Internacional. Trad. Gilmar Antonio Bedin e Ulrich Dressel. Ijuí: Unijuí, 2010. RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. Martins Fontes. São Paulo, 2004. SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para Tornar a Paz na Europa. Trad. Sérgio Duarte. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 2003. ROUSSEAU, Jean Jacques. Extrato e julgamento do Projeto de Paz Perpétua de Abbé de Saint-Pierre (1756). BATH, Sérgio. (trad.) Rousseau e as Relações Internacionais. São Paulo: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 2003. VALDECANTOS, Antonio. Entre el leviatán y cosmópolis. Kant, Hobbes, la dicotomía hecho/valor y los efectos no intencionados de las teorías políticas. In: ARAMAYO R. Roberto; MUGUERZA, Javier; ROLDÁN, Concha (editores). La paz y el ideal cosmopolita de la ilustración. A propósito del bicentenario de Hacia la paz perpetua de Kant. Madrid: Tecnos, 1996. p. 275-323. ZOLO, Danilo. Una crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. Trad. Pedro Mecardo Pacheco. Univesidad de Granada. Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 36 (2002), p. 197-218. International Peace through International Law. European Journal of International Law. n. 9. 1998, p. 306-324.

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A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos Matheus de Carvalho Hernandez Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados. Doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Bacharel em Relações Internacionais e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista. Coordenador da Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Federal da Grande Dourados. ([email protected])

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O ACNUDH foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU ao final de 1993, iniciando seus trabalhos em 1994. A discussão acerca de sua criação decorreu de recomendação da II Conferência Mundial para os Direitos Humanos da ONU, realizada em junho de 1993. O objetivo deste artigo é compreender os processos e disputas políticas historicamente construídas subjacentes à criação dessa instituição. Diante da lacuna de pesquisa acerca do ACNUDH, as questões que se suscitam são as seguintes: qual é a historicidade do surgimento do ACNUDH? Por que é que um órgão proposto, pela primeira vez, na década de cinqüenta e, posteriormente, na década de sessenta e setenta, só foi criado ao final de 1993? Acredita-se aqui que ele foi criado não somente pelo anseio intra-institucional de maior eficiência procedimental no sistema internacional de proteção aos direitos humanos, mas também pela força que o discurso e a dimensão da efetividade dos direitos humanos atingiram no pós-Guerra Fria, especialmente junto às Organizações Não-Governamentais (ONGs), catalisado pela Conferência de Viena. Com o intuito de problematizar a questão do ponto de vista teórico-metodológico abordar-se-á a análise a partir do Institucionalismo Histórico e de alguns apontamentos ontológicos construtivistas acerca de normas.no ambiente internacional. Palavras-chave: Direitos Humanos – ONU – Organizações Internacionais – Alto Comissariado para os Direitos Humanos.

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Sumário: 1. Introdução. 2. O Institucionalismo Histórico. 3. As tentativas frustradas de criação do ACNUDH. 4. A Conferência de Viena e a criação do ACNUDH. 5. O surgimento do ACNUDH e o Institucionalismo Histórico. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento de uma instituição ainda pouco estudada na Ciência Política, nas Relações Internacionais e no Direito: o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O ACNUDH, liderado por um Alto Comissário, foi aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao final de 1993, iniciando seus trabalhos em 1994. A discussão acerca de sua criação foi levada a essa instância deliberativa da ONU por força de recomendação da II Conferência Mundial para os Direitos Humanos da ONU, realizada em junho de 1993, em Viena – por isso conhecida como Conferência de Viena. A este artigo não interessará diretamente analisar as funções desempenhadas pelo ACNUDH, mas sim compreender quais os processos e, portanto, as disputas políticas historicamente construídas que subjazem a criação dessa instituição. Diante da referida lacuna de pesquisa acerca do ACNUDH, as primeiras questões empíricas que se suscitam, às quais esse trabalho se dedicará, são as seguintes: qual é a historicidade do surgimento do ACNUDH? Ou seja, por que é que um órgão proposto, pela primeira vez, na década de cinqüenta e, posteriormente, na década de sessenta e setenta, só foi criado ao final de 1993? Entretanto, essas importantes questões empíricas acerca do ACNUDH devem ser pensadas como espelhamentos de questões teóricas de fundo a respeito da importância da relação entre as normas e as instituições internacionais de direitos humanos. Nesse senAnais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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tido, a partir de um aporte construtivista, estabelecem-se algumas perguntas. Mas antes de explicitá-las, vale ressaltar que uma forte preocupação da abordagem construtivista é compreender como as normas (no caso aqui, de direitos humanos) constituem os interesses e as identidades dos atores internacionais em casos particulares. Por isso, àquelas perguntas empíricas se vinculam tais indagações teóricas: por que algumas ideias, como os direitos humanos, adquirem autoridade discursiva e institucional no campo da política internacional? Como e por que algumas manifestações coletivas da compreensão humana, não sendo válidas aprioristicamente, tornam-se práticas sociais estabelecidas em sistemas sociais e disseminadas internacionalmente? Com o intuito de problematizar historicamente e de enquadrar metodologicamente essas questões citadas acima, abordar-se-á o surgimento do ACNUDH a partir do Institucionalismo Histórico. Para isso, o artigo se iniciará descrevendo e analisando as categorias e conceitos dessa abordagem teórico-metodológica. Feito isso, passar-se-á a discutir as tentativas frustradas de criação do ACNUDH, bem como a proposta aprovada em 1993 à luz daquelas categorias e conceitos.

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O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO

Antes da exposição a respeito do Institucionalismo Histórico (IH), vale uma observação importante. Na introdução deste trabalho, anunciou-se a adoção da abordagem construtivista. Por isso, o leitor pode se perguntar: por que tratar do IH e não do construtivismo nesta seção teórico-metodológica? A primeira razão de cunho prático diz respeito às limitações de espaço do trabalho neste formato de artigo, o que impede a exposição de ambos aportes. A segunda e mais importante razão é de cunho teórico. O construtivismo tem como peculiaridade seus apontamentos no nível ontológico, e não

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no nível empírico das estratégias de pesquisa (SIKKINK; FINNEMORE, 2001). O construtivismo, diferentemente do realismo, liberalismo e marxismo, não é uma teoria política propriamente dita, mas uma teoria social que trabalha em um nível mais amplo de abstração. Por isso, o construtivismo não produz “automaticamente” explicações e tampouco faz previsões acerca do conteúdo das estruturas ou da natureza dos agentes, mas defende apenas que eles se constituem mutuamente. Na verdade, o construtivismo, tal como a escolha racional, é uma espécie de moldura para pensar a construção da realidade social em âmbito internacional. O conteúdo e os argumentos efetivos são trazidos pela pesquisa, isto é, o construtivismo necessita de outras fontes para se completar em um desenho de pesquisa236. Por isso, os achados e análises a respeito da criação do ACNUDH partem de um ponto de vista ontológico construtivista, mas ganham densidade teórico-metodológica, ainda que essa vinculação esteja em andamento na presente pesquisa, a partir do Institucionalismo Histórico. Sendo assim, diante das limitações de espaço e, por isso, da necessidade de escolha expor questões ontológicas ou questões teóricas, optou-se pela segunda alternativa. Dito isso, debrucemos-nos sobre o Institucionalismo Histórico. O IH se distingue de outras abordagens das ciências sociais pela sua atenção a questões empíricas do mundo real, pela sua orientação histórica e pela sua atenção às formas pelas quais as instituições estruturam e modelam os comportamentos e os resultados políticos. Essa abordagem teórica se mostra bastante pertinente para os fins deste trabalho, uma vez que ela considera as instituições não “Constructivists need methods that can capture the intersubjective meanings at the core of their approach. […] To accomplish this, constructivists have used a variety of tools to capture intersubjective meanings, including discourse analysis, process tracing, genealogy, structured focused comparisons, interviews, participant observation, and content analysis.” (SIKKINK; FINNEMORE, 2001, p. 395).

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apenas como arenas ou “recipientes” nas quais a política se desenvolve, e concede grande importância ao modo específico através do qual uma instituição se constrói237 (SKOCPOL, 1985; STEINMO, 2008; SANDERS, 2006). Ademais, essa abordagem contempla os objetivos do presente artigo na medida em que ela propõe uma metodologia indutiva, e não dedutiva (HALL; TAYLOR, 2003). A intenção deste estudo, apesar das preocupações analíticas, não é necessariamente afirmar um modelo de análise generalizável acerca do surgimento de instituições, mas averiguar o modo específico através do qual o ACNUDH surgiu238. A vinculação das dimensões institucionais e históricas nos permitirá, assim, compreender tanto quais processos históricos e políticos subjazem o surgimento do ACNUDH quanto as razões de ele ter surgido naquele determinado momento (19931994). Outro ponto que singulariza o IH – e também faz dele uma pertinente abordagem para os objetivos deste estudo – são as questões que o caracterizam. O IH dá muita atenção a questões de quem são (ou o que são) os agentes responsáveis por mudanças institucionais, isto é, quem estabeleceu a instituição? Que forças sociais exógenas ou dinâmicas internas são responsáveis por surgimentos ou mudanças institucionais? Segundo Hall e Taylor (2003, p. 196), instituições, para o IH, assim se definem: “[...] procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política. Isso se estende das regras de uma ordem constitucional ou dos procedimentos habituais de funcionamento de uma organização até às convenções que governam o comportamento dos sindicatos ou as relações entre bancos e empresas. Em geral, esses teóricos tem a tendência a associar as instituições às organizações e às regras ou convenções editadas pelas organizações formais”. Interessante observar como o ACNUDH é completamente compatível com essa definição proposta pelo IH. 238 Vale salientar que essa não pretensão de produzir grandes explicações generalizáveis é compartilhada pelo IH e por grande parte dos construtivistas. Os construtivistas modernos, com os quais compartilhamos vários pressupostos, procuram focar mais em explicações de generalização contingente do que em elaborar teorias concorrentes. Por isso, se debruçam sobre problemas e sobre como abordá-los, tal como estamos tentando aqui fazer com o surgimento do ACNUDH. 237

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Essas questões exigem que se recorra à história não apenas como pano de fundo ou cenário para uma investigação acerca das funções desempenhadas por uma instituição, mas como ferramenta analítica. É importante observar que o IH tende muito mais a observar as origens de uma instituição do que suas funções (THELEN, 1999). No caso deste trabalho, o foco é dado ao surgimento do ACNUDH, e não às suas funções, uma vez que elas, além de não serem centrais para as perguntas que mobilizam este estudo, não nos parece deter toda a potencialidade explicativa de tal surgimento. Mas a história também importa ao IH na medida em que os atores ou os agentes podem aprender com a experiência. Por isso, é muito importante ter em vista os momentos em que as propostas de criação do ACNUDH, tenham sido elas frustradas ou exitosas, apareceram na agenda política internacional. Como já dito, um trabalho calcado nessa abordagem, como é o caso deste estudo, não é motivado pelo objetivo de estabelecer um argumento ou uma metodologia necessariamente generalizável, mas sim pelo objetivo de responder e problematizar questões empíricas do mundo real (STEINMO, 2008). Daí por que faz todo o sentido, ao se perguntar a respeito do surgimento do ACNUDH, retornar aos processos de construção dessa instituição, uma vez que é por meio desse retorno, que tem sua base (sua pergunta mobilizadora) no presente, que os nexos causais aparecerão e, eventualmente, abrirão novas agendas de pesquisa. Um outro elemento que caracteriza o IH e que é de grande valia para compreender o processo histórico de criação do ACNUDH é a ideia de que surgimentos e mudanças institucionais são de difícil realização. Isso ocorre, muitas vezes, por que uma instituição está incorporada em um conjunto maior de instituições. Por conta disso, é provável que haja resistências significativas à mudança por parte de alguns atores (STEINMO, 2008). Em termos conceituais, a construção da trajetória de uma instituição é vista por essa abordagem como a efetivação de passos em uma direção particular (path depen-

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dent ou trajetória dependente). Esses passos podem induzir a movimentos adicionais na mesma direção, e, com isso, podem aumentar os custos de abandonar um caminho (político e institucional) já traçado ou de modificá-lo239 (THELEN, 1999). Em processos de emergência e desenvolvimento institucional, como é o caso do ACNUDH, o “quando” um evento ocorre pode ser crucial (PIERSON, 2000). Segundo Fioretos 2011, p. 371), […] historical institutionalism considers attention to temporality crucial for analytical reasons, since later events are conditioned by earlier ones (not simply the constellation of interests and constraints at the moment), but also in substantive terms because it redefines the disciplinary object from one directed at the study of stationary outcomes to one focused on explaining diverse and dynamic processes of institutional development.

Nesse sentido, a ideia de momentos críticos ganha importância. O IH trabalha com argumentos a respeito de momentos cruciais fundantes de uma formação institucional (critical junctures). Esses momentos são de grande importância na medida em que geram algum tipo de ruptura. Esses momentos de ruptura se caracterizam pela produção de mudanças institucionais, criando “bifurcações” que levam ao desenvolvimento de uma nova trajetória institucional. Por último, as ideias no IH são diferentes de preferências (como define a Escolha Racional) e de consciência das regras (como sugere o institucionalismo sociológico). O IH não se importa tanto com o fato de elas serem abstrações ou não das preferências individuais. O IH se importa muito mais é com o fato das ideias (como os

Uma série de elementos do longo processo de negociação e criação do ACNUDH poderiam ser trabalhados a partir da trajetória dependente: a dúbia posição do Alto Comissário enquanto ombudsman ou burocrata, sua atuação a partir da diplomacia silenciosa como herança da Guerra Fria, o respeito ao princípio da soberania, o baixo orçamento do ACNUDH como legado dos esparsos recursos do Centre for Human Rights, a decisão do ACNUDH ser liderado por uma única pessoa e não por um colegiado, dentre outros.

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direitos humanos) serem forças mobilizadoras da ação coletiva por grupos que querem criar ou mudar instituições.

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AS TENTATIVAS FRUSTADAS DE CRIAÇÃO DO ACNUDH

Esta seção cuidará de discutir bastante sinteticamente as tentativas fracassadas de criação do ACNUDH. Antes de entrar nessa discussão, é muito importante salientar que há pouquíssimos estudos produzidos a respeito dessas tentativas. A grande exceção é o livro de Roger Stenson Clark, de 1972, resultado de seu doutorado na Universidade de Columbia (EUA). Além dessa obra, resoluções da ONU na tentativa de reconstruir os processos de idas e vindas políticas e institucionais em torno da criação do ACNUDH foram utilizadas. A despeito da importância posterior das ONGs, a primeira iniciativa para a criação do ACNUDH veio de um Estado (a França), em 1947, durante a elaboração da Declaração Universal (UN, 1947)240. Ainda em 1950, a sugestão de criação do ACNUDH foi assumida pelo governo do Uruguai (NOWAK, 2009). A proposta foi apresentada sobre a base de um Alto Comissário único, mas poderia, segundo Clark, ser adaptada ao esquema com um Comissário central e vários regionais (CLARK, 1972). Tal como a proposta de 1947, a proposição uruguaia não obteve muito apoio, nem mesmo do Secretário-Geral (UN, 1955). Mas na década de sessenta, o debate se reacende com a proposta encabeçada pelos EUA (BLAUSTEIN, 1963). A partir de 1964, o interesse das ONGs tornou-se um fator de extrema relevância para a sobrevivência da proposta. Elas realizaram um pronunciamento conjunto em favor do ACNUDH e um esboço de uma resolução da Assembleia Geral. A circulação desse Após a decisão da Assembleia Geral de criar o Alto Comissariado para os Refugiados em 1949, a Consultative Council of Jewish Organizations trouxe uma nova proposta, redigida por Robert Langer. A proposta de Langer previa que o Alto Comissário para os Direitos Humanos fosse uma espécie de promotor ou defensor público internacional.

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esboço acendeu os lobbies governamentais. Logo no início de 1965, o governo da Costa Rica introduziu a proposta de criação do ACNUDH, mas a pauta terminou não sendo debatida com profundidade (CLAPHAM, 1994). O fórum seguinte no qual o ACNUDH foi debatido foi o Seminário sobre Direitos Humanos em Países em Desenvolvimento, que ocorreu em Dakar, Senegal, em fevereiro de 1966. Segundo Clark (1972), mais significante do que qualquer contribuição que o Seminário possa ter tido para o conteúdo foi sua composição: 23 países africanos e observadores da França, URSS, EUA e um grupo de ONGs. A partir daí, no início de 1967, um Grupo de Trabalho foi montado e produziu um relatório e um esboço de estatuto estabelecendo o ACNUDH (UN, 1966). Dentre os vários pontos debatidos pelo GT, um deve ser destacado: a proposição de um painel de consultores especialistas (experts) para auxiliar o Alto Comissário. Essa proposta representou a conciliação entre duas visões divergentes: uma minoria dos membros do GT que eram favoráveis a um corpo colegiado em vez de um único oficial e uma maioria que preferia a segunda opção. A Comissão de Direitos Humanos considerou o relatório do GT ao final de sua sessão de 1967. O representante soviético circulou uma carta alegando que omissões e equívocos estavam contidos no estudo do Secretário-Geral. Na sua visão, o estudo e o relatório do GT tinham se concentrado em argumentos que a priori justificavam a desiderabilidade da criação do cargo. Ele ainda disse ver como surpreendente que o GT não tivesse considerado a adoção, em 1966, dos Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (UN, 1967). Embora diante dessa e de várias outras críticas, a proposta do GT conseguiu ser aprovada dentro da Comissão por vinte votos a sete, com duas abstenções. Depois de várias tentativas e passados dez anos, em 1977, o projeto saiu da Comissão de Direitos Humanos e foi para a Assem-

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bleia Geral241. Segundo Boven (2002), um dos principais fatores para a proposta de criação do ACNUDH ter voltado à agenda da ONU no final dos anos setenta foi a chegada de Carter à presidência dos EUA. Outros fatores também devem ser levados em conta. Os dois pactos haviam acabado de entrar em vigor (1976). Entretanto, a atenção da ONU não estava focada tanto nos procedimentos de implementação desses pactos, mas sim nas violações massivas de direitos humanos ligadas ao apartheid, racismo e discriminação racial, dominação colonial, etc. Além disso, novos conceitos emergiam na agenda dos direitos humanos, com forte destaque para a demanda dos países do terceiro mundo, como o direito ao desenvolvimento e o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional e procedimentos decisórios mais equânimes. Outras demandas do terceiro mundo se focavam na interdependência e na indivisibilidade entre direitos civis e políticos e econômicos, sociais e culturais. Praticamente todas essas demandas apareceram na resolução de 1977, de forma a atrair os países do terceiro mundo para o projeto de criação do ACNUDH. Essa proposta também não conseguiu aprovação porque muitas delegações e o próprio secretariado geral temiam que o ACNUDH fosse entrar em choque com sua atuação, especialmente pelo tradicional papel do Secretário-Geral na condição prestigiosa de “personificação” da ONU em negociações internacionais. A última tentativa de criação do cargo durante a Guerra Fria aconteceu na primeira metade da década de oitenta, com destacado apoio dos EUA e de delegações latino-americanas e africanas. Apesar dessa forte mobilização da delegação norte-americana na Comissão de Direitos Humanos e dos outros apoios, o Departamento de Estado e outras potências ocidentais, diante da resistência de alguns países (Cuba, Índia, Paquistão), concluíram que a proposta não sai Naquele momento, já havia alguns poucos mecanismos de direitos humanos da ONU desenvolvidos: a Resolução 1503, desde 1970, já envolvia a Comissão de Direitos Humanos e sua Subcomissão em debates confidenciais a respeito de violações; e, em 1977, o Comitê do Pacto dos DCP começava seus trabalhos, examinando relatórios dos Estados-parte (FLOOD, 1998).

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ria vitoriosa naquele momento e optaram por não levá-la à votação na Comissão. Ao longo dos aproximadamente dez anos subseqüentes, a pauta acabou sendo eclipsada dentro da Comissão. Além disso, o Comitê de Direitos Humanos e o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais começaram, naquele período, a supervisionar os dois pactos e outros comitês foram estabelecidos para supervisionar outros tratados. Os mecanismos temáticos – GTs e relatores especiais – que podiam receber complaints também foram criados e os relatores por países foram apontados pela Comissão de Direitos Humanos (ALSTON, 1997). Elencar o desenvolvimento desses mecanismos é importante por dois motivos. Primeiro por que o desenvolvimento de tais iniciativas parece ser um dos principais fatores, juntamente com a entrada em vigor dos dois Pactos em 1976, a serem considerados quando se percebe como a criação do ACNUDH, do fim dos anos setenta ao fim da Guerra Fria, perde a importância relativa dentro da agenda internacional de direitos humanos. Por outro lado, ter em mente o desenvolvimento gradual de todos esses mecanismos de fiscalização internacional dos direitos humanos é vital para compreender a diferença entre o contexto da década de oitenta, quando a proposta de criação do ACNUDH perdeu força relativa, e o contexto do início da década de noventa e de realização da Conferência de Viena. Vale ressaltar que em matéria de mecanismos institucionais de direitos humanos no âmbito da ONU, o início da década de noventa se caracterizou pela complexidade institucional e foi quando, de fato, o ACNUDH teve sua proposta de criação aprovada, tema da próxima seção.

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A CONFERÊNCIA DE VIENA E A CRIAÇÃO DO ACNUDH

Depois de várias tentativas, a proposta de criação do ACNUDH conseguiu sua aprovação ao final de 1993. Mas, a análise desse

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momento deve ser realizada em relação com a Conferência de Viena. Isso porque a Conferência se tornou espaço e estímulo para a mobilização de uma série de propostas no campo dos direitos humanos até então encapsuladas pela lógica da Guerra Fria. A proposta de criação do ACNUDH, que, segundo Nowak (2009), foi a de maior visibilidade nos meios de comunicação, chegou à Conferência de Viena através da Anistia Internacional, o que já sugere a importância da participação das ONGs na Conferência. Já no processo preparatório, a proposta foi encampada pela Reunião Regional Latino-Americana e Caribenha e pelas potências ocidentais, com destaque para os EUA (LAATIKAINEN, 2004). Os apoiadores da proposta justificavam a criação de um ACNUDH pela necessidade de maior coordenação e contato na matéria de direitos humanos. Vale dizer que a busca por maior coordenação e articulação entre os diversos órgãos da ONU era um dos principais objetivos da Conferência. A proposta era objetada, por sua vez, por muitos países não-ocidentais, com destaque para os propagadores do debate dos Valores Asiáticos, pois a viam como uma forma de privilegiar a fiscalização exclusiva dos direitos civis e políticos (em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais) e como possibilidade de ingerência ocidental intrusiva em suas respectivas soberanias (ALVES, 2001). A falta de consenso sobre o ponto permaneceu até o final do evento. Não havendo solução, o Plenário da Conferência se viu obrigado a encaminhar a proposta para a Assembleia Geral colocando-a como prioritária (UN, 1993). Assim, a proposta, mobilizada pela Anistia Internacional, foi aprovada por consenso em Nova York, na Assembleia Geral da ONU, em 20 de dezembro de 1993242 (BRETT, 1995; LAWSON, 1996). A missão do ACNUDH foi assim sintetizada por Schöfer: “The mandate of OHCHR is to promote and protect the enjoyment and full realization, by all people, of all rights established in the Charter of the United Nations and in international human rights laws and treaties. The mandate includes preventing human rights violations, securing respect for all human rights, promoting international cooperation to protect human

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Segundo Alston (1993), aquelas tentativas frustradas haviam apenas sedimentado a oposição de muitos governos em relação à proposta, temerosos quanto à interferência em suas questões domésticas, em relação a um programa de direitos humanos da ONU mais efetivo e intrusivo, e em relação a uma agenda supostamente ocidental estritamente. Essa impressão teria ficado mais forte quando a proposta não foi acordada em Viena e foi postergada para a Assembleia Geral seguinte. Segundo Alves (2003), o consenso foi obtido porque as delegações não-ocidentais discordantes perceberam que a criação do cargo não constituiria uma ameaça às suas soberanias. De acordo com Alston (1997), alguns fatores ajudam a explicar como se conseguiu aprovar e criar o ACNUDH naquele momento: a campanha articulada das ONGs, liderada pela Anistia Internacional; o apoio pela administração Clinton; apoio homogêneo dos países da Europa do leste e central; e a habilidosa negociação diplomática, sobre a qual Ayala Lasso, primeiro Alto Comissário, exerceu um papel de grande influência. De acordo com Ayala-Lasso (2002; 2009), Ramcharan (2002) e Magazzeni (2009), a Conferência de Viena funcionou como uma base a partir da qual as reformas dos métodos da ONU em matéria de direitos humanos se fundamentaram, com forte destaque para o Alto Comissariado para os Direitos Humanos243. rights, coordinating related activities throughout the United Nations, and strengthening and streamlining the United Nations system in the field of human rights.” (SCHÖFER, 2009, p. 405). 243 De acordo com Nowak (2009), “The establishment of the Office of the High Commissioner for Human Rights (OHCHR) constitutes the most important structural result of the Vienna World Conference on Human Rights.” (NOWAK, 2009: p. 106). Segundo Schöfer, “[...] the OHCHR, established as a result of the VDPA in 1993, represents the international community’s main focal point for the protection and promotion of human rights.” (SCHÖFER, 2009, p. 395). Kyung-wha Kang, Alto Comissário interino entre 1º de julho e 1º de setembro de 2008, também afirmou: “The Vienna Conference is of particular significance to all of us at OHCHR [Office of High Commissioner for Human Rights], for it was the Vienna process that gave concrete voice to the long-standing wish of the human rights community to create the post of the UN High Commissioner for Human Rights. Those who were directly involved in the Vienna process […] recall that the issue of creating the post of the High Commissioner was an undercurrent of controversy

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Apesar da importância da questão da eficiência procedimental no sistema internacional de proteção aos direitos humanos, não nos parece que esta seja a única e, tampouco, a principal motivação do surgimento do ACNUDH. O regime internacional dos direitos humanos até o final da Guerra Fria sofria de um condicionamento fruto da disputa bipolar. Todos os debates a respeito da efetividade dos direitos humanos eram condicionados por essa disputa, assim como pelo argumento da não-interferência das questões internas, apoiado nas chamadas doutrinas de segurança nacional. O término da Guerra Fria trouxe a possibilidade de que o principal fim do regime internacional dos direitos humanos pudesse ser abertamente debatido: a efetividade de tais direitos (e não apenas a eficiência das instituições e agências que o promovem). A criação do ACNUDH, e a própria realização da Conferência de Viena, ligam-se a esse fim normativo. Aquele contexto do imediato pós-Guerra Fria (assim como posteriormente) assistiu à ascensão não apenas de temáticas sociais em âmbito internacional (direitos humanos, migrações internacionais, meio-ambiente, etc), mas à ascensão internacional das ONGs ligadas a tais temáticas. Nesse sentido, nos parece importante não negligenciar a participação das ONGs, lideradas pela Anistia Internacional, no processo de aprovação do ACNUDH. De acordo com Clapham (1994), o anúncio da realização da Conferência de Viena forçou os envolvidos com direitos humanos a considerarem as fraquezas daquele sistema de proteção e a proporem novas ideias. A partir daí, a Anistia Internacional passou a promover a iniciativa, que se tornou a principal bandeira da organização durante a Conferência. Inicialmente, a ONG se concentrou na reunião regional preparatória africana para a Conferência de Viena, realizada em Túnis, em dezembro de 1992. Nesse mesmo mês, a Anistia puat the Conference, not extensively debated openly but kept alive in the corridors and small group meetings among delegates who were keen not to let the opportunity pass.” (KANG, 2009, p. 65).

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blicou um documento intitulado “World Conference on Human Rights: facing up to the failures: proposals for improving the protection of human rights by the United Nations”. Esse foi um documento preparado pela Anistia no contexto de preparação da Conferência de Viena, integrando a documentação de seu processo preparatório e, assim, portanto, circulando entre os atores envolvidos nesse processo preparatório: delegações de Estados, outras ONGs e a ONU. A ONG ressaltou a necessidade da ONU criar novos mecanismos de direitos humanos e reforçar aqueles já existentes a fim de garantir maior efetividade a tais direitos. A principal proposta desse documento foi a criação de um Comissário Especial para os Direitos Humanos, que viria a se constituir no ACNUDH posteriormente. Inseridas nessa demanda por efetividade dos direitos humanos, a Anistia colocou uma série de demandas mais específicas. Todas elas foram mobilizadas pela ONG para justificar a criação do ACNUDH. Praticamente todas elas foram debatidas em Viena e, finalmente, foram incorporadas ao mandato e à estrutura institucional do Alto Comissariado244, demonstrando toda a importância do trabalho das ONGs, lideradas pela Anistia Internacional, para a criação do posto. Ao contrário do que advoga atualmente, naquele momento a Anistia afirmou que o ACNUDH não precisaria de uma grande equipe de apoio, uma vez que ele implementaria os programas já inseridos em Genebra. Fica claro como a Anistia queria um cargo de alto prestígio político e com clara inclinação gerencial e não tanto um novo órgão. Isso, em certa medida ocorreu, pois o ACNUDH não é exatamente uma agência da ONU, tanto é que está submetido ao Secretariado245. “It is clear that, in order to address the complexity and range of pressing human rights issues still confronting the international community today, a major new initiative is needed. Amnesty International is proposing that this need could be met by the establishment of a UN Special Commissioner for Human Rights.” (ANISTIA INTERNACIONAL, 1992, p. 4). 245 Nos seus primeiros anos de existência, de fato, o ACNUDH possuía uma atuação mais gerencial, mais voltada à coordenação. Entretanto, com o amadurecimento de sua tra244

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Mais uma vez dois pontos ficam claros. O primeiro deles é que a Anistia (e ao que parece a criação do ACNUDH teve realmente este enfoque) via o Comissário Especial como um elemento de racionalização institucional das políticas de direitos humanos da ONU em prol da efetividade desses direitos, isto é, ele seria o responsável por coordenar tais políticas desde o mapeamento de problemas e formulação de políticas, passando pelo acompanhamento e envolvimento na execução até a mensuração e publicização da efetividade e do impacto de tais políticas. O segundo elemento sempre presente na argumentação da ONG, e que claramente a favorece politicamente, é de que o novo mandatário deveria sempre levar em conta as contribuições das ONGs na produção de suas análises. Além de cobrar tal consideração, a Anistia afirma que as ONGs deveriam também vir a ser beneficiárias dos programas de assessoria. A AI também dá grande destaque para a negligência com o direito ao desenvolvimento, apesar da existência da Declaração de 1986, em que se ressalta a vinculação estreita entre direitos humanos e desenvolvimento. Vale lembrar que essa vinculação viria a ser uma das grandes marcas de Viena (juntamente com a democracia, formatando o chamado 3D), o que, consequentemente, tornaria o direito ao desenvolvimento como um dos principais focos de proteção do ACNUDH. Enfim, o papel da Anistia Internacional e de uma série de ONGs articuladas ao redor dela foi determinante para a inclusão da proposta do ACNUDH no documento final de Viena246. Mobilizando o discurso da necessidade premente de efetividade dos direitos humajetória institucional – algo que foge ao escopo deste artigo – ele deixou de ser simplesmente uma autoridade independente em relação à estrutura da ONU e passou a ser um formulador de alto nível de políticas de direitos humanos inserido e integrante da hierarquia burocrática da ONU (BOVEN, 2002). 246 O relatório do Fórum das ONGs, relatado por Manfred Nowak, de 14 de junho de 1993, assim recomendou sobre o ACNUDH: “An office of a High Commissioner for Human Rights should be established as a new high-level independent authority within the United Nations system, with the capacity to act rapidly in emerging situations of human rights violations and to ensure the coordination of human rights activities within the

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nos (e não apenas um discurso voltado à eficiência institucional), ela imprimiu muita pressão nas negociações de Viena (BOVEN, 2002). A proposta também foi – ainda que mais timidamente quando comparada à mobilização da Anistia – incorporada pelas delegações latino-americanas, que realizaram sua reunião preparatória na Costa Rica. Além disso, a proposta de criação do ACNUDH foi seriamente discutida pelos governos no encontro inter-regional de especialistas em direitos humanos, promovido pelo Conselho da Europa em Estrasburgo, em janeiro de 1993. Com toda a pressão, especialmente vinda das ONGs, a Declaração e Programa de Ação de Viena recomendou que a questão da criação do ACNUDH fosse considerada altamente prioritária na Assembleia Geral posterior, ao final de 1993. De junho a dezembro de 1993, portanto, abriu-se um novo período para negociações diplomáticas e pressões políticas. Mais uma vez, a Anistia Internacional, juntamente com outras ONGs teve papel imprescindível nesse processo247. Em outubro de 1993, a Anistia, a Human Rights Watch, a International Federation for Human Rights, International Human Rights Law Group, International League for Human Rights e Lawyers Committee for Human Rights fizeram um pronunciamento conjunto estabelecendo quais seriam os desafios com os quais o ACNUDH deveria lidar (CLARK, 2002). Nesse mesmo mês, a Anistia elaborou outro documento intitulado “United Nations: a High Commissioner for Human Rights: time for action.”. Esse documento foi uma das maiores expressões do lobby feito pela ONG em relação à causa do ACNUDH. A grande preocupaUnited Nations system and the integration of human rights into all United Nations programmes and activities.” (NOWAK, 1994, p. 78). 247 Conforme Clapham (1994), muitas ONGs do mundo todo entraram em ação nesse momento. A NGO Liaison Committee, formado em Viena, mobilizou redes regionais de ONG de maneira que elas pudessem debater a questão com seus respectivos governos. Clapham ainda destaca o esforço que foi feito para que representantes de ONGs de países do sul pudessem ir até Nova York e mostrar que a demanda por um Alto Comissário para os Direitos Humanos não era apenas uma demanda das potências ocidentais.

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ção da AI diante das discussões é que se decidisse criar o cargo sem assegurar o mandato e autoridade necessária ao posto de maneira que ele fosse capaz de satisfazer as reais necessidades do sistema de direitos humanos da ONU. O que mais chama a atenção no documento é que ele condiciona diretamente a execução e o êxito concreto das recomendações de Viena à criação do posto de Alto Comissário, ou seja, ele seria uma espécie de continuador das reflexões de Viena, zelando pela implementação e monitoramento daquelas deliberações materializadas em seu documento final (ANISTIA INTERNACIONAL, 1993). Alston (1997) argumenta que a formulação aberta da Resolução 48/141, de criação do ACNUDH, possuía todas as vantagens e desvantagens de um típico compromisso diplomático multilateral. Ela teve que responder a cada uma das principais lacunas identificadas pelos grupos mais importantes, os quais esperavam que a criação do ACNUDH viesse a solucionar a questão do direito ao desenvolvimento, o papel de coordenação do sistema de direitos humanos da ONU, a capacidade de resposta diante das violações e o fortalecimento do secretariado da ONU. Mas essa combinação de fatores não criou um todo coerente e tampouco deixou clara quais seriam a atuação e o papel do ACNUDH. Conforme Alston, estas questões tiveram seus esclarecimentos condicionados à prática, sujeitas à ponderação de pressões competitivas, ao curso dos acontecimentos políticos, à personalidade do Alto Comissário e às suas relações com seus pares no Secretariado, nos governos e com seu superior, o Secretário-Geral. Uma questão da negociação de criação do ACNUDH tornou-se muito mais decisiva em 1993 do que nas tentativas anteriores: a questão de quais direitos o ACNUDH iria promover e proteger. E sua resolução deixa evidente, inspirada claramente na Declaração e Programa de Ação de Viena (DPAV), que o ACNUDH deve promover e proteger todos os direitos humanos. A resolução frisa a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação e

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ressalta a importância da promoção do desenvolvimento sustentável e da garantia do direito ao desenvolvimento. A inclusão inequívoca dos direitos econômicos, sociais e culturais e do direito ao desenvolvimento na resolução de criação do ACNUDH deve-se, em grande parte, aos debates da Conferência de Viena trazidos pelos países em desenvolvimento. Essa inclusão é de suma importância para compreender esse processo de criação. O ACNUDH, cuja sede principal está em Genebra e o Escritório em Nova York, afora ser um secretariado dos órgãos de fiscalização de tratados (Comitês de Tratados), tem como objetivo, segundo seu mandato, promover e proteger o exercício dos direitos humanos para todos os indivíduos; exercer um papel ativo na remoção dos atuais obstáculos à realização dos direitos humanos, impedindo a continuidade de violações; e coordenar as atividades de promoção e proteção desses direitos no sistema ONU248. O ACNUDH, que no organograma institucional da ONU está na alçada do Secretariado-Geral, é chefiado por um Alto Comissário. Observe-se que a visão de que o tal cargo deveria ser ocupado por uma única pessoa e não por um colegiado foi vitoriosa. O primeiro Alto-Comissário foi José Ayala-Lasso (1994-1997), seguido por Mary Robinson (1997-2002), Sérgio Vieira de Mello (2002-2003), Bertrand Ramcharan (2003-2004), Louise Arbour (2004-2008) e, desde setembro de 2008, Navanethem Pillay249. É interessante notar que a criação do cargo não era do agrado do então Secretário-Geral da ONU, Boutros-Ghali250. Quando a cria O ACNUDH se compõe de 4 divisões, as quais refletem suas temáticas prioritárias e seus nichos de atuação: Direito ao Desenvolvimento & Pesquisa; Tratados e Conselho de Direitos Humanos; Procedimentos Especiais e Operações de Campo. Essa última comporta onze escritórios nacionais, dez escritórios regionais e dois centros regionais de direitos humanos. 249 O Alto Comissário para os Direitos Humanos é indicado pelo Secretário Geral da ONU e aprovado pela Assembleia Geral, levando-se em conta um critério de rotação geográfica. 250 Essa postura reticente de Boutros-Ghali era, de certa forma, contraditória com seu discurso a respeito da necessidade de reforma da ONU, especialmente por conta da ineficiência da organização em responder rapidamente a situações de altas violações de direitos humanos. 248

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ção efetivou-se, Boutros-Ghali, segundo Alston (1997), apontou um diplomata cuidadoso – Ayala Lasso251 – com baixa credencial em matéria de direitos humanos e com um histórico de oposição a qualquer consideração da matéria pelo Conselho de Segurança. Durante todas as negociações para a criação do ACNUDH, os Secretários-Gerais da ONU não se mostraram fortes apoiadores da proposta. Um dos motivos é que temiam que a ascensão dos direitos humanos dentro da organização pudesse atrapalhar o cumprimento de suas tarefas, cujo principal interesse é manter boas relações com os Estados-membros da organização. O ACNUDH sempre foi visto por eles como um potencial competidor e causador de embaraços políticos internacionais. Como dito na introdução, o foco deste trabalho está no surgimento e não no desenvolvimento da trajetória institucional do ACNUDH. O que o mobiliza é investigar o que explica o surgimento do ACNUDH naquele contexto de imediato pós-Guerra Fria, tendo em vista as iniciativas anteriores frustradas, e em que medida esse processo de institucionalização reflete uma ascensão dos direitos humanos, pensados como normas. Com essa pergunta está se colocando em discussão as motivações de tal surgimento. Tendo feita nesta e na seção anterior uma brevíssima exposição da trajetória histórica das negociações, na seção seguinte analisar-se-á essa trajetória de criação do ACNUDH à luz dos conceitos trazidos pelo Institucionalismo Histórico.

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O SURGIMENTO DO ACNUDH E O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO

O objetivo da presente seção é abordar o processo de criação do ACNUDH a partir de um enfoque que historicize essa trajetória que deu origem à instituição da qual nos ocupamos neste artigo. Ao Ayala Lasso, então Representante Permanente do Equador na ONU e ex-Ministro das Relações Exteriores, foi nomeado Alto Comissário em fevereiro de 1994 e assumiu o posto em 5 de abril do mesmo ano.

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contrário de tentar fazer afirmações categóricas e definitivas desse processo a partir dessa abordagem, nos ocuparemos de esboçar algumas vinculações entre a trajetória de criação do ACNUDH e o Institucionalismo Histórico que nos parecem frutíferas. Insere-se o intento no campo da “tentativa” ou do “esboço” pelo fato de ele se colocar em um “duplo ineditismo”. Primeiro, porque o ACNUDH foi e é objeto de raros estudos. Segundo, porque o Institucionalismo Histórico, abordagem bastante disseminada no campo da Ciência Política, ainda foi pouco utilizado nas RI quando comparado aos seus congêneres de matriz sociológica e da escolha racional. A compreensão do processo histórico auxilia a observação das fronteiras temporais que caracterizam as relações causais. Sabe-se, por exemplo, que toda a mobilização pela criação do ACNUDH no pós-1945 tem influência para o seu surgimento em 1993 e, de certa forma, constituem relações causais para entendê-lo. Porém, não se pode alinhá-las como variáveis independentes ou fatores explicativos do que seria a variável dependente (surgimento do ACNUDH), uma vez que elas são separadas por contextos temporais diferentes (STEINMO, 2008). A esse olhar crítico do IH para a ideia de causalidade, se complementa, no presente trabalho, a concepção de causalidade trazida pelo construtivismo. Nessa abordagem ontológica a causalidade está muito ligada à ideia de constituição social ou construção social. E trazer à tona esses processos, tal como brevemente feito nas duas seções anteriores, não implica em um esforço meramente descritivo, pois ao compreender como as coisas se constituem está se dando um passo explicativo importante para entender como elas se comportam ou ainda de que maneira causam determinados resultados políticos (WENDT, 1998; BARNETT; FINNEMORE, 1999). Complementando o comentário feito na introdução, é por ter dentro de si (pelo menos de algumas de suas versões) algum traço de causalidade, que a abordagem construtivista permite a construção de pesquisas empíricas voltadas relativamente à problematização de causas, tal como esta que aqui se apresenta.

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Enfim, é imprescindível recorrer à historicidade do processo de surgimento do ACNUDH, uma vez que os eventos políticos ocorrem em contextos históricos específicos e não isolados. Esses contextos tem, muitas vezes, conseqüências diretas sobre as decisões e os eventos. As várias postergações da Assembleia Geral para a criação do ACNUDH refletem um contexto de Guerra Fria, no qual os direitos humanos se encapsularam em uma disputa ideológica. Essa disputa refreou o avanço da proteção internacional desses direitos e os situaram muito mais na dimensão promocional do que de efetividade. Daí por que argumentos a respeito das doutrinas de segurança nacional e da exclusividade jurisdicional levantadas pelos Estados aparecerem com tanta recorrência no processo de criação do ACNUDH. Mesmo a não aprovação do posto durante a Conferência de Viena também deve ser analisada mediante o contexto de ascensão de argumentos “culturalistas”, especialmente vindo dos países asiáticos, que contestavam a formatação ocidental dos direitos humanos (especialmente a ênfase nos direitos civis e políticos) e argumentavam em favor de concepções locais de tais direitos (dentro das quais os direitos econômicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento ganhavam destaque). Outro ponto ao qual nos remetemos é a importância dada pelo IH ao processo de aprendizagem dos atores e agentes por força da experiência. É bastante relevante ter em vista o contexto específico em que a proposta de criação do ACNUDH voltou à tona no início dos anos noventa. O fim da Guerra Fria, o “descongelamento” da ONU e seus projetos de reforma e a ascensão internacional das ONGs não são apenas cenários de fundo pra criação do ACNUDH, mas elementos que, quando articulados, tornam-se explicativos dessa ocorrência. Elementos que não surgem simplesmente. Como visto, as aspirações a um sistema internacional de direitos humanos mais efetivo já apareciam durante a Guerra Fria, assim como já existiam ONGs, ainda que em número muito menor.

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A ideia de que surgimentos e mudanças institucionais são de difícil realização também nos parece bastante útil para pensar o surgimento do ACNUDH. O seu processo de criação esteve repleto de divergências e reviravoltas que impediram, durante quase cinqüenta anos, seu surgimento. Segundo Steinmo, isso pode ocorrer por alguns motivos. Um deles é o fato de uma instituição, como o ACNUDH, estar incorporada em um conjunto maior de instituições, como é a ONU. Sendo assim, era provável e esperado que tensões e resistências presentes no arcabouço institucional da ONU como um todo se refletissem nas negociações do ACNUDH e, por isso, dificultassem a ocorrência de mudanças significativas, como é a criação de uma nova instituição. Isso pôde ser observado desde a resistência soviética durante a Guerra Fria até as contestações “culturalistas” dos países do sudeste asiático. Outro fator que dificulta, segundo Steinmo (2008), surgimentos e mudanças institucionais é o custo da aprendizagem de novas regras. Atores formam expectativas – instrumentais e normativas – em torno de um conjunto de regras e instituições. Alterá-las traz custos, tanto materiais quanto em matéria de novas imprevisibilidades. Por isso, os atores tendem a ser resistentes a mudanças. À luz dessa série de razões também podemos interpretar as resistências ao surgimento do ACNUDH, já que ele representaria, se criado naquele contexto, e representou, no momento de seu surgimento, uma alteração no sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Deve-se ressaltar que o Alto Comissariado é o principal responsável pelos direitos humanos dentro do arcabouço institucional da ONU, que, por sua vez, tem nos direitos humanos um de seus principais pilares. A ideia de trajetória dependente, de acordo com Thelen (1999), inclui duas dimensões de análise: uma referente a momentos fundantes e a outra ao desenvolvimento das instituições condicionados às suas trajetórias passadas. A ênfase aqui é dada, em um primeiro momento, ao primeiro aspecto, já que o segundo seria

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de maior valia se o objetivo do estudo fosse investigar a trajetória institucional do ACNUDH. Por isso, faz-se bastante pertinente ressaltar a influência da Conferência de Viena ter ocorrido naquele determinado período para o surgimento do ACNUDH (a preparação da Conferência se iniciou em 1990 e sua realização se deu em junho de 1993)252. A Conferência de Viena tornou-se um fórum aberto e plural sobre direitos humanos, quando comparada a outros eventos internacionais anteriores. Assim, foi decisiva, e, portanto, um momento crítico, para a viabilização do ressurgimento e da aprovação da criação do ACNUDH253. Voltaremos a essa questão mais a frente. Apesar de o objetivo se restringir ao surgimento do ACNUDH, pode-se considerar também o segundo aspecto analítico da trajetória dependente, ou seja, todo o processo que antecedeu sua criação como conformadora de algum tipo de trajetória dependente. Pretende-se, com tal consideração, apenas apontar alguns elementos e escolhas presentes nas longas negociações do ACNUDH que vieram a influenciar a formatação dessa instituição. A elaboração do mandato do ACNUDH diante de tantas divergências e de uma diversidade de opiniões acabou gerando escolhas que viriam a conformar a condução de seus trabalhos, especialmente em sua primeira gestão. Como visto, o mandato do ACNUDH Ao refletir sobre os momentos críticos, Pierson afirma: “The necessary conditions for current outcomes occurred in the past. The crucial object of study becomes the critical juncture or triggering events, which set development along a particular path, and the mechanisms of reproduction of the current path – which at first glance might seem commonplace or at least analytically uninteresting.” (PIERSON, 2000, p. 263). 253 Segundo Boven, “As it appeared, in Vienna the ground was prepared for the General Assembly to establish the post of a High Commissioner for Human Rights. However, the terms of the relevant paragraph in the Vienna final document were cautious: [...] begin, as a matter of priority, consideration of the question of the establishment etc.” Moreover, history had proven that the concept of a High Commissioner was fraught with many sensitivities and complexities. It was therefore a small miracle or a large success that the General Assembly at its 48th session on 20 December 1993 adopted resolution 48/141 in which it decided to create the post of the High Commissioner for Human Rights and thus fulfilled a wish cherished for a long time by many human rights activists and defenders.” (BOVEN, 2002, p. 12-13). 252

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tornou-se sintomático da negociação multilateral que o caracterizou: vago e abrangente. Isso não esclareceu qual seria o tipo de atuação e o papel a ser exercido por seu staff. Essa ausência de especificação também justifica sua análise a partir da abordagem do IH, uma vez que diante da imprecisão advinda do compromisso multilateral do qual decorreu, o ACNUDH vem conformando em grande medida sua atuação a partir de suas atividades práticas. Voltando à questão do mandato em si, algo em disputa desde as primeiras negociações de criação do ACNUDH, seu caráter vago teria assegurado, por exemplo, que nenhuma responsabilidade de averiguação de fatos fosse conferida ao mandatário, que o papel de coordenação se mantivesse limitado e impreciso, que a missão de responder às violações fosse apenas uma parte do amplo mandato e que as questões de staff e financiamento não fossem abordadas. A esse caráter vago, que também auxilia a compreender porque o ACNUDH conseguiu ser criado em 1993 mesmo diante de várias resistências, se junta o caráter abrangente de seu mandato. Essa característica, por sua vez, resultou em igual atenção aos conjuntos de direitos – econômicos, sociais e culturais, e civis e políticos – e ao direito ao desenvolvimento. A abrangência do mandato também teria permitido enfatizar o papel do ACNUDH em atividades de educação em direitos humanos, programas de informação pública e assistência técnica. Voltando ao primeiro aspecto analítico da formação da trajetória dependente, qual seja, os momentos críticos, voltamos à Conferência de Viena. Após observar toda a trajetória das negociações do ACNUDH, a Conferência de Viena parece realmente se apresentar como um momento fundante do surgimento da instituição, na medida em que ela expressa as conseqüências específicas do fim da Guerra Fria para os direitos humanos (REIS, 2006). Como já observado, a Conferência pautou-se pela preocupação com a efetividade. Isso em si já se configurou em um forte estímulo por reformas institucionais do sistema de proteção de direitos humanos da ONU. E

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foi a partir disso que a Anistia Internacional se aproveitou do contexto para recuperar a proposta de criação do ACNUDH. Mas apenas apontar a preocupação com a efetividade não seria suficiente para explicar o surgimento do ACNUDH e tampouco para configurar a Conferência como momento fundante do ACNUDH. A caracterização da Conferência de Viena como um momento crítico depende de que se interprete os dissensos nela ocorridos não apenas como discordâncias instrumentais, mas a partir da percepção dos direitos humanos como uma linguagem. Na Conferência de Viena, as delegações periféricas se valeram do espaço para recolocar a discussão sobre os princípios basilares dos direitos humanos de modo a se valer da legitimidade da linguagem dos direitos humanos para contestar as assimetrias do sistema internacional de proteção aos direitos humanos e do próprio sistema internacional como um todo. Foi a partir desta lógica que as delegações dos países periféricos conseguiram associar o debate sobre indivisibilidade e interdependência com a importância dos direitos econômicos, sociais e culturais e do direito ao desenvolvimento. Observe-se que a grande peculiaridade da proposta de criação do ACNUDH de 1993 foi justamente a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais e do direito ao desenvolvimento no mandato da instituição. Começa a fazer mais sentido a abrangência do mandato do ACNUDH. Essa abrangência, recorrentemente criticada pela literatura, decorre não apenas das características das fórmulas das negociações multilaterais, mas justamente do fato de a Conferência de Viena ter alargado e expandido a concepção contemporânea dos direitos humanos, que passou a incluir não apenas os chamados direitos de segunda geração, mas também o direito ao desenvolvimento e os direitos de titularidade coletiva e difusa. O alargamento dessa concepção fomentou reformas institucionais do sistema de direitos humanos da ONU, no qual se inclui o surgimento do ACNUDH, cuja missão passou a ser zelar por essa concepção alargada. Portanto, a

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abrangência do mandato do ACNUDH é fruto de negociações políticas estratégicas, mas também da exigência de legitimidade imposta pela própria estrutura normativa dos direitos humanos (KRATOCHWIL, 1989) e da qual várias ONGs articuladas em rede foram ávidas defensoras254. Mais uma vez em complemento ao IH, o construtivismo parece trazer um interessante olhar para a questão não apenas por considerar de maneira sofisticada os componentes normativos da negociação, mas também por elucidar que o apelo normativo das normas de direitos humanos foi importante na negociação do ACNUDH, na medida em que tal concepção alargada, citada acima, foi importante justamente porque ela funcionou como uma estrutura comum de significados, elemento essencial para a construção de consensos a respeito de acordos e soluções coletivas (KRATOCHWIL, 1989). Se, como afirma Pierson (2000), o desenvolvimento político das instituições é pontuado por momentos críticos (critical junctures) que modelam os contornos básicos da trajetória institucional, diante de todos esses pontos de inflexão, pode-se argumentar que a Conferência de Viena é um momento crítico para o surgimento do ACNUDH, inclusive por que criou condições políticas e normativas para a forja dessa estrutura comum de significados. Isso pode ser defendido na medida em que ela vinculou (e proporcionou enquanto fórum, aberto praticamente de forma inédita para ONGs) a preocupação com a efetividade, fomentando propostas de reforma, ao esforço de ascensão dos direitos humanos como pauta global e como elemento de legitimidade internacional – elementos que sustentaram a legitimidade da proposta de criação do ACNUDH. A partir do olhar construtivista sobre as normas, os direitos humanos parecem se constituir como normas de grande exigência normativa, pois, além de serem dotados em si mesmos de alto grau de legitimidade internacional, essa legitimidade de alta intensidade permite que quase nenhuma razão para descumpri-los goze de legitimidade: “In order to arrive at decisions which are not only based on idiosyncratic grounds but which command assent, such pleas will have to satisfy some formal criteria and certain substantive norms which are widely held in the society. The formal criteria in such a discourse on grievances and obligations largely concern conditions of equality in the claiming process, as well as the acceptance of the no-harm principle as a baseline from which we argue.” (KRATOCHWIL, 1989, p. 9-10).

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Por último, é importante ressaltar a concepção que o IH tem de “ideias”. Como já dito, as ideias no IH não são importantes em abstrato, ou seja, não importa tanto se são preferências individuais ou consciência acerca das regras, mas na medida em que são forças mobilizadoras de ação coletiva de grupos desejosos de criarem ou alterarem as instituições255. Este nos parece ter sido o caso da mobilização das ONGs em Viena e pós-Viena, lideradas pela Anistia Internacional. A Anistia Internacional apoiou seus posicionamentos pró-criação do ACNUDH na dimensão da efetivação dos direitos humanos. Isso não significa, é claro, que a Anistia não tenha ressaltado, inclusive em seus documentos, aqui analisados, a importância da eficiência procedimental. Entretanto, isso vinha sendo o mote desde as primeiras tentativas de criação do ACNUDH, e não surtiu o efeito esperado. O que explica a força da mobilização das ONGs, em especial da Anistia, não foi sua ênfase na necessidade de melhorias nos aspectos meramente procedimentais e institucionais do sistema de direitos humanos da ONU. O que explica tal força é a legitimidade trazida pela mobilização do discurso normativo da efetividade (e não da eficiência), predominante no contexto internacional daquele período.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se colocou dois objetivos articulados. O primeiro deles era explorar o surgimento do ACNUDH, instituição que, apesar de sua importância dentro da estrutura da ONU e de estar vinculada a uma temática-sustentáculo dessa organização, é pouco conhecida Uma das agendas das pesquisas construtivistas é mostrar a força causal independente das normas e das ideias diante dos interesses de atores poderosos. Segundo Keck e Sikkink (1998), as normas de direitos humanos, definidas por elas como a preferência do fraco, tem mostrado momentos de triunfo sobre atores fortes e Estados poderosos. Nesse sentido, é interessante notar a importância da participação da Anistia Internacional no processo, assim como evidenciar que a criação do ACNUDH só se efetivou quando atores menos poderosos do sistema conseguiram colocar suas demandas no mandato da instituição.

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e pesquisada. Tentou-se colocar em discussão a ideia de que o surgimento do ACNUDH tem suas motivações mais ligadas ao projeto da efetividade dos direitos humanos do que simplesmente à meta de trazer mais eficiência procedimental ao regime internacional de direitos humanos. Como visto ao longo do trabalho, a dimensão da efetividade foi eclipsada durante a Guerra Fria. Foi o fim do conflito bipolar que possibilitou maior visibilidade ao tema. Essa maior visibilidade veio diretamente acompanhada pelos projetos de efetividade dos direitos humanos capitaneados especialmente pelas ONGs. Foram esses projetos os grandes mobilizadores da Conferência de Viena, a partir da qual a discussão acerca da criação do ACNUDH voltou à agenda internacional. É importante observar que, como nos lembra Weber, o Estado se define por seus meios, isto é, a força ou a possibilidade de usá-la legitimamente. As temáticas sociais que ascendem internacionalmente com o fim da Guerra Fria, como direitos humanos e meio-ambiente, por exemplo, tem em seus fins (efetividade dos direitos humanos e a preservação ambiental), e não em seus meios seu potencial normativo e mobilizador de lutas políticas. As ONGs e os movimentos sociais, por mais que tenham grandes preocupações com os meios mobilizadores de suas lutas, tem nos fins suas características definidoras. É justamente por força dessa compatibilidade de temáticas e atores que se definem pelos fins, e não pelos meios, que se argumentou ao longo do texto que a explicação acerca do surgimento do ACNUDH deve ser buscada no projeto de efetividade dos direitos humanos, e não simplesmente no anseio por maior eficiência procedimental das instituições do regime internacional dos direitos humanos. Isso significa explicar o surgimento do ACNUDH não meramente por suas funções, mas pelas ideias que legitimaram as lutas políticas que levaram a sua criação. O segundo objetivo decorre da opção teórico-metodológica do presente trabalho, que foi justamente tentar analisar o surgimento

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da referida instituição a partir da abordagem histórico-institucional e de um olhar ontológico construtivista. O fato de o IH trabalhar a partir de uma metodologia indutiva – que, em vez de impor um modelo ou uma metodologia ao objeto, faz as conexões e estabelece nexos causais a partir da historicidade do processo analisado – casa-se muito bem com o fato de o ACNUDH ser objeto de raros estudos no campo das RI. Finalmente, a abordagem histórico-institucional, aqui empregada para discutir o surgimento do ACNUDH, também abre possibilidades para a continuidade deste estudo na medida em que ela permite direcionar o olhar da análise para o desenvolvimento da trajetória institucional do ACNUDH e os eventuais momentos de mudança e continuidade dessa instituição. Nesse sentido, o conceito de retornos crescentes (PIERSON, 2000; THELEN, 1999) e a ideia de reformas graduais (RUGGIE, 2004), ambos característicos do IH, podem ser, tal como os outros mobilizados até agora, de grande valia para essa agenda de pesquisa.

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ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUAS DECISÕES Natasha Karenina de Sousa Rego Mestranda em Direito e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, membro do Observatório de Direitos Humanos. ([email protected])

Resumo: A proteção dos Direitos Humanos, na América Latina, se relaciona ao aprimoramento das instituições democráticas e a construção recente e diuturna da Organização dos Estados Americanos e do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos no pós-Segunda Guerra. O presente estudo busca retratar o comportamento e a evolução destes instrumentos com foco na Corte Interamericana de Direitos Humanos. As sentenças emanadas pela Corte são importantes meios de consolidação do Pacto de San José da Costa Rica, da proteção dos direitos do homem e de reparação de violações a indivíduos. A demanda do cumprimento envolve embates não apenas atinentes ao Direito Internacional como também de Relações Internacionais e confronta pilares do Estado Moderno. Palavras-chave: Direitos Humanos – Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos – Corte Interamericana de Direitos Humanos – Cumprimento – Sentença. Sumário: 1. Introdução. 2. A OEA e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. 3. A Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4. As decisões da Corte IDH. 5. A supervisão e o cumprimento das decisões. 6. Teorias do Direito Internacional e das Relações Internacionais e as sentenças da Corte IDH. 7. As sentenças da Corte IDH e o Brasil. 8. Conclusão. 9. Referências.

1 INTRODUÇÃO Apesar da problemática dos direitos humanos ser antiga, o Direito Internacional dos Direitos Humanos se consolidou em tempo relativamente recente, que data do pós-Segunda Guerra Mundial. A produção teórica, legal e judicial, assim como a discussão prin378

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cipiólogica, assegurariam o total respeito pelos direitos humanos e pela dignidade da pessoa humana se fosse cumprida integralmente. Contudo, os eventos cotidianos no âmbito doméstico e no internacional nos levam a elucubrar sobre o aparente paradoxo que há entre a proliferação de tratados internacionais e as constantes e massivas violações de Direitos Humanos. As violações de Direitos Humanos em âmbito doméstico e internacional têm sido alvo de maior preocupação na segunda metade do século XX e passaram a integrar as agendas internacionais de todos os países. O boom de tratados internacionais e de outros documentos aptos a proteger conjuntos de direitos atesta essa realidade. O surgimento das Nações Unidas é o marco, no Direito Internacional, para a mudança na forma de regulação dos Estados. O empenho dos países vencedores da Segunda Guerra foi fundamental para a criação e consolidação da ONU, vista como apta a garantir uma paz estável e duradoura e evitar o surgimento de novas guerras. Ao mesmo tempo que o modelo prescrito pela Carta prenuncia a humanização e diversos princípios pacifistas, percebe-se que a arquitetura da ONU foi projetada para acomodar as estruturas de poder da época. A estrutura monolítica do Conselho de Segurança e a extrema concentração de poder evidenciam esta realidade. A preocupação dos que defendem a universalização da proteção dos Direitos Humanos se expressa no fato de as violações serem cometidas em geral pelos Estados. A mudança no próprio tratar dos Direitos Humanos enseja a subordinação do direito estatal e a rediscussão do conceito de soberania. Os pilares do Estado Moderno são colocados em check. Consequência desse processo é a mudança paradigmática no que tange a própria proteção dos Direitos Humanos. O sistema global da ONU não é mais o único: Europa, África e América também

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têm consolidados sistemas regionais de proteção dos direitos humanos aptos a lidar de forma mais incisiva com demandas locais e específicas. No que tange a América, continente de culturas democráticas recentes e proteções e violações de direitos humanos díspares, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (a Comissão ou CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (a Corte, ou Corte IDH) têm contribuído positivamente para moldar a conduta dos Estados com base no sistema de petições previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

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A OEA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

No pós-1948, a proteção dos Direitos Humanos passou a figurar nas falas, discursos e ações como tema prioritário. A Carta da Organização dos Estados Americanos, filha deste contexto, foi adotada em 1948 e criou a Organização dos Estados Americanos. Conferências anteriores no âmbito dos estados americanos ocorreram desde 1889, contudo a necessidade de se consolidar esta organização internacional de caráter regional foi apressada pelo fim da Segunda Guerra Mundial. A 9ª Conferência Internacional americana, reunida em Bogotá em 1948, deu estatuto internacional à organização americana por meio da Carta em 30 de abril de 1948 nomeando-a OEA e declarando-a “organismo regional das Nações Unidas” (ACCIOLY, 2009, p. 438) Os capítulos I e II da Carta dispõem sobre os propósitos e os princípios da Organização. Sua principal finalidade é garantir a paz e a segurança do continente seja assegurando a solução pacífica das controvérsias, organizando ações solidárias das repúblicas em caso de agressão e promovendo o desenvolvimento econômico, social e cultural.

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Não é nenhuma coincidência que a Carta da OEA tenha sido assinada juntamente com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem sete meses após a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os trabalhos preparatórios deste documento inspiraram aquele, que trouxe não apenas os direitos como também os deveres do homem. O artigo 112 da Carta da OEA prevê a Comissão IDH que tem por função principal promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultino da OEA no tema. Contudo, apenas 21 anos depois da aprovação da Carta, a necessidade de transferir o dever de proteção a um sistema supranacional levou países-americanos a fortalecerem as bases e as articulações em prol deste intento. A Convenção Americana sobre Proteção dos Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica (Convenção ou Pacto) surge como fruto desse momento: foi aprovada na Costa Rica em 22 de novembro de 1969 para complementar o dispositivo da Carta. Apesar da guerra do Vietnã e dos regimes ditatoriais na América Latina, a Convenção se reuniu na Costa Rita em 1969. Diversas delegações preocupavam-se com os possíveis conflitos entre os dispositivos constitucionais e os artigos da Convenção. Já a delegação estadunidense temia a dificuldade de harmonização dos princípios do common law com os de direito romano. Apesar das preocupações, a Convenção foi assinada e aceitou a ideia de se criar a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte ou Corte IDH). Importante notar que o Estado-membro da Convenção não aceita automaticamente a jurisdição da Corte. Deve manifestá-la expressamente (ACCIOLY, 2009, p. 441). Guardadas as semelhanças e diferenças entre as Declarações e Sistemas Protetivos, ainda é possível se estabelecer uma comparação entre a realidade americana e a europeia. O Sistema americano, diferente do europeu, em virtude dos condições culturais, históricas, sociais e econômicas de seus habitantes, foca nos problemas gerados

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em virtude desta realidade específica e prioriza a melhoria das condições de vida de seus habitantes. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (Sistema ou SIDH) possui dois instrumentos de controle: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, responsável por averiguar denúncias e encaminhar pareceres ao segundo órgão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que deve proceder à investigação dos fatos e posteriormente julgá-los. Se no plano teórico e jurídico estes instrumentos parecem dar conta das demandas locais, no plano prático percebe-se um desconhecimento da população destas formas de defesa e uma estrutura que ainda não dá conta da demanda, o que dificulta a luta contra violações aos direitos humanos nos países do continente americano. A situação controvertida da aplicação do Direito Internacional face às normas de direito interno e do cumprimento das sentenças emanadas pela Corte acentuam o problema. Ainda que um caso de desrespeito aos direitos humanos seja levado a Comissão e chegue a Corte, sua decisão pode não ser cumprida pelo Estado ao alegar que o julgado configuraria um desrespeito à concepção moderna de soberania nacional. Acompanhando as modificações pelas quais passa a nossa sociedade, a OEA tem procurado adotar uma postura mais contundente em relação ao Estados signatários e seus deveres. No entanto, ainda há uma discrepância entre os tratados internacionais, as decisões do SIDH e a atuação dos Estados. Assim, qual o valor normativo da Convenção? Como o SIDH dialoga com os ordenamentos jurídicos pátrios? O processo de redemocratização dos países latino-americanos traz consigo uma nova postura dos países em relação aos Direitos Humanos. Se antes internacionalmente se tinha uma postura absenteísta e internamente de patente desrespeito aos Direitos Humanos, com a redemocratização não apenas o Poder Executivo passa a se pautar por princípios democráticos como também os demais 382

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Poderes e instituições, ao menos no plano teórico. Curioso notar que a Convenção, uma das cartas mais importantes no continente sobre Direitos Humanos, apesar de ter sido adotada em 1969 só foi ratificada pela Argentina em 1984, pelo Uruguai em 1985, pelo Paraguai em 1989 e pelo Brasil em 1992. O reconhecimento jurídico da jurisdição da Corte também demorou e no Brasil só se deu em 1998. Apesar de os países latino-americanos apresentarem uma infinidade de ordenamentos jurídicos com diferentes níveis democráticos, percebe-se a tendência do cuidado e da proteção em matéria de Direitos Humanos. No que tange ao nível hierárquico dos tratados sobre Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, os países latino-americanos apresentam tratamentos diversos, que vão desde o tratamento como lei ordinária à recepção enquanto nível constitucional. No Uruguai, a Constituição de 1967 dispõe que a competência de concluir e celebrar tratados é do Presidente da República e que cabe ao Poder Legislativo analisá-los, aprová-los ou não. A Constituição prevê ainda que a existência de direitos e garantias no seio institucional não exclui outros inerentes a pessoa humana e não prevê tratamento especial para os tratados de direitos humanos que são internalizados com o mesmo nível da legislação infraconstitucional. A Constituição paraguaia de 1992 demonstra grande preocupação com os direitos fundamentais e aduz que os tratados se encontram hierarquicamente superiores às leis emanadas pelo Congresso mas abaixo da Constituição. A Constituição argentina de 1983 – reformada em 1994 – prevê que os tratados que não versem sobre direitos humanos têm status hierarquico superior ao das leis ordinárias enquanto os que tratam de direitos humanos não têm. Na Colômbia, a Constituição – reformada de 2005 – determina que os tratados que vesam sobre Direitos Humanos aprovados pelo Congresso prevalecem sobre a ordem jurídica interna. As constituições latino-americanas têm conferido destaque aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos dife-

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renciando-os em hierarquia dos tratados tradicionais. Esta atitude é louvável porque demonstra a abertura dos ordenamentos jurídicos nacionais aos Direitos Humanos não apenas em discursos mas também em leis e em práticas. A Convenção foi adotada por 25 países que assim se comprometeram a zelar no continente americano pela proteção aos Direitos Humanos.

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A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

No SIDH, à Corte coube o papel de solucionar as questões atinentes à proteção dos direitos humanos. Como órgão de cúpula, a Corte é responsável por sua própria competência. Seu espaço de atuação é bastante amplo o que permite que conheça questões pendentes no âmbito local ou que deveriam ter sido investigadas mas não o foram. Em última instância, cabe a Corte fixar o momento em que houve ou não o esgotamento de recursos internos. Ainda se tem uma compressão equivocada sobre o papel de uma Corte Internacional e sua relação com a soberania de um Estado. A condenação de um Estado perante a Corte IDH se faz em favor dos indivíduos e em prol da defesa dos direitos humanos que representam valores superiores em tese comungados pelo Estado. A Corte é o segundo órgão da Convenção e não da OEA. Sua criação decorre do artigo 33 que dispõe que “são competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos comprimissos pelos Estados-parte nesta Convenção: […] a Corte Interamericana de Direitos Humanos”. Sobre sua composição, aduz André de Carvalho Ramos (RAMOS, 2012, p. 222): A Corte IDH é composta por sete juízes, cuja escolha é feita pelos Estados-partes da Convenção, em sessão da Assembleia Geral da OEA, de uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados. Cada Estado-parte pode propor até 3 candidatos (pode propor apenas um nome), desde que sejam

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eles nacionais do Estado que os propõe ou mesmo de qualquer outro Estado-membro da OEA. Caso o Estado proponha três nomes, pelo menos um dos candidatos deve ser nacional de um Estado diferente do proponente. Os juízes da Corte serão eleitos para um mandato de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez.

Sua competência se concentra em conhecer casos contenciosos quando o Estado demandado tenha formulado declaração unilateral em que aceita a sua jurisdição de acordo com o art. 62 da Convenção que dispõe sobre o dever de o Estado-parte expressar o seu reconhecimento sobre a jurisdição obrigatória da Corte. Assim, os casos julgados dizem respeito das violações sofridas em face do Pacto de San José da Costa Rica. 21 Estados e aproximadamente 550 milhões de pessoas estão sob a jurisdição da Corte. No que tange a legitiminidade, no polo passivo sempre figura o Estado, já que a Corte não é um Tribunal que julga pessoas. Sobre o polo ativo, o art. 61 da Convenção dispõe que somente Estados-parte e a Comissão podem processar Estatos perante a Corte Interamericana, o que deixa os indivíduos refens da provocação de outro Estado ou da Comissão para que suas demandas cheguem à Corte. André de Carvalho Ramos (RAMOS, 2012, p. 225) dispõe, citando Cançado Trindade, que: Essa restrição ao direito de ação internacional da vitima (já questionado perante a Corte EDH, como vimos) é criticada pela doutrina especializada. CANÇADO TRINDADE é um dos maiores defensores da reforma da Convenção Americana, no sentido de dotar a vítima do direito de ação. Entende o citado professor, que a Comissão é parte apenas processual no feito perante a Corte. A verdadeira parte material é aquela que é titular do direito pretensamente violado. Assim, inexplicável, para o citado autor, que a atual situação perdure.

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Em 2001, atento a este reclamo, o regulamento da Corte permitiu “a participação da vítima e de seus representates em todas as faces do processo judicial, com direito a se manifestar com igualdade de condições com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Estado-réu, tal qual um assistente litisconsorcial do Autor” (RAMOS, 2012, p. 225). Posteriormente em 2009, o regulamento da Corte foi alterado e permitiu que as vítimas ou seus representantes sejam intimados a apresentar petição inicial do processo internacional. Estes foram avanços substanciais rumo à igualdade de tratamento entre a vítima e o Estado no foro interamericano.

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AS DECISÕES DA CORTE IDH

As medidas provisórias, solicitadas pela Comissão, ou por algum Estado que reconheça a jurisdição da Corte são uma forma de resolução. Indicam que um Estado submetido à jurisdição está desrespeitando os Direitos Humanos. Seu uso se autoriza em caso de gravidade e urgência para evitar danos irreparáveis ou conter danos já causados conforme os artigo 63.2 da Convenção, 25 do Regulamento da Corte e 74 do Regulamento da Comissão. As decisões da Corte, no geral, fixam obrigações de indenizar, obrigações cível-administrativas, obrigações relativas à liberdade pessoal e obrigações de adequação legislativa. O objeto de uma sentença da Corte é extremamente amplo no âmbito de uma ação de responsabilidade internacional do Estado: “é assegurado à vítima o gozo do direito ou liberdade violados e ainda são reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado violação desses direitos” (RAMOS, 2012, p. 235). A condenação do Estado enseja a fixação da medida de reparação e o supervisionamento pela Corte de sua decisão. A origem desse procedimento são as medidas cautelares já que era necessário verificar a atuação do Estado para atestar a aderência das medidas no caso concreto. 386

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A responsabilização dos agentes violadores apresenta peculiaridades no SIDH. A produção de efeitos das decisões exaradas pela Corte não é imediata: demanda muitas vezes interpretação e integração de normas jurídicas. A necessidade de se harmonizar o ordenamento jurídico interno com o internacional no que tange a proteção dos Direitos Humanos é colocada também como um desafio para a proteção de forma integral. A execução das sentenças no plano nacional pode ocorrer de forma espontânea pelo Estado ou forçada por meio do Poder Executivo. No caso brasileiro, a implementação das sentenças da Corte IDH é tão obrigatória quanto as emanadas pelo Poder Judiciário nacional. A obrigatoriedade decorre da ratificação da Convenção Americana e do reconhecimento da competência contenciosa da Corte pelo Estado brasileiro. Não se pode alegar a impossibilidade jurídica para o descumprimento das sentenças por suposta afronta a legislação interna. Como a Corte IDH não tem o caráter penal, suas sentenças não substituem as medidas penais cabíveis no âmbito dos Estados. Com base na Convenção Americana, a Corte julga a responsabilidade dos Estados pelas violações a Direitos Humanos. Uma vez responsabilizado, o Estado tem obrigação de cessar a violação e indenizar a vítima. As medidas cabíveis devem ser tomadas para que as sentenças sejam concretizadas sob pena de ser responsabilizado novamente. Este tipo de sentença não é considerada estrangeira e sim internacional. Não cabe a prévia homologação pelos Tribunais internos dos Estados-parte. A sentençaadvém da jurisdição da Corte IDH que os Estados reconhecem ou não livremente.Convém lembrar que no plano contencioso a Corte profere sentenças inapeláveis de acordo com o Pacto de San José da Costa Rita. Uma vez reconhecida a competência da Corte, as sentenças são obrigatórias para os Estados. A reparação do dano reconhecido pela Corte deve ser imediata. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Um dos princípios fundamentais do Direito Internacional é o pacta sunt servanda. O Estado deve obedecer o que é prescrito nos pactos em que ele seja parte exatamente porque o pactou de forma livre e o que foi pactuado deve ser cumprido com base na boa fé. De acordo com os incisos 1º e 2º do artigo 68 da Convenção Americana, os Estados-membro se comprometem a cumprir integralmente as decisões exaradas pela Corte. O princípio pacta sunt servanda e a irrecorribilidade das decisões por si só não autorizam a supervisão da Corte. A obrigatoriedade das condenações respaldadas em normas internacionais, primeiramente, baseia-se no dever de honrar os pactos celebrados. Devemos considerar ainda a impossibilidade de se alterar uma decisão. Por enquanto a supervisão é o meio mais eficaz para verificar o cumprimento integral da condenação. (PADUA, 2006, p.182) Por ter aceito fazer parte do Sistema, os Estados devem cumprir as determinações das condenações impostas pela Corte mesmo que não haja nos ordenamentos internos normas que estabeleçam as especificidades e pormenores do cumprimento. Para que a falta da legislação interna não venha a ser um impecílio, os legisladores domésticos devem estar atentos aos acordos internacionais firmados para que haja consonância entre os ordenamentos e normas internas aptas a garantir a efetivação das internacionais. A supremacia da ordem interna sobre a internacional e a soberania estatal frente as decisões internacionais são problemáticas que não podem ser esquecidas. A fragilidade dos meios coercitivos do SIDH também deve ser notada.

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A SUPERVISÃO E O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES

A supervisão do cumprimento das decisões é um procedimento recente da Corte que visa sanar as fragilidades dos meios coercitivos do SIDH. O caso Baena Ricardo e Outros contra o Panamá trouxe

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consigo o questionamento sobre a competência da Corte para a supervisão do cumprimento das sentenças referentes ao Estado do Panamá. Em 28 de novembro de 2003, a própria Corte Interamericana decidiu com base em sua jurisprudência e no Direito Internacional que a Corte é competente para supervisionar suas decisões e pode solicitar aos Estados informações pertinentes. Cada nova decisão da Corte enseja uma nova responsabilização dos Estados e com ela a supervisão do cumprimento da decisão. Este procedimento não tem forma definida. Pode ser feita pela própria Corte ou por ela coordenada com a presença do país condenado ou da Comissão. A vítima ou seu representante legal também participam do processo. Em geral, se busca a verificação do cumprimento das determinações das sentenças e dos compromissos assumidos pelos Estados no âmbito dos direitos humanos, especificamente da Convenção. A Corte tem o dever de informar a Assembleia Geral da OEA em cada período ordinário de sessões um informe de suas atividades no ano anterior no que tange o cumprimento de suas sentenças e a possibilidade de submeter propostas ou recomendações sobre o melhoramento do sistema interamericano no que diz respeito ao trabalho da Corte. O artigo 65 da Convenção em si autoriza o acompanhamento da conduta dos Estados em relação as obrigações advindas de sentenças. Esta postura não exorbita os poderes da Corte e sim os integra; é coerente com seus propósitos de defesa dos direitos humanos e contribui para que o sistema alcance bons resultados. Após aproximadamente um ano da sentença, a supervisão culmina em uma resolução de cumprimento, geralmente emanada em novembro, pouco antes da Corte encerrar suas atividades. A resolução informa o que foi e o que não foi implementado pelo Estado. As consequências da não-implementação são decisões com conteúdos diversos. A Corte pode reiterar a obrigação de cumprir ou submeter a questão a Assembleia Geral da OEA. No caso de cumprimento, o processo é arquivado. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Se a sentença não for executava em um prazo razoável ou for descumprida, o Estado pode incorrer em uma segunda violação à Convenção e ser submetido novamente a outro processo de responsabilização internacional. O Estado não pode se omitir para recusar cumprir as determinações judiciais que aceitou livremente ao aderir a Convenção e aceitar a jurisdição da corte IDH. Tanto os ordenamentos domésticos quanto o internacional prelecionam o princípio da prestação jurisdicional em prazo razoável. Ao analisar o cumprimento das decisões emanadas pela Corte IDH, deve-se pensa o Direito Internacional da forma mais alargada possível para incluir os possíveis acordos amistosos entre os Estados violadores, a Corte e outros organismos internacionais e as vítimas. Nesse diapasão, o cumprimento não é estático e nem possui conceito uniforme. Classicamente temos a teoria de Young (GARBIN, 2010, p.15) que propõe que o cumprimento ocorre quando o comportamento de um sujeito se adequa a prescrição normativa. Assim o cumprimento ocorreria para evitar punições expressando a conformidade com as normas internacionais. Este entendimento é passível de crítica porque não comportaria relações de causalidade. Contemporaneamente este conceito de cumprimento é visto de forma mais ampla a partir do enxergar o cumprimento como um comportamento ativo em que diante de uma obrigação internacional os Estados se vêem compelidos a tomar medidas positivas para reparar uma violação. Assim, entende-se que existe cumprimento de decisões quando houver aceitação do julgamento por parte dos Estado e atuação no sentido de cumprir as obrigações. Implementação e efetividade podem ser, grosso modo, usadas como sinônimos de cumprimento, mas tecnicamente cabe diferenciação. A primeira consiste em colocar em prática os compromissos internacionais – seja mudando a legislação seja se comprometendo com a criação de instituições internas ou internacionais. Pode ser visualizada enquanto uma fase do cumprimento

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sem nele se exaurir ou se confundir. Se a decisão dispõe sobre os compromissos que o Estado assumiu e ainda não implementou, é nitidamente uma fase a implementação. Se, em sentido diferente, a decisão ou não se refere a compromissos ou, em se refererindo, o Estado já as cumpriu anteriormente, não há que se falar em implementação. A efetividade possui, por sua vez, o caráter mais político que técnico por significar a potencialidade de uma regra ou regime jurídico modificar o comportamento estatal com finalidade política, de cessação de uma violação ou outro fim. Assim, os regimes internacionais podem ser efetivos e o cumprimento ser pouco. O contrário também pode acontecer. Como a efetividade aufere potencialidade, um Estado pode ter um regime jurídico potencialmente hábil a induzir mudanças e não cumprir as decisões. É possível pensar efetividade e cumprimento conjuntamente. As decisões da Corte IDH, por exemplo, contrárias aos Estados ensejam medidas coercitivas para que haja o cumprimento das decisões. As mudanças comportamentais dos Estados em prol do cumprimento de decisões gera, de forma geral, efetividade do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, doravante SIDH. Pensando globalmente, a efetividade do SIDH tem impacto positivo no sistema global de proteção dos Direitos Humanos. Medir a efetividade e consequentes impactos políticos é muito mais complexo do que auferir os esforços dos Estados para cumprir as decisões da Corte IDH. Com isso não se quer inferir que estudar o cumprimento das decisões da Corte seja uma tarefa fácil. Qual o objetivo de quem pretende estudar o cumprimento das decisões? Quais subsídios elas têm para sua pesquisa? As estatísticas oficiais parecem um bom começo mesmo que os números sozinhos não expressem realidades sociais e possam ser utilizados diversamente a depender do interesse político. Os trabalhos das Ciências Sociais Aplicadas, em contrapartida, oferecem bons subsídios para se entender sob diversos vieses o significado dos dados estatísticos. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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Por enquanto, este estudo segue a metodologia da Corte IDH que divide o cumprimento em três categorias - cumprimento total, parcial e pendente – mesmo que na prática este agrupamento gere mais ambiguidade que clareza. Além de satisfações pessoais do pesquisador, o estudo se entende necessário para auferir os êxitos dos Estados, os ganhos de Direitos Humanos da população e até mesmo entender como está a efetivação dos Direitos Humanos no âmbito do continente americano e do sistema global de Direitos Humanos. A delimitação do local de fala é importante aqui não só enquanto identidade mas também para se conhecer o objeto de estudo e a metodologia empreendida. A fala do Direito Internacional dialoga com as Relações Internacionais, com a Ciência Política e outras áreas do saber para investigar o cumprimento das decisões, mas foca a prevalência do Direito e enfoca o porquê dos Estados cumprirem os tratados internacionais.

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TEORIAS DO DIREITO INTERNACIONAL E DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E AS SENTENÇAS DA CORTE IDH

As Escolas de Direito Internacional e de Relações Intenacionais têm desenvolvido teorias sobre como o direito internacional é internalizado e consequentemente como os direitos humanos são recebidos nos ordenamentos jurídicos domésticos. Assim, a partir destas teorias é possível entender também como as sentenças internacionais são recebidas nos ordenamentos jurídicos domésticos e como são cumpridas. Começemos com uma breve explanação das teorias advindas primeiras escolas. Na segunda metade da década de 1990, Harold Hongju Koh apresentou a teoria da obediência ou do processo legal transnacional que considera a interação entre atores públicos e privados na elaboração de normas transnacionais. O ponto central – processo legal

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transnacional – que dá nome a teoria se inicia quando um ou mais atores trasnacionais interagem com os demais, objetivando a enunciação de uma norma (GARBIN, 2010, p. 25). Assim, as normas produzidas – um tratado, por exemplo – representam a interpretação comum de regras pelos Estados que podem ou não ser internacionalizadas nos ordenamentos jurídicos pátrios. De acordo com o autor, a interação, a interpretação e a internalização são as etapas deste processo em que o cumprimento das regras internacionais está ligado ao próprio avanço das fases do processo transnacional legal. A formalização de uma regra no âmbito interno enseja a um comportamento de obediência e assim ao cumprimento internacional. Uma crítica válida que se pode fazer é que ao invés de Koh explicar as motivações que levam um Estado a cumprir regras internacionais, ele simplesmente descreve um caminho para a incorporação de normas de direito doméstico com foco nos atores e em suas práticas (GARBIN, 2010, p. 25). Koh é importante enquanto marco no Direito Internacional por abordar o elemento processualístico de produção de normas internacionais e abranger também atores não-estatais. Contemporaneamente a Koh, Thomas Franck desenvolveu a teoria da legitimidade ou da justiça que visa explicar por que os Estados se sentem compelidos a honrar compromissos internacionais. A justiça e a legitimidade são os pontos centrais da anuência a tratados internacionais e posterior cumprimento. Se o Direito Internacional é justo e legítimo há maior possibilidade de haver cumprimento. A legitimidade de uma regra pode ser auferida por: determinação, que são requisitos de clareza e transparência das regras; validação simbólica, ou seja, os atributos da regra que a sinalizam como parte de um sistema de ordem social; coerência; conexão como as regras do processo. A presença dos quatro fatores aponta fortes tendências ao cumprimento que pode ser percebido pela ampla acei-

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tação normativa de regras internacionais consistentes, coerentes, justas e legítimas (GARBIN, 2010, p. 26). No que tange a Teoria das Relações Internacionais podemos destacar o realismo, o neorealismo e a teoria da interdependência. O realismo destacou-se especialmente da década de 1930 a 1950, centrou-se em questões como as causas da guerra e as condições de paz, a natureza do poder, a segurança nacional e reconheceu apenas as unidades estatais, membros da sociedade internacional e do Sistema Europeu de Estado como atores principais dos processos. Sua prioridade mais aparente era a manutenção do status quo: as mudanças não tinham tanto valor para esse paradigma (OLIVEIRA, 2003, p.56). Para os realistas, o Estado só deve obedecer o direito internacional quando for de seu interesse. O neorealismo surge a partir da obra de Kenneth Waltz em que as Relações Internacionais passariam pelos processos de socialização e competição, sendo a estrutura do sistema político internacional condicionada a anarquia, inexistência de diferenciação entre as unidades e a existência de distribuições de desigualdade de capacidade entre os grandes e os pequenos poderes. Muitas críticas foram feitas ao autor tendo em vista seu pouco enfoque nas transformações globais da sociedade internacional (WALTZ, 2003, p.163). O neo-realismo, de forma geral, recebeu muitas críticas por não ter tentado reduzir o papel máximo do Estado como ator principal das Relações Internacionais, por não criticar a política do poder ou a luta da força bruta, apesar das tentativas de aplicar um rigor metodológico maior à disciplina. Omitiu-se ainda em perceber a presença de atores novos e emergentes apresentando-se como um movimento que repaginou o paradigma tradicional sem criticá-lo ou fazer modificações aptas a torná-lo mais atual Nye foi um dos co-fundadores do neoliberalismo na teoria das Relações Internacionais. Juntamente com Keohane, ele desen-

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volveu os conceitos de interdependência assimétrica e complexa. Os pesquisadores estudaram a possibilidade de que as relações transnacionais entre agentes não-Estados (tais como multinacionais), fizessem com que houvesse uma superação da concentração excessiva de cientistas políticas na relações entre as nações. Analisaram também as relações transnacionais e da política mundial (OLIVEIRA, 2003, p. 97-103).

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AS SENTENÇAS DA CORTE IDH E O BRASIL

Um ponto importante é identificar no plano interno a pessoa jurídica apta a executar a decisão da Corte. Como, no plano internacional, apenas a República é apta a comprometer-se externamente: é sua a capacidade de ser imputável. No caso brasileiro, a República divide-se em União de estados, DF e municípios. O artigo 21, inciso I, da CF/88 atribui a União esta responsabilidade. Não importa se a conduta violante tem implicações estaduais ou municipais, a responsabilidade internacional é federal. O Presidente da República, de acordo com o inciso VIII, artigo 84, representa a União e assim se encarrega de favorecer o cumprimento da condenação mesmo que possa delegar esta tarefa a órgãos auxiliares. O protagonismo da União não se elide em virtude do pacto federativo e da repartição federal de competências. Enquanto pessoa jurídica a União personifica o Estado Federal aos olhos das responsabilidades internacionais. Os estados da federação devem junto com a União se empenhar para concretizar a sentença na medida de sua competência e de suas limitações. Depois da comunicação ao país, a sentença deve ser encaminhada a Presidência para emitir o ato hábil a materializar as decisões ou delegar a atribuição de praticá-lo a outro órgão. A obrigação de indenizar é incumbência da União enquanto cível-administrativa poderá ser ou não cumprida pela União. A adequação legislativa segue a anterior.

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O Poder Executivo e o Legislativo podem espontaneamente executar as sentenças da Corte IDH. Já o Poder Judiciário, em virtude da inércia da jurisdição, deve ser provocado para participar da execução das sentenças e das decisões internacionais. No caso da demora injustificada ou inércia do Estado, a vítima, seu representante legal ou o Ministério Público podem provocar o ao Judiciário para providenciar o cumprimento forçado das setenças da Corte IDH. Nota-se que mesmo que os atos judiciais possam gerar responsabilidade internacional do Estado, eles não podem ser modificados por uma sentença internacional. De acordo com o art. 100 da Constituição Federal de 1988 e os artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil, o pagamento de indenizações segue o procedimento dos precatórios. No que tange as reparações de natureza não-pecuniárias, a Convenção dita que os Estados se comprometam a adotar as medidas cabíveis e necessárias para concretizar os direitos e as liberdades individuais. Deixa livre, portanto, que os Estados-parte sigam os procedimentos estabelecidos pelo direito interno no que tange as esta modalidade de reparação. No caso brasileiro, segue o artigo 461 do CPC. Em nome do Estado, o Poder Legislativo deve observar os tratados internacionais, não aprovar normas contrárias ou conflitantes com os compromissos internacionais e garantir o pleno cumprimento da sentença. O inciso XXV do artigo 5º da CF/88 preleciona que nenhuma lesão ao direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário, o que autoriza a atuação desde poder, após provocação, para executar as sentenças da Corte IDH. O juiz de primeira instância da Justiça Federal competente para executar a sentença da Corte, em geral, é aquele do local de residência da vítima.

8 CONCLUSÃO O SIDH refere-se antes de mais nada a uma questão de luta por justiça. As vítimas e seus representantes quando conseguem

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acessar o Sistema já de muito carregam a dor no peito e o grito de justiça na garganta. A situação de desrespeito aos direitos humanos é ainda pior quando protagonizada pelo Estado cujo dever de cuidado e proteção são antagônicos a posturas comissivas e omissivas de violações. O resgate inicial do histórico dos Direitos Humanos e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e fez necessário para rememorarmos que os instrumentos jurídicos de proteção não são fatos consumados ou benesses dos Estados; advém de reinvindicações, conflitos de interesse e disputas; sofrem avanços e retrocessos. Se antes os Estados eram os atores por excelência, hoje têm perdido espaço para as ONGs, indivíduos e outros atores emergentes. O protagonismo da pessoa humana como sujeito de direito é uma conquista recente. O Sistema consolida-se como um importante instrumento para fortalecer a luta contra as violações de Direitos Humanos em situações em que o Estado não as garante. A atuação de atores não-estatais – organismos não-governamentais ou outros – reforçam a luta por justiça no Sistema e reunem elementos para o acesso à justiça nacional e internacional. Ainda assim a coerção política advinda da Corte ou de organismos internacionais ainda é o melhor meio de compelir um Estado a observar com vigor as sentenças da Corte e cumpri-las. Casos individuais na Corte não implicam em uma violação ao princípio da isonomia tão repisado por agentes violadores no âmbito interno. Em maior ou menor grau, o pleito individual leva ao estudo pormenorizado da situação periclitante e de violação sofrida para que ela seja cessa em todos os casos, julgados ou não. A internacionalização dos direitos humanos pode ser sentida nas constituições dos países latino-americanos e na própria atribuiçãodos tratados de Direitos Humanos à matéria internacional demonstra a hierarquia diferenciada nos ordenamentos jurídicos em relação a outros tipos de tratados. Não se trata apenas de uma ques-

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tão formal: a elevação desses tratados ao bloco de constitucionalidade dá mostras dos compromissos assumidos pelos Estados perante sua população. Ciente dos avanços e limitações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos podemos reforçar o reconhecimento deste como um importante instrumento de luta, proteção e consolidação dos direitos humanos no continente americano e também em todo o globo. Entender como funciona a Corte, nesse sentido, e popularizar este instrumento jurídico para reforçar a construção da democracia na América e contribuir com a nossa cultura de direitos humanos.

9 REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hidelbrando. Manual de direito internacional público. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ANDRADE, Isabela Piacentini de. A execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v. 3, n. 3, jan./jun. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. COELHO, Adriano Fernandes. A eficácia jurídica das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos: o caso Damião Ximenes Lopes. Disponível em: < http://www. fa7.edu.br/recursos/imagens/File/direito/ic2/vi_encontro/A_EFICACIA_JURIDICA_DAS_DECISOES_DA_CORTE_INTERAMERICANA_DE_DIREITOS_HUMANOS.pdf>. Acesso em: 26 de março de 2014. GARBIN, Isabela Gerbelli. Direitos Humanos: Perfil sul-americano de cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. LEITE, Rodrigo de Almeida. As sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a execução no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. MIRANDA, Marina Almeida Picanço de. Poder Judiciário brasileiro e a proteção dos direitos humanos: Aplicabilidade e incorporação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais e o dilema de seus paradigmas: configurações tradicionalistas e pluralistas. In: OLIVEIRA, Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno (Orgs.). Relações Internacionais, interdependência e sociedade global. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2003. p. 33-114.

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PADUA, Antônio de Maia e. Supervisão e cumprimento das decisões interamericanas. Cuestoes Constitucionales. n. 15, p. 177-192. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2012. SANTOS, Juliana Corbacho Neves dos. A execução das decisões emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do sistema jurídico brasileiro e seus efeitos. Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial., Brasília, v. 8, n. 1, p. 261-307, jan./jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 14 f2013. _____. Os efeitos das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: Unesp, 2010. (Dissertação de Mestrado) Disponível em: Acesso em: 14 fev. 2013. SOOHOO, Cynthia; Stolz, Suzanne. Bringing Theories of Human Rights Change Home. Fordham Law Review. v. 77, Issue 2, Article 4, 2008. Disponível em: Acesso em: 14 fev. 2013. WALTZ, Kenneth. Theoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradativa, 2002.

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO DOS PAÍSES DO MERCOSUL Isabella Alonso Panho Acadêmica do 3º ano do curso de direito (UEL), colaboradora do projeto integrado de pesquisa e extensão Júri na Escola e estagiária do projeto de extensão “O Direito Infanto-juvenil e a Educação: os fundamentos jurídicos para o exercício do magistério da educação infantil ao ensino médio no município de Londrina e região”. ([email protected]) Beatriz Oliveira Acadêmica do 2° ano do curso de direito (UEL), colaboradora do projeto de pesquisa e extensão (UEL) Juri na Escola: análise do discurso. ([email protected]) Orientadora: Prof. Me. Juliana Kiyosen Nakayama Doutoranda em Estudos da Linguagem (UEL), Mestre em Direito (UEL). Especialista em Educação a distância (SENAC). Coordenadora do projeto integrado de pesquisa e extensão Júri na Escola. Professora na Departamento de Direito Público (UEL). ([email protected])

Resumo: Com esse trabalho temos por objetivo evidenciar o princípio da Dignidade humana, que é, para nós, norte supremo de todos os direitos fundamentais. Explicamos, de forma sintética, como a Dignidade é trazida nas constituições dos países sul-americanos, membros do Mercosul. Ainda abordando a questão da aplicação da Dignidade, falamos sobre alguns problemas sociais, que são obstáculos à efetivação desse princípio na sociedade. Evidenciamos, outrossim, a recepção dos tratados internacionais em cada um dos ordenamentos estudados, pensando na Declaração Interamericana de Direitos Humanos, a qual todos os Estados-membros do Mercosul são signatários. Palavras-chave: Dignidade – Princípio Constitucional – Aplicação Social – Mercosul.

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Sumário: 1. Introdução. 2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a sua Importância nas Constituições Contemporâneas. 2.1 O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3. O Panorama Geral da Questão da Dignidade Frente aos Membros do Mercosul. 3.1 A Dignidade do Ordenamento Brasileiro. 3.2 A Dignidade do Ordenamento Paraguaio. 3.3 A Dignidade do Ordenamento Uruguaio. 3.4 A Dignidade do Ordenamento Venezuelano. 3.5 A Dignidade do Ordenamento Argentino. 4. Considerações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO Nessa pesquisa procuraremos elucidar sobre o princípio da Dignidade Humana, que é mais que um princípio, é uma finalidade social do Estado, sobre a qual todas suas ações devem ser guiadas e emolduradas. Iniciaremos o estudo do tema, observando os ensinamentos gerais sobre princípios e normas constitucionais, visando relembrar conceitos essenciais à compreensão da próxima parte do estudo. Na sequência, exploraremos a questão da dignidade em si, lembrando-nos dos ensinamentos de Sarlet, que nos diz que a Dignidade é um principio constitucional fundamental e um princípio geral do Direito. Passaremos, então, a conhecer um pouco do trato desse princípio fundamental nos países membros do Mercosul, discorrendo sobre onde encontramos o termo “Dignidade” em seus textos maiores, como esse princípio se expressa nesses sistemas jurídicos, qual o status da Declaração Interamericana de Direitos Humanos da OEA nesses ordenamentos e, por fim, quais as barreiras de implementação social da Dignidade. Em relação à questão da implementação social do princípio, discutiremos um pouco da questão da desigualdade na América Latina e a dificuldade de acesso aos serviços básicos pelos marginalizados.

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É dessa forma que objetivamos mostrar o que falta para a concretização social da Dignidade Humana em termos de América Latina. Dentro do espaço amostral dos membros do Mercosul, procuraremos deixar evidente que os problemas travados nos Estados da região são semelhantes, ou ao menos muito parecido. Gostaríamos de incentivar, então, a reunião política e jurídica dos Estados Latino-americanos para o combate a desigualdade e dificuldade de acesso a serviços essenciais de suas populações; tendo em vista que os obstáculos seguem a mesma linha lógica.

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O PRINCÍPIO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA IMPORTÂNCIA NAS CONSTITUIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O Direito, conforme teoria consagrada de Miguel Reale, é “a realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura tridimensional bilateral atributiva”256. É bilateral atributiva porque envolve sempre no mínimo dois sujeitos, cujos comportamentos seguem uma proporção objetiva que permite fazer algo ou ter a expectativa de que o outro o faça257. É tridimensional porque toda relação jurídica é composta necessariamente desses três elementos: fato (a circunstância social), valor (a acepção axiológica que uma sociedade tem a respeito do fato) e norma (resultado final do fato valorado tutelado pelo direito), o que configura, em síntese, a experiência jurídica como “um elemento de fato, ordenado valorativamente em um processo normativo”258. Assim, a norma jurídica, ápice do processo que dá origem ao Direito, nada mais é do que “determinada prescrição de conduta ou de organização, dotada de generalidade (pois obriga a todos os que se encontram sob sua égide, atendendo ao princípio da isono REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 67. Idem, p. 51. 258 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 256 257

2004. p. 384-385.

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mia)259 e de abstração (pois a norma é o oposto de casuística, já que deve abranger o maior número de situações possível”)260-261. Dentre as diversas categorias de normas – o costume, as leis ordinárias, um regimento interno de determinado órgão –, observaremos aqui as normas constitucionais, que, embora sejam normas tais quais todas as outras contidas dentro de um ordenamento jurídico, possuem certas características específicas que as diferem das demais, como: supremacia, abertura (dá cláusulas gerais e confere bastante poder ao intérprete) e dimensão política relevante, conforme classificação de L. R. Barroso262. Se observadas no tocante à sua função, podem ser elas divididas em regras e princípios263. Regras são normas cujo conteúdo expressa comandos objetivos de conduta, preceitos, proibições ou permissões, tendo uma estrutura que, na maior parte das vezes é descritiva de comportamentos, favorecendo a segurança jurídica. Já princípios expressam decisões políticas fundamentais, valores a serem observados ou fins públicos a serem atingidos; sua estrutura normativa é finalística e indeterminada – aponta um ideal a ser alcançado, que necessita de meios concretos para se efetivar no exercício de qualquer das três funções estatais –; evitam a rigidez do ordenamento. Princípios são normas que apontam uma diretriz, uma forma de comportamento que o Estado deve adotar para a realização de todas as suas atividades, quais sejam, de forma genérica, administrativa, judiciária e legislativa. A forma por meio da qual se aplicam essas duas categorias de normas constitucionais constitui, desse modo, a maior diferença entre ambas. As regras são aplicadas mediante subsunção – enqua NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 85. 260 Idem. 261 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 195. 262 Idem, p. 198-200. 263 Idem, p. 204-212. 259

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dramento, de forma mais objetiva possível, do fato à norma que lhe disciplinar – e princípios são aplicados na medida em que couberem no caso específico. Os princípios obedecem a um sistema de contrapesos: podem ser aplicados concomitantemente, um cedendo espaço ao outro conforme a situação demandar, o que evita o aparente “choque” que pode haver entre eles. Princípios são “normas que ordenam que algo se realize na medida do possível, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas. [...] podem realizar-se em diferentes graus, em virtude da necessidade de ponderá-los frente à observância de outros princípios”264. Entre princípios, em situações concretas, é esperado que haja conflitos, uma vez que é impossível que todos sejam sempre exercidos de maneira absoluta (“Absoluta é a regra, mas jamais o princípio”)265, o que leva à necessidade de contemporização entre eles. O mesmo não pode ocorrer com as regras – não pode haver desconformidade entre os preceitos de uma ou outra, havendo, muito provavelmente, vícios em uma delas. A eficácia dos princípios pode ser dita como programática266. A eficácia é a produção, por parte da norma jurídica, dos efeitos sociais planejados267. Há, dessa forma, que se deixar clara a seguinte distinção no tocante à eficácia das normas constitucionais, segundo a classificação de J. Afonso da Silva268, mais aceita pela doutrina contemporânea: há, em primeiro lugar, as normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que produzem MACEDO, Regina Maria. FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 213. 265 ALEXY, Robert apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 76. 266 MACEDO, Regina Maria. FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 215. 267 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 91. 268 SILVA, José Afonso da apud BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 214-215. 264

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os efeitos pretendidos sem necessidade de outras normas ulteriores que regulem a sua aplicação; em seguida, há as normas constitucionais de eficácia contida (ou restringível) e aplicabilidade imediata, mas passiveis de restrição, que são normas que, assim como as da primeira categoria, produzem, através de sua própria normatividade, todos os efeitos pretendidos, mas têm mecanismos que permitem a adição de normas que restrinjam sua eficácia; por fim, há as normas constitucionais de eficácia limitada, as quais têm normatividade, mas, para exercer os seus efeitos, necessitam de normas ulteriores que concretizem a sua eficácia, a exemplo dos princípios constitucionais. A programaticidade dos princípios não conota uma falta de normatividade, apenas que, por estabelecerem fins conforme os quais deve agir o Estado, necessitam de outras normas, de aplicação mais imediata – mas não necessariamente regras269 –, cuja escolha é deixada em aberto, para se concretizarem. Caso essas normas complementadoras apresentem discrepância de conteúdo em relação às demais do ordenamento, ficam sujeitas à inconstitucionalidade270.

2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana Os princípios têm, portanto, uma função diferenciada nos ordenamentos jurídicos de forma geral. São norteadores, ou seja, determinam a postura que o Estado deve adotar na realização de suas atividades e o intuito de todo o seu ordenamento. A dignidade da pessoa humana, contudo, é considerada um princípio constitucional fundamental em virtude de constar logo nas primeiras linhas das constituições e de ser um norteador de todo o MACEDO, Regina Maria; FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 217. A norma de eficácia programática necessita de outra norma que concretize a sua eficácia; essa norma, contudo, pode ser também uma outra norma de eficácia programática, tendo, ainda assim, um conteúdo um pouco mais restrito e objetivo do que aquela que visa complementar. 270 Idem, p. 212-220. 269

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regulamento e de todas as ações do mundo jurídico subjacente. Segundo outros autores, a dignidade da pessoa humana seria melhor denominada como “princípio geral de direito”271, contudo, conforme Sarlet observa272, uma denominação não exclui a outra, a primeira abarca a segunda – se o princípio é constitucional fundamental, logo ele também é um princípio geral do direito. Assim, como todos os princípios, a dignidade da pessoa humana necessita de normas que determinem como se dará a sua concretização. Essas normas são os direitos e as garantias fundamentais. Nesse sentido, esclarece Sarlet: [...] sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de consequência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis, consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos alguma projeção da dignidade da pessoa. [...] a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que ‘atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais’, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos.). 273

Consequentemente, pode-se auferir em que medida há o respeito à dignidade da pessoa humana na mesma proporção em que se observa o respeito aos seus direitos fundamentais. O desrespeito a qualquer direito dessa categoria é a forma mais direta de ofensa à dignidade de algum indivíduo. SILVA, José Afonso da apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 71. (ver nota de rodapé n. 155) 272 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 71. (ver nota de rodapé n. 155) 273 Idem, p. 88. 271

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Embora a dignidade seja citada em trechos diversos dos ordenamentos em meio a regras, por ser uma norma jurídica que se traduz sob a forma de princípio constitucional fundamental, mantém a sua força de princípio, uma vez que continua, ainda que nessas situações, a representar uma finalidade social a que todas as ações do Estado devem se voltar.

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PANORAMA GERAL DA QUESTÃO DA DIGNIDADE FRENTE AOS MEMBROS DO MERCOSUL

Na próxima parte de nosso trabalho, procuraremos estudar como é tratado o tema da dignidade em alguns países sul-americanos: Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Argentina. Escolhemos particularmente esses países, por serem membros do Mercosul274, o principal bloco econômico da America Latina. Iremos expor um panorama geral da questão na região, por acreditarmos que as semelhanças históricas, linguísticas e de objetivos comuns existentes entre as nações regionais, fazem da America Latina uma sociedade275 em sentido amplo, que deve ser assim analisada. Introdutoriamente, nos parece necessário ressaltar que tais Estados são signatários da Organização dos Estados Americanos e obrigam-se a seguir aquilo que foi estabelecido na Declaração Interamericana de Direitos Humanos (1948). A Declaração tem por objetivo garantir os direitos do homem, aqueles direitos inerentes à dignidade, como: liberdade, integridade, vida, entre outros276. É Fazemos ressalva nessa parte, pois o Paraguai até a presente data encontra-se suspenso dentro do bloco Mercosul. 275 RAUS, Diego Martins. Pensar la sociedad y la cuéstion social en América Latina. In: DÍAZ, Laura Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 15-43. 276 OEA. Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Disponível em: . Acesso em: 04 maio 2013. 274

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válido lembrar, outrossim, que os países signatários desses contratos estão sujeitos a Corte Interamericana e aos mecanismos de controle de respeito aos Direitos Humanos, da OEA.

3.1 A dignidade no ordenamento brasileiro. A dignidade da pessoa humana é, no ordenamento jurídico brasileiro, elencada a nível de princípio constitucional fundamental, posto que é contemplada logo no art. 1º da Constituição, como fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Por esse motivo é que, para alguns autores, a dignidade da pessoa humana é um princípio geral do direito277. Ademais, também consta em diversos outros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, mantendo a sua força de princípio. A exemplo: – na Constituição Federal: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar Vide nota de rodapé no 19.

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a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

– no Código Penal Injúria Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

– no Código de Defesa do Consumidor Art. 4º - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: [...]

– no Estatuto da Criança e do Adolescente Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

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É interessante destacar, também, que os tratados no Brasil são recepcionados, depois de aceitos no ordenamento pelo Congresso Nacional, com status de norma constitucional; ou seja, a Declaração Interamericana de Direitos Humanos integra nosso texto constitucional. Ressaltamos, também, que nosso país tem um dos maiores índices de cumprimento das sentenças dadas pelo Corte Interamericana de Direitos Humanos, mostrando seu comprometimento para com os interesses da Organização278. As dificuldades para a aplicação social daquilo que está tão maravilhosamente expresso em nossas leis, está, sem dúvidas, nos obstáculos de acesso da população geral à alimentação, educação, saúde, condições dignas de moradia e meio ambiente salutar, entre outras necessidades essenciais. Temos um programa bilionário de apoio aos pobres necessitados e projetos interessantes para melhoria do acesso, entretanto estamos muito longe de podermos dizer que efetivamos a Dignidade a todas as camadas sociais de nossa Nação.

3.2 A dignidade no ordenamento Paraguaio O Paraguai é um país que passou diversas vezes por governos ditatoriais. No período recente de 1989 a 1993, foi comandado por governos autoritários, tendo sido eleito um governo civil democrático, somente no final de 1993. Nesse ano, passou a vigorar no país uma nova Constituição, na qual é possível observar maior esmero com a dignidade, sendo que, diferente de todas as Constituições anteriores, traz os direitos fundamentais logo em sua primeira parte279. BASCH, Fernando; FILLIPINI, Leonardo; LAYA, Ana; NINO Mariano; ROSSI, Felicitas; SCHREIBER, Bárbara. A eficácia do sistema de Direitos Humanos: uma abordagem quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões. Revista Internacional de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. 279 SALGUEIRO, Jorge Silvero. La Constitución de la República Paraguaya de 20 de junio de 1992. Revista Jurídica Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível em: . Acesso em: 4 maio 2013. 278

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No primeiro artigo da Constituição, juntamente com a forma de estado e governo, já está exposto que o Estado Paraguaio é fundado no reconhecimento da Dignidade Humana. Frente a isso, fica claro que o governo deve ter suas ações subordinadas aos direitos fundamentais, assim como, que os direitos fundamentais são independentes da estruturação do Estado e do governo, que deve respeitar a liberdade e a igualdade das pessoas. Todo o título II da Constituição trata dos deveres, direitos e garantias do homem, sendo que a Seção 1 fala sobre a vida. Logo de inicio, explicita que a garantia à vida é inerente à pessoa humana, desde a concepção; abole a pena de morte e proíbe qualquer tipo de tortura; garante que o Estado protegerá a integridade física e psíquica, assim como a honra e reputação dos sujeitos; e, por fim, assevera a qualidade de vida, através de planos e medidas estatais280. Essa última garantia citada merece particular tratamento por evidenciar a importância dada aos direitos sociais, planos e políticas estatais quando falamos de manutenção da dignidade. A Constituição paraguaia reconhece a importância da intervenção estatal, de forma direta, através de planos e políticas públicas, para que se cumpra a dignidade real dos em situação de pobreza extrema e dos impedidos por incapacidade ou idade. Quanto aos tratados, ao serem assinados pelo Paraguai, passam a ter status supraconstitucional, conforme previsto no artigo 137 da Constituição paraguaia281. A desigualdade, que afeta diretamente a efetivação do princípio da dignidade, possuí raiz histórica no Paraguai, tendo sido ini PARAGUAI. Constituição (1992). Constitución Política de 1992. Disponível em: . Acesso em: 4 maio 2013 281 PARAGUAI. Constituição (1992). Constitución Política de 1992. “Art. 137: La ley suprema de la República es la Constitución. Esta, los tratados, convênios y acuerdos internacionales aprobados y ratificados, las leyes dictadas por el Congreso y otras disposiciones jurídicas de inferior jerarquía, sancionadas en consecuencia, integran el derecho positivo nacional en el orden de prelación enunciado.” 280

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ciada no tempo da colonização. O governo ditatorial de Stroessner (1957–1987) corroborou bastante para a atual situação, quando, através de sua política de governo e corrupção, criou uma elite cívico-militar, que se apropriou dos bens estatais282. Na atualidade, o principal empecilho para a concretização do princípio da Dignidade na sociedade paraguaia está no difícil acesso à educação, à saúde e à justiça. Existe previsão legal para que haja o acesso à educação e à cultura, conforme pode ser observado do artigo 68 ao 85 da Constituição Paraguaia. A parte formal já existe e é bem estruturada, o que falta é a aplicação social desses princípios e normas.

3.3 A dignidade no ordenamento uruguaio A Constituição Uruguaia vigente foi aprovada, através de plebiscito, em novembro de 1966; é conhecida como Constituição de 1967. Possuí 322 artigos e está dividida em dezenove seções. Traz a questão dos direitos humanos, na seção II, dos “Direitos, Deveres e Garantias”, que se estende do artigo 7° ao 72°. Na primeira parte da seção, do artigo 7° ao 39°, encontram-se listados os direitos fundamentais, enquanto que do artigo 40° ao 71° encontram-se os direitos sociais283. É valido ressaltar, que não há, na Constituição uruguaia, o termo “Dignidade”, entretanto entendemos esse princípio como norte absoluto de todos os Direitos Fundamentais, que estão expostos na Carta Magna. Quanto à recepção dos tratados no ordenamento interno, a Constituição não deixa claro com qual status o tratado é incorporado CANCIO, Ana Inés Couchonnal. La desigaldad como relación social. Apuntes sobre ideologia de la desigualdad a partir de la reseña de um caso paraguayo. In: DÍAZ, Laura Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 71-87. 283 GOMEZ, Pedro J. Montano. La Constitución de la República y el Derecho Penal Uruguayo. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. 282

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no ordenamento. Entretanto, a jurisprudência e a doutrina uruguaia demonstram que os tratados passam a valer com status de lei ordinária dentro do país284. Em relação aos desafios sociais para a implementação da Dignidade, encontramos os mesmo problemas de desigualdade, pobreza e dificuldade de acesso à educação, à saúde e à alimentação. É verdade que o Uruguai tem a terceira maior renda per capita da região, ficando atrás do Chile e Argentina, somente. Além disso, o PIB do país teve perceptível aumento ano passado, graças ao bom preço de exportação dos comodities; entretanto, os déficits sociais continuam enormes e há um longo caminho a ser seguido285.

3.4 A dignidade no ordenamento venezuelano Quando tratamos do ordenamento venezuelano, nos deparamos com um tema polêmico, em nível mundial. Em 1999, o país passou por uma Assembleia Constituinte, que substituiu a antiga Constituição de 1967. Essa transformação constitucional era a principal plataforma política de Húgo Chávez Frías, militante do antigo Movimento Bolivariano Revolucionário-200 (MBR-200)286. A Constituição é polêmica, devido ao fato de o governo de Chávez ser polêmico; sendo o falecido presidente ora defendido por uns, como o homem que deu voz aos venezuelanos, ora atacado por outros, como o ditador populista da Venezuela. Verdade é que a nova HEDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derecho humano em orden interno: la importancia del principio pro homineI Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Disponível em: Acesso em: 5 maio 2013. 285 HERRERA, Ernesto. Uma Visão Interna da Economia do Uruguai. Disponível em: Acesso em: 5 maio 2013. 286 PÁDUA, Adriana Suzart de. Mudança e Continuidade: Notas comparativas da Constituição Bolivariana da Venezuela. Revista Dialogus. Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, 2008. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. 284

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Constituição (1999) trouxe maior voz ao povo, que estava descontente com a incapacidade dos governantes anteriores de resolverem a alastrada crise econômica e a corrupção desmedida. A Constituição de 1999 é fundamentada nos ideais libertários de Simón Bolívar. Conforme é possível observar logo no preâmbulo do documento, pauta-se na independência do Estado, na necessidade de integração da América Latina e na garantia fundamental e indivisível dos direitos humanos287. O artigo 2° da Carta Magna traz como um dos valores superiores do ordenamento jurídico a preeminência dos direitos humanos, sendo que é no artigo 3° que pela primeira vez aparece a palavra Dignidade, como sendo um dos fins essenciais do Estado. Outra questão importante a ser ressaltada é que os tratados internacionais, os quais a Venezuela for signatária, incorporam seu ordenamento jurídico com status de norma constitucional. Aqui destacamos, novamente, que esse Estado é signatário da Organização dos Estados Americanos e obriga-se a seguir aquilo que foi estabelecido na Declaração Interamericana de Direitos Humanos (1948)288. O problema atual para a implantação plena da Dignidade na sociedade venezuelana está na grande disparidade econômico-social; hoje, o país conta com desvalorização monetária, aumento da inflação, corte de benefícios sociais e falta de produtos relativos à alimentação289. VENEZUELA. Constituição da Venezuela (1999). Constitución de la República Bolivariana de Venezuela. Disponível em : . Acesso em: 5 maio 2013. 288 OEA. Países Membros. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. 289 PACETE, Luiz Gustavo. Futuro Econômico da Venezuela é incerto após a morte de Hugo Chávez. Istoé Dinheiro. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. 287

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3.5 A dignidade no ordenamento argentino A Constituição argentina em vigor data de 1853, tendo sofrido, até então, seis reformas em seu texto (reformas de 1860, 1866, 1898, 1949,1972, 1994). A última reforma (1994) trouxe à Constituição uma abordagem mais atual dos direitos humanos, acrescentando proteção a vários direitos sociais, aos direitos dos indígenas, das mulheres e do meio ambiente290. A Constituição Argentina por ter formação histórica diferente da maioria das constituições latino-americanas, apresenta uma organização distinta das demais. Diferentemente das constituições anteriormente estudadas, essa é menos principiológica, tanto que não encontramos nela, sequer uma vez, a palavra Dignidade. É interessante, dentro do tema da reforma de 1994, observarmos o artigo 75, inciso 19, que prevê uma série de regulamentações próprias ao desenvolvimento humano, voltada para a manutenção de sua dignidade291. O inciso 22 desse mesmo artigo é interessante ao tema do princípio da Dignidade humana, por versar sobre a questão dos tratados internacionais. Esses, desde que aprovados pelo Congresso Nacional, têm hierarquia superior ao da lei ordinária e complementam o disposto na Constituição. GELLI, María Angélica. Legitimidad e poder em la reforma constitucional argentina de 1994. V Congreso de Derecho Iberoamericano. Disponível em: Acesso em: 5 maio 2013. 291 Argentina. Constituição da Argentina. Constitución Nacional (1853). Art. 75: “Corresponde ao Congresso... inc. 19: Proveer lo conducente al desarrollo humano, al progreso económico con justicia social, a la productividad de la economía nacional, a la generación de empleo, a la formación profesional de lós trabajadores, a la defensa del valor de la moneda, a la investigación y al desarrollo científico y tecnológico, su difusión y aprovechamiento [...] promover políticas diferenciadas que tiendan a equilibrar el desigual desarrollo relativo de provincias y regiones.  [...] Sancionar leyes de organización y de base de la educación que consoliden la unidad nacional respetando las particularidades provinciales y locales; que aseguren la responsabilidad indelegable del Estado, la participación de la familia y la sociedad, la promoción de los valores democráticos y la igualdad de oportunidades y posibilidades sin discriminación alguna; y que garanticen los principios de gratuidad y equidad de la educación pública estatal y la autonomía y autarquía de las universidades nacionales. Dictar leyes que protejan la identidad y pluralidad cultural, la libre creación y circulación de las obras del autor; el patrimonio artístico y los espacios culturales y audiovisuales” 290

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Ainda no inciso 22, está expresso no texto constitucional que a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem; a Declaração Universal de Direitos Humanos; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e seu Protocolo Facultativo; a Convenção sobre a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; a Convenção contra a Tortura e outros Tratos ou Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes; a Convenção sobre os Direitos da Criança; durante o período de sua vigência, são válidos no ordenamento, complementando os demais direitos e garantias expressos. Em relação às políticas públicas para implementação social ampla da Dignidade, a Argentina têm diversos planos assistenciais, no campo alimentar292, de educação, de saúde, entre outros de necessidade popular. Entretanto sofre com problemas econômicos e políticos oriundos de uma série de políticas de governo irresponsáveis, que acabaram por gerar várias crises econômicas e casos graves de inflação. Desde 1975, o Estado argentino já passou por sete crises, com diversos ápices inflacionários293. Enquanto houver esse temor econômico, que afeta diretamente a relação de consumo e o mercado de trabalho, é difícil pensar em concretização da Dignidade e dos direitos sociais, que estarão constantemente ameaçados pelas intempéries econômicas.

IERULLO, Martin. Los desafios de las políticas assistenciales en Argentina actual. In: DÍAZ, Laura Mota(Org.); COHEN, Nestor (Org.); CATTANI, Antonio David (Org.). America Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p .243-264. 293 PALACIOS, Ariel. Passados 10 anos, Argentina revive crise. Estadão. São Paulo, 2 jun. 2012. Disponível em: Acesso em: 5 maio 2013. 292

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, concluímos este trabalho, que busca dar um panorama geral sobre a temática da dignidade da pessoa humana não só no ordenamento jurídico brasileiro, mas também nos ordenamentos dos demais países da América Latina que compõem o Mercosul. Faz-se mister ressaltar a importância de serem feitas abordagens acadêmicas nesse sentido, tendo em vista que a distancia geográfica e econômica entre esses países é pequena, e a distância sociológica, contudo, é enorme e precisa ser superada, principalmente no que tange à relação do Brasil, em específico, com os demais países. A América Latina, apesar da sua heterogeneidade, constitui uma sociedade com muitos pontos em comum. Embora haja diferenças culturais e econômicas entre os Estados, há uma série de fatores, de ordem histórica e principiológica, que unem os países do Mercosul. São eles todos signatários da Declaração Interamericana de Direitos Humanos de 1948, o que já estabelece um compromisso comum de todos eles de agir no sentido de melhor concretizar o acesso aos direitos humanos, o que coaduna, por sua vez, com o verdadeiro respeito à dignidade da pessoa humana. Afirmamos, então, que é necessária e imprescindível para o desenvolvimento humano dos latinos americanos, a reunião política e social dos Estados da região, tendo por objetivo a superação da pobreza e da marginalização.

5 REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, Agassiz. MELAGRÉ, Plínio. (Org.). Dignidade da Pessoa Humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. BASCH, Fernando; FILLIPINI, Leonardo; LAYA, Ana; NINO Mariano; ROSSI, Felicitas; SCHREIBER, Bárbara. A eficácia do sistema de Direitos Humanos: uma abordagem quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões. Revista Internacional de Direitos Humanos. Disponível em: Acesso em: 5 maio 2013.

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CANCIO, Ana Inés Couchonnal. La desigaldad como relación social. Apuntes sobre ideologia de la desigualdad a partir de la reseña de um caso paraguayo. In: DÍAZ, Laura Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 71-87. CANTO-SPERBER, Monique. Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. Tradução de: Dicctionaire d’éthique et de philosophie morale. GOMEZ, Pedro J. Montano. La Constitución de la República y el Derecho Penal Uruguayo. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. HEDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derecho humano em orden interno: la importancia del principio pro homineI Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. HERRERA, Ernesto. Uma Visão Interna da Economia do Uruguai. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. IERULLO, Martin. Los desafios de las políticas assistenciales en Argentina actual. In: DÍAZ, Laura Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 243-264. MACEDO, Regina Maria. FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. OEA. Países Membros. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. PACETE, Luiz Gustavo. Futuro Econômico da Venezuela é incerto após a morte de Hugo Chávez. Istoé Dinheiro. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. PÁDUA, Adriana Suzart de. Mudança e Continuidade: Notas comparativas da Constituição Bolivariana da Venezuela. Revista Dialogus. Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, 2008. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. PALACIOS, Ariel. Passados 10 anos, Argentina revive crise. Estadão. São Paulo, 2 jun. 2012. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. PARAGUAI. Constituição (1992). Constitución Política de 1992. Disponível em: . Acesso em: 4 maio 2013.

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REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SALGUEIRO, Jorge Silvero. La Constitución de la República Paraguaya de 20 de junio de 1992. Revista Jurídica Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível em: . Acesso em: 4 maio 2013. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet, Pedro Scherer de Mello Aleixo e Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. VENEZUELA. Constituição da Venezuela (1999). Constitución de la República Bolivariana de Venezuela. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013.

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O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E A PROTEÇÃO DOS PRISIONEIROS DE GUERRA Thalyta dos Santos Assessora no Programa de Educação em Direitos Humanos do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH em Joinville/SC. Formada em Direito pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, Brasil. Pós-graduanda em Direito Público Constitucional e Administrativo pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Brasil. ([email protected])

Resumo: O presente artigo objetiva descrever, por meio de interpretação da legislação e doutrinas pertinentes, a guerra e o nascimento do Direito Internacional Humanitário, especialmente a proteção conferida por este aos prisioneiros de guerra. O método utilizado é o indutivo, procedendo-se a pesquisa e identificação das particularidades do fenômeno ora estudado. Para efetivação desta pesquisa, utilizou-se da metodologia da pesquisa qualitativa através do emprego de meios bibliográficos, explorando o tema com base em trabalhos já publicados com fins de produzir uma pesquisa descritiva, visando registrar e analisar os fatos e fenômenos colhidos sem, contudo, manipulá-los. Com este estudo foi possível analisar o surgimento, a evolução, a conceituação e as características do Direito Internacional Humanitário, bem como delinear todos os aspectos relevantes da proteção conferida aos prisioneiros de guerra. Chegou-se a conclusão com esta pesquisa de que a guerra sempre fez parte da história das nações e, portanto, a devida regulamentação dos conflitos tornou-se imprescindível, principalmente com o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Direito Humanitário – Guerra – Prisioneiros de Guerra – Lei – Conflitos. Sumário: 1. Introdução. 2. Guerra Clássica e Regulamentação das Hostilidades. 3. O Direito Internacional Humanitário. 3.1 Evolução histórica. 3.2 Conceitos e Características. 4. Prisioneiros de Guerra e a Proteção pelas Convenções de Genebra. 4.1 Direitos dos prisioneiros de guerra 4.2 Condições de internamento 4.3 Condições morais e psicológicas do internamento. 4.4 Relacionamento dos prisioneiros com as autoridades e disciplina. 4.5 Sanções. 4.6 Garantias Judiciais. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

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1 INTRODUÇÃO No contexto internacional a guerra sempre teve um papel relevante. Os Estados se utilizavam dela para defender seus interesses e resolver conflitos. No entanto, o uso da força entre os beligerantes sempre foi sujeito a normas que, inicialmente, eram acordadas entre as próprias partes em conflito e vigiam somente entre elas (ICRC, 2002, p. 8). Tem-se uma estimativa que entre os anos de 3600 a.C. e 2000 d.C. cerca de 14.500 conflitos armados tenham ocorrido entre nações, deixando cerca de quatro bilhões de mortos no total (CRETELLA NETO, 2008, p. 463). Conforme a crescente e constante evolução da sociedade internacional a forma dos conflitos militares também foi se modificando. De fato, as normas da guerra vêm se desenvolvendo pelo direito costumeiro (JO, 2000, p. 552-554). No passado, as guerras não envolviam diretamente as pessoas privadas, e sim, eram conduzidas através de conflitos diretos entre forças militares. Ao longo da história as guerras já tiveram os mais variados objetivos tais como obter territórios, criar independência, proteger território ou adquirir tronos (MELLO, 2000, p. 1.499-1.501). De acordo com Jo (2000, p. 555): “As guerras dos séculos XVIII e XIX eram disputadas mais entre forças armadas do que entre povos. Por isso, as regras desenvolveram-se também no sentido de proteger os próprios membros das forças armadas que se encontrassem fora de combate, como os doentes, feridos, prisioneiros de guerra, etc.” Progressivamente, os conflitos armados vêm assumindo novas formas que facilmente se constatam ao se observar as décadas de 1980 e 1990, bem como o início do século XXI. Neste cerne, bem

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lecionou Borges (2006, p. 3): “[...] é imprescindível que o direito, como fator regulador da vida em sociedade, volte-se para essa questão e crie mecanismos para mitigar o sofrimento humano causado por uma situação de conflito armado, ou, em outras palavras, que se proponha a ‘humanizar’ a guerra”. Assim, traduz-se essencial a existência de um ramo do direito que regule tal situação. É com este objetivo que nasce o Direito Internacional Humanitário, que se traduz no conjunto de regras que conduzem os tempos de guerra, com o objetivo de evitar o sofrimento humano durante as hostilidades e impedir a plena e livre atuação do ente público (CICR, 2002, p. 13-15). Nesse diapasão, importante analisar os aspectos concernentes à proteção dos prisioneiros de guerra, cujo histórico de vulnerabilidade e maus tratos em tempos de conflitos é notadamente conhecido. Os documentos basilares do Direito Internacional Humanitário são as quatro Convenções de Genebra que tiveram sua gênese no livro escrito por Henry Dunant após os horrores presenciados por ele na Batalha de Solferino ocorrida na Itália no ano de 1859. Na época, tais documentos eram escritos inéditos acerca do tema, visando proteger todos os envolvidos nas batalhas: civis, militares do exército e da marinha feridos e doentes, bem como os combatentes capturados denominados prisioneiros de guerra (CICR, 2002, p. 7). Desta feita, o que se pretende é descrever todos os aspectos relevantes do Direito Internacional Humanitário, bem como delinear todos os aspectos de proteção que a III Convenção de Genebra, escrita em 1929, traz aos prisioneiros de guerra.

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GUERRA CLÁSSICA E REGULAMENTAÇÃO DAS HOSTILIDADES

O conceito de guerra não é de fácil alcance perante o Direito Internacional. Para a formação de uma guerra internacional é neces422

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sário que exista um conflito militar armado e a vontade das partes em praticar a guerra, ou seja, a intenção de guerrear. Essa intenção, em princípio, deveria se manifestar de forma explícita através de uma declaração de guerra (CRETELLA NETO, 2008, p. 463). Hoje, entretanto, por motivos estratégicos as guerras se iniciam sem prévios avisos. Portanto, a guerra existe mediante a reunião de dois elementos: o elemento objetivo, que se traduz na luta armada entre Estados e o elemento subjetivo, que é a vontade de estar em guerra. A união destes elementos cria o estado de guerra que possui regulamentação própria. A guerra, portanto, surge da vontade do Estado, sendo necessária para o seu início a vontade de apenas um dos envolvidos (MELLO, 2000, p. 1.411). A diferença entre o estado de guerra e aqueles atos em que se usa força mas não se configuram como guerra é basicamente a falta do elemento subjetivo, ou seja, a falta da intenção de guerrear. Segundo definição de Clausewitz (1996, p. 7): “A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”. Já Mello (2000, p. 1.499) define a guerra da seguinte maneira: A guerra é o estágio mais grave nas relações internacionais. Ela é um ilícito ou mesmo um crime internacional. Os conflitos armados que não são guerras não obrigam os terceiros Estados ao estatuto de neutralidade, os tratados entre as partes em luta não são suspensos ou rompidos, nem há necessariamente o rompimento de relações diplomáticas. A guerra é um status jurídico que foi definido em uma evolução durante séculos. O conflito armado é uma noção humanitária que surge no século XX. Ele não rompe o status de Paz.

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Finalmente, conceito mais completo é trazido por Dinstein (2004, p. 21): “Guerra é a intenção hostil entre dois ou mais Estados, seja num sentido técnico ou material.” Mais adiante, explica que: “A guerra no sentido técnico é o status formal produzido por uma declaração de guerra. A guerra no sentido material é gerada pelo uso da força armada, que deve ser extensiva e realizada por pelo menos uma das partes em conflito”. Entre os anos 1864 e 1949 as Convenções de Genebra foram elaboradas na Suíça, cujos textos definem as normas para as leis internacionais relativas ao Direito Internacional Humanitário, prescrevendo os direitos e deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra, visando, portanto, proteger os seres humanos que de alguma maneira estejam envolvidos em conflitos armados (CICR, 2002, p. 6-8).

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O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

3.1 Evolução histórica Primariamente, as regras que regulavam os conflitos armados não eram escritas, eram baseadas unicamente nos costumes. Após, surgiram acordos geralmente bilaterais, ratificados muitas vezes depois de findo os conflitos. Estas leis aplicadas em conflitos armados variavam muito, dependendo muitas vezes do período em questão, da população, do local, entre outros fatores. Ademais, na maioria das vezes, tais acordos só eram aplicáveis em um conflito específico (ICRC, 2002, p. 8). É notável, portanto, que até meados do século XIX, acordos cujo objetivo era proteger as vítimas da guerra obrigavam unicamente as partes contratantes e, na maioria das vezes aconteciam de forma ocasional e eram válidos somente enquanto perdurava o conflito (BORY, 1982).

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O Direito Humanitário Contemporâneo tem sua gênese em 1859 na Itália, no campo de batalha de Solferino. Durante esta batalha, Henry Dunant testemunhou acontecimentos cruéis, e se indignou com o abandono das centenas de soldados feridos. Decidiu então, organizar o socorro e a assistência aos feridos (CICR, 2002, p. 7). Após a batalha, Dunant escreveu o livro Lembrança de Solferino, descrevendo as atrocidades do campo de batalha. Além disso, Dunant apresentou suas idéias acerca de como melhorar a assistência aos feridos. Tinha basicamente três propostas: fundar em cada país sociedades de socorro para assistir os feridos da guerra, isso porque, nestas situações, os serviços médicos eram em sua grande parte insuficientes; considerar “neutros” os feridos durante o combate, assim como os médicos e equipamentos de assistência e; propor um tratado de força internacional, que garantisse o cumprimento das medidas mencionadas, garantindo a proteção dos feridos e do pessoal médico (TRINDADE; PEYTRIGNET; SANTIAGO, 2004). Descreve detalhadamente Valladares (2006, p. 123-124): Em 24 de junho de 1859, o cidadão suíço Jean Henri Dunant encontra-se em Lombardia, norte da Itália, onde o exército francês combatia o austríaco, nas proximidades de Solferino. Dunant havia viajado até o lugar mencionado para entrevistar o Imperador Napoleão III da França, com a esperança de conseguir seu apoio em alguns projetos de índole pessoal. A batalha cruel deixou milhares de feridos, que por insuficiência de corporações médicas de seus próprios exércitos, não recebiam a atenção adequada. Dunant, comovido pelo triste espetáculo de corpos mutilados, de vozes febris que imploravam por ajuda, começou de imediato a socorrer os feridos e os enfermos com a colaboração dos habitantes do povoado de Castiglione, dissipando

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socorro mais adiante de bandeiras, uniformes distintos ou qualquer discriminação de índole desfavorável. De volta a Genebra, concretizou as impressões vividas em um livro: “Lembrança de Solferino”.

A obra de Dunant teve grande repercussão e, no ano de 1863 formou-se o “Comitê Internacional de Socorros aos Feridos”, composto por cinco membros: Gustave Moynier, Guilaume-Henri Dufour, Louis Appia, Théodore Maunoir e o próprio Dunant. Mais tarde este comitê foi o fundador da Cruz Vermelha e promoveu as Convenções de Genebra. Em 1880, a organização ficou conhecida como Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR, 2002, p.7). Nas palavras de Valladares (2006, p. 130-131), [...] o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), é uma organização imparcial, neutra e independente que tem a missão exclusivamente humanitária de proteger a vida e a dignidade das vítimas dos conflitos armados e de certas situações de violência interna, assim como de prestar-lhes assistência. Também, procura prevenir o sofrimento mediante a promoção e o fortalecimento do direito internacional humanitário e seus princípios universais.

Portanto, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha visa proteger primordialmente as vítimas dos conflitos armados, sejam elas militares ou civis, destacando-se as seguintes tarefas: visitar prisioneiros de guerra e detidos civis, procurar pelas pessoas tidas como desaparecidas, manter o contato entre famílias que foram separadas por conflitos e posteriormente reuni-las, prover água, alimentos e assistência médica aos civis, divulgar o Direito Internacional Humanitário e zelar por sua aplicação. O Conselho Federal Suíço convocou, em 1864, uma Conferência Diplomática em Genebra que teve a participação de dezesseis Estados. Durante esta Convenção foi adotado o texto da primeira

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Convenção de Genebra que visa proteger os feridos e os doentes das forças armadas em conflito. No ano de 1866, uma batalha naval em Lyssa fez nascer a Convenção para proteção do militar náufrago que foi adotada em Haia em 1907. Posteriormente, a Primeira Guerra Mundial demonstrou a necessidade de se proteger os prisioneiros de guerra, nascendo em 1929, a Convenção sobre a proteção dos prisioneiros de guerra. Já em 1949 em uma Conferência Suíça, foram revisadas as três convenções anteriores e nasceu a quarta convenção, relativa à proteção dos civis em tempos de guerra (VALLADARES, 2006, p. 124-126). Nesse sentido, afirmou Sousa (2007, p. 52): Na segunda metade do século XIX acontece o que se pode chamar de ‘fato gerador’ do moderno Direito Internacional Humanitário: o nascimento do CICV. Através da iniciativa de determinados cidadãos e do governo suíço, catorze delegados de países europeus presentes a uma Conferência Internacional realizada em Genebra resolveram adotar um corpo de normas que vincularia os Estados em situações de conflito.

As Convenções de Genebra são, portanto, os principais documentos que disciplinam os conflitos armados.

3.2 Conceito e características O Direito Internacional Humanitário nasceu da necessidade de proteção dos indivíduos durante conflitos armados internacionais ou não-internacionais, sendo parte, portanto, do Direito Internacional Público (ICRC, 2002, p. 4-7). Nas palavras de Mello (1997, p. 137): “Talvez se possa definir o Direito Internacional Humanitário como o sub-ramo do Direito Internacional Público Positivo que integra o Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo por finalidade proteger a pessoa humana em conflitos armados”.

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O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de regras que, em tempos de guerras e conflitos, procura proteger aqueles que não são parte do conflito (civis) ou aqueles que já foram partes do conflito (soldados feridos). De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2002, p. 14): O direito internacional humanitário, denominado também direito dos conflitos armados ou direito de guerra, é o conjunto de normas que, em tempo de guerra, permite prestar proteção as pessoas que não participam ou deixaram de participar das hostilidades, assim como limitar os métodos e os meios de fazer a guerra. Sua finalidade principal é limitar e prevenir os sofrimentos do ser humano em tempo de conflito armado.

Uma definição mais abrangente é trazida por Swinarski (1990, p. 31): O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito escolherem livremente os métodos e os meios utilizados na guerra (Direito de Haia) ou que protege as pessoas e os bens afetados (Direito de Genebra).

A função primordial deste ramo do direito é organizar as relações entre os Estados em situação de hostilidade com o intuito de proteger os indivíduos em situação de violência. Essas normas impõem obrigações aos Estados, a grupos armados, a organizações internacionais e, inclusive, aos indivíduos. As principais fontes do Direito Internacional Humanitário são os tratados internacionais, as normas consuetudinárias, os prin-

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cípios gerais do direito e a jurisprudência dos Tribunais Internacionais (SOUSA, 2002, p. 413). As regras essenciais do Direito Internacional Humanitário são: a) as partes conflitantes devem distinguir os combatentes da população civil; nenhum civil deve ser atacado; b) os ataques devem ser somente contra alvos militares, sendo proibido matar ou ferir adversário que já tenha se rendido ou que não mais seja parte da guerra; c) os meios e métodos de guerra não são de livre escolha para os Estados em conflito nem para suas forças armadas. É expressamente proibido o uso de armas ou métodos que causem perdas desnecessárias ou sofrimento excessivo; d) os feridos e doentes devem ser recolhidos e tratados pela parte conflitante que os tem em seu poder e, o pessoal e os equipamentos médicos devem ser poupados; e) os civis em poder do Estado inimigo ou os combatentes capturados devem ter sua dignidade, sua vida e suas crenças respeitadas. Eles tem direito a se comunicar com suas famílias, a tratamento médico e as garantias judiciais básicas. Ademais, os princípios essenciais do Direito Internacional Humanitário, são: a) cláusula de Martens: preconiza que tanto os civis quanto os combatentes ficam sob a autoridade e a proteção dos princípios de direito internacional mesmo nas situações não previstas; b) estatuto jurídico das partes: respeitar ou aplicar as normas de Direito Internacional Humanitário não implica estar em guerra, ou seja, a aplicabilidade destas normas não afeta o status jurídico dos Estados; c) princípio da inviolabilidade: são invioláveis a vida, a integridade física, moral, as convicções religiosas e pessoais

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das vítimas dos conflitos (pessoas afetadas pelas hostilidades); d) princípio de não discriminação: não pode haver discriminação por motivo de raça, sexo, nacionalidade, opinião religiosa ou política dos adversários feridos ou prisioneiros; e) princípio da segurança: ninguém pode renunciar aos direitos conferidos pelas Convenções, representando isso que sempre será garantido a permanência da legalidade jurídica mínima em qualquer situação; f) princípio da neutralidade: diz respeito à assistência aos feridos. O pessoal sanitário não é considerado parte do conflito, devendo portanto serem imunes a ataques desde que se abstenham de qualquer ato de hostilidade; g) princípio de limitação: diz respeito a limitar os meios e os métodos de combate, no sentido de distinguir civis de combatentes, proteger edifícios históricos ou religiosos e proibir meios desleais de combate como armas que causem danos excessivos e desnecessários. O Direito Internacional Humanitário possui algumas peculiaridades na sua aplicação quais sejam: suas normas são de natureza imperativa; os Estados Partes das Convenções de Genebra têm não só a obrigação de respeitar suas normas como também fazê-las respeitar e, finalmente, não há condição de reciprocidade nas Convenções, ou seja, o fato de um Estado Parte não respeitar seus deveres não permite que se adversário faça o mesmo. Ademais, destaca-se que, cabe aos Estados partes das Convenções de Genebra cumprir as normas de Direito Humanitário assim como exigir que outros Estados as respeitem; também, devem os Estados disseminarem o conhecimento acerca deste ramo do direito para a população civil e militar (SOUSA, 2002, p. 414-417).

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PRISIONEIROS DE GUERRA E A PROTEÇÃO CONFERIDA PELAS CONVENÇÕES DE GENEBRA

Na Antiguidade, o tratamento que recebiam os prisioneiros de guerra era extremamente desumano. Tinha-se como regra geral matá-los ou transformá-los em escravos; a exceção era libertá-los. Somente com o advento do Cristianismo que este tratamento começou a se humanizar (MELLO, 2000, p. 1.537). A partir do Século XIX, firmou-se o princípio de que o capturador deveria tratar o prisioneiro do mesmo modo que tratava suas próprias tropas (MELLO, 2000, p. 1.538). Assinada em 1949, a Terceira Convenção de Genebra regula o tratamento dos prisioneiros de guerra. Esta Convenção não se aplica apenas ao estado guerra, mas em qualquer tipo de conflito armado. A regulamentação não alcança somente as forças armadas, mas também as milícias, os movimentos de resistência, etc. Os direitos que esta Convenção concede aos prisioneiros são irrenunciáveis. Importante enfatizar também que a violação das leis da guerra por parte do combatente não lhe retira o estatuto de prisioneiro de guerra (MELLO, 2000, p. 1.538-1.540). O artigo 4º da Terceira Convenção de Genebra regula o estatuto do prisioneiro de guerra clássico. Seu princípio geral é que qualquer membro das forças armadas de uma Parte em conflito é combatente e qualquer combatente capturado pela Parte adversária será prisioneiro de guerra (CICV, 1992, p. 63-65). Destaca o Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (Protocolo I) que, qualquer pessoa que for capturada participando das hostilidades será considerada prisioneiro de guerra e como tal tratada, mesmo em caso de dúvida quanto ao seu estatuto. Conforme o artigo 45 deste Protocolo (CICV, 1998, p. 36-37): Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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ARTIGO 45 – Proteção das pessoas que tomam parte nas hostilidades 1. Aquele que tomar parte em hostilidades e cair em poder de uma Parte adversa será considerado prisioneiro de guerra e, em consequência estará protegido pela III Convenção, quando reivindicar o estatuto de prisioneiro de guerra, ou contar que possui direito ao estatuto de prisioneiro de guerra, ou quando a Parte de que depende reivindicar para ele esse estatuto, por notificação à Potência que o detém ou à Potência Protetora. Se existir alguma dúvida sobre o seu direito ao estatuto do prisioneiro de guerra, ele continuará a se beneficiar desse estatuto e, consequentemente da proteção da III Convenção e do presente Protocolo, enquanto estiver à espera da determinação do seu estatuto por um tribunal competente. 2. Se uma pessoa em poder de uma Parte adversa não for detida como prisioneiro de guerra e tiver de ser julgada por essa Parte por uma infração ligada às hostilidades, fica habilitada a fazer valer seu direito ao estatuto de prisioneiro de guerra perante um tribunal judicial e a obter uma decisão sobre essa questão. Sempre que as regras de processo aplicáveis o permitam, a questão deverá ser decidida antes de julgada a infração. Os representantes da Potência Protetora têm direito de assistir aos debates em que essa questão for decidida, salvo no caso excepcional em que os debates ocorrerem a portas fechadas, por razões de segurança do Estado. Neste caso, a Potência Detentora deverá avisar a Potência Protetora. 3. Todo aquele que, tendo tomado parte nas hostilidades, não tiver direito ao estatuto de prisioneiro de guerra e não se beneficiar de um tratamento mais favorável, em conformidade com a IV Convenção, terá em qualquer momento direito à proteção do artigo 75 do presente Protocolo. Em território ocupado, e salvo no caso de detenção por espionagem, ele se beneficiará, igualmente, não obstante o disposto no artigo 5 da IV Convenção, dos direitos de comunicação previstos naquela Convenção.

Desta feita, possível constatar que o princípio basilar acerca dos prisioneiros de guerra contido na Terceira Convenção de Ge432

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nebra ressalta que qualquer pessoa que for capturada participando das hostilidades deve ser considerada prisioneiro de guerra e tratada como tal, até mesmo em caso de dúvida quanto ao seu estatuto. Tal medida visa, principalmente, evitar qualquer tipo de atitude arbitrária à época da captura. Acerca do tema preceitua o artigo 5º da Terceira Convenção de Genebra: “Se houver dúvida quanto ao enquadramento em uma das categorias enumeradas no artigo 4 de pessoas que tiverem cometido um ato beligerante e caírem em poder do inimigo, tais pessoas se beneficiarão da proteção deste Convênio, aguardando que um tribunal competente determine o seu estatuto” (CICV, 1992, p. 65). Ademais, é importante ressaltar que a Convenção proíbe expressamente em seu artigo 7º que os prisioneiros de guerra renunciem, seja total ou parcialmente, os direitos que lhes são conferidos por ela.

4.1 Direitos dos prisioneiros de guerra O primeiro grande princípio concernente aos direitos dos prisioneiros de guerra diz respeito ao fato que os prisioneiros estão em poder da Potência inimiga, e não dos indivíduos que os capturaram. Portanto, a Potência detentora sempre será a responsável pelo tratamento que for dado aos prisioneiros em seu poder, independentemente de quaisquer responsabilidades individuais que possam vir a existir (CICV, 1992, p. 67). A Convenção também preceitua a importância do tratamento humano que deve ser dado aos prisioneiros. Deverá sempre haver o respeito à pessoa e à honra dos prisioneiros e proteção destes contra atos de violência, intimidação ou insultos. Destaca o artigo 13 da Terceira Convenção de Genebra que “[...] nenhum prisioneiro de guerra poderá ser submetido a qualquer mutilação física, a experiência médica ou científica de qualquer Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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natureza que não se justifique pelo tratamento médico do prisioneiro e que não seja em seu interesse” (CICV, 1992, p. 67). Também, é obrigatório que a Potência detentora forneça gratuitamente aos prisioneiros o necessário para o seu sustento e a assistência médica necessária ao seu estado de saúde, e trate todos os prisioneiros igualmente sem nenhuma distinção de caráter desfavorável, ressalvadas aquelas necessárias ante ao estado de saúde, idade ou qualificação profissional dos prisioneiros (CICV, 1992, p. 68). Desta maneira, sendo a Potência detentora a responsável pelo tratamento oferecido aos prisioneiros, deverá ela prover as condições materiais e sociais mínimas para uma vivência digna por parte dos detentos durante o período de reclusão.

4.2 Condições de internamento A Potência detentora é a responsável pelas condições viáveis de internamento, sendo considerado pela Convenção uma infração grave qualquer tipo de atitude que venha resultar em perigo a saúde ou até mesmo a morte dos prisioneiros. Conforme destaca Omedas (2003), “a organização de um campo de prisioneiros está regulada muito ordenadamente na Terceira Convenção de Genebra tanto em seus aspectos logísticos de localização e infraestrutura como em seu regime de vida e funcionamento que compreende, por sua vez, os regimes interiores, assistencial, laboral, penal e disciplinário”. De acordo com o artigo 25 da Convenção, o local de internamento dos prisioneiros de guerra deve estar localizado em terra firme onde seja possível proporcionar as devidas condições de higiene e salubridade (CICV, 1992, p. 72). Deverá haver nos campos uma estrutura mínima que garanta a existência de locais separados para dormitórios, banheiros, cozinha, refeitórios e locais para assistência médica.

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Os dormitórios devem ter condições de habitação digna, com circulação de ar, proteção contra umidade e frio e a devida iluminação, além, inclusive, de mobília suficiente e material apropriado para dormir (CICV, 1992, p. 72). Dispõe o artigo 26 que a alimentação diária deverá ser suficiente tanto em quantidade quanto em qualidade e variedade, visando primordialmente a mantença do bom estado de saúde dos prisioneiros além de evitar perda de peso. A água potável deverá estar sempre disponível (CICV, 1992, p. 72). Ademais, o artigo 28 da Terceira Convenção de Genebra obriga a existência, em todos os campos de prisioneiros, de cantinas onde os prisioneiros possam adquirir produtos alimentares, objetos de uso corrente, sabão e tabaco (CICV, 1992, p. 73). O vestuário completo deve ser fornecido pela Potência detentora em quantidade suficiente, devendo ser levado em consideração o clima da região onde se encontram os prisioneiros (CICV, 1992, p. 72). Quanto à higiene, preceitua o artigo 29 que é responsabilidade da Potência detentora assegurar que os campos sejam limpos e insalubres, evitando assim epidemias. Deverá haver instalações apropriadas para banho com disponibilização de água e sabão suficiente para a higiene pessoal e lavagem de roupas. (CICV, 1992, p. 73). Deverá haver enfermaria adequada em todos os campos e os prisioneiros deverão receber todos os cuidados médicos que necessitem, devendo as despesas ser assumidas pela Potência detentora (CICV, 1992, p. 73-74).

4.3 Condições morais e psicológicas do internamento A Convenção de Genebra não se preocupa somente com os proventos materiais dos prisioneiros de guerra, mas, também traz disposições acerca do estado moral e psicológico dos prisioneiros.

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Aos prisioneiros de guerra é assegurada total liberdade para o exercício de sua religião, devendo haver locais adequados e reservados para os ofícios religiosos. Deverá também haver o desenvolvimento de atividades esportivas e intelectuais, procurando evitar a monotonia e incentivar o convívio social, conforme o disposto no artigo 38 da Terceira Convenção de Genebra (CICV, 1992, p. 76): Artigo 38. Embora respeitando as preferências individuais de cada prisioneiro, a Potência detentora deverá encorajar as atividades intelectuais, educativas, recreativas e desportivas dos prisioneiros de guerra; deverá tomar medidas necessárias para assegurar o exercício dessas atividades e colocar a sua disposição locais adequados e o equipamento necessário. Os prisioneiros de guerra deverão ter a possibilidade de praticar exercícios físicos, incluindo esportes e jogos, e desfrutar de ar livre. Para isso, deverão ser reservados espaços livres suficientes em todos os campos.

A Terceira Convenção de Genebra também confere a Potência detentora a possibilidade de empregar os prisioneiros de guerra que se encontram sob sua responsabilidade. Conforme destaca o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (1983, p. 27): “[...] o trabalho é limitado por uma série de normas bastante estritas, evitando-se assim que o trabalho realizado pelos prisioneiros se degenere em exploração desumana ou em participação imoral na atividade bélica da Potência Detentora”. Segundo disposições da Convenção, os prisioneiros de guerra poderão ser empregados nos serviços relacionados com a administração, instalação ou manutenção do próprio campo, ou em trabalhos que se incluam nas seguintes categorias: agricultura, indústrias de produção, extração e manufatura (excetuada as indústrias

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mecânicas e químicas ou serviços de caráter militar), transportes e manutenção sem caráter militar, atividades comerciais ou artísticas, serviços domésticos e serviços públicos sem caráter militar. Qualquer trabalho não incluído nestas categorias é vedado. Ademais, as condições de trabalho devem ser adequadas à função que é exercida pelo prisioneiro (CICV, 1992, p. 79-80). Quando a Potência detentora empregar prisioneiros, deverá aplicar as leis nacionais de proteção ao trabalho e segurança dos trabalhadores. A duração diária do trabalho não poderá ser excessiva, devendo haver intervalo de no mínimo uma hora. A Convenção também preza pela saúde e segurança dos prisioneiros trabalhadores, conforme destaca o artigo 52 da Convenção (CICV, 1992, p. 80): Nenhum prisioneiro de guerra poderá ser submetido a serviços de caráter insalubre ou perigoso, salvo no caso de ser voluntário. Ele não poderá ser submetido a um serviço considerado humilhante para um membro das forças armadas da Potência detentora. A remoção de minas e de outros dispositivos análogos é considerada como um trabalho perigoso.

Ademais, deverá ser aberta conta em nome dos prisioneiros, onde ficará o dinheiro proveniente dos trabalhos prestados, devendo esse valor ser repassado ao prisioneiro quando do término do cativeiro. A Convenção também assegura aos prisioneiros o direito de enviar e receber cartas e mensagens pessoais. Se a Potência detentora julgar necessário limitar as correspondências, deverá ser autorizado aos prisioneiros o envio de no mínimo duas cartas e quatro mensagens por mês. (art. 71 da III Convenção de Genebra). De acordo com Omedas (2003): Uma parte muito importante do sistema de proteção reside no estabelecimento de uma rede de informação que trata

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de manter, desde o primeiro momento, um contato estável, continuado e organizado entre o prisioneiro e sua família. Já desde o começo das hostilidades, cada parte em conflito constituirá uma Oficina Nacional de Informação que canalizará a informação recebida relativa aos prisioneiros feridos, enfermos e desaparecidos tanto próprios como inimigos e também relativa a combatentes falecidos cujos restos tenham sido recolhidos.

Além disso, conforme ressalta o artigo 72 da mesma Convenção (CICV, 1992, p. 87), os prisioneiros de guerra podem receber remessas contendo, [...] gêneros alimentícios, vestuários, medicamentos e artigos destinados a satisfazer suas necessidades em matéria de religião, estudo ou lazer, incluindo livros, objetos de culto, material científico, formulários de exame, instrumentos musicais, material esportivo e material que lhes permita prosseguir seus estudos ou exercer uma atividade artística.

As correspondências recebidas ou enviadas a prisioneiros de guerra podem ser censuradas tanto pelo Estado remetente quanto pelo Estado destinatário, devendo obedecer às seguintes premissas, conforme enfatiza o artigo 76 da Terceira Convenção de Genebra (CICV, 1992, p. 89): Artigo 76. A censura da correspondência expedida ou recebida pelos prisioneiros de guerra deverá ser feira o mais rapidamente possível. Só poderá ser feita pelos Estados remetente e destinatário, uma única vez para cada um deles. O controle das remessas destinadas aos prisioneiros de guerra deverá ser efetuado de modo a não prejudicar a conservação dos gêneros que contiverem; a menos que se trate apenas de textos escritos ou impressos, será feito na presença do destinatário ou de um companheiro devidamente autorizado por ele. A entrega das remessas individuais ou coletivas aos prisioneiros de guerra não poderá ser retardada sob o pretexto de dificuldades de censura.

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Qualquer proibição de correspondência promulgada pelas Partes em conflito, por razões militares ou políticas, só poderá ser temporária e com menor duração possível.

Portanto, é direito dos capturados em combate se comunicar com o exterior, tendo pleno direito de receber tanto cartas quanto gêneros que possam melhorar sua qualidade de vida durante a detenção.

4.4 RELACIONAMENTO DOS PRISIONEIROS COM AS AUTORIDADES E DISCIPLINA Em todos os locais onde houver acampamentos de prisioneiros é direito destes eleger livremente, de seis em seis meses, representante de sua confiança que terá a função de representá-los perante as autoridades militares, as Potencias protetoras, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, etc. (CICV, 1992, p. 90-91). Além disso, todo e qualquer prisioneiro tem o direito de apresentar, diretamente, petições dirigidas às autoridades militares relativas às suas condições em cativeiro. Essas petições ou queixas não podem de modo algum serem limitadas devendo, inclusive, serem transmitidas com urgência. Ressalta-se também que estas petições não podem ensejar nenhum tipo de punição ao prisioneiro remetente, tudo em conformidade com o artigo 78 da III Convenção de Genebra (CICV, 1992, p. 90). Sendo assim, os prisioneiros de guerra podem tanto se auto-representarem perante as autoridades como escolherem um representante para tal. Já o Capítulo VI da Terceira Convenção de Genebra trata das normas disciplinares dos prisioneiros de guerra. Todos os campos de prisioneiros estarão sempre sob a autoridade direta de um oficial das forças armadas regulares da Potência detentora. Este oficial deverá ter completo conhecimento das Convenções de Genebra e velar por sua aplicação.

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Deverá haver a disposição de todos os prisioneiros de guerra o texto da III Convenção de Genebra em um idioma que possam compreender. Qualquer tipo de regulamento, aviso ou ordem dirigida aos prisioneiros também deverá ser disponibilizada em idioma de sua compreensão (CICV, 1992, p. 77). O uso de armas contra prisioneiros é permitido, especialmente em casos de tentativa de fuga. Entretanto, tal uso deverá ser restrito somente a casos extremos.

4.5 Sanções O princípio geral acerca do direito aplicável aos prisioneiros de guerra encontra-se consagrado no artigo 82 da Terceira Convenção de Genebra (CICV, 1992, p. 92): Art. 82. Os prisioneiros de guerra estão sujeitos às leis, regulamentos e ordens em vigor nas forças armadas da Potência detentora. Esta será autorizada a tomar medidas judiciais ou disciplinares em relação a qualquer prisioneiro de guerra que tenha cometido uma infração a essas leis, regulamentos ou ordens. No entanto, não é permitido qualquer procedimento ou sanção contrários às disposições do presente capítulo. Os atos que forem considerados puníveis pelas leis, regulamentos e ordens da Potencia detentora quando cometidos por prisioneiros de guerra, e que não sejam assim considerados quando cometidos por membros das forças armadas dessa Potência, só poderão ser objeto de sanções disciplinares.

O artigo 83 da Convenção traz uma cláusula geral de tolerância para os casos em que houver dúvida entre a aplicabilidade da punição disciplinar ou judicial, devendo sempre dar preferência às medidas disciplinares ao invés das medidas judiciais. Os prisioneiros deverão ser julgados por tribunais militares e nunca poderão ser punidos mais de uma vez pela mesma infração.

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Ademais, não poderão em hipótese alguma ser condenados a penas diferentes das previstas para as mesmas faltas quando cometidas por membros das forças armadas da Potência detentora. ( conforme artigo 87 da III Convenção de Genebra). As penas nunca durarão mais que trinta anos. Destaca o artigo 89 que “em caso algum as penas poderão ser desumanas, brutais ou prejudiciais à saúde dos prisioneiros de guerra” (CICV, 1992, p. 94). Em casos de faltas disciplinares haverá inquérito imediato. As penas disciplinares só poderão ser impostas por oficial munido de poder disciplinar, na qualidade de comandante do campo. Em caso de pronuncia de pena disciplinar o prisioneiro deve ser informado das acusações feitas e deverá ter a oportunidade de se defender. Por conseguinte, é possível auferir que mesmo nos casos em que houver cometimento de infrações por parte dos prisioneiros de guerra, estes deverão ser penalizados de forma justa e equânime, sem que a sanção lhes cause prejuízos a sua integridade física.

4.6 Garantias jurídicas As garantias judiciais dos prisioneiros de guerra são aquelas já consagradas no âmbito do direito internacional: o prisioneiro terá informação completa e sem demora das infrações das quais está sendo acusado, irretroatividade da lei penal, presunção de inocência, ausência de coerção para qualquer tipo de confissão, julgamento na presença do acusado, direito a representação por advogado de sua escolha e direito ao contraditório e ampla defesa (CICV, 1983, p. 30). Poderá haver culminação de pena de morte se o crime cometido for punido com tal pena na Potência detentora. Ao proferir a pena de morte o tribunal deverá levar em conta que o prisioneiro não é um nacional da Potência detentora e não está ligado a ela por nenhum vínculo de fidelidade. Ademais, a pena de morte somente Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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poderá ser executada no mínimo seis meses após o envio da comunicação detalhada da condenação para a Potência protetora, conforme destaca o artigo 101 da Convenção (CICV, 1992, p. 97). A sentença proferida contra um prisioneiro de guerra somente será válida se provier dos mesmos tribunais e seguir os mesmos procedimentos aos quais os membros das forças armadas da Potência detentora estão submetidos, sendo clara a não aceitação da criação de tribunais ad hoc para este fim.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos maiores desafios do mundo moderno é a busca pela paz e pela relação amigável entre os povos e nações, busca essa corroborada pela decisão dos povos explicitada no Preâmbulo da Carta das Nações Unidas de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. (NAÇÕES UNIDAS, 2001, p. 8) A guerra, desde a Antiguidade, serviu como um dos principais meios das nações alcançarem seus objetivos e, lamentavelmente, ainda tem lugar nas sociedades modernas. Quando a mantença da paz torna-se impossível, imprescindível é a adoção de regras com o primordial objetivo de resguardar os direitos fundamentais do todos aqueles envolvidos voluntária ou involuntariamente na guerra. Neste sentido, afirmou Borges (2006, p. 30): “A partir do momento em que a voz da razão se cala e as normas do direito internacional público são desrespeitadas, surge à necessidade de adotar um conjunto de regras mínimas com a finalidade de atenuar os efeitos malignos da guerra”. Inicialmente, os conflitos armados eram regulados pelos costumes e, em um segundo momento, passaram a existir acordos somente entre as partes conflitantes e que vigiam apenas em quanto o conflito subsistia. Então, é que em meados do século XIX os esforços do Conselho Federal Suíço em Genebra criam o Comitê Internacional da 442

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Cruz Vermelha – gênese fundamental do Direito Internacional Humanitário. Foi também neste momento, no ano de 1864, que nasceu a Primeira Convenção de Genebra, visando resguardar os direitos dos militares feridos ou doentes. Nos anos seguintes, mais três Convenções foram criadas com o intuito de proteger todos aqueles que de alguma forma estivessem envolvidos em conflitos armados. Neste diapasão, a Terceira Convenção de Genebra objetiva delinear o tratamento mínimo que deve ser dispensado aos prisioneiros de guerra em todos os aspectos: condições físicas, morais e psicológicas de internamento, disciplina, sanções e garantias judiciais. Tal Convenção justifica-se na constatação histórica do tratamento desumano que sempre sofreram os capturados pelo inimigo em conflitos armados que, regra geral, eram mortos ou transformados em escravos. Nesse contexto, com o objetivo de resguardar ao máximo a dignidade da pessoa humana, a Terceira Convenção tem como princípio fundamental que, até mesmo em caso de dúvida, toda e qualquer pessoa capturada participando das hostilidades deverá ser considerada prisioneiro de guerra e estar, portanto, sob a égide da Convenção. No final da década de setenta, dois Protocolos Adicionais as Convenções de Genebra foram criados com o intuito de adequar as normas as novas demandas da sociedade moderna. Nota-se, então, que o desenvolvimento e a expansão do Direito Internacional Humanitário são perenes tendo em vista a constante modificação da realidade social e os novos delineamentos do mundo contemporâneo. Por fim, importante considerar o caráter essencial do Direito Internacional Humanitário que visa evitar o sofrimento, o caos e barbárie absolutos, considerando que intenta essencialmente limi-

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tar os instrumentos e procedimentos usados em tempo de guerra preservando o princípio mais aclamado pela sociedade internacional globalizada: a dignidade da pessoa humana.

6 REFERÊNCIAS BORGES, Leonardo. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. BORY, Françoise. Génesis y desarrollo del Derecho Internacional Humanitario. Disponível em: . Acesso em: mar. 2012. CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. Tradução: Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra: CICV, 1992. COMITE INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Normas fundamentais das convenções de genebra e seus protocolos adicionais. Genebra: CICV, 1983. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Protocolos adicionais às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra: CICV, 1998. COMITÉ INTERNACIONAL DE LA CRUZ ROJA. Descubra el CICR. Genebra: Cruz Vermelha, 2002. CRETELLA NETO, José. Terrorismo internacional: inimigo sem rosto – combatente sem pátria. Campinas: Millennium, 2008. DINSTEIN, Yoram. Guerra, agressão e legítima defesa. 3. ed. São Paulo: Manole, 2004. INTERNATIONAL COMMITTEE OF THE RED CROSS. International Humanitarian Law. Genebra: ICRC, 2002. JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. São Paulo: LTr Editora, 2000. MELLO, Celso Dudivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. v. 2. MELLO, Celso Dudivier de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. Rio de Janeiro: UNIC, 2008. OMEDAS, José Luis Doménech. Estatuto y trato de los combatientes en caso de captura. In: VALLADARES, Gabriel Pablo (Comp.). Derecho Internacional Humanitario y temas de areas vinculadas. Revista jurídica Lecciones y Ensayos, Buenos Aires, nº 78, nov. 2003. Disponível em . Acesso em: março 2012. SOUSA, Monica Teresa Costa. Direito Internacional Humanitário. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.

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SOUSA, Mônica Teresa Costa. Estados, conflitos internacionais e direito internacional humanitário: uma vinculação necessária. In: ANNONI, Danielle (Org.). Os novos conceitos do novo Direito Internacional: cidadania, democracia e direitos humanos. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. SWINARSKI, Christopher. Direito internacional humanitário como sistema de proteção internacional da pessoa humana: principais noções e institutos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard; SANTIAGO, Jaime Ruiz de. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana. Direitos Humanos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados. Disponível em: . Acesso em: março 2012. VALLADARES, Gabriel Pablo. El Comité Internacional de la Cruz Roja (CICR) y su contribución a los últimos desarrollos del derecho internacional humanitario. In: BRANT, Leonardo Temer Caldeira (Coord.). I Anuário Brasileiro de Direito Internacional. Belo Horizonte: Editora Cedin, 2006.

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ZONA DE SEGURANÇA PARA REFUGIADOS: ALTERNATIVA À QUESTÃO DOS REFUGIADOS Elisa Moretti Pavanello Bacharel em Ciências Sociais pela UFSC, Bacharel em Direito pela FAMEG, mestranda do curso de PPGRI/UFSC sob a orientação da Prof. Dra. Danielle Annoni. Voluntária na ONG APHER. ([email protected])

Resumo: O presente trabalho visa compreender o que é uma zona de segurança para refugiados dentro do país em que está ocorrendo o conflito. Ela é vista como uma alternativa ao fechamento das fronteiras pelos Estados vizinhos que não querem abrigar um contingente volumoso de refugiados. O artigo é divido em duas partes. O primeiro visa contextualizar historicamente uma zona de segurança, destacando a zona de segurança em Nanking. Em seguida, será analisado o funcionamento de duas zonas de seguranças após o período da Guerra Fria, Iraque e Srebrenica.

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Palavras-chave: zona de segurança para refugiados – massacre de Nanking – massacre de Srebrenica – uso da força. Sumário: 1. Introdução. 2. Contextualização da Zona de Segurança para refugiados. 2.1 Zona de Segurança: Primórdios. 2.2 Normatização da Zona de Segurança: Quarta Convenção de Viena de 1949. 2.3 Papel dos refugiados durante e depois da Guerra Fria. 3. Zona de Segurança: Alternativa na proteção aos refugiados. 3.1 Busca de definição para Zona de Segurança. 3.2 Iraque: Primeira Zona de Segurança. 3.3 Massacre de Srebrenica: repetição da história. 4. Considerações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO Parte-se do princípio que nenhuma pessoa abandona a sua terra, sua família, sua cultura por capricho. É uma decisão tomada com base na sua sobrevivência como ser humano, a fim escapar das violações dos direitos humanos e preservar a sua integridade física. Dessa forma, quando o Estado receptor nega o direito de buscar um lugar seguro, põe em risco à vida daquela pessoa. A zona de segurança é uma alternativa quando o refugiado não consegue abrigo em outro Estado. Na teoria, essa zona é um lugar em que o indivíduo tem garantido certos direitos humanos básicos como a vida, moradia, alimentação, direito de se locomover, até que ele possa retornar ao seu lar em segurança. Podem-se perceber os primórdios de uma zona de segurança antes da 2ª Guerra Mundial, tendo destaque a zona criada em Nanking durante o conflito sino-japonês, em que ainda não havia algum tipo de normatização que legitimasse o funcionamento de uma zona de segurança. Essa legitimação ocorre com a incorporação do termo “zona de segurança” nas Convenções de Genebra de 1949, introduzindo esse termo no círculo do direito internacional humanitário.

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Durante o conflito de bipolaridade que vai marcar quase todo o século XX, os refugiados tinham um papel estratégico dentro desse contexto. Mas, após o fim desse período, eles começam a ser vistos como um “estorvo”. Em vista disso, o funcionamento de uma zona de segurança ganha cada vez mais força em se tornar uma alternativa à situação de fechamento das fronteiras aos refugiados que buscam abrigo em outros Estados, como aconteceu com os curdos iraquianos. Ao mesmo tempo, em que ela se torna uma alternativa para proteger os refugiados, pode se tornar um “matadouro”, em que uma das partes se aproveita do aglomero de refugiados e os atacam como aconteceu na zona de segurança em Srebrenica. No final do trabalho será apresentado o ponto de intersecção entre as três zonas de segurança, Nanking, Iraque e Srebrenica e porque somente no Iraque houve uma garantia real na proteção aos refugiados que não houve nas outras duas.

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CONTEXTUALIZAÇÃO DA ZONA DE SEGURANÇA PARA REFUGIADOS

Esse tópico tem como finalidade compreender o que é uma zona de segurança para refugiados, desde os primórdios com o surgimento informal dessas zonas. Em seguida, houve a normatização delas através da Convenção de Genebra de 1949. E, por último, o papel que os refugiados representaram no contexto da Guerra Fria, é como são vistos após com o fim desse período.

2.1 Zona de segurança: primórdios Inicialmente, o conceito de zona de segurança não estava relacionado com o fechamento das fronteiras estatais, mas sim, vinculado mais a questão humanitária, em garantir proteção aos civis e ajudar os feridos e doentes oriundos de conflitos. (LONG, 2012). 448

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E, o funcionamento de uma zona de segurança era realizado informalmente, sem alguma base jurídica que as tutelassem, o que viria ocorrer somente com as Convenções de Genebra de 1949. No século XX, antes da 2ª Guerra Mundial, houve o funcionamento de três zonas de segurança: Madrid, Jerusalém, Nanking. Será feita uma breve exposição das duas primeiras zonas. A primeira foi em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, foram evacuadas aproximadamente 700 mil crianças para áreas de segurança, a fim de protegê-las dos mais novos armamentos bélicos daquela época, as armas de longo alcance e os bombardeiros aéreos. Essas zonas de seguranças eram denominadas de “colônias infantis” que foram estabelecidas longe dos ataques, geralmente na costa ou nas montanhas. Mesmo nas “colônias”, as crianças continuavam estudando (CANADÁ, Ministério dos Serviços Públicos). Jerusalém foi à segunda zona de segurança criada em 1948, durante conflito Palestino, procurando enviar, principalmente, mulheres e crianças para as “áreas seguras”. Nanking foi deixada por último, pois ela servirá de ponte para análise da zona de segurança em Srebrenica (seção 2.3). Em dezembro de 1937, estava em funcionamento uma zona de segurança em Nanking294, a fim de abrigar chineses durante a Guerra Sino-japonesa. Ela estava localizada na parte ocidental de Nanking e a sua extensão era de 3,86 km (ASKEW, 2002). Ambos os Estados, Japão e China, acordaram em não atacar essa zona. Contudo, o governo japonês não cumpriu com o mesmo e atacou a zona de segurança. Mas, não foi uma simples agressão, mas sim, um genocídio em que milhares e milhares de chineses foram mortos, dependendo do registro, o número de mortes pode variar entre 150 mil a 300 mil, por isso que esse ataque ficou conhecido como Massacre de Nanking (ASKEW, 2002). Destaca-se que não havia o uso Há muita controversa entre os autores sobre à quantidade de mortos e as brutali-

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dades cometidas na zona de segurança em Nanking durante a ocupação das tropas japonesas.

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da força para proteger essa zona de segurança, pois a zona tinha fins humanitários e como havia um acordo entre os beligerantes, não havia a necessidade de se empregar a força para protegê-la. Isso é um dado importante, pois a história irá se repetir quase 60 anos depois em Srebrenica. As zonas são um refúgio para aqueles que buscavam abrigo, pois estavam em perigo devido às operações militares nas redondezas. A partir da menção de uma zona de segurança em um instrumento legal, como as Convenções de Genebra de 1949, o conceito de zona de segurança torna-se parte do direito internacional humanitário que será realizado uma breve análise sobre essa legislação.

2.2 Normatização de zona de segurança: Quarta Convenção de Genebra de 1949 A 2ª Guerra Mundial provocou uma proporção inimaginável de feridos, doentes, desabrigados e refugiados que não tinham o amparo de instrumentos jurídicos que pudessem assisti-los durante um conflito. Em 1949, foram elaboradas as Convenções de Genebra com o objetivo de assistir todos os afetados pelos conflitos. A Primeira Convenção de Genebra que se refere sobre a melhoria das situações dos feridos e doentes das forças armadas em Campanha estabelece em seu artigo 23295 a criação de zonas seguras. I Convenção de Genebra de 1949, art. 23º: In time of peace, the High Contracting

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Parties and, after the outbreak of hostilities, the Parties to the conflict, may establish in their own territory and, if the need arises, in occupied areas, hospital zones and localities so organized as to protect the wounded and sick from the effects of war, as well as the personnel entrusted with the organization and administration of these zones and localities and with the care of the persons therein assembled. Upon the outbreak and during the course of hostilities, the Parties concerned may conclude agreements on mutual recognition of the hospital zones and localities they have created. They may for this purpose implement the provisions of the Draft Agreement annexed to the present Convention, with such amendments as they may consider necessary. (grifo da autora) The Protecting Powers and the International Committee of the Red Cross are invited to lend their good offices in order to facilitate the institution and recognition of these hospital zones and localities. (ICRC, CONVENTION I).

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E, a Quarta Convenção de Genebra, em seu artigo 14296 permite pela primeira vez que um país possa criar zonas de segurança dentro de seu território ou em território ocupado por um Estado, mesmo que esteja ocorrendo um conflito. Mas, é imprescindível que o Estado em questão reconheça tal zona, para que a mesma tenha efeito legal por meio de um acordo oficial. Os comentários sobre os conceitos utilizados pelas Convenções explicam a escolha de certas palavras como “zona” que é um termo “utilizado para descrever uma parte relativamente grande extensão de campo e podem incluir um ou mais locais” (ICRC, CONVENTION I). As Convenções de Genebra de 1949 são omissas em relação a vários pontos, tais como: definição do conceito propriamente dito do que é uma zona de segurança, sua utilidade, sua organização, os procedimentos para supervisão. Essa omissão será refletida nos funcionamentos das zonas de segurança após o período da Guerra Fria que será abordado no próximo tópico.

2.3 Papel dos refugiados durante e depois da Guerra Fria Durante o período da Guerra Fria, a “aquisição” de refugiados por um das superpotências era mais por questões de político VI Convenção de Genebra de 1949, art. 14º: In time of peace, the High Contracting

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Parties and, after the outbreak of hostilities, the Parties thereto, may establish in their own territory and, if the need arises, in occupied areas, hospital and safety zones and localities so organized as to protect from the effects of war, wounded, sick and aged persons, children under fifteen, expectant mothers and mothers of children under seven. Upon the outbreak and during the course of hostilities, the Parties concerned may conclude agreements on mutual recognition of the zones and localities they have created. They may for this purpose implement the provisions of the Draft Agreement annexed to the present Convention, with such amendments as they may consider necessary. (grifo da autora) The Protecting Powers and the International Committee of the Red Cross are invited to lend their good offices in order to facilitate the institution and recognition of these hospital and safety zones and localities (ICRC, CONVENTION IV).

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-estratégicas e de superioridade na rivalidade geopolítica. Para Bill Frelick (1993) [...] durante esse tempo, no entanto, os refugiados eram muitas vezes tolerados, mesmo encorajados a deixar seus países de origem, porque eles tinham um papel de apoio que representavam no drama da Guerra Fria. [...] Muitas vezes, eles faziam parte dos objetivos da política externa dos países de acolhimento, pois podiam trabalhar para desetabilizar os governos de seu países de origem, que o governo anfitrião e seus patronos consideravam inimigos.

Após esse período, os refugiados297 passam a serem considerados mais como “estorvos” do que uma “boa aquisição” (HYNDMAN, 2003). Essa mudança da política internacional trouxe novos problemas a questão dos refugiados (DIN, 2010), entre eles o acirramento das fronteiras estatais298 à entrada de refugiados, refletindo a nova posição dos Estados anfitriões perante os refugiados. Desse modo, a comunidade internacional passa a questionar sobre o que fazer com os refugiados que não conseguem proteção em outro Estado e, ainda estão correndo perigo se ficar dentro de seu Estado. Os refugiados passaram a serem vistos como passivos pelos Estados que os recebem, pois estes são obrigados pela Convenção de É considerado refugiado, o indivíduo que receia “com razão de ser perseguido em

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virtude de sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país de que tem nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar”. (artigo 1º, parágrafo 2, Convenção de 1951). Desde 1991 as seguintes fronteiras entre os países foram fechadas: Turquia e Iraque em 1991, Zaire e Ruanda em 1994 e 1996, Tanzânia e Burundi em 1995, Ruanda e Burundi em 1996, Macedônia e Kosovo em 1996, Todas as fronteiras Afeganistão com seus vizinhos em 2000-2001, Chade e Sudão em 2006, Jordão e Iraque em 2006, Síria / Irão e Iraque em 2007, Malawi e Tanzânia em 2007, Quênia e Somália em: 2007 e até hoje, Egito com a fronteira da Faixa de Gaza e Israel 2007 e até hoje, República Democrática do Congo e Zâmbia em 2008, Arábia Saudita e Iêmen em 2009. (ACNUR, LONG, 2010, p. 4)

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1951 e pelo Protocolo de 1967299 a garantir certos direitos como moradia, segurança, alimentação, saúde, trabalho aos refugiados que os estrangeiros não têm. Assim, muitos Estados começaram a fechar as suas fronteiras, para que os indivíduos não obtivessem o status de refugiados. Desse modo, o funcionamento de uma zona de segurança vem se tornando uma alternativa quando o refugiado é impedido de entrar em um Estado que será analisado a seguir.

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ZONA DE SEGURANÇA: ALTERNATIVA NA PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS

Esse tópico tem o objetivo de definir o que é uma zona de segurança, apesar de ainda não haver um consenso político e legal sobre o tema. Em seguida, será feita uma sucinta exposição da primeira zona de segurança criada após o período da Guerra Fria. E, por último, a análise do emblemático caso de Srebrenica.

3.1 Busca de uma definição para zona de segurança Uma das alternativas foi à criação de uma zona de segurança para os refugiados. Essa zona é um espaço cedido pelo Estado que está localizada dentro desse mesmo Estado em que está ocorrendo o conflito sob a proteção de uma organização internacional, sendo reconhecido como um território internacional (DIN, p.4, 2005) até o fim do conflito ou do cessar-fogo. A finalidade da zona de segurança é proteger e garantir os direitos básicos aos indivíduos que não fazem parte do conflito. Até que ponto o funcionamento de uma zona A Convenção de Genebra de 1951 - Relativa ao Estatuto dos Refugiados que dis-

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põe exclusivamente sobre refugiados. Ela teve, até aquele presente momento, o maior progresso em relação ao Direito Internacional dos Refugiados, pois, pela primeira vez, houve a definição geral para o termo de refugiado. E, o Protocolo de 1967 excluiu o marco temporal e espacial que delimitava a abrangências de pessoas tuteladas por aquela Convenção, tornado esta de “caráter verdadeiramente universal”.

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de segurança é uma alternativa efetiva sem um marco regulatório que define as diretrizes, os parâmetros que devem ser respeitados por todas as partes envolvidas? A definição para “um lugar em que as pessoas estão protegidas do conflito, sem saírem de seu próprio Estado” tem diferentes variantes300, não havendo um consenso em torno de uma definição política e legal. Inclusive, pode ser uma nova categoria analítica nas relações internacionais. Nesse trabalho será utilizado o conceito de “zona de segurança”, definição legal adotada pelo Direito Internacional Humanitário e que se encontra no artigo 14, da Quarta Convenção de Genebra de 1949 e o Primeiro Protocolo Adicional de 1977 aborda questões de “localidades e zonas de proteção especial”. E, também, o Conselho de Segurança das Nações Unidas utiliza o termo “zonas de segurança” (HYNDMAN, 2003). A precisão na definição é de extrema importância (LANDGREN, 1995), porque permite que o funcionamento de uma zona de segurança esteja amparado por critérios já pré-definidos, especificando direitos e obrigações de todas as partes envolvidas. E, assim, estabelecer o antes, durante e depois do funcionamento de uma zona de segurança para que erros do passado não se repitam, como foi o caso do Massacre de Srebrenica que será analisado no item 2.3.

3.2 Iraque: primeira zona de segurança As zonas de segurança antes da 2ª Guerra Mundial tinham um caráter mais humanitário como visto no tópico 1.1, enquanto que as zonas de segurança após a Guerra Fria tem caráter mais político, resultando do fechamento das fronteiras estatais. Din (p.18-19, 2010) identifica os diferentes conceitos: áreas seguras (Bósnia), zonas

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neutras, área protegida pelas Nações Unidas (Croácia, 1992), áreas de segurança humanitárias, corredores de segurança, zonas segurança (entre Etiópia e Eritréia), zonas confidencias (Costa do Marfim) e zonas de exclusão área, corredores humanitários (Chechenia), corredores da paz (Bosnia, 1994; República Democrática do Congo, 1999), zonas de tranquilidade.

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A primeira zona de segurança criada para abrigar refugiados, após o período da Guerra Fria, aconteceu no Iraque durante a Guerra do Golfo em 1991 (HYNDMAN, 2003; DIN, 2010), milhares de curdos foram perseguidos pelo governo de Saddam Hussein. Logo, os curdos iraquianos procuraram buscar refúgio na Turquia, mas ela fechou as suas fronteiras à entrada deles. A consequência desse fechamento resultou na morte de 1500 refugiados em três dias (UNHCR, LONG, 2010). Como medida paliativa para assistir aos curdos, após o governo turco se recusar a abrir as suas fronteiras, a Resolução nº 688 do Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu uma zona de segurança na fronteira com a Turquia para ampliar sua presença no norte do Iraque, construção de acampamentos dentro de uma zona de segurança que permitam a população curda voltar ao Iraque e à comunidade internacional para prestar socorro no local (UNHCR, LONG, 2010).

Essa mesma Resolução autorizou o uso da força sob a liderança dos Estados Unidos que encamparam uma coalizão denominada de “Operação Prover Conforto”, tendo o objetivo de conduzir uma operação humanitária. Esse uso da força almejada coibir qualquer tipo de agressão do governo do Saddam Hussein à zona de segurança. Não é objetivo de esse trabalho analisar as críticas em relação ao uso da força em uma zona de segurança, em que para alguns significa a erosão dos princípios humanitários da imparcialidade, independência e neutralidade (UNHCR, LONG, 2010). Mas, se fosse para colocar na balança os princípios humanitários de um lado, é a vida dos refugiados do outro, o que vale mais. É o que próxima seção procurará tratar, do Massacre de Srebrenica.

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3.3 Massacre de Srebrenica: repetição da história Nesta seção procura-se pontuar o momento em que houve o massacre na zona de segurança de Srebrenica, pois, até hoje, essa zona é considerada a mais perigosa que as Nações Unidas têm sob a sua tutela. Srebrenica foi uma das seis301 zonas de segurança estabelecidas na Bósnia-Herzegovina para abrigar o contingente intenso de refugiados que procuravam um lugar seguro durante a Guerra da Bósnia302. Acordos entre as partes do conflito foram feitos, para que aquelas zonas não fossem atacadas, mas esses acordos não foram respeitados. Em julho de 1995, as forças sérvias atacaram Srebrenica, executando 8 mil muçulmanos, a maioria eram homens jovens. A melhor analogia que pode ser feita sobre esse fatídico episódio, é que Srebrenica foi literalmente um matadouro, pois reuniu em um mesmo lugar milhares de muçulmanos inofensivos, sem nenhuma proteção de força para ampará-los (DIN, 2010) de algum tipo de agressão. A História se repete por que quase 60 anos antes, a zona de segurança de Nanking também “caiu nas mãos dos japoneses” e o resultando foi o mesmo: genocídio. Em ambos os casos, não havia a utilização do uso da força para proteger essas zonas de um eventual ataque de uma das partes dos conflitos. E, também, o acordo estabelecendo o funcionamento dessas zonas com os beligerantes foi des As seis zonas de segurança forma: Srebrenica, Sarajevo, Tuzla, Zepa, Gorazde e

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Bihac com a finalidade de proteger as seis cidades dos ataques das forças sérvias (DIN, 2010). 302 “A guerra compreende o período do verão de 1992 a dezembro de 1995 quando foi assinado o Acordo de Paz Dayton. Nos dois primeiros anos da guerra, a batalha envolveu três partes: o governo bósnio, os croatas bósnios e os sérvios bósnios. Embora as tensões entre eles continuaram, a luta entre o governo bósnio e as forças dos croatas bósnios terminaram em Março de 1994, com o Acordo de Washington e a criação da Federação Croata-Muçulmana. O resultado final da campanha brutal e sistemática de limpeza étnica, mais da metade da população foi “desenraizada”. Em dezembro de 1995, 900 mil eram refugiados, 1 milhão e 300 mil eram deslocados internos de uma população anterior a guerra de 4 milhões e 300 mil” (CUTTS, 1999).

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cumprindo. Desse modo, verifica-se que a imposição de um acordo é fraca, quando não é seguida de algum tipo de coerção, caso haja o descumprimento do mesmo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde 1936 é que há o funcionamento de uma zona de segurança na proteção da população civil, mas até o presente momento, ainda não se tem um consenso sobre uma definição precisa do que é uma zona de segurança, essa imprecisão no termo, prejudica o funcionamento dela, pois não se tem parâmetros do que realmente ela precisa ter, para que se torne uma alternativa efetiva na proteção aos refugiados que ficam no Estado que está ocorrendo o conflito. Os instrumentos jurídicos internacionais existentes não são garantia de cumprimento de uma norma, se os Estados não estiverem dispostos a respeitá-la e cumpri-la. Mesmo os refugiados estando amparadas por aqueles instrumentos, não são suficientes para impedir que os Estados fechem as suas fronteiras. Mesmo incluir a zona de segurança no rol dos termos de direito humanitário internacional e alguns procedimentos como o acordo entre os beligerantes em não atacar essa zona e, repete-se novamente, não são suficientes para coibir agressões, evitar genocídios, pois mesmo sob a égide do direito humanitário internacional, a zona de segurança de Srebrenica foi atacada brutalmente como a de Nanking. A diferença é que durante o funcionamento da zona de segurança de Srebrenica ainda não vigora nenhuma normatização sobre o tema. O ponto de intersecção entre a zona de segurança no norte do Iraque e a de Srebrenica e de Nanking é o uso da força, pois na primeira, com o suporte militar dos Estados Unidos foi possível garantir de fato a segurança daqueles que se encontravam dentro da zona de segurança. Enquanto que nas duas últimas zonas de segurança, não havia, no momento em que iniciaram os ataques, forças para

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proteger os refugiados, resultando na morte de dezenas de milhares, configurando o genocídio. Caso houvesse o emprego do uso da força para garantir a proteção dos refugiados, teriam acontecido os massacres? Os acordos entre os beligerantes em não atacar as zonas de segurança seriam rompidos? Até que ponto uma zona de segurança com proteção militar seria uma “Convenção de Genebra de 1949” as avessas? São indagações que a própria História ajuda a questionar, pois as lições do passado nada servem em procurar as soluções necessárias para que elas não se repitam mais.

5 REFERÊNCIAS ACNUR. No entry! A review of UNHCR’s response to border closures in situations of mass refugee influx. 2010. Disponível em: . Acesso em:12 mar. 2013. ASKEW, David. The International Committee for the Nanking Safety Zone: An Introduction. Monash University. 2002. Disponível em: . Acesso em: 19 abril 2013. CANADA. Ministério dos Serviços Públicos. The Children’s story. Disponível em: . Acesso em:19 abril 2013 CONVENÇÃO DE GENEBRA – 1951. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Disponível em: . Acesso em: 10 jan 2013. (*) CUTTS, Mark. The humanitarian operation in Bosnia, 1992-95: dilemmas of negotiating humanitarian access. Disponível em: . Acesso em: 20 abril de 2013. New Issues in Refugee Research, Working Paper No. 8, Suíça, 1999. DIN, Najam U. ‘Safe havens’: compromising human rights protection for the displaced? Mestrado. University of Lund. Faculty of Law. 2005. FRELICK, Jill. Preventing refugee flows: protection or peril. Disponível em: . Acesso em: ?? abril 2013. World Refugge Survey, 1993. HYNDMAN, Jennifer. Preventive, Palliative, or Putative? Safe Spaces in Bosnia-Herzegovina, Somalia, and Sri Lanka. Journal of Refugees. 16(2), 2003, 167–85. ICRC – CONVENÇÃO IV DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DAS PESSOAS CIVIS EM TEMPO DE GUERRA, DE 12 DE AGOSTO DE 1949. Disponível em: . Acesso em: mar 2013. ICRC - Practice Relating to Rule 35. Hospital and Safety Zones and Neutralized Zones. Disponível em: . Acesso em: abril 2013. ICRC - CONVENÇÃO I DE GENEBRA PARA MELHORAR A SITUAÇÃO DOS FERIDOS E DOENTES DAS FORÇAS ARMADAS EM CAMPANHA, DE 12 DE AGOSTO DE 1949. Disponível em: . Acesso em: 12 mar 2013. ICRC - PROTOCOLO I ADICIONAL ÀS CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 12 DE AGOSTO DE 1949 RELATIVO À PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS DOS CONFLITOS ARMADOS INTERNACIONAIS. Disponível em: . Acesso em: 15 mar 2013. JUBILUT, Liliana Lira. Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Editora Método; UNHCR/ACNUR. 2007 LONG, Kate. Border Closures, ‘Safe’ Zones and Refugee Protection. Journal of Refugee Studies, December 13, 2012. LAUTERPACHT, Sir Elihu; BETHLEHEM, Daniel. The scope and content of the principle of non-refoulement: Opinion. In: Refugee Protection in International Law UNHCR’s Global Consultation on International Protection. Disponível em: < http:// www.unhcr.org/4a1ba1aa6.html>. Acesso em: 18 mar. 2013. LANDGREN, Karin. Safety zones and international protection: a Dark Grey Area, International Journal of Refugee Law, v. 7, n. 3, 1995, p. 436-458. PROTOCOLO SOBRE EL ESTATUTO DE LOS REFUGIADOS (1967). Disponível em: . Acesso em: 10 jan 2013. UN High Commissioner for Refugees. The end of asylum? The changing nature of refugee policies in Africa. Bonaventure Rutinwa. In: New issues in refugee research, Working Paper number 5, 1999. Disponível em: . Acesso em: 25 abril 2013. UN OCHA. Report on the Interagency expert Consultations on Protected Areas. Relator: F. Johns. Harvard University, Cambridge, 1999. Disponível em: . Acesso em: 15 abril 2013.

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A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO UM OBSTÁCULO AO ESTABELECIMENTO DE UM REGIME DEMOCRÁTICO EM MYANMAR Thamirys Mendes Lunardi Graduada em Política Internacional (International Political Studies) pela Universidade de Ashland (Estados Unidos); Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. ([email protected])

Resumo: Este artigo procura abordar o processo de democratização que está acontecendo em Myanmar desde 2011 e compreender como a violação sistemática dos direitos humanos da minoria muçulmana do país é um grande obstáculo ao estabelecimento de um governo democrático. Palavras-chave: Democratização. Myanmar. Direitos humanos. Sumário: 1. Introdução. 2. Birmânia ou Myanmar. 3. O processo de democratização em Myanmar. 4. Limpeza étnica, perseguição e violência. 5. Considerações finais. 6. Referências.

1 INTRODUÇÃO O mundo ocidental viu com grande expectativa e esperança a dissolução do governo militar em Myanmar, em 2011. Após cinco décadas de autoritarismo e repressão, os militares, na pessoa do presidente Than Swe passaram o poder para Thein Sein, também militar, mas com aspirações de liberalizar e democratizar o país. O novo presidente assegurou que eleições para uma um novo parlamento 460

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fossem realizadas, realizou reformas importantes para a sociedade civil, e garantiu eleições para presidente e outros postos em 2015 e 2020. A laureada com Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, uma das líderes do partido oposicionista Liga Nacional pela Democracia, tem feito acordos com o presidente e apoiado a transição democrática sendo uma forte candidata as eleições de 2015. Liberdade política e de associação, e a garantia de outros direitos civis estão sendo assegurada a população, e assim uma forte injeção de capital e investimento internacional tem acelerado a economia do país. Com o fortalecimento e comprometimento do governo e das elites políticas com o ideal democrático, a comunidade internacional tem incentivado o crescimento do país diminuindo e até excluindo antigas sanções. No entanto, apesar de haver otimismo doméstico e internacional para um regime democrático, tanto o atual governo quanto a oposição parecem estar fechando os olhos para um grande obstáculo à implantação de uma democracia em Myanmar. O país, de maioria budista, possui uma minoria étnica muçulmana que além de não possuir sua nacionalidade reconhecida possuindo poucos direitos protegidos pelo Estado, há muito tempo é perseguida e violentada pela maioria étnica do país. Apesar da opressão não ser novidade, desde 2012 a violência contra os muçulmanos Rohingya tem se intensificado, assim como movimentos xenófobos contra outras etnias e religiões, movimentos que surpreendentemente tem nascido dentro de monastérios budistas. A violação de direitos humanos da minoria muçulmana Rohingya é um impedimento latente ao estabelecimento de uma democracia no país, uma vez que em um relatório liberado pela Human Rights Watch no início de abril, a organização declarou que o que está acontecendo no país são crimes contra a humanidade e limpeza étnica. A violência, de acordo com os relatórios, nasceu nos monastérios budistas e conta com uma ajuda zelada do aparato estatal. Enquanto a violência e a perseguição contra as minorias não cessa, e estes não adquirem a cidadanias e todos os seus direitos

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anexos, Myanmar estará longe de iniciar seu processo de consolidação democrática.

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BIRMÂNIA OU MYANMAR?

Antes de analisar a história dos regimes no país do sudeste asiático, um problema de ordem terminológica se faz mais importante. Afinal, o país localizado entre Índia, Bangladesh e Tailândia, chama-se Birmânia ou Myanmar? Nomeado Birmânia pelos Ingleses durante a colonização iniciada no século XIX, o país teve seu nome alterado por uma junta militar, em 1989 nomeando-o República da União de Myanmar. A controvérsia quanto a alteração do nome do país reside na legitimidade do governo ao momento da mudança. Críticos a esta mudança alegam que a mesma foi realizada sem o consentimento da população, imediatamente após um golpe militar que cerceou os efeitos das eleições recém-realizadas e de protesto popular. De acordo com uma reportagem na Foreign Policy Magazine303, os militares fizeram a mudança, acreditando que o nome Birmânia, e diversos outros nomes de cidades que também foram alterados, representavam o passado de dominação colonial Britânica enquanto o novo nome supostamente mais autêntico traria unidade e coesão a um país tão dividido. Muitos clamam que o que os militares estavam fazendo era na realidade, estar declarando sua propriedade do país304. Como consequência, diversos membros da oposição do país como Aung San Suu Kyi, apesar de vinte anos passados da mudança de nome, recusam-se a aceitar a mudança. A raiz do problema quanto ao nome do país, como bem explorado por Min Zin, reside no fato de que os “governantes de Mianmar vivem no seu país. Os cidadãos da Birmânia, vivem no deles”305. Suu Kyi e seu partido se recusam a aceitar a mudança, e baseado nesta oposição ZIN, Min. Burma or Myanmar: the name game. Foreign Policy Magazine. Dispo-

303

nível em: . Acesso em: 23 abr. 2013.

Ibidem. “The rulers of Myanmar live in their country. The citizens of Burma live in theirs”.

304 305

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diversos países e meios de comunicação internacional continuam a se referir ao país como Birmânia, apresentando-se bastante divididos quanto a certa denominação do país. Para este projeto, mesmo tendo a maioria das fontes consultadas referindo-se ao país como Birmânia, irei adotar o nome oficial do país uma vez que é como o Brasil reconhece em suas relações diplomáticas com o país.

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O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO EM MYANMAR

No final da década de 1980, após duas décadas de governo militar autoritário, a população tomou as ruas, protestando contra o regime vigente uma vez que as décadas anteriores haviam sido de opressão e cerceamento de direitos sob o poder dos militares. Das manifestações populares e da pressão da oposição, resultou um pleito realizado em 1990 no qual o partido de Aung San Suu Kyi garantiu 80% dos assentos no que seria a assembleia constituinte. Os militares, no entanto, recusaram-se a deixar o poder e continuaram a comandar o país como o Conselho de Paz e Deenvolvimento Estatal (State Peace and Development Council) até 2011. Durante este período Suu Kyi e demais opositores sofreram desde prisões domésticas até tortura e assassinato. Promovendo mudanças sutis desde metade da década de 2000, a junta militar no poder percebeu o atraso econômico no qual o país se encontrava quando comparado a outros países e a intensa e gravosa miséria que assolava o país que conta com um dos piores índices de desenvolvimento do mundo306. Em 2011, em movimento que surpreendeu os observadores internacionais e nacionais, o então presidente Than Shwe, abriu o processo eleitoral para presidente e o parlamento. Dessas fraudulentas eleições, como ressaltado por Zin e Joseph, foi eleito o candidato do regime, o ex militar Thein Sein. Apesar de duras críticas recaírem sobre a o pleito, uma vez que o poder foi transmitido a um partidário tímido do regime e que não alterava o status quo anterior no que ZIN, M.; JOSEPH,B. The Democrat’s Opportunity. Journal of Democracy, v. 23, n. 4. p. 104.

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toca uma maior diversidade étnica ou religiosa no pode, Sein e seu gabinete vem agindo como um governo e não mais como um alto comando do exército. Desde que assumiu o poder então, Thein Sein vem, implantando reformas e introduzindo uma abertura política no país. No entanto, apesar de os militares esperarem lentas e controladas liberalizações, devido a manifestação e pressão popular, da mídia e de grupos de oposição, estas foram muito mais ousadas, libertadoras e protetoras de direitos civis e políticos do que seria imaginável em 2011. Segundo Zin e Joseph, diversos presos políticos foram libertados, exilados retornaram ao país, leis que versavam sobre associações e partidos políticos foram reformadas, e as leis sobre censura de imprensa e controle da sociedade civil foram relaxadas. No entanto, apesar das mudanças serem significativas e de eleições estarem previstas para 2015, Myanmar não só ainda é um regime militar quanto no que se refere aos elementos necessários para uma democracia ser instituída, o país está muito distante do que definem os teóricos. Caso adotada a definição de democracia do eminente cientista político Robert Dahl307, na qual um regime só pode ser considerado democrático quando tiver cinco instituições políticas específicas (cidadania inclusiva, eleições livres, justas e frequentes, liberdade de expressão, fontes alternativas de informação e autonomia associativa), a falta de proteção dos direitos políticos das minorias de Myanmar será sempre um obstáculo no caminho do país para o estabelecimento de um regime democrático. Esta corrente doutrinária acredita que só quando todas as cinco instituições políticas estiverem vigentes em um regime é que um país pode se considerar como no caminho para a consolidação de uma democracia. A etapa da consolidação democrática, que pode durar anos e até mesmo décadas, é responsável pelo estabelecimento ou reforma das instituições jurídicas, políticas e civis para que estas sejam condizentes a um Estado de Direito democrático. De acordo com esta vertente então, é DAHL, Robert. On Democracy. New Haven: Yale University Press, 1998. p. 92.

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imperioso que a todos os adultos residentes no território (com limitadas exceções) seja assegurado aos habitantes do país. Neste sentido, é que a proteção das minorias étnicas e religiosas de Myanmar, não apenas no sentido de concessão de cidadania mas também de direitos políticos e civis, é imperiosa para o estabelecimento de um regime democrático no país. O relatório da Human Rights Watch estabelece que desde a década de 1980 é de conhecimento da organização e das Nações Unidas que a cidadania é negada aos muçulmanos Rohingya que são considerados, pelas autoridades e demais cidadãos, como estrangeiros e imigrantes no país, vindos de Bangladesh. Ainda de acordo com o relatório e outros relatos, o novo governo pouco tem feito em mudar a situação. Pouco foi feito pelas autoridades no sentido de se prevenir as violações dos direitos humanos do Rohingya e em assegurar uma convivência pacífica e digna entre todos os habitantes do país. Com isto em mente, é difícil de acreditar que democracia estará no futuro próximo do país, uma vez que a limpeza étnica dos rohingya é iminente e nenhum sinal de cidadania para as minorias encontra-se no horizonte do país.

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LIMPEZA ÉTNICA, PERSEGUIÇÃO E VIOLÊNCIA

Em 2012, durante os primeiros meses do governo de Thein Sein, começaram a ser relatados casos de violência e perseguição contra muçulmanos rohingya habitantes, em sua maioria, do estado de Arakana, no sul do país. O relatório da Human Rights Watch afirma que o que está acontecendo em Myanmar é muito mais do que casos isolados de extremo nacionalismo e preconceito religioso e étnico, sendo um caso de crimes contra a humanidade e limpeza étnica de muçulmanos Rohingya. As ondas de violência iniciadas em junho de 2012 já produziram mais de 125.000 refugiados e mataram centenas de pessoas, deixando localidades completamente destruídas. Essa violência contra os muçulmanos Rohingya, que representam 5% da população, explicita o caráter xenófobo e preconceituoso

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da maioria budista que se considera como os verdadeiros cidadãos de Myanmar. De acordo com o relatório, por mais de duas décadas as Nações Unidas tem documentado extensivamente violações de direitos humanos contra os Rohingya em Burma, violações que incluem deslocamento humano forçado e deportação. Ainda de acordo com o relatório, 400 agências das Nações Unidas e enviados especiais, tem consistentemente documentado abusos como assassinatos, estupros, destruição de propriedade e trabalho forçado de Rohingya, muitas vezes descritos como sistemáticos. Esse longo histórico de tensões inter-étnicas, foi exacerbado em específicos momentos como quando da colonização britânica na qual o uso da política de “dividir- e- governar”, e também pelas cinco décadas de governança militar no país. Durante a segunda guerra mundial, recém-independentes, o predominantemente birmanês “Exército de Independência da Birmânia” (Burma Independence Army) foi a guerra para auxiliar os japoneses contra os britânicos, enquanto as demais minorias étnicas, que incluiu os Rohingya, permaneceu leal a Inglaterra308. Durante as décadas seguintes, ondas de perseguição e violência entre as etnias continuaram a acontecer, e como toda a população, sem distinções, era oprimida pela regime, o Estado se limitava a não proteger nenhum dos grupos. No entanto, o que acontece neste momento da história é que por mais que o Estado não seja o ator principal na desenfreada perseguição e violência contra muçulmanos, o Estado não pode ser eximido de responsabilidade. Na raiz da violência estão monges budistas que desafiam o estereótipo ocidental da religião budista, no qual se acredita esta ser uma religião baseada em pacifismo, serenidade e altruísmo. Os relatos que saem de Myanmar dão conta de que é a partir de monastérios budistas que está sendo disseminado o forte sentimento anti-muçulmano que se espalha pelo país. O movimento principal e mais HUMAN RIGHTS WATCH. All You Can Do Is Pray: Crimes against humanity and ethnic cleansing of Rohingya Muslims in Burma’s Arakan State.

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poderoso, o Movimento 969 nasceu no monastério de Masoyeim, em Mandalay, e é encabeçado pelo monge U Wirathu309. Fazendo discursos inflamados contra muçulmanos, o monge e seu movimento têm como objetivo a expulsão completa dos Rohingya do território de Myanmar. Quando se compreende qual é a vertente do budismo praticada em Myanmar, e qual o papel dos monastérios nesta tradição, fica mais fácil de compreender a grande influência e poder do movimento na sociedade. Na tradição da Theravada, vertente do Budismo praticada em Myanmar e uma das mais tradicionais e conservadoras, os monges ocupam um local central não apenas na vida religiosa das comunidades, mas em todos os ambitos sociais. Mary Fisher afirma que essa posição social de reverência aos monges nasce do fato de que eles são enxergados como figuras de autocontrole, bondade e inteligência. As pessoas comuns são compreendidas como sendo impróprias à prática da religião de forma independente, tendo sua participação limitada a suportar os monastérios na forma de dízimos aos monges, para só assim adquirir a possibilidade e o mérito para renascimentos, tão importantes para a crença budista. Com essa inserção e importância na sociedade, os monges tem grande influência nos rumos do país e na organização social, o que explica em grande parte o seu papel em disseminar o preconceito e violência contra os muçulmanos Rohingya. Os monges acreditam que a comunidade muçulmana do país representa uma ameaça ao país inteiro e a sua religião dominante. Conforme Francis Wade em sua análise das ondas de violência contra muçulmanos, o local de nascimento da movimentação xenófoba é justamente onde o mundo ocidental menos espera, um monastério, o de Moulmein mais especificamente, no sul do país. Foi neste monastério que nasceu o movimento 969, que é responsável por incentivar a violência contra os muçulmanos, de lá saem os adesivos que podem ser encontrados em diversas cidades de Myanmar, adesivos com o nome do grupo e que são compreendidos por muitos The monks who hate muslims 2.

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observadores internacionais como um símbolo de um nacionalismo e budismo extremistas. Nas mais de 100 páginas do relatório da Human Rights Watch são detalhadas as violências e perseguições contra os Rohingya no estado de Arakan. A violência contra a minoria começou em junho de 2012, após o estupro de uma mulher budista e arakanesa por três homens muçulmanos. Nos primeiros momentos ambos os lados estavam praticando ataques de violência, no entanto devido a ser em maior número e por ter o aparato militar a seu lado, a onda de violência escalou rapidamente contra os muçulmanos. Em pouco tempo milhares tiveram de deixar suas casas por temerem por suas vidas e também porque a vida em suas localidades se tornava bastante difícil, pois sofriam com difícil acesso a comida e com sua liberdade de locomoção cerceada. Com o perigo iminente, mais de 100 mil muçulmanos deixaram, ou foram expulsos, de suas casas, indo para campos de pessoas deslocadas internamente (Internally Displaced Person-IDP). A vida nos campos, o relatório afirma, também viola de forma contundente os direitos humanos dos muçulmanos Rohingya. Segundo o relatório, os campos superlotados sofrem com a falta de água e abrigo, assim como condições sanitárias e atendimento médico. O problema vai além, segundo o relatório, que afirma que as forças de segurança do estado que deveriam proteger os desabrigados, na realidade age como guardas da prisão, impedindo o acesso a mercados, meios de subsistência e auxílio humanitário, coisas que a maioria se encontra em grande desespero para obter. Enquanto estas violações acontecem àqueles que conseguiram fugir, antes da fuga ou àqueles que ainda ficaram em suas localidades a violência é continua e perversa. Ao menos 27 vilas foram completamente destruídas, e muitas vezes o ataque foi anunciado anteriormente o que não garantiu que a polícia fosse ao resgate dos muçulmanos Rohingya, prevenindo o ataque.

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Os ataques que iniciaram em 2012, de acordo com o relatório, são caracterizados como crimes contra a humanidade realizados como parte de uma campanha de limpeza étnica. Sob a égide do direito internacional, os crimes contra a humanidade são crimes cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil. O ataque, segundo o relatório, deve ser contra uma população específica e parte de uma política estatal ou minimante organizada. Organizações não estatais, incluindo partidos políticos e grupos religiosos, podem ser responsáveis por crimes contra a humanidade caso tenham um nível mínimo de organização. O relatório é claro ao endereçar a situação em Myanmar como crime contra a humanidade uma vez que a população muçulmana tem sofrido com os assassinatos, deslocamento forçado perseguição e outras violências sistemáticas e dirigidas especificamente ao grupo. Como conclusão o relatório também ressalta o envolvimento direto e indireto do governo na violência contra os muçulmanos rohingya. O governo e o Presidente Thein Sein não têm tomado medidas sérias com o intuito de responsabilizar os culpados pelos ataques ou para evitar futuros surtos de violência. O relatório implica diretamente líderes políticos e religiosos do estado de arakan. Enquanto os ataques muitas vezes parecem ter sido realizados por guerrilhas armadas, diversas divisões do aparato de segurança estatal estava presente nos ataques, falhando em proteger os muçulmanos, e há relatos de que por vezes a polícia e o exército tiveram papel direto nas atrocidades. Essa conclusão do relatório da Human Rights Watch vai ao encontro da análise de Igor Blazevic, no jornal Irrawady, especializado em notícias do sudeste asiático. Blazevic, antes mesmo do relatório, afirmou que era difícil de eximir o poder público dos atentados contra a minoria islâmica. Para ele, esse exterminio étnico é “normalmente o trabalho de grupos paramilitares bem treinados, organizados por elementos do aparato de segurança. A tarefa destes grupos é de fazer o trabalho sujo sem mostrar a conexão direta com as forças regulares, os oficiais e os patricinadores

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políticos”310 (Blazevic, 1). O conluio entre os mandantes e executantes da violência contra muçulmanos, em que se pese a participação do Estado, é beneficial para os dois mais poderosos grupos do país, de acordo com Francis Wade: os grupos civis com forte sentimento ultra-nacionalista e o a bancada linha dura do exército. Wade nota que caso ambos os grupos saiam fortalecidos desta união contra os muçulmanos, o impacto é muito maior do que se imagina no que diz respeito aos prospectos de um futuro democrático para Myanmar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta participação direta e indireta do Estado na violação dos direitos humanos da minoria muçulmana no estado de arakan, demonstra como é complexo o processo de democratização em Myanmar, não apenas para o presidente e o gabinete atual, mas também para Aung San Suu Kyi e seu partido. Como ressaltado por William Macgowan311, Suu Kyi tem um problema budista uma vez que a xenofobia e nacionalismo extremista dos budistas é que tem incitado e alimentado os ataques contra os muçulmanos. A limpeza étnica que está acontecendo atualmente no estado, assim como os crimes contra a humanidade, estão chamando atenção do mundo ocidental e oriental, que em breve, principalmente após a publicação do relatório do Human Rights Watch, irá demandar por atitudes mais severas como a responsabilização dos culpados e um tratamento mais adequado a ser despendido àqueles que foram deslocados de suas residências. Myanmar precisa não somente parar com a limpeza étnica contra os muçulmanos no estado de Arakan, mas principalmente criar garantias constitutionais de direitos de cidadania não apenas “It is usually the work of well-trained paramilitary groups organized by elements of the security apparatus. Their task is to do the dirty work without showing the direct link with the regular forces, officials and their political patrons” 311 Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2013. 310

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para este grupo, mas para todas as minorias não compreendidas atualmente como cidadãs de Myanmar. Enquanto direitos sociais e políticos não sejam garantidos a todos os cidadãos do país, Myanmar ainda não estará no processo de consolidação de um regime democrático, uma vez que cidadania inclusiva é um dos requisitos para o estabelecimento de uma democracia.

6 REFERÊNCIAS CALLAHAM, Mary. The generals loosen their grip. Journal of Democracy, v. 23, n. 4, 120-131, 2012. CARYL, Christian. Weren’t Buddhists Supposed to Be Pacifists? Foreign Policy Magazine. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2013. DAHL, Robert. On Democracy. New Haven: Yale University Press, 1998. HUMAN RIGHTS WATCH. All You Can Do Is Pray:Crimes against humanity and ethnic cleansing of Rohingya Muslims in Burma’s Arakan State. Disponível em: Acesso em: 24 abr. 2013. WADE, Francis. The monks who hate Muslims. Foreign Policy Magazine. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2013. ZIN, Min. Burma or Myanmar: the name game. Foreign Policy Magazine. Disponível em: Acesso em: 23 abr. 2013. ZIN, M.; JOSEPH, B. The Democrat’s Opportunity. Journal Of Democracy, v. 23, n. 4, 104-119, 2012.

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A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO HAITI: UMA RECORRÊNCIA HISTÓRICA E SEUS REFLEXOS NA ATUAL MIGRAÇÃO PARA O BRASIL Marina Sanches Wünsch Advogada. Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Bolsista CAPES/PROSUP e Membro do grupo de pesquisa Direito Sanitário no Rio Grande do Sul (FAPERGS). ([email protected])

Sandra Regina Martini Vial Doutora em Direito, Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti, Università Degli Studi di Lecce e pós-doutora em Direito, Università degli studi di Roma Tre. É professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da Scuola Dottorale Internazionale Tullio Ascarelli e professora visitante da Università Degli Studi di Salerno. tualmente é pesquisadora gaúcha FAPERGS, e pesquisadora produtividade CNPq. ([email protected])

Resumo: A história do Haiti é marcada por intervenções e violações de direitos. O país esta longe de atingir a estabilidade e o terremoto que devastou o país em 2010 agravou ainda mais a situação, neste contexto, inúmeros haitianos tem deixado o país em busca de melhores condições de vida. O Brasil é dos principais destinos escolhidos pelos haitianos, contudo, diante da crescente migração, o governo brasileiro optou por restringir a concessão de vistos, sob a justificativa de que os haitianos não podem ser considerados refugiados, porém, esta justificativa pode ser questionada diante dos instrumentos jurídicos internacionais sobre refugiados. Palavras-chave: Direitos Humanos – Haiti – Vistos – Brasil – Direito Internacional.

Sumário: 1. Introdução. 2. Breve Histórico sobre o Haiti. 3. O terremoto de 2010 e a crescente migração. 4. A proteção internacional dos refugiados. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas.

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1 INTRODUÇÃO Atualmente mudanças no contexto internacional refletem um processo de globalização e interdependência internacional, no qual novos valores como a proteção dos Direitos Humanos repercutem na crescente intensificação da chamada cooperação mútua internacional, bem como possibilita o surgimento de novas instituições, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Estes fenômenos vêm modificando significativamente o papel do Estado Soberano, contudo, a efetivação do que hoje chamamos de Direitos Humanos está longe de ser plenamente concretizada, pois ainda depende do grau de organização das políticas públicas e da incorporação destes direitos nas esferas internas de cada Estado. Um dos temas que mais vem ganhando destaque são as demandas migratórias que repercutem diretamente nos tradicionais conceitos de soberania, fronteira e na violação de direitos humanos. Desse modo, este trabalho tem por objetivo analisar a temática da migração através da atual situação do Haiti, país que ocupa o terço oeste da ilha Hispaniola, segunda maior do Caribe e que possui um histórico de intervenções e violações de direitos, não bastasse isso, o país foi vítima em 2010 de um terremoto que arrasou o mesmo, o que contribuiu de forma significativa para o processo de migração de haitianos, especialmente, para o Brasil. Diante desta crescente migração, o Brasil se vê obrigado a tomar uma posição, porém este posicionamento deve responder a demandas tanto internas como internacionais, uma vez que, os estados estão mais interdependentes e, portanto, esta interdependência gera uma necessidade de cooperação, assim, é preciso buscar novas soluções para garantir uma maior efetividade dos direitos. Cumpre ressaltar que a conquista de direitos nunca foi um processo fácil não podemos esquecer que os homens fazem sua própria história – mas sabemos, também, que a luta pela conquista dos direitos não Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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pode parar, temos que estar mais vigilante com os direitos já conquistados e seguir buscando a realização dos direitos básicos para todos os cidadãos. Não podemos permitir retrocessos e para que isto não ocorra é fundamental revermos a história, não no sentido de acomodação, mas resgatando na própria história elementos fundantes para a concretização deste novo ideal e como eles refletem nas tomadas de decisões, especialmente em questões migratórias.

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BREVE HISTÓRICO SOBRE O HAITI “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de suas escolhas e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado312”.

A história do Haiti é marcada por fatos turbulentos. O país, que ocupa o terço oeste da ilha Hispaniola, segunda maior do Caribe, conquistou sua independência em 1804, em um processo que teve início em 1788 e culminou com uma rebelião de escravos contra o colonialismo francês. Desse modo, em 1794, o Haiti tornou-se o primeiro país do mundo a abolir a escravidão. Ou seja, temos elementos históricos de lutas no país que mostram as possiblidades concretas de transformação social. Com isso, o Haiti tornou-se o primeiro país do hemisfério ocidental a ser governado por um ex-escravo depois do período colonial e sua independência teve um enorme impacto no mundo colonial americano. Porém, com medo de que a independência do Haiti incentivasse outros Estados coloniais na América Latina, o novo país se viu submetido a um isolamento diplomático e com grandes difi MARX, Karl. O 18 Brumário. In: MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p. 17.

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culdades para se inserir na economia e política da comunidade internacional313. Não bastasse isso, o país passou por um longo período de ditadura - A ditadura de Duvalier. Os governos de François Duvalier (conhecido como “Papa Doc”), que governou de 1957 a 1971, e seu filho Jean-Claude Duvalier (o “Baby Doc”), de 1971 a 1986, são tidos por analistas como dois dos mais violentos governantes da história. Somente em 1990 foram realizadas eleições presidenciais livres, quem venceu estas eleições foi o padre salesiano Jean-Bertrand Aristide. Contudo, em 29 de setembro de 1991, o presidente eleito foi deposto por um golpe militar de Estado. Este golpe foi condenado pelo Conselho de Segurança (resoluções 46/7 e 46/138) que, após qualificar a questão de forma dúbia, invocando o Capítulo VII da Carta da ONU e aprovou sanções contra o Haiti. Na segunda resolução o Conselho de Segurança da ONU inclusive condena as violações de direitos humanos e demonstra sua preocupação com a onda massiva de refugiados, caracterizando, para alguns autores de maneira estratégica, como uma situação de ameaça à paz e à segurança mundial314. Assim, em 1991 ocorreu a intervenção norte-americana no Haiti, desta vez para reempossar o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide; esta operação ficou conhecida como operação “Restaurar a Democracia”315. Porém, as sanções previstas para tentar fazer com que o presidente Aristide reassumisse a presidência não foram capazes de fazer com que as forças militares respeitassem o novo governo, dando sequência a dois novos golpes em 1994. Na resolução 940, de 1994, o O. RODRÍGUEZ, Jaime. E. (Coord). Revolucíon, independência y las nuevas naciones de América. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2005, p. 41-60. (tradução indireta minha) 314 BAPTISTA, Eduardo Correia. O poder público bélico em direito internacional: o uso 313

da força pelas Nações Unidas em especial. Coimbra: Almedina, 2008. p. 949-952.

VICENTINO, Cláudio. História geral. 8. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Scipione, 1997. p. 459.

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Conselho de Segurança qualifica novamente os golpes como “ameaças à paz” e autoriza o uso da força para depor as autoridades e reinstalar o presidente eleito, tal autorização acabou por gerar um conflito armado e instalou a presença de 2.000 fuzileiros norte-americanos no país316. Tal situação segundo B. S. Amor demonstra: “a futilidade de apelar para a força ou a coerção externa para sustentar um regime democrático no formal em condições de extrema pobreza generalizada e carente de tradição institucional317”. Em 2004, no entanto, uma revolta derrubou novamente Aristide. Logo após este acontecimento foi criada a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) com o objetivo de ajudar a restabelecer a ordem política no país, sob o comando do Brasil. Em 2006, após dois anos de instabilidade social e política, o país realizou novas eleições que levaram o ex-presidente René Preval de volta ao cargo com ajuda da missão da ONU, mas a situação continua delicada no país318. A participação brasileira na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) é o principal envolvimento do Brasil em operações de manutenção da paz. O Brasil é o maior contribuinte de tropas para essa Missão. Desde 2004 o Brasil manteve um contingente de 1200 militares, com rotação semestral319. As ações BAPTISTA, op. cit., p. 949-952. AMOR, Bernardo Sepúlveda. No intervención y derecho de injerencia: el império o

316 317

la decadência de la soberania. In: VÁSQUEZ, Modesto Seara (Comp). Las Naciones Unidas a los cicuenta años. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1995. p. 193. (tradução indireta minha)

PORTAL DE NOTÍCIAS R7. 2010. Entenda o que é a missão de paz no Haiti. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2010, às 11h02min. 319 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: Acesso em: 26 set. 2012. 320 MARX, Karl. O 18 Brumário. In: MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p. 17.

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nos hoje é a de sua exclusão deste processo de reconstrução, reproduzindo o que se apresentou em outros momentos passados, impedindo assim de serem protagonistas de sua história. Não bastasse todo o sofrimento desses anos de intensos conflitos e intervenções, ainda que a solidariedade internacional tenha se empenhado em reduzi-los, o Haiti e, principalmente, a capital Porto Príncipe, às 16h53 minutos da tarde de terça-feira, dia 12 de janeiro de 2010, foi vítima de uma catástrofe ambiental de força inimaginável - um terremoto que transformou o país em escombros e deixou dezenas de milhares de pessoas mortas ou feridas. “A situação humanitária do país, o mais pobre das Américas, é caótica. Pelo menos 200 mil pessoas morreram, 300 mil ficaram feridas, 4 mil foram amputadas. Há um milhão de desabrigados”321.

3

O TERREMOTO DE 2010 E A CRESCENTE MIGRAÇÃO La solidarietà avvicina mondi mentre la solitudine vive di separazioni e di distanze322.

A solidariedade coloca em discussão as possibilidades que temos de unificar e reduzir as distâncias. Com isso, identificamos que temos muito mais direitos do que efetivamente podemos realizar e vemos também que leis e legislações – as mais variadas – não nos faltam. Nesse contexto, algumas indagações são fundamentais: como o fenômeno da globalização reflete nos fundamentos do Estado-nação? Quais são as relações entre os poderes públicos e a globalização? É possível transportar democracia e justiça além das PORTAL DE NOTÍCIA G1. 2010. Cobertura completa: terremoto no Haiti. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2010. 322 RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. Laterza, 2002. p. 09. [Tradução livre:] A solidariedade aproxima mundos enquanto a solidão vive de separação e de distância. 321

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fronteiras do Estado? Qual justiça estamos ultrapassando, se é que ultrapassamos? Qual democracia?323 Ora o questionamento sobre a possibilidade de uma justiça e de um direito global capazes de efetivar todos os direitos fundamentais passa necessariamente pela forma como lidamos com os diferentes. Seguindo os pressupostos da Metateoria do Direito Fraterno, retomamos a fraternidade, que me leva a ver o outro – inclusive e, sobretudo, o diferente, como meu irmão, como um outro EU. Nesta era global, precisamos refletir sobre a situação da migração, fenômeno antigo, mas que, na contemporaneidade, assume um novo patamar de exclusão324. A Constituição Federal brasileira, ao dar tratamento igualitário aos brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 5º) assegurou a estes a possibilidade de acesso às políticas públicas existentes. A Lei 9.474/97, por sua vez, expressão do compromisso do Brasil com a causa humanitária do refúgio, chamou o país à efetivação destes direitos quando sinalizou para a implementação de políticas públicas para a integração dos refugiados e refugiadas. Após o terremoto, o Brasil passou a manter um contingente de 2.100 militares no país; com este contingente a participação brasileira no Haiti, desde o início até hoje, contou com mais de 13 mil militares325. Apesar dos esforços que as missões de paz vêm empre Para aprofundar estas reflexões ver: CASSESE, Sabino. Il Diritto Globale – Giustizia e Democrazia oltre lo Stato. Torino: Einaudi, 2009. Especialmente o capítulo final. Verso una giustizia e una democrazia globali? p. 156–167. 324 Sobre isso, consultar: RESTA, Eligio. In: Globalizzazione e diritti futuri. A cura di R. Finelli, F. Fistetti, F. R. Recchia Luciani, P. Di Vittorio. Ministero dell’Istruzione. Roma: Università e Ricerca scientifica, 2004. p. 367. 325 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. 326 PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. 327 Ibidem.

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Após a resolução, a idéia é emitir 1,2 mil vistos permanentes por ano (100 por mês, em média) pela Embaixada do Brasil no Haiti, para tanto, não será necessário comprovar qualificação, nem vínculo com empresa, diferentemente dos vistos de trabalho comuns328, além disso, os canais de vistos anteriores oferecidos para turismo, estudo, trabalho temporário continuam a existir também para os haitianos. Com relação aos haitianos que já estavam no país antes da publicação da resolução, estes serão regularizados por meio do CNIg. Porém, quem chegar ao país após a publicação da resolução do CNIg e não estiver regular (com visto obtido na embaixada do Brasil no Haiti) será notificado a deixar o país. Caso não deixe, poderá ser deportado329. Cumpre ressaltar, que o estrangeiro que recebe o status de permanente no Brasil é assegurado o exercício dos mesmos direitos civis, liberdades sociais, culturais e econômicas dos brasileiros, em particular o direito ao trabalho e à livre iniciativa, além do acesso à justiça, inclusive a gratuita, à saúde, à educação, e aos direitos advindos das relações de trabalho e emprego, entre outros330. Hoje, dos 4 mil haitianos que entraram no Brasil, 1.600 já estão regulares, pois receberam visto humanitário do Conselho Nacional de Imigração e cerca de 2 mil estão em tramitação entre o Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho para regularização. Portanto, todos os que já estavam no Brasil até a data da publicação da resolução do CNIg receberam a permanência, todavia, os haitianos que chegarem após a data da publicação da Resolução do PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. 329 Ibidem. 330 PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. 328

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CNIg ou entrarem ilegalmente serão notificados a deixar o país e se não o fizerem serão deportados331.

4.

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS Il centro del diritto non si trova nella legislazione, né nella scienza del diritto,, né nella giurisprudenza, ma nella società stessa332.

É fato que o Brasil há muitos anos está comprometido com a pacificação, a reconstrução e o desenvolvimento do Haiti, contudo, diante da crescente imigração de haitianos para o Brasil, o que se verifica com a resolução do CNIg é que a solução encontrada foi a de restringir o número de vistos, para evitar que a situação fugisse do controle das autoridades. Segundo Salem Nasser: Do ponto de vista humanitário, o Brasil parece estar tomando medidas apropriadas em relação aos imigrantes que já estão em território nacional. Com relação aos que viriam, e que agora precisarão de visto, o raciocínio do governo foi provavelmente orientado pela ideia de que a ajuda humanitária, na forma de permissão de entrada aos imigrantes, não pode ser ilimitada, já que o Brasil não teria como sustentar isso.

Ainda, de acordo com o CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados, os haitianos não podem ser considerados refugiados, pois não são perseguidos por motivos políticos, de raça ou religião PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. 332 RESTA, Eligio. Diritto vivente. Bari: Eiditori Laterza, 2008, p. 29. [Tradução livre:] o centro do direito não se encontra na legislação, nem na ciência do direito, nem na jurisprudência, mas na própria sociedade. 331

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em seu país, conforme dispõe a Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997 em seu art. 1º: Art. 1º - Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Diante deste posicionamento, os haitianos, para não chegar ao Brasil ilegalmente, deveriam solicitar o visto em seu país de origem. Porém, na prática isto não vem acontecendo. Esta decisão do governo de fechar as fronteiras para os haitianos divide a opinião de especialistas em Direito Internacional, pois se, por um lado, a iniciativa reforça a soberania brasileira sobre o seu território, já que o Brasil não pode assumir o Haiti, por outro, avaliam que a mesma coloca em xeque as políticas adotadas nos últimos anos em relação aos direitos humanos333. O Ministro de Justiça, José Eduardo Cardozo, por sua vez, afirma: Ao contrário, regularizamos a entrada. Além dos vistos normais concedidos aos haitianos, como de trabalho, de estu PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 10/01/2012. Decisão do governo de fechar fronteiras divide especialistas. Disponível em: .  Acesso em: 27 out. 2012.

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do e de turismo, concedemos um adicional, um plus a mais. Uma excepcionalidade. Não houve desrespeito aos direitos humanos. Foi uma decisão de respeito e solidariedade da presidente Dilma. O que não pode é uma situação como estava. Uma máfia internacional se valendo da desgraça das pessoas, no caso dos coiotes. Uma máfia que explorava seres humanos334.

Esta medida adotada pelo Brasil de restringir a entrada de haitianos, não lhes atribuindo o status de refugiados, pode estar legalmente amparada diante do conceito apresentado pela Lei 9.474, mas surpreende do ponto de vista humanitário e se choca com a política externa do Brasil. Não obstante, este posicionamento pode ser questionado, pois o Brasil é signatário, também, de outros instrumentos internacionais que tratam da proteção e integração dos refugiados e, estes, interpretados de forma extensiva, estariam de acordo com a política externa humanitária do Brasil e confeririam aos haitianos a proteção de refugiados. Nesse sentido, importante destacar a Declaração de Cartagena, que foi adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários”, do qual o Brasil participou; segundo o Colóquio, também, poderiam ser considerados refugiados as pessoas que tenham fugido de seu país porque sua vida, sua segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, os conflitos internos, a violência maciça dos Direitos Humanos ou outras circunstâncias que tenham pertubado gravemente a ordem pública. Nota-se que a situação dos haitianos poderia ser facilmente

PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 12/01/2012. Resolução regulamentando presença de Haitianos é aprovada. Disponível em: .  Acesso em: 27 out. 2012.

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enquadrada neste instrumento jurídico, contudo, o Brasil optou por restringir o conceito. Em 2011 a resolução 2012 (2011) do Conselho de Segurança da ONU manifestou-se pela diminuição do número de militares da Minustah. Contudo, sabe-se que apesar dos esforços das forças de paz no Haiti, a situação do país permanece instável e caótica e muito se deve ao fato de que a própria população vem sendo excluída deste processo, desse modo, continua crescendo o número de haitianos que vem para Brasil335. Nesse sentido destaca-se o relatório do Conselho de Segurança da ONU: La policía de la MINUSTAH, junto con la Policía Nacional de Haití, mantiene una presencia de seguridad permanente y patrullas reforzadas en siete campamentos de alto riesgo y lleva a cabo patrullas diarias por turnos de rotación en aproximadamente 150 de los llamados campamentos “no permanentes”. La presencia de la policía de la MINUSTAH facilita el registro de las denuncias y reclamaciones de los residentes. No obstante, siguen produciéndose numerosos incidentes de violencia sexual y por razón de género y muchas mujeres siguen sin sentirse seguras en los campamentos. Las denuncias han aumentado, pero aún son muchos los incidentes de este tipo que no se denuncian336.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: Acesso em: 26 set. 2012. 336 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012.

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De fato, quando catástrofes naturais acontecem como é o caso do terremoto no Haiti, onde a capital Porto Princípe foi devastada, é natural ocorrer o deslocando de comunidades inteiras. Porém, a situação no Haiti é agravada por uma agitação civil, causanda por uma insegurança generalizada diante de tanta violência, desestruturação, epidemias, além disso, não é somente a partir do terremoto que a situação do país esta caótica, a história deste país, conforme acima descrita, é marcada por violação de Direitos Humanos. Nestas circunstâncias podemos dizer que estas pessoas são deslocadas à força para proteger a vida e a integridade física, pois, diante delas somente se vislumbra duas opções: a morte por privação, violência, ou a vida no exílio. Diante da complexidade da situação, o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados apresenta uma distinção entre imigrantes econômicos e refugiados: Los patrones globales de migración se han vuelto cada vez más complejas en los tiempos modernos, con la participación no sólo de los refugiados, sino también a millones de inmigrantes económicos. Los migrantes, especialmente los migrantes económicos, deciden mudarse con el fin de mejorar las perspectivas de futuro de sí mismos y sus familias. Los refugiados tienen que moverse si quieren salvar sus vidas o su libertad. Ellos no tienen la protección de su propio Estado - de hecho, es a menudo su propio gobierno que está amenazando con perseguirlos. Si otros países no les brindan la protección necesaria, y no les ayudan una vez dentro, entonces pueden estar condenádolos a muerte - o a una vida insoportable en las sombras, sin sustento y sin derechos.337

É evidente que os haitianos poderiam enquadrar-se tanto no conceito de imigrantes econômicos quanto refugiados, dependendo do tipo de análise que se faz daquele país. Mas ao contrário do que LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012.

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se imagina, não são haitianos miseráveis que buscam o Brasil para viver, mas pessoas de classe média e profissionais qualificados, como engenheiros, professores, advogados, pedreiros, ou seja, hoje são as pessoas de melhor escolaridade que estão saíndo do país. Isso pode ser observado, principalmente, nas falas dos haitianos que se manifestaram durante a Audiência Pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Dentre os trabalhadores está o professor de línguas Jacksin Etienne, 30 anos, que fala português e foi contratado por uma empresa para ajudar os conterrâneos na adaptação no Brasil, em sua fala ele afirma que não queira deixar o país, mas seu pai lhe disse que naquele país ele não tinha futuro. Por respeito ao pai, ele decidiu deixar o país e foi para República Dominicana, porém lá era muito dificil e os dominicanos, por disputas históricas, não queriam dar moradia aos haitianos, por isso, decidiu vir ao Brasil. Em todos os discursos, o sentimento presente é de que não havia mais possibilidade de uma vida digna, mas apenas de sobrevivência, por isso, hoje o que mais desejam é poder trazer os familiares para morar no Brasil. Portanto, é diante desta complexidade global, onde estão presentes diversos fatores que levam a imigração, que estas medidas restritivas quanto à concessão de vistos aos haitianos pode ser questionada perante o Direito Internacional, uma vez que, percebe-se que o reconhecimento de determinado status ao imigrante depende cada vez mais do interesse do Estado do que de uma análise adequada das causas que levaram a imigração.

5. CONCLUSÃO “Temos de nos tornar a mudança que queremos ver no mundo.” (Mahatma Gandhi)

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A globalização e o aumento da interdependência não eliminaram as contradições, as desigualdades sociais e econômicas, nem o desenvolvimento desigual entre nações, mas acentuou as disputas, a concorrência no âmbito da economia global. Porém, acreditamos na possibilidade de mudanças, através do respeito a todas as diversidades e, em especial, no caso do Haiti, a própria construção história, ou reconstrução da história. E embora nunca se tenha falado tanto em Direitos Humanos, ao que parece este não é o principal foco dos Estados nas relações internacionais no mundo globalizado. Por isso, mais do que nunca é fundamental não somente a expansão das normas internacionais, mas principalmente que seja dada real eficácia às normas já existentes. A questão da migração é hoje um dos maiores problemas da sociedade internacional e do Direito. Atualmente, no Brasil, vivem cerca de 4.500 refugiados de mais de 70 países diferentes, os mesmos, além da proteção legal, têm direito à documentação e ao acesso às políticas públicas nacionais338. O que estamos presenciando no Brasil com os haitianos é de dimensão muito pequena, em comparação com a Europa, por exemplo, onde o tema está sempre em pauta, porém, é este o momento de posicionar-se de acordo com uma política externa humanitária e de proteção aos Direitos Humanos e este é o desafio da sociedade atual o de ver o outro como um outro EU, uma vez que a sociedade atual é o locus tanto do respeito como do desrepeito aos e com os Direitos Humanos. Conferir aos haitianos a proteção de refugiados, além de corresponder a uma política externa humanitária e de proteção aos direitos humanos, também, reforça o importante papel do Estado não

LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012.

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fechado, ora no mundo glabalizado em que vivemos é preciso superar as fronteiras geográficas construídas pela idéia de soberania. Por fim, cumpre ressaltar que é preciso ter em mente que políticas públicas voltadas à assistência e integração dos refugiados são imprescindíveis para assegurar-lhes os direitos econômicos, sociais e culturais, em especial o direito ao trabalho, à saúde e à educação, uma vez que, os refugiados chegam e devem reconstruir sua vida, em um ambiente totalmente desconhecido, frente a uma nova e diferente cultura, ou seja, uma sociedade completamente diferente daquela que viveu em seu país de origem.

6 REFERÊNCIAS AMOR, Bernardo Sepúlveda. No intervención y derecho de injerencia: el império o la decadência de la soberania. In: VÁSQUEZ, Modesto Seara (Comp). Las Naciones Unidas a los cicuenta años. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995. BAPTISTA, Eduardo Correia. O poder público bélico em direito internacional: o uso da força pelas Nações Unidas em especial. Coimbra: Almedina, 2008. CAPELA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, Editor, 1998. MARX, Karl. O 18 Brumário. In: MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. O. RODRÍGUEZ, Jaime. E. (Coord). Revolucíon, independência y las nuevas naciones de América. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2005 RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. Bari: Editori Laterza, 2002. RESTA, Eligio. In: Globalizzazione e diritti futuri. A cura di R. Finelli, F. Fistetti, F.R. Recchia Luciani, P. Di Vittorio. Ministero dell’Istruzione. Roma: Università e Ricerca scientifica, 2004. RESTA, Eligio. Diritto vivente. Bari: Eiditori Laterza, 2008. VICENTINO, Cláudio. História geral. 8. ed. Ver. atual. e ampl. São Paulo: Scipione, 1997. Documentos de acesso exclusivo em meio eletrônico: LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012. LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012.

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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2012. PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 10/01/2012. Decisão do governo de fechar fronteiras divide especialistas. Disponível em: . Acesso: em 27 out. 2012. PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 12/01/2012. Resolução regulamentando presença de haitianos é aprovada. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2012. PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012. PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2012.

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COOPERAÇÃO PARA PROTEÇÃO DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE CONFLITO ARMADO: O CASO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO Marília Lima Santos Graduanda do 7º semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas. ([email protected])

Resumo: Este artigo visa abordar a situação das mulheres em situação de conflito armado, tendo como base os conflitos na República Democrática do Congo. Este país esteve em guerra durante quase dez anos, porém, houve continuidade de ação das milícias em algumas áreas, trazendo novas ondas de violência contra a população civil, principalmente às mulheres. Estas, como veremos, são por vezes vistas como objetos, sendo atacadas estrategicamente como tática de guerra. Palavras-chave: República Democrática do Congo - conflito armado - estupro como arma de guerra. Sumário: 1. Introdução. 2. Conflito na República Democrática do Congo. 3. O Papel da ONU no Conflito. 4. A Violência Sexual como Arma de Guerra na RDC. 5. A Evolução da Questão no Âmbito da ONU. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO Em situações de conflito armado ou ocupação estrangeira, a população civil, com certa frequência, sofre mais impacto do que a população beligerante, propriamente envolvida no conflito. Dentro dessa população civil, uma particularidade que se tem percebido, é que a população do sexo feminino sofre um impacto consideravelmente maior. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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A violência sexual contra a mulher, em situações de conflito armado ou ocupação estrangeira, cada vez mais tem sido usada como “tática de guerra”339. Por isso, no âmbito do direito internacional, tem-se procurado diferentes métodos de aumentar a proteção das mulheres nessas situações, através de acordos entre os Estados limítrofes para a questão dos refugiados e resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas específicas sobre o tema, assim como os Estados podem cooperar para que essas atrocidades sejam erradicadas. Neste artigo, o caso a ser analisado é o da violência contra as mulheres na República Democrática do Congo (RDC). Após o fim oficial das guerras que, juntas, duraram quase dez anos, com seus vizinhos e milícias atuantes no país, algumas áreas continuaram sob o domínio destas milícias, principalmente na região leste. Os conflitos na região são considerados exemplos na ineficiência do combate a violência de gênero em conflito armado, sendo RDC um dos países onde a prática do estupro como tática de guerra está mais disseminada.

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CONFLITO NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO

O conflito na RDC pode ser dividido em três momentos: a Primeira e a Segunda Guerra do Congo e o Estado de Violência340 que se seguiu com o fim oficial das guerras. É chamado por alguns estudiosos de “Guerra Mundial Africana”, devido ao número de atores envolvidos e às proporções humanitárias. A origem do conflito vem do descontentamento da população com o regime ditatorial de Mobutu Sese Seko, presidente o qual havia tomado o poder em 1965341 em um golpe e dominava o país até UNSC. Resolução 1820. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2013. 340 CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p., p. 46. 341 GHISLENI, Alexandre Peña. Direitos humanos e segurança internacional: o tratamento dos direitos humanos no Conselho de Segurança das Nações Unidas. - Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. 292p., p. 106. 339

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então342. Porém, seu estopim teria sido pelo auxílio fornecido por Mobutu às milícias hutus que haviam fugido após atuarem ativamente no genocídio em Ruanda, o que levou o país vizinho, entre outros também descontentes com a política de Mobutu343, a apoiar a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire (AFDL). A AFDL, apoiada pelos governos de Ruanda e Uganda, marcha sobre Kinshasa com o objetivo de depor Mobutu, não encontrando resistência da população, e com um exército enfraquecido devido a diversas medidas preventivas de Mobutu344. Mobutu também não possuía mais o mesmo apoio das potências que o apoiaram durante a Guerra Fria – pois esta havia acabado e “não havia mais o perigo do comunismo”345. Logo, houve a vitória da AFDL, o “fim” da Primeira Guerra do Congo e seu líder Laurent Kabila proclama-se presidente em 1997. Porém, apesar de trocar o nome para República Democrática do Congo, o regime de Kabila cada vez mais parecia com o de seu predecessor, o que acabou causando inquietação na população congolesa e em seus vizinhos, inclusive seus apoiadores. Em 1998, Kabila ordena a partida de todas as tropas estrangeiras do país, ordem que fora descumprida. Em seguida, forças ruandesas avançaram sobre Kinshasa, com o objetivo de substituir Kabila pelo grupo União Congolesa pela Democracia (RCD, sigla francesa) – intento impedido pelo auxílio de Kabila aos governos de Angola, Namíbia e Zimbábue. Logo, estes países estariam todos envolvidos em uma segunda guerra travada em território congolês346. Uma das medidas do governo de Mobutu fora, em 1971, mudar o nome do país para Zaire. Quando Kabila assume o poder, retoma o antigo nome do país, República Democrática do Congo, adotado entre 1964 e 1971. 343 CASTELLANO, Igor. Op. cit., p. 132. 344 A partir de 1975, com receio de que houvesse tentativa de golpe militar contra si, Mobutu passa a destruir o próprio exército nacional Zairense. (CASTELLANO) 345 O Brasil foi um dos países a apoiar, inicialmente, Mobutu; tendo como fatores de aproximação os regimes ditatoriais de ambos, e de afastamento as políticas de Mobutu que se tornaram inconsistentes com o pensamento brasileiro. 346 Tanto a primeira quanto a segunda guerra do congo tiveram características de guerras proxy, guerras travadas com exércitos mercenários, financiados principalmente através do mercado negro dos recursos naturais da região. 342

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Em 1999, os Estados envolvidos, mais o Movimento de Libertação do Congo (MLC), firmaram o Acordo de Lusaka347, prevendo um cessar-fogo, a retirada das tropas estrangeiras, a solicitação de envio de missões de paz pelas Nações Unidas, e a formação de um governo provisório. O conflito foi declarado oficialmente terminado em 2003, porém, as milícias não reconheceram o acordo e continuaram atuando, principalmente nas regiões de Ituri e Nord e Sud Kivu, tendo novamente ondas de violência e atos de limpeza étnica348. O Estado de Violência que seguiu no pós-guerra na RDC apresenta números de mortes quase equivalentes ao da Segunda Guerra do Congo, mesmo não sendo oficialmente “guerra”349. A falta de infraestrutura do país, que prejudicava a pacificação das regiões mais distantes, é citada como um dos fatores para a situação violenta no país. Estudos qualificam a guerra na RDC como a de mais alta mortalidade desde a Segunda Guerra Mundial350. Até o fim de 2008, o governo de Kinshasa entrou em mais um conflito, contra o governo de Ruanda, na região leste do país. Porém, no final de 2008, a RDC e Ruanda uniram forças para combater a FDLR nas províncias de Kivu do Norte e do Sul. Relatos de estupros em massa, assassinatos, entre outras atrocidades cometidas pelos rebeldes e também pelas tropas do governo continuam. Com o surgimento de um novo grupo rebelde, o M23, o acordo entre a RDC e Ruanda colapsou, pois a RDC acusa Ruanda de apoiar o M23. A situação da RDC entra no conceito de “novas guerras”, de Mary Kaldor351, onde não há delimitação de fronteiras entre guerra, Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2013. A característica étnica dos conflitos tem origem no seu período colonial, principalmente na forma de colonização belga. 349 CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p. 350 IRIN, DRC: Conflict deadliest since World War II – aid agency. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2013 351 KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Second Edition. Stanford University Press, 2007. 347 348

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crime organizado, violação em larga escala de direitos humanos e direito internacional humanitário. Eles se diferenciam dos conflitos “tradicionais” em termos de objetivos, formas de organização, formas de financiamento, e formas de articulação entre o interno e o externo. Seus objetivos não estão mais relacionais a razões geopolíticas ou ideológicas, eles têm a ver com uma questão de política de identidade, no sentido da luta pelo poder estar baseada numa identidade particular. No caso da RDC, o estopim para o conflito fora o transbordo das milícias hutus ruandesas para território congolês, as quais continuaram suas atividades contra a população tutsi, no território vizinho, com o apoio de Mobutu. Todavia, esse singular conflito reascendeu outros conflitos étnicos como entre as etnias Hema e Lendu, na região de Ituri352. Em termos de métodos, as novas guerras têm mais características de técnicas de guerrilha, com um objetivo de obter o controle político da população, mais do que de batalhas militares. O objetivo, aqui, é incitar o medo e o terror na população local; é controlar a população, livrando-se de todos que tenham uma identidade ou opinião diferente. Para isso, as técnicas utilizadas incluem assassinatos, deslocamentos forçados, intimidação, estupros sistemáticos – cada vez mais aumenta o número de vítimas dentro da população civil. Em termos de organização, os atores do conflito são altamente descentralizados, unidades paramilitares, senhores de guerras locais, forças policiais, grupos mercenários, além de grupos militares regulares. Algumas das milícias atuantes na RDC são: as Forças Democráticas de Libertação de Ruanda (FDLR), Mai-Mai, M23, Exército de Resistência do Senhor (LRA)353. Em termos econômicos, estes O caso Hema-Lendu foi agravado durante o governo de Mobutu, pois neste regime houve uma manutenção status existente na época colonial. Há declarações de que o conflito não é entre Hemas e Lendus, e sim entre certos grupos favorecidos e desfavorecidos da região (CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p.). 353 Lord’s Resistance Army – tradução livre. 352

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países são fundamentalmente dependentes de ajuda externa. O financiamento das guerras muitas vezes acontece através do mercado negro ou de assistência externa354. A RDC é extremamente rica em recursos minerais, como diamante, cobre, cobalto, entre outros; existe uma noção de círculo vicioso devido ao fato de que, estes recursos atraem muitas vezes as milícias para o conflito, e financiam o próprio conflito.355 Kalyvas356 tem uma distinção entre velhas e novas guerras civis similar a de Mary Kaldor, porém distingue-as em três dimensões: causas e motivações, suporte, violência. As novas guerras civis, em suma, diferem das antigas por não possuírem ideologia, há apenas a busca por lucros e saquear os territórios em que atuam. Não possuem suporte popular, pois geralmente quem propaga estes conflitos são milícias rebeldes que atuam estrategicamente contra a população civil. Por fim, a violência adquire senso de gratuidade e falta de disciplina. Uma crítica a essa diferenciação, proposta pelo mesmo texto de Kalyvas, seria de que alguns pesquisadores afirmam que as pesquisas realizadas em zonas de conflito não consideram válida a visão dos grupos rebeldes, é apenas enfatizada a visão do governo, o que sempre irá deslegitimar os possíveis ideais das milícias. Muitas vezes estes rebeldes agem por motivos que vão além da simples bandidagem, assim como não só os atos cometidos por atores não-estatais são percebidos como de violência gratuita e indescritível, como dos órgãos do próprio governo. Especificamente sobre conflitos na África, diz-se que eles são estigmatizados, pois, suas visões ideológicas não correspondem aos padrões “ocidentais”. No caso da segunda guerra do Congo, os países que haviam participado da 1ª, aproveitaram o conhecimento de campo adquirido, para maior exploração das riquezas do território congolês. 355 Em 2010, o governo norte-americano aprova uma lei para proibir o comércio ilegal de minerais provindos de áreas de conflito. Lei disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2013. 356 KALYVAS, Stathis. “New” and “Old” civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54, n. 1, Oct 2001. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013 354

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Em 2006, após 40 anos de independência, ocorreram as primeiras eleições livres do país357. Estas foram estabelecidas com o auxílio da MONUC, e tiveram como presidente eleito o filho de Laurent Kabila, Joseph Kabila. Este se mostrou mais aberto que seus predecessores, procurando retomar o diálogo com seus vizinhos e criar novos diálogos com outros países, buscando aumentar os direitos civis, entre outras medidas.

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O PAPEL DA ONU NO CONFLITO

Em 1999, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, através da resolução 1258358, o envio da Missão de Organização das Nações Unidas na RDC (MONUC), na forma de uma equipe de observadores, a qual se tornaria com os anos a maior Missão de Paz das Nações Unidas359. Em maio de 2003, o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizaria, pela resolução 1484, o envio de uma Força Multinacional Interina de Emergência, que seria liderada pela França, para ajudar a MONUC a conter a violência na região de Ituri. Na resolução de instalação de mandato da MONUC, consta a tarefa de monitorar os direitos humanos, com “atenção particular aos grupos vulneráveis como mulheres, crianças e crianças-soldado desmobilizadas”360. A MONUC foi planejada inicialmente para observar o cessar fogo e a retirada das tropas e manter a articulação de todas as partes com o acordo de cessar-fogo. Mais tarde, em uma série de resoluções, o Conselho expandiu o mandato da MONUC para a supervisão da implementação do Acordo e atribuiu-lhe múltiplas tarefas adi UN Peacekeeping, 2006: a year of hope for congolese people. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. 358 Resolução disponível em: . Acesso em 20 abr. 2013. 359 GHISLENI, Alexandre Peña, op. cit., p. 107. 360 MONUC, mandato. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2013. 357

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cionais. As primeiras eleições livres do país em 46 anos foram em 2006, e o processo eleitoral representou um dos mais complexos que a ONU já ajudou a organizar361. Após as eleições, a MONUC continuou no território, para continuar a implementação de tarefas políticas, militares, entre outras mandatadas pelas resoluções do Conselho de Segurança, incluindo tentar resolver os conflitos que ainda seguiam nas províncias orientais. Em junho de 2010, através da resolução 1925, o Conselho renomeou a Missão para Missão de Organização e Estabilização das Nações Unidas para a RDC (MONUSCO), para refletir sobre a nova fase do país. Esta nova missão foi autorizada para usar todos os meios necessários para executar seu mandato relativo a proteger os civis, o pessoal humanitário e os defensores dos direitos humanos sob ameaça iminente de violência física, e para apoiar o governo da RDC na estabilização e nos esforços da consolidação da paz362. As futuras reconfigurações da MONUSCO seriam determinadas de acordo com a situação do território, incluindo: a realização de operações militares nas províncias de Kivu do Norte e do Sul, assim como outras províncias orientais; capacidades governamentais melhoradas de proteger a população efetivamente; e a consolidação do estado de autoridade para todo o território.

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A VIOLÊNCIA SEXUAL COMO ARMA DE GUERRA NA RDC

Desde o início do conflito, inúmeros casos de violência sexual têm sido registrados na República Democrática do Congo – e acredita-se que outros tantos aconteceram, mas não devem estar registrados. A escala destes abusos e suas consequências física, MONUSCO. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2013. 362 MONUSCO, mandato. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2013. 361

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emocional e econômica continuam a reforçar a instabilidade, especialmente no leste do país363, devido à presença das milícias hutus ruandesas, e os conflitos étnicos congoleses. Margot Wallstrom, representante especial das Nações Unidas sobre violência sexual em conflitos armados, nomeou a RDC como a “capital mundial do estupro”364. As vítimas deste tipo de violência não têm perfil exato. Crianças, bebês e até senhoras idosas sofrem esses ataques. Em relatório da anistia internacional365, há relatos que afirmam que, devido a superstições, há preferência por crianças antes de atingirem a puberdade e mulheres pós-menopausa, pois os perpetradores acreditam que estas os farão imunes a doenças, inclusive ao HIV/AIDS, ou ainda os curará caso já estejam infectados. Acredita-se, todavia, que há uma relação direta entre a discriminação praticada contra as mulheres de forma geral e a violência exacerbada sobre ela em tempos de guerra366. A desigualdade de gênero na RDC está impregnada em todos os níveis da sociedade, desde o sistema jurídico (que, por exemplo, em caso de adultério possui uma lei mais severa para mulheres do que para homens), até o sistema educacional, que incentiva as mulheres a ficarem em casa e os homens a estudarem, o que gera uma enorme discrepância na taxa de analfabetismo entre os gêneros. O fato de a mulher ser considerada uma propriedade do homem já antes da guerra é um incentivo às violências sofridas durante o conflito. Background on sexual violence. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2013. 364 BBC, “UN official calls DR Congo “rape capital of the world”. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2013. 365 ANISTIA INTERNACIONAL, DEMOCRATIC REPUBLIC OF CONGO: Mass Rape – Time for Remedies. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013. 366 FITZPATRICK, Brenda. Tactical Rape as a Threat to International Security: A Norm Develops. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2013. 363

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Já sobre o perfil dos perpetradores, todas as forças armadas envolvidas no conflito já cometeram estupro e violência sexual, incluindo forças do governo. Isso significa as milícias Mai-mai, RDCGoma, MLC, RCD-ML, UPC, FNI, FAPC, FDLR, FDD, FNL, e forças armadas de RDC, Ruanda, Burundi e Uganda367. As forças armadas ou milícias atacam vilarejos, atacam a população civil, estupram as mulheres, crianças, torturam todos, fazem uso de tratamento degradante, saqueiam e vão embora, às vezes sequestrando algumas meninas do local como “esposas” ou “escravas sexuais”. A situação das meninas tomadas como esposas é particularmente grave368. Quando raptadas, elas podem ficar meses, até anos com seus malfeitores. No caso de serem raptadas por forças oficiais de outro país, com o fim do conflito, muitas vezes por vergonha de voltar às suas comunidades de origem, ou por não terem outra escolha, seguem as tropas estrangeiras na retirada ao país de origem. Quando em outro território, seus sequestradores voltam para suas famílias, e elas ficam sem lar, sem proteção legal do governo, tendo que recorrem à prostituição como forma de sobrevivência. A situação das gravidezes em função dos estupros é outra problemática que repercute muito além do conflito, tendo impactos muito além da própria agressão. Os filhos nascidos em razão desta violência, quando não rejeitados pela própria mãe, por ser uma memória do ataque, são rejeitados pela comunidade em que vivem. São as chamadas “crianças do inimigo”369, e ainda que a mãe passe a aceitá-lo, muitas vezes ela é obrigada a se excluir daquela comunidade com a criança para criá-la de uma forma mais digna. Outra questão é a falta de proteção das mulheres e meninas deslocadas: muitas vezes elas são “interceptadas” ao saírem em busca de água, lenha, alimentos370. Quanto mais nova, maiores são 369 370 367 368

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ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit. Idem. Idem. IDMC; NRC. Democratic Republic of Congo: IDPs needs further assistance in context of continued attacks and insecurity. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013. UNSC, Final report of the Group of Experts on the DRC, pursuant to Security Council resolution 1698 (2006). Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2013. ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit. BBC: Denis Mukwege: The rape surgeon of DR Congo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. IDMC; NRC, op. cit.

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estimado de 1,7 milhões de pessoas deslocadas internamente. Esse número incluía mais de 128.000 “novos” deslocados no primeiro quarto de 2011. A maioria estava fugindo em tentativa de escapar de grupos rebeldes e das forças armadas congolesas, enquanto outros eram vítimas diretas dos ataques e violências perpetradas por estas partes e por outros indivíduos armados. Como já previamente citado, a MONUSCO tem fornecido apoio ao exército na luta contra os grupos rebeldes, assim como tem liderado pequenas operações também. Em 2011, grupos armados não estatais conseguiram retomar posições antigas e renovar ataques contra civis, matando e estuprando os deslocados internos, que são os grupos mais vulneráveis da população civil, enquanto o exército estava sendo retirado, deixando a população sem nenhuma proteção. Devido a esses níveis de insegurança, as taxas de retorno diminuíram em 2011, quando comparadas aos meses anteriores375. Houve também problemas com a fronteira da Angola quando, de janeiro de 2010 a janeiro de 2011, foram expulsos 70.000 congoleses, com relatos de violências sexuais, e outros tipos de tortura. Parceiros humanitários insistem que se tenha uma assistência básica aos mais vulneráveis, e que estas expulsões sejam levadas da maneira mais digna e de acordo com os princípios do direito internacional dos direitos humanos376. Yakin Ertürk377, relatora das Nações Unidas, em missão especial na RDC, destacou que entre os perpetradores estavam homens de milícia, membros das forças armadas do exército congolês, oficiais da polícia nacional e, em número cada vez maior, civis. Continuando seu relato, ela descreve que a situação é mais “aguda” em Kivu do Sul, onde grupos armados não estatais, principalmente milícias estrangeiras, praticam atrocidades com “brutalidade inimaginável”, IDMC; NRC, op. cit. Idem. 377 UNHRC. Relatório do Relator Especial sobre a violência contra as mulheres, suas causas e consequências. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. 375 376

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visando à destruição completa do psicológico e do físico daquelas mulheres, com implicação para a sociedade como um todo.

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A EVOLUÇÃO DA QUESTÃO NO ÂMBITO DA ONU

No âmbito internacional, tem-se procurado proteger as mulheres das desigualdades de gênero através de convenções como a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW)378, e outras conferências mundiais da ONU sobre a mulher, dentre elas a Conferência de Pequim, que deu origem a “Declaração de Pequim”, a qual contem um capítulo inteiro que versa sobre mulheres e conflito armado, com um respectivo Plano de Ação para os governos guiarem suas políticas. Este foi o primeiro grande passo para quebrar o tabu existente sobre o tema. A temática da violência contra mulheres e crianças em conflito armado passou a ter maior evidência no ano de 2000, quando, a partir da Resolução 1.325379, foi abordada pela primeira vez no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa resolução é considerada um marco histórico para a questão da proteção das mulheres em conflito armado, pois a partir dela que começaram a ser idealizadas metas para a abolição das práticas de violências baseadas em questões de gênero em conflito armado. A questão das mulheres em conflito armado só teria sido abordada previamente na Declaração de Pequim380, a qual é relembrada no preâmbulo da Resolução 1.325. A resolução é tratada como um marco, pois, pela primeira vez em um órgão tão importante no âmbito internacional, reconhe CEDAW. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2013. 379 UNSC. Resolução 1325. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2013. 380 Declaração de Pequim e Plataforma de Ação. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2013. 378

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ce-se publicamente a vulnerabilidade das mulheres em situações de conflito armado. Especifica-se que a população civil, especialmente mulheres e crianças, são os maiores afetados em conflitos armados, principalmente como refugiados e deslocados internos, pois são alvos tanto de forças armadas oficiais quanto das milícias. Também se tem como marco referencial da resolução a ênfase dada ao reconhecimento do papel da mulher na prevenção e resolução dos conflitos e no processo de construção da paz, ressaltando a importância de sua participação em todos os processos de tomada de decisão; bem como a urgência de integrar uma perspectiva de gênero nas operações de paz, relembrando a Declaração de Windhoek e o Plano de Ação da Namíbia para a Integração da Perspectiva de Gênero em Operações de Suporte de Paz Multidimensionais381. A implementação da resolução tem sido agilizada através do desenvolvimento de Planos de Ação Nacionais (NAP) e outras estratégias em níveis nacionais. Estes NAP assistem aos países na identificação de prioridade e recursos, determinando suas responsabilidades e comprometendo-se na ação. Dentre os países que já se comprometeram com o NAP, encontram-se: Bélgica, Canadá, Libéria, Estônia, Finlândia, entre outros – incluindo a própria RDC. Outro ponto chave da Resolução 1.325 é a luta para retirar os crimes de violência sexual contra mulheres e crianças como passíveis de anistia, enfatizando a responsabilidade dos Estados em acabar com a impunidade e julgar os culpados elencando junto com crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, e crimes de guerra, dando uma maior segurança às vítimas, principalmente às refugiadas que desejam voltar para suas casas. Uma das críticas aos processos de “fim” de conflito da RDC é a incorporação de todos os atuantes do conflito em papeis centrais da administração e no exército congolês, que além de ser o contrário de punir os responsáveis pelas atrocidades, incita

Declaração de Windhoek. Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2013.

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o surgimento de novas milícias ou ressurgimento de antigas milícias desejosas de obterem para si cargos de relevância administrativa. A UNIFEM, em documento-comentário à resolução 1325382, explica que a questão da anistia pode facilitar nos processos de acordos de paz, deixando os culpados por crimes tão hediondos escaparem livres destas atrocidades. Porém, essa é uma das maiores problemáticas da justiça de transição: diz-se que há urgência para alcançar a paz, mas qual paz está realmente sendo buscada – a paz negativa, onde só se visa o fim do conflito, em que as desigualdades e as injustiças permanecem, podendo gerar conflitos no futuro, ou a paz positiva, que visa o fim dos conflitos e reformas sociais para o bem da população. “A reintegração de ex-combatentes que teriam cometido crimes contra as mulheres, além de se enquadrar na situação de impunidade, é um desrespeito às mulheres, não levando em consideração seu sofrimento nem suas necessidades”. Outra resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi bem relacionada às mulheres, sobre um tema ainda mais específico: a resolução 1820383, de 2008. Nesta resolução, o Conselho tratou especificamente do fato de o estupro estar sendo utilizado como arma de guerra. Ela reitera que a prática de ataque à população civil tem como alvo principal as mulheres pelo uso da violência sexual, incluindo-a como tática de guerra para humilhar não só estas mulheres, mas como toda a comunidade em que elas vivem, forçando muitas vezes toda a sua família da vítima a se deslocar por não conseguir viver com esta violação da honra. Além disso, preocupa o fato de que as práticas de violência sexual, em alguns casos, continuam a ocorrer mesmo após a cessação das hostilidades384. A Resolução 1.820 também tem uma preocupação com o fato de que, apesar da condenação prévia da resolução anterior, a violên UNIFEM. Resolução 1325 comentada. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. 383 Resolução 1820. Disponível em : Acesso em: 19 fev. 2013. 384 Idem. 382

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cia sexual praticada contra mulheres e crianças continua a ocorrer, e em alguns casos sistematicamente, com características de brutalidade, assim como a população civil tem cada vez mais percebido como uma situação “normal”, e em número cada vez maior os perpetradores estão, além de em grupos armados rebeldes ou do governo, na própria população civil385. Além destas duas resoluções, há algumas posteriores, para reforçar o papel delas: a resolução 1888, a qual tem entre suas provisões o monitoramento mais sistemático, prevendo relatórios sobre os conflitos relacionados à violência sexual, solicitando a consideração de problemas de violência sexual dentro dos processos de paz, abordando a implantação de times – de militares e experts sobre a questão de gênero – em áreas de conflito, entre outros. Já a resolução 1889, a qual se concentra no envolvimento das mulheres durante o período pós-conflito e na reconstrução da região envolvida, enfatizando a importância do aumento das mulheres entre o pessoal de peacekeeping e peacebuilding, trata de obstáculos da participação das mulheres nos processos de paz, e pede pelo desenvolvimento de indicadores globais para seguir a implementação da Resolução 1.325, e a melhoria das respostas nacionais e internacionais às necessidades das mulheres em cenários de conflito e pós-conflito. Por fim, a Resolução 1.960, pede o fim da violência sexual em conflito armado, e visa a criação de ferramentas institucionais para combater a impunidade, esboçando passos específicos para a prevenção e proteção da violência sexual no conflito386. Estas resoluções, em suma, pregam que as mulheres, quando em situação de conflito armado ou em território sob domínio estrangeiro, além de estarem em uma situação complexa como o restante da população civil, sofrem um tipo particular de violência, a vio Resolução 1820. Disponível em : Acesso em: 19 fev. 2013. 386 Demais resoluções: PeaceWomen. Comentários das resoluções 1888, 1889, 1960. Tradução livre. Disponível em: Acesso em: 26 fev. 2013. 385

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lência baseada no gênero, como prática de dominação de um povo ou ainda humilhação do povo já dominado. É também enfatizada a importância do papel da mulher na resolução destes conflitos, nos processos de construção e manutenção da paz, posto que não acreditam que a paz será realmente alcançada se não tiver uma posição das mulheres, defendendo as suas necessidades, a partir do seu próprio ponto de vista. A própria Organização das Nações Unidas requer uma maior participação de mulheres nas suas atividades de construção e manutenção da paz, como espécie de “consultoras” ao pessoal técnico. Para isso, precisa-se de uma maior ocupação destas mulheres também em cargos de liderança, em posições efetivas de tomada de decisões. A partir desses marcos, começa-se a caminhar, ao menos no âmbito das organizações internacionais, ainda que timidamente, em direção a uma maior cooperação em direção à proteção de mulheres que se encontram tão vulneráveis.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vulnerabilidade das mulheres, principalmente em época de conflito armado, é um assunto cada vez mais emergente no cenário internacional, o qual não pode mais ser ignorado. Ainda que haja boas iniciativas por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas, através da introdução da questão em suas resoluções, faz-se necessário um maior impulso junto aos países, pois é visível que as medidas não estão sendo implementadas. O que está ocorrendo, de fato, nos conflitos, é a continuidade das violências baseadas no gênero de forma sistemática, apesar dos esforços contínuos da comunidade internacional. No caso da República Democrática do Congo, o excesso de violência contra a população de sexo feminino em tempos de guerra é visto como um reflexo da própria sociedade congolesa, que mesmo em tempos de paz é severa e desigual com as mulheres. Por isso,

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faz-se necessária a maior participação das mulheres nos processos de construção e manutenção da paz, o maior acesso delas às instituições políticas, bem como uma maior conscientização pós-conflito na sociedade, para acabar com a culpabilidade da vítima, que fica estigmatizada pelo ocorrido, vivendo excluída de sua comunidade, deslocada por ter sofrido aquela violência. Também reforça-se o pedido para uma maior cooperação entre os países de território limítrofe em questões de assistência humanitária, no acolhimento em campos de refugiados, até que a situação possa ser revertida e estas pessoas possam retornar a salvo para suas casas.

7 REFERÊNCIAS ANISTIA INTERNACIONAL. Democratic Republic of Congo: Mass Rape – Time for Remedies. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2013. BBC; Denis Mukege: The rape surgeon of DR Congo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. BBC; Q&A: DR Congo Conflict. Disponível em: . Acesso em: 09 mar. 2013. BBC, UN official calls DR Congo “rape capital of the world”. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2013. CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p. CEDAW. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2013. Conselho de Segurança das Nações Unidas, Final report of the Group of Experts on the DRC, pursuant to Security Council resolution 1698 (2006). Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2013. Declaração de Pequim e Plataforma de Ação. Disponível em: : Acesso em 19 fev. 2013. Declaração de Windhoek disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2013. FITZPATRICK, Brenda. Tactical Rape as a Threat to International Security: A Norm Develops. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2013. GHISLENI, Alexadre Peña. Direitos Humanos e Segurança Internacional: o tratamento dos direitos humanos no Conselho de Segurança das Nações Unidas. – Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão 2011. 292 p. IDMC; NRC. Democratic Republic of Congo: IDPs needs further assistance in context of continued attacks and insecurity Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2013. IRIN, DRC: Conflict deadliest since World War II – aid agency. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2013. KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violance in a Global Era. Second Edition. Standford University Press, 2007. KALYVAS, Stathis. ‘New’ and ‘Old’ Civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54, n. 1. Disponível em: . Acesso em: 08 mar. 2013. MONUSCO. Disponível em: : Acesso em: 10 mar. 2013. MONUSCO – Background on sexual violence. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2013. Relatório do Relator Especial sobre a violência contra as mulheres, suas causas e consequências. Disponível em . Acesso em: 07 mar. 2013. Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas disponíveis em: . Acesso em: 26 fev. 2013. UNIFEM. Resolução 1325 comentada. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2013. UN Peacekeeping, 2006: a year of hope for congolese people. Disponível em: Acesso em: 28 abr. 2013.

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MINUSTAH: AS DIFERENTES PERCEPÇÕES DE UMA LONGA MISSÃO Mayra Coan Lago Mestranda do Programa de Integração da América Latina (PROLAM/USP). Pós-graduanda em Política e Relações Internacionais na Fundação Escola de Política e Sociologia (FESP) e graduada em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). ([email protected])

Resumo: Este artigo tem o objetivo de demonstrar os diferentes olhares sobre o mesmo fenômeno: a Minustah. A partir de “como nós olhamos” e “como eles olham” a Minustah, pretende-se fazer uma reflexão acerca do significado das tropas militares no Haiti, além de suas implicações ou influência nas violações de direitos humanos da população. Nesse sentido, pretende-se, em um primeiro momento retomar a história do Haiti para entender e identificar os elementos que continuaram fazendo parte após a permanência da Minustah e os que surgiram por esse motivo. Em um segundo momento, repensar as tropas da Minustah sob duas visões diferentes: a visão brasileira e a visão haitiana. Por fim, busca-se uma reflexão acerca das perspectivas do povo haitiano frente aos diversos desafios que estão enfrentando. Palavras-chave: Brasil – Haiti – MINUSTAH – Direitos Humanos – Tropas de Paz. Sumário: 1. Introdução. 2. Haiti: Seis séculos de veias abertas. 3. Minustah: Como nós olhamos. 4. Minustah: Como eles nos olham. 5. Considerações Finais. 6. Referências

1 INTRODUÇÃO O Haiti é um país com 9,8 milhões de habitantes. Dentre eles, 80% da população está abaixo da linha da pobreza, 40% está desempregada e 47,1% é analfabeta. Este último dado está diretamente ligado ao fato de o país ter duas línguas oficiais, o francês e o crioulo, sendo que a primeira é falada pela elite e a segunda só foi reconhecida em 1986, representando a massa da população (CIA FACTBOOK,

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2013, on line). Embora a situação esteja caótica do ponto de vista dos dados, alguns especialistas afirmam que nem sempre o Haiti foi assim, sendo fruto de uma exploração histórica que foi iniciada pela França e continuada pelos Estados Unidos. A instabilidade política do país atingiu o auge em 2004 quando, o então presidente, Jean Bertrand Aristide teve de partir para o exílio após três anos no governo. Apesar de a Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (Minustah) ter iniciado sua permanência no país em 2004, foi apenas em 2010 que os “olhos do mundo” voltaram-se para o Haiti que estava devastado por um terremoto de magnitude de 7,3 graus na escala Richter. A partir deste momento, a situação do país que era crítica por problemas estruturais históricos, configurou-se sub-humana do ponto de vista das condições enfrentadas pela população. Nesse sentido, o povo haitiano tem passado por situações como: fome, miséria, desabrigo, condições higiênicas precárias, violência, explorações sexuais, doenças, entre outros. O Brasil é responsável pelas tropas da Minustah desde 2004. Do ponto de vista de sua política externa, nota-se uma importante mudança de paradigma da política externa brasileira, passando de um princípio de não ingerência387 para o da “não indiferença”388. Isso significou: que a partir deste momento prestaríamos apoio e solidariedade ativos em situações de crise, sempre que formos solicitados e for representar um papel positivo; e que a partir deste momento, Baseado nesse princípio, o país declinava da participação de missões, por exemplo, de intervenções humanitárias, uma vez que interferir em assuntos internos de outros países significa abrir precedente nesse campo e, consequentemente, estar disposto a suportar tais medidas em seu domínio doméstico. No mesmo sentido, reafirmando a sua posição pacifista e mediadora, recusava-se a integrar missões autorizadas sob o capítulo VII da Carta da ONU (CARVALHO; ROSA, 2011). 388 De acordo com Celso Amorim, o então Ministro das Relações Exteriores da época, a “não indiferença” realça o princípio da solidariedade e da justiça social. Esses elementos devem nortear a ação de qualquer Estado aos seus pares (LIMA, 2005). 387

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o Brasil teria um papel mais ativo na região quando se tratar de intervenções humanitárias. Atitude que reforçaria e ampliaria a sua liderança regional e a sua projeção internacional, principalmente na Organização das Nações Unidas. Levando em consideração essas informações iniciais e baseando-se nessa alteração do princípio da não-ingerência brasileira, o artigo tem como objetivo demonstrar as diferentes percepções de um mesmo fenômeno: Minustah. Nesse sentido, o trabalho está dividido em três partes principais, além da introdução e considerações finais: a primeira parte tratará do breve histórico do Haiti, procurando identificar os problemas estruturais do país e o sofrimento da população resultado, em grande parte, de uma exploração sem limites e da constante violação dos direitos humanos; a segunda parte tratará da Minustah pelos “nossos olhares”, isto é, a presença militar no Haiti e o que ela representa e significa, assim como quais foram os avanços e os desafios, além dos resultados alcançados; e a terceira parte tratará da Minustah pelos “olhares dos haitianos”. Embora não esteja narrado apenas por haitianos, esta parte tem como objetivo demonstrar os outros aspectos e os desdobramentos das tropas no Haiti, assim como levantar questões acerca de alguns resultados apresentados até o momento atual e dos desafios que as tropas ainda vão enfrentar. É importante dizer que pelo tema ser complexo, vasto e delicado, não pretendo criticar ou colocar uma das visões que serão apresentadas como a “correta”. O que pretendo é apresentar essas visões e, a partir delas, iniciar uma profunda reflexão dos diferentes olhares e das implicações das atitudes das tropas para o país, buscando identificar as perspectivas para esta população.

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HAITI: SEIS SÉCULOS DE VEIAS ABERTAS

Nos últimos anos tem-se nomeado o Haiti como o “país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo”. Segundo Franck Seguy (2010), o adjetivo pobre não seria a me-

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lhor maneira de falar do Haiti, sendo mais conveniente falar de um povo “empobrecido”. Isso é justificado pelo fato da história do Haiti ser composta por dois elementos: luta e exploração. Nesse sentido, o subtítulo desse tópico, cunhado do livro do Eduardo Galeano389, é adaptado pelo haitiano como a melhor forma de caracterizar a situação atual do Haiti. Diante de tal declaração, considero interessante retomar os principais fatos do país a partir de um breve histórico com o intuito de demonstrar que o país tem problemas estruturais históricos, assim como a nítida violação de todos os direitos de cidadãos e consequentemente, dos direitos humanos. O Haiti tornou-se colônia francesa no final do século XVII, a partir do Tratado de Ryswick390. Na época, o país era conhecido como “Pérola nas Antilhas” pela produção de grande quantidade de café e açúcar, por meio da exploração escrava, para o mercado mundial (JOACHIM, 1979). Devido à intensa exploração e a insatisfação da população, o Haiti foi o primeiro país latinoamericano e a primeira República negra a proclamar a Independência em 1804, além de ser o primeiro país a acabar com a escravidão no mundo. A Independência do Haiti teve desdobramentos que auxiliaram a deterioração do país. Entre estes, destacam-se: isolamento pela falta de reconhecimento da Independência pela metrópole e pelos demais países; bloqueio econômico pelo motivo anterior; e devedor em razão de uma divida altíssima pelo reconhecimento de sua Independência pela metrópole391. Também é preciso mencionar a devastação causada pela guerra da Independência. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L & PM,

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Em 1697, a Espanha fez com a França um tratado, do qual resultou a separação da ilha em duas partes, que são conhecidas hoje como a República Dominicana (leste) e a República do Haiti (oeste) (COGGIOLA, 2010). 391 De acordo com Benoit Joachim (1979), tratava-se de um embargo internacional que, em 1825, impôs ao Haiti a obrigação de pagar 150 milhões de francos-ouros à França para que fosse reconhecida a Independência. O valor, que era quatro vezes o orçamento público da república francesa naquela época, foi avaliado em 2003 em 21 bilhões de dólares (CIA FACTBOOK, on line). 390

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De acordo com Ricardo Melani (2010), os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e mantiveram-se a força até 1934392, a partir da ocupação militar e da dominação das revoltas populares. Desse período em diante, quase todos os governos, direta ou indiretamente, deram continuidade à política de defesa aos interesses norteamericanos. Entre os mais conhecidos “defensores” estão: François Duvalier, também conhecido como “Papa Doc” 393, e seu filho, Jean Claude Duvalier, também conhecido como “Baby Doc” 394 , que governaram o país de 1957 a 1986. Apoiada pelos Estados Unidos, a ditadura Duvalier implementou um programa que destruiu as pequenas propriedades camponesas para fornecer mão de obra para as indústrias multinacionais395. Além disso, a dívida externa e a corrupção aumentaram significativamente, o que proporcionou o enriquecimento dos governantes e o empobrecimento dos haitianos. De acordo com Eduardo Galeano (2010), o secretário de Estado americano, Robert Lansing justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, pois tem “uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização”. Um dos responsáveis da invasão, William Philips, desenvolveu tempos antes a sagaz idéia: “Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses” (p. 5). 393 François Duvalier era médico e foi Ministro de Estimé, o então presidente. Reunia ao seu redor os representantes mais destacados da oligarquia negra e uma fração ativa e pequena de comerciantes instalados no Haiti. Recebeu o apelido afetivo de “Papa Doc” pelo seu comportamento brando e passivo. Com a ascensão à presidência, Papa Doc mostrou o outro lado da sua personalidade, iniciando um período que ficou conhecido como O terror (CASANOVA, 1990). 394 Jean Claude Duvalier, Baby Doc, assumiu o cargo de presidente vitalício com 19 anos, como sucessor do seu pai. Baby Doc governou o país entre 1971 e 1986, quando se refugiou na França. De acordo com a Justiça do Haiti, Baby Doc desviou mais de US$ 100 milhões de obras sociais. Durante seu governo, Baby Doc perseguiu, torturou e matou opositores. Além disso, os Tonton Macoute, a polícia armada do governo, aterrorizaram a população durante anos. Baby Doc refugiou-se na França, mas, atualmente, vive no Haiti onde está sendo acusado de crimes contra a humanidade. Cabe dizer que por sua representatividade e influência, alega-se que parte de seus crimes estão prescritos (CASANOVA, 1990). 395 É importante ressaltar que em decorrência dessas medidas, muitos camponeses deixaram o campo para as cidades, sobretudo, Porto Príncipe. De acordo com Franck Seguy (2010) é isso que “explica” o porquê de 300 mil pessoas terem sido mortas no terremoto do dia 12 de janeiro. Porto Príncipe é uma cidade cuja arquitetura foi concebida para abrigar somente 500 mil habitantes, no entanto, a partir das políticas acima apontadas, acabou agrupando quase 3 milhões de pessoas. 392

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Também merece destaque a criação de zonas francas396. Nesses locais, as empresas internacionais têm imunidades, além de explorarem a mão-de-obra barata do país. Esses “ambientes de trabalho” estão presentes até os dias atuais no Haiti. De acordo com Franck Seguy (2010), nessas “áreas de trabalho”, os operários recebem um salário mensal equivalente a 110 reais, fabricando produtos que não podem comprar397. É importante dizer que muitas vezes esse mesmos funcionários não têm acesso à água potável ou a um banheiro. Em 1986, após um longo período de lutas, o povo haitiano por meio de grande rebelião popular derruba a ditadura dos Duvalier. As eleições de 1990, sob uma nova Constituição, despertaram a “esperança democrática” de um governo distinto, comprometido com as massas. Esse governo foi representado pelo ex-padre salesiano Jean-Bertrand Aristide398. Contudo, poucos meses após assumir, Essas “áreas de trabalho” foram incentivadas no governo de Aristide. Segundo Ricardo Melani (2010), as dezoito zonas francas que foram criadas por Aristide em 2002 são regiões nas quais as empresas não sofrem tributação como no restante do país, e em que tampouco são respeitadas as condições sociais e trabalhistas básicas. O autor comenta que uma costureira na capital Porto Príncipe recebe o equivalente à US$ 0,50 por hora. É uma remuneração inferior aos US$ 3,27 pagos no Brasil e muito abaixo dos US$ 16,92 dos Estados Unidos, conforme a consultoria Werner (MELANI, 2010, p.28). 397 Em sua entrevista à Revista PUC Viva, o haitiano relata um caso que não deveria ter espaço na mente humana. De acordo com Franck Seguy, em linhas gerais, no ano de 2004, a Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codevi) entrou em confronto com o Sindicato dos Operários da Codevi Wanament (Sokowa, em crioulo). Devido à insatisfação da Codevi com relação às reinvidicações dos direitos que as mulheres estavam requerendo, a companhia lançou uma “campanha de vacinação” para proteger a saúde dos trabalhadores. No entanto, não era uma simples campanha de vacinação e assim, os resultados foram inimagináveis: as trabalhadoras que estavam grávidas abortaram, até mesmo as que estavam no nono mês; as mulheres não-grávidas tiveram as suas menstruações alteradas e descontroladas e passaram a observar uma secreção verdejante na vagina e assim por diante. Foi um jeito encontrado por Fernando Capellan para não ter que dar licença-maternidade, além de aumentar a produtividade de cada trabalhadora. Importante destacar que o caso foi ignorado pelas autoridades (SEGUY, 2010, p.18). 398 Jean-Bertrand Aristide é um ex-padre salesiano. Foi ligado à Teologia da Libertação e a setores progressistas da igreja católica no Haiti durante o sacerdócio. Sua importância também é ligada ao fato dele ter sido o primeiro presidente a discursar em crioulo no dia da posse- idioma que só foi reconhecido como oficial no ano de 1986 (HIRST, 2009). 396

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Aristide foi deposto399 por um golpe militar comandado por Raoul Cédras400. A Junta Militar governou sob um embargo promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU). O embargo coletivo ou não seletivo provocou graves problemas, atingindo especialmente a população mais carente. Em 1994 Jean Bertrand Aristide é reestabelecido por Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, a partir de uma operação militar definida como “invasão consentida” (HIRST, 2007) 401. Segundo Ricardo Seitenfus (2009), em 2001 Aristide reelege-se para um segundo mandato sob eleições controversas. Ainda de acordo com o autor, o segundo mandato de Aristide foi marcado pelo que chamou de “maldição no Palácio Nacional”, onde seus ocupantes tendem a se transformar com o exercício do poder. Aristide organizou a violência com milícias paralelas, integradas inclusive por crianças e, desse modo, perdeu apoio de quase todas as forças que o conduziram ao poder. Em 2004, três anos depois de eleito, é obrigado a partir para o exílio devido às pressões populares402 (SEITENFUS, 2009). De acordo com Frank Seguy (2010), o presidente Aristide frustrou as expectativas nele colocadas em três momentos: Chegou ao poder promovendo um discurso nacionalista e populista. Enquanto nacionalista, apoiava-se constantemente em Charlemagne Péralte, o líder das lutas contra a primeira invasão americana em 1915. Enquanto populista, incomodava a fração mais conservadora da burguesia local. O momento encerra-se no sétimo mês de seu mandato, quando foi golpeado e exilado nos Estados Unidos em 1991; o segundo momento é quando Aristide é reestabelecido por Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, três anos depois com alguns acordos a cumprir; e o terceiro momento é o cumprimento das exigências norteamericanas, inclusive a privatização de empresas públicas (SEGUY, p. 13). 400 Raoul Cédras é um ex-militar haitiano que ocupou a presidência da Junta Militar entre 1991 e 1994. Após o retorno do Aristide em 1994, vive no Panamá (HIRST, 2007). 401 O presidente Aristide retorna em 1994 e em 1995 estabelece por decreto a extinção das Forças Armadas do Haiti, sendo substituídas pela Polícia Nacional Haitiana – PNH. Atualmente vive no exílio na África do Sul. O ex-presidente continua sendo uma figura importante na política haitiana e alguns analistas acreditam no seu retorno (HIRST, 2007). 402 Aristide alega ter sido derrubado por um golpe de Estado apoiado pelos governos da França e dos Estados Unidos. 399

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No mesmo dia em que Aristide partiu para o exílio, o presidente da Suprema Corte, Boniface Alexandre assumiu a presidência e requisitou a presença da comunidade internacional como forma de auxiliar a estabilização do país. Em resposta, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução nº 1529, estabeleceu uma Força Multinacional Interina (MIF), composta de tropas dos Estados Unidos, da França, do Canadá e do Chile, com um mandato máximo de três meses. A força estava baseada no capítulo VII403 da Carta da Organização das Nações Unidas, tendo como função: facilitar o fornecimento de ajuda humanitária e auxiliar na manutenção dos direitos humanos e segurança pública. Após seu mandato, a MIF foi sucedida pela Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (Minustah) em junho de 2004, sendo que o referendo nº 1.542 tinha sido aprovado em abril404. O breve histórico teve como objetivo demonstrar que o Haiti, mesmo antes da Minustah, tem problemas estruturais históricos que precisam ser superados. Além destes problemas, nota-se a violação dos direitos humanos que foi e é permitido e, por vezes, incentivado pelas autoridades governamentais. Essa violação pode ter sido fruto de políticas governamentais que incentivavam “O terror”, como também das condições de trabalho e das zonas francas que o país comporta há mais de 20 anos. O fato é que precisamos pensar nesse país e nas possíveis alternativas as mais diversas violações que estamos assistindo. A Resolução 1.529 também faz referência ao capítulo VII no seu preâmbulo. Além disso, autorizou os países participantes da MIF a tomarem todas as medidas necessárias para o cumprimento de seu mandato. 404 Cabe dizer que desde o golpe militar de 1991, o Haiti teve oito intervenções estrangeiras: MICIVIH (International Civilian Mission in Haiti), Resolução da Assembleia Geral 47/208 de Abril de 1993; UNMIH (United Nations Mission in Haiti), Resolução 940 do Conselho de Segurança de Agosto de 1993; UNSMIH (United Nations Support Mission in Haiti), Resolução 1063 do Conselho de Segurança de junho de 1996; UNTMIH (United Nations Transition Mission in Haiti), Resolução 1123 do Conselho de Segurança de julho de 1997; MIPONUH (United Nations Civilian Police Mission in Haiti), Resolução 1141 do Conselho de Segurança de Novembro de 1997; MICAH (International Civilian Support Mission in Haiti), Resolução 54 /193 da Assembleia Geral de Dezembro de 1999 e MIF (Multinational Interim Force), Resolução 1.529 do Conselho de Segurança de Fevereiro de 2004 (SOUZA, 2012). 403

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MINUSTAH: COMO NÓS OLHAMOS

Em um primeiro momento cabe dizer que a Minustah405 não é uma operação de peacekeeping tradicional. De acordo com Young (2006), não é tradicional porque não havia no país um conflito comum, mas sim um Estado em processo de desintegração. O que, de certa forma, faz sentido porque não houve um cessar fogo no Haiti, de forma que as gangues que estavam contribuindo para a desestabilização no país não estavam dispostas a desarmar-se quando a missão foi criada. Segundo Morneau (2006), as funções da missão dividir-se-iam em três esferas: a) criação de um ambiente seguro e estável; b) garantia do respeito aos direitos humanos; e c) apoio ao processo político no Haiti (p. 74-75). A missão deve ser entendida como uma operação de imposição da paz, envolvendo tanto missões ofensivas como ações tradicionais de manutenção da paz e de estabilização, além de distribuição de assistência humanitária (op. cit., p. 74). De acordo com Mônica Hirst (2007), além de atender a função de manutenção da ordem local, a missão executa uma ampla gama de responsabilidades vinculadas à assistência eleitoral, segurança pública, proteção ao meio ambiente e incentivo ao desenvolvimento econômico (p.2). A complexidade das funções desempenhadas pela Minustah é um elemento importante para entender o envolvimento do Brasil na missão no Haiti406. Danilo Souza (2012) afirma que a missão sinaliza uma mudança na participação do Brasil nas missões de paz que, até então, eram realizadas de acordo com o capítulo VI da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), em situações em que havia o consentimento entre as partes e nas quais se aplicava o mínimo A Minustah é composta pelos seguintes países: Argentina, Brasil, Bolívia, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Jordânia, Malásia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Sri Lanka e Uruguai. 406 A diplomacia brasileira defende uma visão de compromisso de longo prazo com o Haiti com o objetivo de tratar das raízes dos problemas enfrentados com base no tripé: segurança, reconciliação política e desenvolvimento (Brasil, 2007, p. 63-65). 405

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uso da força pela tropa. Essa mudança de uma operação de paz de capítulo VI para uma de capítulo VII407 ocorreu após a pressão da comunidade internacional para que a Minustah passasse a realizar operações de paz “mais robustas”. De acordo com o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, antigo responsável pela missão: Houve demora da maior parte dos contingentes dos países envolvidos em perceber que a missão era efetivamente uma missão de imposição da paz, e não simplesmente [de] manutenção da paz. Tal demora resultou em uma postura das tropas por vezes classificada como tímida, por relutarem em usar a força além da autodefesa, em interpretação excessivamente conservadora das regras de engajamento (Pereira, 2007 apud Verenhitach, 2008, p. 59).

De acordo com Danilo Souza (2012), essa particularidade da Minustah é ressaltada pelo fato de não se tratar de uma missão de paz clássica, mas sim de uma missão complexa em um ambiente de violência urbana generalizada. Por essa razão, a tropa deve ser muito bem treinada, de forma que envolve civis e o cenário urbano onde a maioria dos contingentes está desdobrada. De acordo com Mônica Hirst (2007), a participação dos países sul americanos na Minustah acompanhou a evolução do processo haitiano, a partir de 2003, podendo identificar três fases: Fase I (2003-04): falência e desestruturação do governo Aristide e a intervenção da força multinacional provisional, que precipita a renúncia do governo haitiano; Fase II (2004-06): início da intervenção da Minustah com o uso moderado da força, emprego de dissuasão política e militar e garantia da estabilidade para a transição política. A etapa foi concluída com as eleições presidenciais e a vitória de René Préval; Fase III (a partir de maio de 2006): assegurar condições de governabilidade a Préval a partir da garantia de um contexto de estabilidade Uma missão de paz com base no capítulo VII está autorizada a utilizar todos os meios necessários, incluindo o uso da força, para proteger a população civil e funcionários da ONU, além de evitar que atores armados violem os acordos de paz vigentes.

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em todo o território nacional e da reconstrução do Estado articulado à cooperação internacional. De acordo com Giuliana (2008) e retomando a questão dos contingentes enviados com base no capítulo VII da Carta das Nações Unidas é preciso ressaltar que nas fases da Minustah houve contingentes que foram baseados no capítulo VI da Carta das Nações Unidas. Isso implica uma readaptação da forma de atuação no Haiti408. A situação do Haiti e a complexidade da missão foram agravadas em 12 de janeiro de 2010 com um terremoto de 7,3 graus na escala Richter e duas réplicas de menores magnitudes que atingiram o país, gerando comoção mundial e reações por parte de organizações estrangeiras, entidades civis e da comunidade internacional. De acordo com os dados do Estadão, o terremoto matou mais de 200 mil pessoas e deixou 1,5 milhão de pessoas desabrigadas. Segundo a BBC Brasil, após o terremoto foram doados US$ 9 bilhões (R$ 18,3 bi) para a assistência humanitária - US$ 3 bilhões dados por indivíduos e empresas privadas e US$ 6 bilhões por governos e instituições globais (conhecidos como doadores bilaterais e multilaterais), segundo o escritório do enviado especial da ONU ao Haiti (OSE, na sigla em inglês). Embora esse dinheiro tenha sido doado, o escritório do enviado especial da ONU ao Haiti (OSE) se pergunta por que menos de 10% desses US$ 6 bilhões chegaram ao governo haitiano e por que menos de 1% foi dado ás organizações locais. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil tem um papel de destaque no Haiti e está contribuindo de forma significativa para a reconstrução do país no âmbito político, Cabe mencionar os diferentes contingentes enviados nas três fases. O primeiro deles tinha sido preparado para enfrentar uma missão de manutenção da paz baseada no capítulo VI; no entanto, ao chegar ao terreno, modificou-se esta avaliação, de forma que o segundo contingente já sabia que enfrentaria um ambiente hostil. Foi apenas com o terceiro contingente, entretanto, que os militares receberam treinamento para atuar em uma missão de capítulo VII (GIULIANA, 2008, p. 72-73).

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social e estrutural através dos contingentes militares409 enviados ao país: O Brasil é o maior contribuinte de tropas para essa Missão. De 2004 a fevereiro de 2010, o Brasil manteve contingente de 1200 militares, com rotação semestral. Após o terremoto, passou a manter contingente de 2.100 militares no terreno. Desde o início da participação brasileira até hoje, mais de 13 mil militares brasileiros tiveram experiência no Haiti. O comando militar de todos os 8.609 militares que compõem a MINUSTAH, provenientes de 19 países, é exercido por generais brasileiros desde 2004. (ONU, 2010)

Segundo o Itamaraty a missão tem êxito e preserva a soberania do Haiti. Como destacou Celso Amorim na Conferência Ministerial Preparatória sobre o Haiti: O compromisso do Brasil com o Haiti não é novo nem circunstancial. Por todos os laços culturais, políticos e históricos que unem o Brasil ao Haiti, temos estado presentes com projetos e iniciativas que visam a promover o desenvolvimento daquele país, contribuindo ao mesmo tempo para a autoestima dos haitianos, capazes de conduzir seu próprio destino (...).Em nossas discussões, não podemos perder de vista que a ajuda ao Haiti deve responder aos anseios do povo haitiano e do seu Governo. Estamos ajudando ao Haiti, não a nós mesmos. Nossa tarefa é contribuir para que o Governo do Haiti possa exercer, em sua plenitude e no mais breve prazo, a responsabilidade de definir as prioridades de seu povo e a melhor maneira de canalizar a ajuda internacional. Não estamos aqui para substituir as autoridades legítimas do Haiti . (AMORIM, 2010) Cabe mencionar a vinculação entre a atuação das tropas em Porto Príncipe e a possibilidade de uso de táticas semelhantes como parte do combate do crime organizado no Rio de Janeiro. Uma vinculação entre Rio de Janeiro e Porto Príncipe ocorreu no final de 2010, quando soldados com experiência na Minustah atuaram no processo de pacificação de comunidades carentes do Rio de Janeiro. Como o “esforço mais complexo” destaca-se em novembro e dezembro de 2010 do mesmo ano, a pacificação do Complexo do Alemão, que envolveu o estabelecimento de uma Força de Paz comandada por um general ex-comandante do contingente militar na Minustah (ARAÚJO, 2010, on line).

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Embora o Brasil e a Organização das Nações Unidas declarem o “sucesso” da Minustah, a missão tem sido muito criticada por parte da população brasileira e pela própria população haitiana. Com relação ás críticas da população brasileira, Mônica Hirst (2007) ressalta que as controvérsias partem dos âmbitos políticos e intelectuais410. Ainda de acordo com a autora, as controvérsias giram em torno de quatro pontos principais: a) origem golpista da missão; b) sua subordinação “de facto” aos interesses dos Estados Unidos; c) os custos e benefícios para o país de ação; d) as possibilidades de sucesso da missão 411 (HIRST, 2007, p. 5). Além dessas críticas, também ressalta-se a controvérsia do Brasil em conter a corrupção. Nesse sentido, os críticos afirmam que o Estado não consegue conter o envolvimento de políticos e dos sistemas policiais com o crime organizado e o narcotráfico que vem sendo apontado como um dos aspectos mais problemáticos de seus quadros crônicos de insegurança pública no país, o que dirá conter no Haiti412. Por fim, é preciso citar a dimensão simbólica e histórica da Minustah, na qual se reúnem elementos da memória coletiva latinoamericana, referências ideológicas comuns e antecedentes políticos e diplomáticos. De acordo com Mônica Hirst (2007), esses elementos contribuíram para a construção do discurso oficial dos países sul-americanos, no qual se buscou somar um sentido iden A autora faz uma análise da atuação da Argentina, Brasil e Chile na Minustah. Devido à proposta deste artigo, foquei-me nas críticas brasileiras. 411 O primeiro ponto está diretamente relacionado aos eventos políticos haitianos que motivaram a tomada de decisão pelo Conselho de Segurança da ONU; o segundo é relacionado ao primeiro, no sentido das suspeitas do envolvimento dos Estados Unidos nos processos políticos haitianos; e os dois últimos pontos estão relacionados ao fato da preferência da utilização dos recursos econômicos e militares em situações de insegurança doméstica. Ademais, acredita-se que a possibilidade de sucesso da Minustah é quase impossível frente às condições sócio-economicas e político-institucionais que prevalecem no Haiti. Somado a esses elementos, tem-se os fenômenos naturais que devastam ainda mais o país (HIRST, 2009). 412 Celso Amorim rebateu algumas dessas críticas e defendeu a missão afirmando que os problemas internos do Brasil não poderiam ser colocados como empecilho para o envolvimento brasileiro, visto que “não é preciso ser rico para ser solidário” (OLIVEIRA, 2006).. 410

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titário regional às motivações políticas e humanitárias que normalmente estão presentes em operações de paz. O próximo tópico tratará das críticas de parte da população haitiana e dos críticos em geral, com relação à presença das tropas da Minustah. É interessante notar as diferentes percepções das tropas no Haiti, pois os “nossos olhares” e “nossas ações”, principalmente as do governo brasileiro, nem sempre refletem aquilo que esperávamos.

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MINUSTAH: COMO ELES NOS OLHAM Quem tem vontade de conhecer o bom trabalho desenvolvido pela Minustah no Haiti precisa apenas conversar com alguns estudantes da Université d’État d’Haïti. Será fácil eles explicarem quantas vezes foram bombardeados com gás só porque estavam acompanhando as manifestações de operários por um reajuste do salário mínimo. Poderá conversar também com os pacientes e médicos do Hospital da Université d’État d’Haïti, que contarão quantas vezes tiveram que sair correndo do hospital porque, tratando-se de defender os interesses dos patrões, a Minustah não respeita escola, nem universidade nem hospital. Quem quiser conhecer o verdadeiro papel da Minustah no Haiti é só ir a Site Solèy, a maior e mais pobre favela de Porto Príncipe. Ali, a população contará quantas crianças foram assassinadas pelas balas humanitárias da Minustah e dos soldados brasileiros; quantas mulheres grávidas foram mortas em decorrência da missão de paz de Lula, enquanto dormiam. (SEGUY, 2010, p. 15)

A partir do trecho extraído da entrevista de Franck Seguy para Revista PUC Viva pode-se notar o objetivo deste tópico, isto é, mostrar algumas das críticas mais comentadas. Essas críticas giram em torno da violação dos direitos humanos, assim como da soberania do Haiti413. Há até uma campanha pela Retirada das Tropas do Hai Há interessantes documentários sobre o assunto. Entre eles, destaco dois: O que se passa no Haiti? (2007) do jornalista estadunidense Kevin Pina e Haiti: Estamos Cansa-

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ti414 que reúne diversos países da América Latina, como: Argentina, Bolívia, Brasil, Haiti, México, Peru, entre outros. De acordo com Mônica Hirst (2007), a percepção dos haitianos sobre a atuação das tropas da Minustah vem sendo construída a partir de uma perspectiva comparativa com relação a outras experiências de ocupação externa. Nesse sentido, a autora afirma que quando comparado às ocupações anteriores, como a Força Multinacional Interina (MIF), composta por Estados Unidos, França, Canadá e Chile, lhe é atribuído um sentido mais benigno. Com relação à elite local, a autora destaca que as críticas têm como base o questionamento do uso moderado da força. Entre as diversas críticas, destacam-se as que vão ser comentadas neste tópico: a) desvio de verbas doadas; b) violação dos direitos humanos; c) surto de cólera; d) pela presença das tropas no Haiti. Com relação ao desvio de verbas, como foi mencionado no tópico anterior, o Haiti recebeu um montante significativo em razão do terremoto de 2010, entretanto, o governo teve acesso a uma parte mínima. Entre as razões desse acontecimento, destacam-se a corrupção e à fraqueza das instituições haitianas. Cabe mencionar que a percepção com relação ao progresso da reconstrução do Haiti também é negativa415. No início da reconstrução, a Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (CIRH)416 teve os seus trabalhos adiados em Porto Príncipe. Ademais, esses planos dos (2010) de Daniel Santos. Ambos contam com relatos de opiniões críticas a respeito das tropas da Minustah no Haiti e de algumas ações destas tropas contra os haitianos. 414 Para maiores informações, acesse: . 415 O Centro Gumilla de Caracas menciona que enquanto isso, os principais problemas do país, como a degradação do meio ambiente, o agravamento da pobreza e a carência de infraestrutura e dos serviços sociais de base, bem como as necessidades fundamentais dessas vítimas ainda não estão sendo avaliadas. 416 A CIRH é composta por 30 membros, dos quais 13 são haitianos com direito a voto. A Comissão que tem como função gerir os fundos para a reconstrução é co-presidida por Bill Clinton e pelo Primeiro Ministro haitiano Jean-Max Bellerive. A CIRH está sendo cada vez mais questionada pelos partidos de oposição e grupos de haitianos organizados que consideram que essa é mais uma estrutura destinada a reforçar a dependência do Haiti (CENTRO GUMILLA DE CARACAS, 2010).

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não contaram com a participação da sociedade civil haitiana, que, consequentemente, não se sente interpretada (Centro Gumilla de Caracas417). Em um segundo momento, representado por três anos após o terremoto, os haitianos têm a sensação de que o progresso é lento. Exemplo disso é que cerca de 358 mil pessoas permanecem em abrigos temporários com pouco acesso ao saneamento básico, saúde e educação (BBC Brasil). A lentidão do processo implica, por exemplo, na frustração e na desconfiança de alguns países, como é o caso do Canadá, em doar dinheiro. Além da reconstrução, deve-se pensar na situação dessas pessoas nos campos. De acordo com o Centro Gumilla de Caracas, em 2010, quase dois milhões de pessoas viviam nesses lugares em uma situação de insegurança alimentar e em condições precárias, sendo ameaçadas por uma eventual crise humanitária durante a temporada de ciclones que se anunciou. Para agravar a situação houve a mudança de estratégia do governo com relação aos alimentos enviados a esses campos, É importante recordar que o atual governo haitiano pôs fim, em meados de abril (três meses depois do cismo), à fase de urgência, caracterizada pela coleta e distribuição de ajuda humanitária maciça em alimentação, assistência médica e outras ajudas em benefício das vítimas do sinistro, com o pretexto de evitar a invasão do mercado local haitiano por produtos agrícolas estrangeiros, como o arroz (...) Muitos produtos alimentícios se encontram retidos nos portos e vários deles com data muito próxima do vencimento. E são alimentos destinados à população vítima do sinistro, principalmente às pessoas que se encontram nos campos de deslocados (CENTRO GUMILLA DE CARACAS, 2010, p. 55).

O segundo objeto das críticas é, de certa forma, ligado ao primeiro. As acusações das frequentes violações dos direitos humanos O centro está sob a coordenação de Francisco José Virtuoso, S.J. Esse Centro elabora uma análise de conjuntura da América Latina e Caribe. As informações deste artigo correspondem a segunda parte da análise da conjuntura da América Latina e Caribe, referente aos meses de abril-junho de 2010.

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partem de recentes acontecimentos como: o ataque em 2005 à maior e mais pobre favela do Haiti, Cité Solèy418; o ataque em um bairro popular de Porto Príncipe, Bel-Air, sob o objetivo de procurar bandidos; o trabalho forçado de crianças denunciado pela Organização Internacional do Trabalho419; as recentes acusações de estupros em campos de refugiados420 e sequestros 421. São inúmeros os casos destas violações e o que deve-se pensar é como contê-las e o que fazer com os responsáveis, de forma que estão impunes. O terceiro objeto de críticas é relacionado ao surto de cólera no país. Nesse sentido, destaca-se a recente matéria da Folha de De acordo com Marcelo Carreiro (2009), em 6 de julho de 2005, ainda sob o comando do General Heleno, a Minustah faz uma incursão maciça no paupérrimo bairro de Cité Soleil, onde cerca de 200 mil habitantes ocupam barracos frágeis. A ação ocorre à noite, com a justificativa de assassinar Dread Wilme, identificado como líder de uma das várias gangues que aterrorizavam Porto Príncipe no vácuo de poder criado com a queda de Aristide em 2004. Após sete horas de ataque, que consomem 22 mil cartuchos de munição, a Minustah se retira sem verificar baixas inimigas – apenas assume que Wilme foi morto em combate e declara o sucesso da missão. É importante dizer que a Cité Soleil sofreu seis ataques até 2008. Além disso, baseando-se em um relatório do Medecins Sans Frontiers, o autor destaca o aumento do número de vítimas civis atingidas por balas, especialmente explosivas. 419 De acordo com a OIT, uma em cada dez crianças haitianas trabalha em regime forçado. Em 2012, o dado era de que 225 mil crianças, entre 5 e 17 anos, tinham um trabalho infantil como uma forma de escravidão moderna. O sistema mais comum desse trabalho forçado iniciou-se após o terremoto, quando os pais mandavam seus filhos para casa de parentes que estão melhores financeiramente. No entanto, quando as crianças chegavam, se tornavam escravos modernos, trabalhando com uma média de 14 horas por dia, além de, em muitos casos, receberem maus tratos e serem explorados sexualmente (FOLHA DE S. PAULO, 2012). 420 A Anistia Internacional, em 2010, denunciou casos de abusos sexuais contra as mulheres que têm se difundido nos acampamentos instalados no Haiti após o terremoto. De acordo com Chiara Liguori, pesquisadora da instituição, “A violência sexual está amplamente presente nos campos. Constituía já um grande motivo de preocupação antes do terremoto. Agora, a situação em que vivem as vítimas cria um risco ainda maior”. Segundo um relatório publicado em janeiro do mesmo ano, a Anistia declarou que pelo menos 250 mulheres foram estupradas nos 1.150 campos que existiam no Haiti cinco meses após o terremoto (FOLHA DE S. PAULO, 2010). 421 De acordo com Franck Seguy (2010), quando era jornalista, cobriu inúmeros casos 418

como esse. O entrevistado destaca um desses casos: Uma vez uma mulher rica foi sequestrada. A família dela negociou com os sequestradores um resgate para salvar a sua vida. Quando a família foi levar o resgate no local indicado, foi uma imensa surpresa ver os sequestradores chegando num carro da Minustah, no qual estavam escritas as letras UN (United Nations/Nações Unidas) (SEGUY, 2010, p.16).

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S. Paulo, relatando que as evidências científicas divulgadas recentemente reforçaram a hipótese de que a causa do surto da cólera que começou em 2010, sendo responsável pela morte de 8 mil e contaminação de 600 mil haitianos teve origem nos soldados nepaleses da Minustah422. Em março de 2013, os haitianos protestaram contra a ONU em Porto Príncipe e acusaram a organização de ser culpada pelo surto. Por fim, o último objeto entre as críticas que destaquei é relacionado à presença das tropas no Haiti. Na realidade, mais do que a presença, tem-se questionado a respeito dos seus desdobramentos e os resultados negativos. Franck Seguy é muito crítico com relação à presença das tropas no Haiti e ao papel que as Organizações Não Governamentais têm representado, A maior perspectiva para qualquer organização, partido ou grupo progressista não pode ser outra que a emancipação. A emancipação das classes trabalhadoras e populares, e de toda a sociedade. A condição em que se encontra o Haiti hoje obriga a colocar a recuperação da soberania do país como primeiro passo rumo à emancipação (...) Porém – e é o mais importante – o maior inimigo do povo haitiano não é a Minustah. O nome desse inimigo se declina em três letras: O N G. É através das ONGs que se realiza hoje o trabalho abominável de desumanização do povo negro haitiano. Até que consigamos neutralizar o desempenho das ONGs não haverá nenhuma melhora nas condições de vida das classes populares haitianas. (SEGUY, 2010, p. 21)

Como foi mencionado acima, há uma campanha pela Retirada das Tropas do Haiti. Esse comitê é composto por membros de diversas De acordo com os pesquisadores, a base dos soldados do Nepal ficava ao lado de um afluente na parte alta do Rio Artibonitte - o local apontado pelo novo relatório como provável início do surto. Reportagens mostraram que não havia o devido tratamento dos dejetos das bases nepalesas, jogados no córrego. Os pesquisadores ressaltam que as condições precárias de saneamento no Haiti e o difícil acesso da população à água tratada contribuíram para o efeito devastador da doença e ainda afirmaram que casos de cólera não eram registrados no país havia mais de um século.

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nacionalidades, inclusive por alguns haitianos que, entre críticas e denúncias, exigem a retirada imediata das tropas que, em seus relatos, só tem explorado o povo haitiano. A situação do Haiti é complexa e diante de tantas violações dos direitos humanos, exige uma reflexão profunda acerca do que a presença das tropas militares no país representam.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após completar nove anos da Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (Minustah) é preciso refletir sobre o seu significado com base em alguns aspectos, como: previsão da retirada das tropas; a situação dos haitianos no Brasil; o Haiti na atualidade e os desafios que ainda terão de enfrentar. Com relação à previsão da retirada das tropas. Em 2011 foi noticiado que a redução do contingente brasileiro ocorreria a partir de março de 2012, de forma gradual para entregar o controle do Haiti ao seu próprio governo, de maneira coordenada. Como afirmou o Ministro da Defesa, Celso Amorim: “Não devemos e não queremos nos eternizar no Haiti, mas também não vamos sair de maneira irresponsável” (BBC BRASIL). Cabe dizer que a redução dos contingentes da Minustah423 não incluiu nenhuma companhia de engenharia ou mesmo dos membros de seu batalhão que têm atuado na reconstrução de pontes, poços artesianos e produção de energia, entre outras obras emergenciais. Eles não se retiraram devido ao reconhecimento de que ainda são necessários esforços no âmbito da reconstrução do país. Em setembro de 2011, perante a Assembleia-Geral da ONU, o presidente Michel Martelly afirmou ser favorável a continuidade da Minustah embora tenha cometido erros inaceitáveis, como declarou: A primeira redução foi em 2012, passando de 2200 militares para 1900. A segunda redução ocorrerá a partir do dia 27 de março até junho de 2013, 460 militares brasileiros vão deixar o Haiti, colocando fim ao segundo batalhão criado para atender à emergência do grande terremoto que abalou a ilha em 2010. Mesmo assim, o contingente militar brasileiro continuará sendo o mais numeroso, contando com 1450 homens (BRASIL, 2012; EBC, 2013).

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“Sei dos erros inaceitáveis cometidos que mancharam o prestígio da missão, mas as árvores não podem esconder a floresta” (BBC BRASIL). É importante pensar nas diversas manifestações da população haitiana com relação à retirada das tropas do Haiti. Até que ponto essas tropas estão sendo favoráveis ao país? Elas cumpriram ou estão cumprindo com os seus objetivos? Pode-se considerar o país “a caminho” da ordem? Com relação ao segundo aspecto, retomo o que o Ministro da Defesa, Celso Amorim afirmou: a manutenção da paz traz o preço da participação. Nesse sentido, o Brasil como o responsável pela Minustah recebe grande contingente de haitianos. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff aprovou 1,2 mil vistos humanitários anuais e a regularização daqueles que já estão no país. Recentemente, os haitianos foram matéria de capa em diversos jornais do Brasil em razão de o prefeito da cidade de Brasileia ter declarado a cidade em “estado de emergência” devido ao grande contingente de haitianos. Com relação aos haitianos à procura de um emprego, o Sul tem recebido haitianos para trabalhar em algumas fábricas, mas ainda assim, não é suficiente. Com relação a esse aspecto, creio que seja interessante se perguntar: Como são as condições em Brasileia? Que tipo de abrigo o país oferece? E quais são as condições dos haitianos que vão trabalhar no Sul? Será que eles são registrados? Como ressaltou Celso Amorim, o desafio com os haitianos é grande. Por essa razão, cabe aos políticos, militares, acadêmicos, empresários e membros da sociedade civil debaterem o quanto o Brasil está disposto a pagar pelo preço da ajuda humanitária. Por fim é necessário pensar se houve avanços no Haiti. Nesse sentido retomo algumas questões, como: Há perspectiva para a população que permaneceu no Haiti? De que forma os outros países podem ajudar o Haiti visto que alguns haitianos não querem mais a Minustah? E o que fazer com as milícias que se reorganizaram? Como alcançar a estabilidade política e social necessária para a retirada das tropas?

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São questões que não têm respostas fáceis. Quando se pensa no Haiti é preciso lembrar dos problemas que perpassam as questões militares e esbarram em outras bem complicadas, como as de cunho social, político e ambiental. A atuação da Minustah coloca novos desafios, relacionados tanto à sua presença no Haiti, quanto à estabilidade político-social do país. A atuação brasileira gerou enorme interesse internacional, ao qual se seguiram pedidos de maior envolvimento do Brasil em países como Sudão, Guiné-Bissau e Líbano. Embora o país esteja com a imagem positiva perante o Sistema Internacional, o “sucesso” da Minustah é essencial para que essa imagem permaneça. E o que se deve pensar é quanto tempo irá levar para que o “sucesso” seja alcançado (se é que vai).

6 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Vera. General de brigada paraquedista vai comandar a Força de Paz noAlemão. O Globo, 9 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2013. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz. (2 de fevereiro de 2007). Resenha de Política Exterior do Brasil, a. 34, n. 100, 1º sem. 2007. BRASIL. Celso Amorim. Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Celso Luiz Nunes Amorim, na abertura da XXXV Assembleia Geral da OEA, em Fort Lauderdale (USA) em 05 de junho de 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2013. BRASIL. Discurso do Ministro Celso Amorim na Conferência Ministerial Preparatória sobre o Haiti, em Montreal, 25 de janeiro de 2010. Disponível em:. Acesso em: 28 abr. 2013. RUGGIO, Rodrigo Alves Pinto; SIQUEIRA JÚNIOR, Luiz Márcio et al. Hamas e Hezbollah: uma análise sob a ótica do Direito Internacional. Jus Navigandi, Teresina, a.

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16, n. 2784, 14 fev. 2011 . Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. SCOTT, Peter. A CIA, o 11 de Setembro, o Afeganistão e a Ásia Central. Rede Voltaire,.out. 2012. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. SOUZA, Alexis. Tráfico de Drogas, Terrorismo e Organização Criminosa como Delitos Antecedentes ao Crime de Lavagem de Dinheiro. Julho. 2010. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. ONU. A ONU e o Terrorismo. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2013. WELLAUSEN, Saly. Terrorismo e os Atentados de 11 de Setembro. Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 83-112, outubro de 2002. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013.

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ARMAMENTOS NUCLEARES: CONSIDERAÇÕES SOBRE SEGURANÇA INTERNACIONAL E CONTRIBUIÇÕES LATINO-AMERICANAS Rafael Augusto Masson Rocha Acadêmico do segundo semestre de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), bolsista do Grupo de Práticas em Direitos Humanos e Direito Internacional, também da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). ([email protected])

Cristian Ricardo Wittmann Professor assistente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e coordenador do projeto Grupo de Práticas em Direitos Humanos e Direito Internacional, também da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). ([email protected])

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Resumo: O presente trabalho foca-se no debate sobre a contribuição latino americana para a questão de segurança nuclear, tanto em âmbito regional quanto internacional. Antes de discorrer sobre as contribuições da América-Latina a questão de segurança internacional nuclear, é importante introduzir o debate sobre estes armamentos. A tecnologia nuclear utilizada com fins bélicos teve seu início aos 6 de agosto de 1945 na cidade de Hiroshima, onde ocorreu pela primeira vez na história uma explosão nuclear em um conflito. A partir de então, dá-se início a era nuclear, num âmbito mundial. Abordados inicialmente estes aspectos, passa-se para o olhar das medidas jurídicas do Sistema Internacional voltadas ao debate de segurança internacional nuclear, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), para depois discorrer-se sobre as outras iniciativas cabíveis para obter esta segurança, as mobilizações da comunidade civil e dos Estados num âmbito extra-Nações Unidas. Para, por fim, apanhar as contribuições latino-Americanas na questão de segurança regional, finalizando com a problematização da necessidade de se pensar em alternativas complementares e diferenciadas ao debate de não proliferação. Palavras-chave: Armas Nucleares - Segurança Internacional - América Latina - Direito Internacional Humanitário. Sumário: 1. Introdução. 2. Âmbito das Nações Unidas. 3. Âmbito externo às Nações Unidas - sociedade civil. 4. América Latina e Caribe. 5. Para além da não-proliferação. 6. Considerações finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO A partir do bombardeio ao Japão é possibilitado a compreensão dos impactos catastróficos dos armamentos nucleares a segurança, seja a

níveis internacionais, seja a níveis humanitários individuais. Atualmente os armamentos nucleares constituem a arma mais destrutiva e prejudicial já produzida pela humanidade, como aponta a organização dos Parlamentares Pela Prevenção de uma Guerra Nuclear (IPPNW)429. Não é ínfimo o debate acerca de seus impactos negati IPPNW. Abolition 2000, Handbook for a World without Nuclear Weapons. 1995. Dentre os países que assinaram conjuntamente com a África do Sul, destacam-se os países latino-americanos: Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicaragua, Panama, Paraguai, Peru, Uruguai. SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Genebra, 2013. 429



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vos, portanto é notável que em caso de uma detonação de uma arma nuclear numa cidade moderna, haveria possivelmente milhares de vítimas, tanto direta quanto indiretamente prejudicadas. Como uma breve explanação, os efeitos nocivos de uma detonação nuclear não se retêm tão somente aos prejuízos imediatos de uma explosão, mas também a aspectos como de contaminação do território por radiação, afetando a economia, o desenvolvimento entre diversos outros fatores de grande monta que continuarão a ser impactados por um período temporal muito maior do que alguns anos, a exemplo da declaração apresentada pelo embaixador Abdul Samad Minty da África do Sul em conjunto com outros 78 Estados-parte do TNP430, na Segunda Sessão do Comitê Preparatório à Conferência de Revisão do Tratado de Não-Proliferação (2013 NPT PrepCom): Beyond the immediate death and destruction caused by a detonation, socio-economic development will be impeded, the environment will be destroyed, and future generations will be robbed of their health, food, water and other vital resources. SOUTH AFRICA, 2013.431

Como bem coloca a organização International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN): “The humanitarian consequences of any nuclear weapon use would be catastrophic and would spread far beyond boarders and remain for generations to come.”432. ICAN. Advocacy Guide - Second preparatory committee of the nuclear non-proliferation treaty 22 April-3 may 2013. p. 6. 430 SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Genebra, 2013. Segundo dados da Federation American Society, os arsenais atuais estimados dos países são: China com 240 ogiva; Coréia do Norte com menos de 10; Estados Unidos da América com cerca de 7.700; França com aproximadamente 300; Índia entre 80 a 100; Israel cerca de 80; Paquistão também entre 80 e 100; Reino Unido com 225; e Rússia com cerca de 8.500 armas nucleares. 431 Segundo dados da Federation American Society. ONU. Tratado sobre la No Proliferación de las Armas Nucleares. Londres, Moscou e Washington, 1968. 432 IAEA. Information Circular. 1970. ONU. Tratado sobre la No Proliferación de las Armas Nucleares. Londres, Moscou e Washington, 1968.

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Não obstante, a questão de segurança nuclear hoje é liderada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC) a qual é tida como uma das organizações responsáveis pela segurança internacional nas questões nucleares. Entretanto, em um pronunciamento feito em 2009, ela afirma a incapacidade de cumprir com essa responsabilidade internacional, ressaltando que não há mobilização no mundo que seja capaz de assistir as necessidades requeridas em caso de detonação nuclear. Vista essa incapacidade de se lidar com os efeitos posteriores a uma explosão, é extremamente imprescindível que se trabalhe e que se volte os esforços internacionais para as medidas capazes de atenuar as possíveis catástrofes no escopo humanitário internacional. Atualmente, as soluções cabíveis nos debates acabam por centralizar-se no aspecto de prevenção, como apresentado no dia 24 de abril de 2013, pela delegação Sul-Africana no 2013 NPT PrepCom: “ The only way to guarantee that nuclear weapons will never be used again is through their total elimination.”433 Neste ponto ressaltam-se as medidas já tomadas por alguns atores das relações internacionais. Pode-se, então, abordar as precauções internacionais de dois aspectos, no âmbito Estatal das Nações Unidas e fora deste.

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ÂMBITO DAS NAÇÕES UNIDAS

A mobilização Estatal dentro do escopo da Organização das Nações Unidas (ONU) é uma tática diplomática muito comum nos debates sobre cooperação estatal. Certamente o debate sobre segurança internacional, versando sobre desarmamento nuclear não se mostra diferente. SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Genebra, 2013. Declaración Conjunta sobre Desnuclearización de la América Latina, 1963. Idem, 1963. ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Caribbean, 2012. 433

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Como já apontado, a era nuclear começa com a detonação das bombas americanas no território japonês, no final da Segunda Guerra Mundial. Foi somente a partir deste marco histórico que o homem pode compreender os impactos humanitários e as reais dimensões das questões envolvendo armamentos nucleares. Com o fim da Segunda Guerra, o Sistema Internacional começa a se remodelar nos parâmetros da bipolaridade da Guerra Fria. Este novo período histórico é marcado pela disputa indireta de regiões de domínio da influência entre as duas superpotências: Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Neste embate, a tecnologia bélica nuclear ganha um novo destaque. Tendo em vista o poderio destrutivo concentrado nesta categoria de armamento, é natural que houvesse um maior enfoque sobre a segurança presente nesta nova tecnologia. Dá-se início então à era da corrida armamentista, especialmente em quesito de armas nucleares. Não é por menos que, atualmente, dentre os nove Estados detentores de armamentos nucleares (China, Coreia do Norte, Estados Unidos, França, Índia, Israel, Paquistão, Reino Unido e Rússia)434 os dois maiores arsenais encontram-se sob o domínio dos Estados Unidos da América e da República Federativa Russa. Supõe-se que durante o período da Guerra Fria, as duas superpotências tenham desenvolvido tecnologia capaz de produzir milhares de bombas anualmente, com um poder destrutivo superior às daquelas detonadas nas ilhas nipônicas. Embora não se tenha um número exato, estima-se que cerca de 70.000 ogivas nucleares estivessem nas mãos das duas grandes potências durante a Guerra Fria, número reduzido comparado com as cercas de 18.000 ogivas atuais435. Dentro dessa nova perspectiva de segurança e de uma outra realidade do Sistema Internacional, as cooperações multilaterais no escopo ONU decorreram de maneira gradual. Inicialmente priorisa Carasales Julio C. The So Called Proliferation that Wasn’t the Story of Argentina’s Nuclear policy, 2000. 435 ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Caribbean, 2012. 434

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va-se questões como a não proliferação da tecnologia nuclear e a utilização desta apenas para usos pacíficos, enfim, novas percepções do assunto foram possíveis, a medida que o debate fora aumentando. Foi após cerca de treze anos do início da era nuclear, que as Nações Unidas mobilizaram-se juntamente com os Estados, com o objetivo de estabelecer um tratado cujas finalidades principais – dentre as quais destacam-se a não proliferação das tecnologias nucleares, a não transferência de armamentos nucleares, bem como a assistência para o desenvolvimento destas tecnologias, dentre outros pontos relevantes a concretização de sistemas de segurança internacional – fossem atendidas. É criado então, no dia primeiro de julho de 1968, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que surge como uma alternativa para conter o grande avanço da tecnologia nuclear no mundo, e que começa a vigorar a partir de cinco de março de 1970, como exemplifica o Artigo IX do Tratado: “[…] Este Tratado entrará en vigor después de su ratificación por los Estados cuyos Gobiernos se designan como depositarios del Tratado y por otros cuarenta Estados signatorios del Tratado, […]”436. By letters addressed to the Director General on 5, 6 and 20 March 1970 respectively, the Governments of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland, the United States of America and the Union of Soviet Socialist Republics, which are designated as the Depositary Governments in Article IX. 2 of the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons, informed the Agency that the Treaty had entered into force on 5 March 1970. IAEA 1970.437

Outro ponto que o Tratado versa é sobre a distinção entre dois grupos de Estados, aqueles que possuem armamentos nucleares, e aqueles que não possuem armas nucleares, os países não ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Caribbean, 2012. 437 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado Federal, 1988. 436

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-nuclearmente armados, neste ponto é possível verificar que, para além da distinção nominal, a dicotomia nuclearmente armados ou não, traz consigo a ideia de diferentes posturas, garantias e deveres a serem tomadas no escopo do TNP. Àqueles nuclearmente armados fica proibida a transferência de armas nucleares, assim como a assistência para o desenvolvimento de tais tecnologias; já para os não-nuclearmente armados, é vetado a aquisição dos armamentos, como também a manufatura destes. Claramente fica expresso no TNP as intenções que os Estados nuclearmente armados possuíam em relação aos não-nuclearmente armados em aspectos como o de concentrar para si a posse, capacidade de aquisição, transferência e até mesmo o conhecimento de tecnologias capazes de produzir tais armamentos. Ao analisarmos tais posturas, fica evidente o caráter de preservação do status quo, uma vez que a posse de armamentos nucleares fica restrita aos países que o tratado caracteriza como nuclearmente armados.Não obstante, o Tratado de Não-proliferação versa em seu artigo VI um dos pontos que servem para o embasamento jurídico de medidas mobilizadoras de banimento: Cada Parte en el Tratado se compromete a celebrar negociaciones de buena fe sobre medidas eficaces relativas a la cesación de la carrera de armamentos nucleares en fecha cercana y al desarme nuclear, y sobre un tratado de desarme general y completo bajo estricto y eficaz control internacional.438

O Artigo VI do Tratado aborda questões como o da necessidade latente de que os Estados-parte visem, a partir de uma perspectiva geral, o desarmamento completo destes armamentos e de que isto seja cumprido haja visto o estreito e efetivo controle internacional. Embora seja abordado pontos sobre o desarmamento, os desdobramentos do TNP não progride. A ilegalidade dos armamentos mostra-se fundamental para que possa-se trabalhar com o desarme. É notando tais impedimentos dentro do escopo da Organização das China, Estados Unidos da América, França, Reino Unido e Rússia, de acordo com o TNP.

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Nações Unidas que começa-se a pensar em procedimentos exteriores a tal escopo, inter alia a Conferencia Diplomática sediada pelo Governo da Noruega em março deste ano, cujo enfoque principal fora o debate sobre os catastróficos impactos humanitários dos armamentos nucleares, e por conseguinte, o comunicado da delegação mexicana de que irá sediar a próxima conferencia. Visto isso, aponta-se para um outro espaço que pode ser utilizado tanto pela comunidade Estatal quanto pela sociedade civil, a fim de prosseguir de maneira diferenciada o debate e as ações para o desarmamento.

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ÂMBITO EXTERNO ÀS NAÇÕES UNIDAS SOCIEDADE CIVIL

Sabe-se do real potencial catastrófico do uso indevido dos armamentos nucleares e da impossibilidade de uma resposta humanitária eficiente e capaz de aliviar o sofrimento das vítimas. É notando essa fragilidade que muito além das precauções lideradas pela sociedade internacional, principalmente das mobilizações dos Estados, é necessária a participação da comunidade civil, como mais um instrumento importante para a obtenção de um cenário internacional mais seguro e nuclearmente desarmado. Como aponta a delegação da África do Sul em sua declaração conjunta: “This is an issue that affects not only governments, but each and every citizen of our interconnected world. […] civil society has a crucial role to play, side-by-side with governments, as we fulfil our responsibilities.”439 É neste contexto que surgem organizações não governamentais que partem deste enfoque construtivista das relações internacionais, apontando os anseios da comunidade civil junto aos debates Estatais. Transcrição do Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, de 22 de setembro de 2011. Idem. Idem. Reaching Critical Will. The NPT Action Plan Monitoring Report, 2013. Transcrição do Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, de 22 de setembro de 2011.

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Como um exemplo desta movimentação, existe a Campanha Internacional para Abolir as Armas Nucleares (ICAN), lançada em 30 de abril de 2007 em Viena, na Austria, com o objetivo principal de mobilizar-se internacionalmente para conseguir alavancar imediatamente as negociações a respeito do desarmamento nuclear, a fim de elaborar uma convenção internacional sobre o desarmamento nuclear. Desde 2007, a ICAN tem trabalhado conjuntamente com outras organizações como a Reaching Critical Will para mobilizar a sociedade civil no combate a estes armamentos. Sua última mobilização social aconteceu em março deste ano (2013) na cidade de Oslo, Noruega, intitulada ICAN’s Civil Society Forum (Fórum da Sociedade Civil da ICAN) a qual foi seguida pela Conferência Diplomática organizada pelo Governo da Noruega. A campanha trabalha dentro do debate sobre a ilegalidade das armas nucleares, seus impactos humanitários e como que os Estados, por uma ótica extra-ONU, irão se mobilizar a fim de conseguir assegurar a Segurança Internacional Nuclear, ou seja, o desarmamento. Nesta última conferência diplomática, infelizmente ocorreu o boicote dos P5 (países nuclearmente armados membros do TNP: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia), no qual estes últimos países não comparecem a Conferência do Governo da Noruega. Apesar da não participação à Conferência pelos P5, alguns outros Estados tomaram esta ausência como um sinal positivo, evidenciando que as mobilizações rumo ao desarmamento estão progredindo. Será que tão somente a recusa de participação constitui numa resposta ao sucesso dos países não-nuclearmente armados? Cabe a pergunta. Não obstante, os resultados imediatos desta conferência foram sentidos ao passo que a delegação do México evidenciou o interesse do país em sediar a próxima Conferência, ainda sem data anunciada para ocorrer. A participação de países Latino-Americanos como o México no contexto de movimentação extra-Nações Unidas é de extrema relevância uma vez que representa a iniciativa de países não-nuclear592

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mente armados em relação aos impactos destes armamentos. A postura da República Mexicana demostra a tradição histórica de grande importância e de liderança da América Latina e o Caribe, pois esta região constitui a primeira do mundo a tornar-se uma Zona Livre de Armamentos Nucleares.

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AMÉRICA LATINA E CARIBE

Como já mencionado, as contribuições dos países latino-americanos na última Conferência Diplomática que aconteceu em Oslo, na figura do governo do México, representa a tradição latino-americana, no que tange o desarmamento nuclear. É de grande relevância que se faça uma breve apresentação do histórico de contribuições latino-americanas, e, neste contexto naturalmente discorrer-se-á a respeito do Tratado de Tlatelolco. Este tratado representa a criação da primeira zona livre de armas nucleares na história, numa região habitável. A iniciativa de se pensar em um acordo internacional visando a segurança nuclear na América Latina surge no início dos anos 1960, contexto no qual a Bolívia, o Brasil, o Chile, o Equador e o México mobilizavam-se para tal criação. A articulação inicial destes cinco países latino-americanos ocorreu quando os presidentes dos Estados mencionados publicaram uma declaração conjunta sobre a desnuclearização da América Latina, em abril de 1963. Considerando que por su invariable tradición pacifista los Estados latinoamericanos deben aunar sus esfuerzo a fin de convertir a la América Latina en una zona desnuclearizada, con lo cual contribuirán a disminuir asimismo los peligros que amenazan a la paz del mundo, Deseosos de preservar a sus países de las trágicas consecuencias que acarrearía una guerra nuclear.

Este documento serve para apontar os antecedentes da assinatura do Tratado de Tlatelolco, ao observar-se que a partir da deAnais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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claração e um acordo regional, os países latino-americanos visavam promover as negociações e os acordos internacionais, como bem evidenciado no pronunciamento: “Alentados por la esperanza de que la conclusión de un acuerdo regional latinoamericano pueda contribuir a la adopción de un instrumento de carácter contractual en el ámbito mundial” Inicialmente, os governos mostravam-se favoráveis e bastante mobilizados a realizar um acordo nestas condições, entretanto, com o golpe militar brasileiro no ano de 1964, o País, que antes desenvolvia políticas voltada para esses interesses de desarmamento, passa a demonstrar uma postura completamente nova e oposta àqueles pensamentos. É notável esta alteração da política externa brasileira uma vez que, a partir da década de 1970, a República Federativa do Brasil dá início a um Programa Autônomo de Tecnologia Nuclear (PATN), cujo objetivo principal era o de alcançar o enriquecimento de urânio em materiais físseis. Vale ressaltar que a Argentina e o Brasil constituíam os principais Estados com tecnologia nuclear na América Latina. Tal fato coloca-os em posição de liderança no escopo latino-americano. Embora ambos apresentavam políticas externas com tradições pacíficas, ambas eram detentoras de Agências Nacionais voltadas a produção de tecnologia nuclear. Um fato interessante de se destacar são as condições contextuais, as quais propiciaram a aderência e ratificação do Tratado de Tlatlelolco tanto pela Argentina, quanto pelo Brasil. Nota-se que este processo ocorreu em momentos paralelos em ambos os Estados, a partir dai pode-se dar mais credibilidade ao pensamento que existia na década de 1970 a respeito das políticas nucleares. Evidenciava-se o sentimento de desconfiança existente entre as duas nações, quase que similar a Guerra Fria, a Argentina e o Brasil mantinham as suas políticas e programas nucleares com base na competição entre elas existente. Esta “corrida armamentista” ou tecnológica nuclear pautava-se no ideólogo de necessidade de estar

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provido dos instrumentos de defesa nacional necessários, bombas/ tecnologias nucleares, para conter um possível ataque ou avanço tecnológico argentino ou brasileiro. Como explica Carassales: “Argentina’s policy probably was intended to keep the option available in case Brazil did developed a nuclear weapon, but that still falls short of having a dedicated nuclear weapons program.” Sendo assim, é compreensível de se ter um olhar similar a “corrida armamentista” da Guerra Fria, entre a Argentina e o Brasil, sem de fato existir o próprio armamento. Não obstante, sobre as declarações a respeito da política argentina é interessante que se aponte também a brasileira, principalmente em relação aos objetivos do PATN, que visava alcançar o “latent technological deterrence” (detenção latente da tecnologia) ou seja “that means to belief that developing the ability to make a bomb would be sufficient to deter another, for example Argentina from doing so.” Partindo destes pontos é perceptível que existiam tensões entre as duas nações, no sentido de assegurar a liderança tecnológica-nuclear dentro da América Latina, pensava-se numa disputa de influência sob o território do continente como maneira de projeção de poder, e para tal o domínio de tecnologia sensivelmente representava um grande instrumento. Uma análise que se pode trazer ao problema é o fato de que ambos teciam criticas às posturas imperialistas norte americanas, no caso de tecnologia nuclear, sob a América Latina, a problemática é que ao passo que a América Latina, no nome da Argentina e Brasil, tentava produzir avanços tecnológicos na questão nuclear que visavam a independência latino-americana, ambas atinham-se numa disputa direta pelo controle, aos moldes imperialistas estadunidense, da região da América Latina. A contradição da ação se dá justamente no ponto de que, para evitar uma dominação americana maior, restava à Argentina ou ao Brasil, tomar o papel de predominante tecno-nuclear sob o continente. Consoante a situação de dependência nas relações internacionais, os países possuíam posturas de, apesar da desconfiança inicial, cooperação internacional para abolir as armas nucleares, proibindo sua proliferação e outras pautas.

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Após os processos de redemocratização que passaram a Argentina e o Brasil, o cenário de integração e cooperação latino-americano nos escopos nucleares sofre alterações. Um dos grandes exemplos é a da mudança da postura sobre armamentos e tecnologias nucleares que sucederam a promulgação da Constituição Brasileira de 1988. Capítulo II - Da União Art. 20. São bens da União: […] XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento de urânio e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios: toda atividade nuclear em território nacional somente será adminitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional; A sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análogas; S a responsabilidade civil por danos nucleares indecente da existência de culpa;

É evidente que a Constituição Brasileira de 88 representa um passo adiante na questão de segurança nuclear, uma vez que exclui a possibilidade da utilização de tecnologia nuclear para além dos fins pacíficos. Passado o período de averiguação das situações nucleares nos vizinhos latino-americanos, ambos iniciavam um processo de ratificação de Tratados como o de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e o Tratado da Zona Livre de Armas Nucleares na América Latina (Tratado de Tlatelolco), entravam os dois países num período de negociação e cooperação mutua. É instigante o fato dos brasileiros e argentinos iniciarem esta nova etapa do debate da segurança internacional de maneira temporalmente parale596

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la. Esta correspondência temporal entre os dois vizinhos evidencia que existia tenções entre ambos, e que, passado a desconfiança, não lhes faltavam razões para ratificar os tratados, além do mais, tratava-se de um acordo já assinado e que já estava em vigor em alguns países da região. Como já mencionado, é de extrema importância o início da década de 1990 para os dois países, já que mudou-se o cenário de desconfiança entre eles para dar-se início ao processo de cooperação regional. O marco que consagra a cooperação e a mobilização de ambos Estados em prol da segurança regional dá-se com o estabelecimento da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e de Controle de Materiais Nucleares (ABACC) no ano de 1990. Avançando com o ideal de cooperação Argentina e Brasil assinam o Tratado de Tlatelolco no ano de 1998, conjuntamente com o Tratado de Não Proliferação.

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PARA ALÉM DA NÃO PROLIFERAÇÃO

A temática de não proliferação esteve presente nos discursos sobre armamentos e tecnologias nucleares logo após o início da era nuclear. Notavelmente que tratava-se de um contexto histórico marcado especialmente pela bipolaridade do cenário internacional, no qual a retenção e concentração desses armamentos mostrava-se como um instrumento de poder por demais expressivo e vicioso. A corrida armamentista foi o exemplo máximo de que os arsenais nucleares portavam-se muito mais como estantes de projeção de poder do que realmente como um estoque de armas que possivelmente seriam usadas. Não distante da ótica de concentração de poder nas superpotências da Guerra Fria, o Tratado de Não Proliferação surge, mais uma vez, como um documento capaz de assegurar ainda mais que as potências mantivessem seus status enquanto os países aliados permanecessem em órbita daquelas.

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Se pensarmos em uma justificativa de utilização dos arsenais nucleares exorbitantes como um meio de promover a paz e a segurança nacional e internacional, pensaremos então num Sistema Internacional onde as Nações Unidas são lideradas pelos detentores da chave de segurança internacional, uma vez que o Conselho de Segurança coincide com os cinco países nuclearmente armados, segundo o conceito do TNP. Mais além, o Tratado de Não Proliferação aumenta a dependência dos países não nuclearmente-armados, uma vez que estes não seriam capazes de manter sua segurança nacional, ou regional, já que não são detentores dos instrumentos necessários para a manutenção da segurança e da paz. Como bem coloca a Presidente da República, Dilma Rousseff, em seu pronunciamento de abertura da 66º Assembléia Geral das Nações Unidas, no ano de 2011: “A posse desses arsenais por apenas algumas nações, cria para elas direitos exclusivos. É resquício de concepção assimétrica do mundo, formada no pós guerra, que já deveríamos deixar renegado ao passado.” É curioso se pensar em segurança nacional obtida especialmente por meio da maior arma de destruição em massa já criada pelo homem. O questionamento principal é se existia o debate sobre a segurança nacional, ou melhor, sobre a insegurança nacional presente tão somente na posse destes armamentos. Naturalmente versar sobre o risco de se possuir os armamentos não era superior a justificativa de se reproduzir o arsenal nuclear para fins de segurança e de projeção de poder. O pensamento durante a década de 1960, quando assinado o TNP, concertava-se em outro ponto, é notável isto a partir da voga da corrente teórica realista das relações internacionais. Não obstante, cabe aqui levantar o questionamento sobre outras soluções para além da não proliferação. Certamente o pronunciamento de organizações internacionais como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, sobre a impossibilidade de se assegurar a assistência necessária as vítimas em caso de uma detonação nuclear, evidencia a necessidade de se repensar. Seria então o desarmamento 598

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uma solução cabível e necessária para a segurança internacional? Pronunciamentos como o da Presidenta Dilma Rousseff, realizado na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, em Nova Iorque no dia 22 de setembro de 2011, apontam para esta medida como sendo a real solução frente a insegurança nuclear. É imperativo ter no horizonte previsível a eliminação completa e irreversível das armas nucleares, a ONU deve preocupar-se com isso. […] Estudos apontam a deterioração do estado de conservação e manuseio deste material, sem falar da ameaça permanente que essas armas de destruição em massa apresentam para a humanidade.

Neste pronunciamento percebe-se que o debate sobre os armamentos e sua segurança avançaram. Se, num primeiro momento a segurança era obtida através dos armamentos, hoje o desarmamento toma tal espaço, novamente, uma posição natural de se adotar, passado o conflito bipolar da Guerra Fria. Nota-se a presença de palavras-chave como “estado de conservação e manuseio” como sendo novas preocupações da segurança nuclear, uma vez que o risco de se ter tais armamentos extrapolam a detonação intencional, mas também há um risco considerável da possibilidade de haver-se uma explosão acidental e não intencionada, causando danos catastróficos e inesperados a uma sociedade inteira. Parte deste novo pensamento aborda a questão dos Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, os quais trazem ao centro das preocupações internacionais a seguridade da pessoa humana, além de apresentarem alguns princípios de regulamentação do uso de certas armas. Um ponto que também vigora nos debates sobre desarmamento nuclear é o exemplo de outras proibições e campanhas de desarmamentos que vieram a completar-se, a exemplo das minas terrestre anti-pessoais, as quais passaram à categoria

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de ilegalidade sob a égide do Direito Internacional Humanitário, por razões como o de não respeitar certos princípios como o de distinção entre os alvos, ponto que até mesmo as armas nucleares não respeito. A comparação entre as proibições das minas-terrestres em 1997, e das munições clusters em 2008, instiga a mobilização da sociedade civil ao desarmamento e proibição de uso das armas nucleares. A titulo de exemplificação, aquelas duas últimas vitórias do Direitos Internacional Humanitário, deram-se com a presença e participação expressiva da comunidade civil organizada e representada por intermédio de organizações não governamentais, como a ICBL-CMC (International Campaign to Ban Land-mines - Cluster Munition Coalition). Para estas últimas, a opção de desarmamento pareceu funcionar muito bem em quesito de obtenção de segurança, desta vez não em um escopo somente estatal, mas como já mencionado, num contexto de seguridade humana. É neste viés que organizações como a ICAN mobilizam-se para o desarmamento e abolição dos arsenais nucleares. Novamente a participação da América Latina na questão de desarmamento nucleares consagra-se como uma postura pró-ativa. Como abordado pela Presidente, na abertura da 66º Assembléia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2011: “O Brasil deixou claro de que um Mundo no qual as armas nucleares são aceitas será sempre um Mundo inseguro.” Esta iniciativa ressalta a importância de se abordar a segurança internacional de uma ótica diferenciada, a insegurança não está mais somente atrelada a detonação intencional de armas nucleares, mas também na possessão destes. Fica claro então a trajetória e a evolução do debate mundial sobre desarmamento e segurança. Não obstante, a participação do Brasil ao defender o desarmamento nuclear, há a participação dos Estados Unidos Mexicanos no incentivo em se realizar mobilizações estatais e da comunidade civil num âmbito paralelo às Nações Unidas. Como já mencionado, o México será o próximo país que sediará a conferência internacional sobre a necessidade de proibição dos armamentos

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nucleares, fundamentado nas bases já mencionadas de enfoque na seguridade da pessoa humana e nos impactos catastróficos em caso de uma detonação nuclear nos dias de hoje.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notável o avanço a caminho da segurança nuclear, começando pelo incentivo latino-americano ao estabelecimento da primeira zona livre de armas nucleares do mundo, com o tratado de Tlatelolco, o que sem dúvidas serviu para a criação de outras zonas livres dos armamentos. Por mais que se tenham obtidos avanços significativos como na redução dos arsenais nucleares, ainda resta vários outros pontos a serem debatidos e assegurados pela comunidade internacional se o foco desta for a segurança mundial. Claramente passou-se do período histórico em que a posse de ogivas nucleares representava segurança nuclear e uma necessidade de Estado. O debate mudou e com isso deve-se mudar a postura, o que já está acontecendo, da não proliferação, chegou-se ao caminho do desarmamento. Entretanto ainda restam empasses a serem debatidos. Como se pode pensar em alternativas e medidas eficazes para alcançar-se o desarmamento enquanto as potências nuclearmente-armadas possuem previsões orçamentarias beirando bilhões de dólares americanos para a renovação e desmantelamento dos arsenais, como é o caso dos EUA? Não obstante, há a retomada do pensamento de que os arsenais nucleares possam representar projeção de poder, como no recente caso de ameaça a utilização de ogivas pela República Popular Democrática da Coréia. Tais fatos são exemplos que servem de fundamentação para a problematização do assunto. Cabe a reflexão sobre o futuro da segurança internacional no âmbito dos armamentos nucleares. Deve-se refletir sobre as adaptações das conjunturas internacionais necessárias para que se possa desenvolver e alcançar a segurança internacional, assim como sobre Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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a participação da América Latina neste processo. Como bem evidencia a Presidente Dilma: Precisamos sim, aposentar os arsenais nucleares, temos sim de avançar na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ele tem sido baluarte da lógica de privilégio nuclear por mais de 65 anos, e legitima o acúmulo de material físsil nas potências nuclearmente armadas. Redobremos nossos esforços em prol do desarmamento geral e completo das armas nucleares, sob controle estrito e efetivo.

Desta forma, torna-se cada vez mais evidente que avanços da temática de segurança nuclear podem partir de mobilizações exteriores aquelas do Conselho de Segurança, representando que precisa-se repensar em certas estruturas. Seja pela participação de Estados latino-americanos como possíveis centros de políticas eficazes ao desarmamento, seja pela maior mobilização da comunidade civil em conjunto com organizações não governamentais, o debate acerca da segurança nuclear e suas novas necessidades está evoluindo, novas perspectivas, diferentes necessidades surgem e são defendidas por atores internacionais diferenciados, o que mostra a existência da real necessidade de se efetivar medidas muito além da não proliferação dos armamentos nucleares.

REFERÊNCIAS AEA. Information Circular. 1970. Disponível em: . Acesso em: abr. 2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado Federal, 1988. CARASALES, Julio C. The So Called Proliferation that Wasn’t the Story of Argentina’s Nuclear policy, 2000. Declaración Conjunta sobre Desnuclearización de la América Latina, 1963. Disponível em: Acesso em: abr. 2013. Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, Nova

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Iorque, 2011. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=DLsm7yH1gMM>. Acesso em: abr. 2013. FAS. Status of World Nuclear Forces, Washington, 2012. Disponível em: . Acesso em: abr. 2013. ICAN. Advocacy Guide - Second preparatory committee of the nuclear non-proliferation treaty 22 April - 3 may 2013, Oslo, 2013. IPPNW. Abolition 2000, Handbook for a World without Nuclear Weapons, 1995. ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Caribbean, 2012. ONU. Tratado sobre la No Proliferación de las Armas Nucleares. Londres, Moscou e Washington, 1968. Disponível em: Acesso em Abr. 2013 Reaching Critical Will. The NPT Action Plan Monitoring Report, 2013. SOUTH AFRICA. Point Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Geneva, 2013. Disponível em: . Acesso em: abr. 2013.

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A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DA PAZ E DE SEGURANÇA INTERNACIONAL DO ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Bruno Arthur Hochheim Graduando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista PIBIC. Pesquisador focado no Direito Constitucional e na História do Direito. ([email protected])

Resumo: Questões das mais tormentosas e das mais interessantes no cenário jurídico nacional é o da constitucionalidade do Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional. Por mais que ambos simbolizem no cenário internacional um avanço no combate a graves violações de direitos humanos, pode ser que o Estatuto não seja válido na ordem jurídica brasileira, caso proteja o cidadão menos do que a Constituição. Visa esse trabalho a levantar os pontos de conflito em potencial entre ambos. Palavras-chave: Constituição brasileira – Estatuto de Roma – Constitucionalidade. Sumário: 1. Introdução. 2. O Ordenamento Jurídico. 3. A Recepção dos Tratados Internacioansi e do caso do Estatuto de Roma. 3.1 A Recepcão de Tratados no Brasil. 3.2 O Caso do Estatuto de Roma. 3.3 Questões suscitadas pela recepção brasileira do Estatuto. 4. Irrelevância da Qualidade Oficial. 5. A Entrega de Nacionais. 6. Prisão Perpétua. 7. Imprescritibilidade. 8. Relativização da Coisa Julgada. 9. Individualização da Pena. 10. O Genocídio e o Tribunal do Júri. 11. Retroatividade da Lei Penal mais Benéfica. 12. O Estatuto de Roma e a Inconstitucionalidade por Arrastamento. 13. Referências.

1 INTRODUÇÃO Ninguém questiona, certamente, a necessidade de construção de mecanismos voltados à repressão de crimes como o genocídio e os contra a humanidade. Nesse diapasão, é de grande importância 604

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a construção de mecanismos internacionais para a perseguição dessas condutas. O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, surge nesse contexto, com a missão de efetivar direitos humanos. Contudo, não se pode agir de qualquer forma; não se pode, em nome da justiça, destruir conquistas de grande importância, relativizando-se garantias do indivíduo. Até mesmo a concretização dos direitos humanos, bem como a dos direitos fundamentais, necessita seguir regras. Caso contrário, cair-se-á no arbítrio e na insegurança, de modo que nenhum direito passe a ser mais dado como certo. Importantes no processo de construção da paz e da segurança internacional são as limitações constitucionais de cada Estado. De nada adianta um Estado aderir a determinada estrutura de proteção aos direitos humanos se, com isso, ele ignora os direitos de seus próprios cidadãos, rasgando-os e inutilizando-os. Tudo o que se faz com isso é abrir um precedente perigosíssimo, ensejador de violações de direito de grande porte, tudo em nome das conveniências do momento. O Estatuto de Roma possui, no contexto brasileiro, uma série de disposições problemáticas, de constitucionalidade duvidosa. Deve-se cuidadosamente analisar cada uma delas, para que não se acabe violando a Constituição e, com isso, a proteção que cada cidadão tem. Em caso de incompatibilidade entre a Constituição e o Estatuto de Roma, este deve ser, infelizmente, repelido; não se defendem direitos fundamentais violando-se direitos fundamentais, assim como não se defendem democracias dando-se golpes de Estado. Visa esse artigo a fazer uma radiografia da questão da constitucionalidade do Estatuto de Roma no Brasil. Levantar-se-ão as diferentes inconstitucionalidades em potencial, bem como os diferentes argumentos para cada lado, ou razões para que haja alguma inconstitucionalidade. Principiar-se-á realizando-se um resumo Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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da estrutura jurídica brasileira; analisar-se-ão, então, as diferentes questões suscitadas pelo Estatuto de Roma no Brasil, nos seus diferentes planos.

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O ORDENAMENTO JURÍDICO

Na ideia de ordenamento jurídico atualmente adotada, tem-se a concepção deste como uma construção hierárquica de normas jurídicas, escalonada. Devem as normas hierarquicamente inferiores ser conforme às normas superiores, não as contrariando. No topo de todo o ordenamento está a Constituição. O Brasil é um Estado Democrático de Direito, sendo o povo soberano. Ele é a fonte do poder estatal, bem como do ordenamento jurídico por este criado. O povo brasileiro não se submete juridicamente a ninguém, cabendo a ele decidir sob que leis viver, escolha essa consubstanciada principalmente na Constituição. Esta cria a ordem jurídica nacional, conformando-a, e é, do ponto de vista jurídico, a maior expressão da vontade popular. A Constituição brasileira prevê uma série de medidas para que se evite o arbítrio e a violência: separação de poderes; direitos fundamentais, visando à garantia, para o indivíduo, de uma esfera livre do Estado ou mesmo da maioria, impedindo medidas como tortura ou tratamento desumano. Na estrutura normativa brasileira, caracteriza-se a Constituição por ser rígida: não pode ser alterada pelo método comum de confecção de leis, exigindo um processo qualificado para tanto. Se, ao contrário, pudesse o Congresso Nacional alterá-la do mesmo modo que produz leis, poderia facilmente, do ponto de vista jurídico, alterar direitos fundamentais, como o à educação e à saúde. Deve-se destacar que, na estrutura brasileira, nem tudo pode ser alterado na Carta Magna. Há um núcleo inalterável, consubstanciado nas chamadas cláusulas pétreas, segundo o art. 60, parágrafo 4º da Constituição: a forma federal de Estado; o voto direto, secreto, 606

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universal e periódico; a separação dos poderes; os direitos e garantias individuais. Qualquer emenda constitucional tendente a abolir os preceitos acima é inadmissível, não podendo seu projeto sequer ser objeto de deliberação. Desse modo, a Constituição é a origem e o fecho do ordenamento jurídico, submetendo todas as demais normas jurídicas – o que inclui, por exemplo, leis e tratados internacionais440. Todas elas têm que segui-la, sendo conforme ao que ela determina. Na dissonância entre a Constituição e qualquer outra norma, deve a Carta Magna prevalecer, pela sua posição hierárquica. E isso vale para todas as normas, para bem ou para mal. Por mais louvável que possa ser o objetivo de determinada norma, como a construção da paz e a segurança internacional, caso ela viole algum ditame constitucional, padecerá ela do vício de inconstitucionalidade, não podendo ser aplicada. O jurídico é, ou deveria ser, menos sujeito a pragmatismos do que o político; o fim não justifica os meios, devendo estes também ser conformes à Constituição. Como se verá adiante, há fortes dúvidas sobre a constitucionalidade da previsão de prisão perpétua albergada pelo Estatuto de Roma; caso ela seja de fato inconstitucional, não pode ser aplicada. Mesmo que, em termos gerais, o Estatuto represente um avanço no combate às graves violações de direitos humanos. Não pode haver violação de direitos em nome de “bem maior”. Deve-se, portanto, analisar a compatibilidade de qualquer norma com a Constituição, para que se tenha certeza de que se trate de norma válida. Isso, repita-se, diz respeito a todas as normas, inclusive aos tratados internacionais. Afinal, uma vez recepcionados, viram eles norma interna, sujeita ao império da Constituição. O Estamos cientes da discussão sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direito humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o debate, esses tratados podem ter três hierarquias: a legal, a supralegal ou a constitucional. Independentemente da posição que se considere que elas possuam, o que foi aqui escrito continua valendo, uma vez que sempre se submete, ao menos, às cláusulas pétreas do ordenamento. Mesmo no caso de hierarquia constitucional.

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Estatuto, portanto, também se sujeita a essa análise. Apesar de ser, no plano internacional, importante ferramenta para a construção da paz e a segurança internacional, pode ser que ele represente, no plano interno, a violação de direitos do cidadão. Basta ele conferir ao indivíduo uma proteção menor do aquela conferida pela Constituição. A análise de constitucionalidade de uma norma envolve dois aspectos: o material e o formal. O lado material diz respeito ao conteúdo de suas prescrições: é ele compatível com a ordem constitucional? Nenhuma norma pode determinar algo diferente do que a Constituição; se em determinado caso a Constituição prescreve A, não pode a lei, para o mesmo caso, ignorar tal e prescrever B; se a Constituição determina que não haverá tortura, não pode lei alguma autorizar o seu uso. A dimensão formal, por sua vez, diz respeito não ao conteúdo da norma avaliada, e sim a outros aspectos, pertinentes ao processo de formação normativa. Analisa-se se a norma foi produzida pela autoridade competente, se foi criada seguindo-se o procedimento para tanto previsto, e assim por diante. As duas dimensões são independentes; basta vício numa delas para que a norma seja considerada inconstitucional, não sendo mais aplicada. De nada adianta uma norma seguir todo o devido processo de sua produção e prever a segregação racial; de nada adianta a norma prever o acesso universal ao ensino superior, garantindo vagas a todos, independentemente de realização de vestibular, se ela foi criada do dia para a noite pelo assessor do vice-presidente da Câmara dos Deputados, sendo por ele mesmo promulgada e publicada. Os dois aspectos devem ser sempre conformes à Constituição. Desse modo, passaremos a ver, na seção seguinte, como se dá o processo de incorporação de tratados internacionais na ordem jurídica brasileira, bem como qual foi o processo específico do Estatuto de Roma, a fim de se perquirir se há alguma possibilidade de inconstitucionalidade. Só então analisar-se-á o efetivo conteúdo do tratado.

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A RECEPÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS E O CASO DO ESTATUDO DE ROMA

3.1 A recepção de tratados no Brasil Uma das formas de se gerarem normas gerais e abstratas em nosso ordenamento jurídico é através da recepção de tratados internacionais. Para que o Estado brasileiro o faça, é necessário um procedimento em três etapas, as quais são a assinatura do tratado, o consentimento do Congresso Nacional e a ratificação do Presidente da República. A assinatura do tratado internacional é competência privativa do Presidente da República (art. 84, VIII, CF), podendo este nomear um ministro plenipotenciário para fazê-la em seu lugar. A próxima etapa do processo é o consentimento do Congresso, ocorrendo ela após o presidente encaminhar o texto assinado a ele. Cabe destacar que o presidente não é juridicamente obrigado a realizar tal conduta, tendo ele discricionariedade nesse campo. Afirma Rezek (2011, p. 88) Concluída a negociação de um tratado, é certo que o presidente da República - que, como responsável pela dinâmica das relações exteriores, poderia não tê-la jamais iniciado, ou dela não ter feito parte, se coletiva, ou haver ainda, em qualquer caso, interrompido a participação negocial brasileira – está livre para dar curso, ou não, ao processo determinante do consentimento. Ressalvada a situação própria das convenções internacionais do trabalho, ou alguma inusual obrigação imposta pelo próprio tratado em causa, tanto pode o chefe do governo mandar arquivar desde logo o produto a seu ver insatisfatório de uma negociação bilateral ou coletiva, quanto determinar estudos mais aprofundados na área do Executivo, a todo momento; e submeter quando melhor lhe pareça o texto à aprovação do Congresso.

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Tal tem sua lógica. O campo das relações internacionais é um nos quais a política mais fortemente se manifesta, sendo seus atos, como a celebração de tratados, assuntos envolvendo guerra e paz e a nomeação de embaixadores, tipicamente do presidente na história moderna. Seria inviável dar a competência para realizar esses atos ao órgão legislativo, o qual é muito mais lento. Aqui age a discricionariedade do Presidente da República, sendo unicamente dele a escolha quanto ao que fazer com o texto assinado. Decidindo o Chefe do Executivo prosseguir com o processo, envia ele o texto assinado ao Congresso. Essa etapa faz-se necessária no modelo de democracia pautada na divisão de poderes que possuímos, já que se apenas o povo pode criar leis que vinculem todos os cidadãos, não faria sentido que o Executivo pudesse sozinho recepcionar no ordenamento jurídico normas que vinculem todas as pessoas. Em cada uma das duas casas há comissões parlamentares destinadas a estudar o texto enviado pelo presidente. Naturalmente, faz-se necessário o abono das duas casas legislativas; se uma delas não concordar com o texto, o processo não pode seguir adiante (REZEK, 2011, p. 89). Uma vez tendo aceito o Congresso o compromisso, cria-se um decreto legislativo publicizando o texto. Ele é promulgado pelo presidente do Senado e publicado no Diário Oficial da União (REZEK, p. 89). Como o meio utilizado é um decreto legislativo, a votação em plenário necessária para a aprovação do tratado requer o quorum ordinário de aprovação, a maioria simples. O Congresso Nacional pode aprovar o texto com restrições ao texto, as quais o Executivo traduzirá em reservas quando for ratificar (REZEK, p. 92). O derradeiro passo do processo de recepção é a ratificação. Ela é a expressão final do consentimento, sendo, como afirmam Accioly e Nascimento e Silva, (1998, p. 28-9) “...o ato administrativo mediante o qual o chefe de Estado confirma um tratado firmado em

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seu nome ou em nome do Estado, declarando aceito o que foi convencionado pelo agente signatário”. A ratificação não é vinculada interna nem externamente, isto é: tanto pode o Estado decidir não ratificar um texto, mesmo já sendo seu signatário, quanto pode o Executivo não realizar o ato, mesmo que o Legislativo já haja aprovado o tratado (REZEK, 2011, p. 28). “O princípio reinante, pois, é o da discricionariedade da ratificação.” (REZEK, 20011, p. 28). A ratificação se dá no Brasil mediante decreto do presidente, ato que ao mesmo tempo promulga o tratado, trazendo ele o texto com que o Brasil se compromete. [...] o decreto de promulgação não constitui reclamo constitucional: ele é produto de uma praxe tão antiga quanto a Independência e os primeiros exercícios convencionais do Império. Cuida-se de um decreto, unicamente porque os atos do chefe de Estado costumam ter esse nome. Por nada mais. Vale aquele como ato de publicidade da existência do tratado, norma jurídica de vigência atual ou iminente. (REZEK, 2011, p. 103)

3.2 O caso do estatuto de Roma Quanto ao Brasil, foi feita a assinatura do Estatuto de Roma em 7 de fevereiro de 2000; o decreto legislativo correspondente, em 6 de junho de 2002, sendo 112 o seu número; o decreto executivo, numerado 4.388, em 25 de setembro de 2002. A questão do Tribunal Penal Internacional, contudo, estava e está ainda longe de ser resolvida em nosso ordenamento jurídico. Embora não haja problemas quanto à forma do procedimento adotado, o Estatuto de Roma tem previsões realmente controvertidas. Dentre outras, podem-se citar a previsão de prisão perpétua, a desconsideração da qualidade oficial, a entrega de nacionais e a retroatividade da lei penal mais benéfica mais restrita do que a apontada

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pela Constituição. Essas são algumas das mais problemáticas, uma vez que, em sendo inválidas, o serão, na maior parte das vezes, por limitação de cláusula pétrea, de modo que não se pode contornar esse problema. Devido às fortes dúvidas pertinentes à constitucionalidade do Estatuto de Roma na ordem jurídica brasileira, a Emenda Constitucional 45 de 2004 criou, dentre outras disposições, o §4º do art. 5º: “§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” Houve, portanto, a recepção do Estatuto de Roma conforme usualmente se dá na seara dos tratados internacionais. O incomum é o fato de haver emenda constitucional, criada após a promulgação do tratado, repetindo suas disposições, fato inusitado na experiência brasileira.

3.3 Questões suscitadas pela recepção brasileira do Estatuto Ao que tudo indica, a recepção do Estatuto de Roma deu-se sem irregularidades; segui-se o procedimento devido, havendo a assinatura, o decreto legislativo e o decreto executivo necessários. O que gera dúvidas é a emenda constitucional que lhe seguiu: o que significa ela juridicamente, e quais os seus efeitos? Dimoulis e Sabadell (2009, p. 63-65) criticam fortemente os termos da alteração da Constituição. Segundo os autores, o termo causa estranheza, uma vez que, se o Brasil é soberano, ele não pode se submeter a nenhuma autoridade estrangeira; em fazendo-o, deixa de ser soberano. Continuam os autores que, independentemente do termo, quis-se “...sinalizar que o Brasil reconhece e admite a jurisdição penal internacional.” (p. 64). De qualquer forma, a Constituição “...fica marcada por uma grave contradição entre o caráter do texto originário e a declaração de submissão.” (p. 65)

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Pode-se aventar a possibilidade de a EC 45 haver constitucionalizado o Estatuto de Roma. Por um lado, tal tem respaldo no fato de haver agora previsão constitucional a seu respeito. Por outro lado, pode-se perguntar até que ponto isso é possível. Isso equivale a uma nova recepção do Estatuto de Roma – sem que, para isso, se siga o devido processo; não houve, afinal, nova assinatura, nem novo decreto executivo. Caso se confirme a constitucionalização do Estatuto de Roma, isso não significa a solução de seus problemas. Emenda Constitucional alguma tem a possibilidade de alterar cláulas pétreas; se a tivesse, não seriam, por definição, cláusulas pétreas. Mas apenas as cláusulas pétreas não seriam alteradas. Qualquer outra violação da Constituição por parte do Estatuto poderia ser superada através da Emenda 45, uma vez que se trata agora de norma de mesmo nível hierárquico, a qual pode derrogar normas constitucionais não protegidas por cláusula pétrea. Isso leva a efeitos interessantes. Há diferentes classificações de tipos de inconstitucionalidade, conforme distintos critérios. O que importa na sua aplicabilidade ou não em determinada situação é a sua utilidade para a resolução de problemas. Pode-se elaborar uma nova classificação de tipos de inconstitucionalidade, ao lado das já existentes, pautada na possibilidade de posteriormente se poder contornar o vício que torna a norma dissonante em relação à Constituição. Essa é a sua utilidade: deixar claro se é possível ou não haver norma válida com o conteúdo da norma em questão. Como afirmado, partes da Constituição não podem ser alteradas, independentemente do quorum ou do procedimento seguido, devido a cláusulas pétreas. Estas são um fruto da vontade do constituinte originário, o qual considerou seus preceitos tão centrais ao nosso ordenamento que decidiu não permitir sua supressão, mesmo frente a uma enorme maioria, ou até unanimidade. O conteúdo de

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normas que são inválidas devido à incidência de alguma cláusula pétrea, portanto, não pode ser reproduzido em alguma outra norma que possa ser válida através de algum outro modo (outro procedimento, outro quorum, outra autoridade que a constitua, outras circunstâncias, etc), uma vez que o vício persistiria. Uma inconstitucionalidade desse tipo seria uma inconstitucionalidade nuclear, uma vez que se dá em decorrência de afronta a algum dispositivo que integre o núcleo não só da ordem jurídica, mas da própria Constituição, caracterizado pelas cláusulas pétreas441. Diferente de uma inconstitucionalidade desse tipo é a inconstitucionalidade não-nuclear, a qual não afeta o cerne do ordenamento jurídico brasileiro. Se a norma é inválida por ser inconstitucional, ela o é devido a algum fator que, se alterado, possa permitir a criação de outra norma com o mesmo conteúdo. Suponha-se uma emenda constitucional que permita o uso de tortura no inquérito policial. Apesar de sua criação eventualmente seguir todas as formalidades, ela é inconstitucional, uma vez que afronta cláusula pétrea, e não há o que se fazer a respeito. Essa seria uma inconstitucionalidade nuclear, sendo incontornável. Por outro lado, uma emenda constitucional que altere a idade mínima para que alguém possa ser candidato a senador de 35 para 33 anos aprovada por 55% dos parlamentares de cada uma das duas casas em apenas um turno é inconstitucional, uma vez que desres Podem ser citados - sem se ignorar que suas posições são, por vezes, diferentes – alguns autores que possuem um pensamento semelhante que caminha na direção de caracterizar as cláusulas pétreas como núcleo ou cerne da Constituição: Piovesan (2010, p.80) - “Atente-se que as cláusulas pétreas resguardam o núcleo material da Constituição, que compõe os valores fundamentais da ordem constitucional; Ferreira Filho (2007, p.236) - “Não é infreqüente estabelecerem as Constituições proibições de alteração quanto a certos pontos, matérias ou princípios. Definem estes, em conseqüência, o chamado cerne ‘intangível’ da Lei Magna”; Pontes de Miranda, comentando a Constituição de 1967 (1967-1968, p. 142-3) - “As Constituïções que se fizessem inalteráveis, eternas, seriam ingênuas e imprudentes. Emendar-se, permitir-se alterar-se, nos indivíduos e nos grupos sociais, é sinal de sabedoria. A tendência é para mínimo de inalterável, de fixo, de preciso... A Constituïção de 1967, como a de 1946, tem como cerne inalterável a republicanidade e a ligação permanente entre as entidades interestatais (‘federação’).”

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peita as normas referentes ao quorum de votação e ao procedimento de uma emenda à constituição. Esses vícios são, contudo, contornáveis através da criação de uma nova norma com o mesmo conteúdo que obedeça aos requisitos impostos pela Constituição. Há, sem dúvida, ofensa à Constituição, mas não ao seu núcleo, insuprimível, podendo-se contornar o problema mediante outra norma. A inconstitucionalidade não-nuclear é contornável; há o que se fazer, há como o ordenamento jurídico caminhar na direção desejada. A inconstitucionalidade nuclear, por outro lado, é definitiva. Não há como a norma ser válida sob a égide da Constituição então vigente. Assim sendo, a constitucionalização do Tribunal Penal Internacional, caso tenha realmente ocorrido, contorna qualquer inconstitucionalidade não-nuclear. Ela só será inútil caso haja, nas previsões do Estatuto, alguma inconstitucionalidade nuclear442. Isso encerra a análise dos questionamentos formais que a questão do Estatuto de Roma encerra no Brasil. Passaremos a analisar os elementos materiais, isso é, se alguma previsão do Estatuto conflita com a Constituição.

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IRRELEVÂNCIA DA QUALIDADE OFICIAL

A desconsideração da qualidade oficial relativiza prerrogativas de foro constitucionalmente previstas. Estabelece o Estatuto de Roma em seu artigo 27 Irrelevância da Qualidade Oficial 1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade ofi Como bem se pode ver, a classificação entre inconstitucionalidades nucleares e não nucleares é funcional para qualquer norma, e não só para o caso em tela. Qualquer norma jurídica, mesmo uma Emenda Constitucional é passível de ser classificada sob o binômio aqui proposto.

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cial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. 2. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.

Essa disposição é potencialmente conflituosa com a Constituição, uma vez que parece contrariá-la quanto às prerrogativas de foro que ela concede a quem ocupe determinadas posições no organograma estatal, como a de parlamentar ou a de presidente da república. Tome-se por exemplo o art. 102, I, b: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República

Só o STF pode julgar as pessoas indicadas. E por “infrações penais comuns” entenda-se qualquer crime. Na sistemática da Constituição, esse termo faz referência a qualquer crime, enquanto “crimes de responsabilidade” fazem, naturalmente, referência aos crimes de responsabilidade. Não há margem para um eventual no argumento no sentido de que “infrações penais comuns” não inclui os crimes julgados pelo Tribunal Penal Internacional, uma vez que eles são dos mais cruéis, constituindo-se como crimes contra a humanidade, portanto. Há grande de incompatibilidade entre o Estatuto de Roma e a Constituição, de modo que esse dispositivo

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é inconstitucional se aplicado de modo a ignorar essa competência que só ao STF pertence. Contudo, dificilmente se pode argumentar que essas prerrogativas de foro sejam protegidas por cláusula pétrea no ordenamento jurídico brasileiro; qualquer emenda constitucional pode, assim sendo, alterar esse estado das coisas, permitindo relativizações das prerrogativas. Caso se entenda que a Emenda Constitucional 45 constitucionalizou o Estatuto de Roma, pode-se defender, com grande facilidade, que essas prerrogativas foram flexibilizadas nas hipóteses de incidência do Tribunal Penal Internacional. As prerrogativas de função seriam, portanto, caso de inconstitucionalidade não nuclear.

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A ENTREGA DE NACIONAIS

Questão polêmica é a entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional. Prevê o Estatuto em seu art. 89 Art. 89. Entrega de Pessoas ao Tribunal 1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.

A Constituição, por outro lado, limita severamente as hipóteses de extradição de nacionais. Define em seu artigo quinto LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturali-

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zação, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

Mais uma vez, a possibilidade de conflito entre ambas as disposições é enorme; conflito esse que, cumpre lembrar, deve ser sempre resolvido aplicando-se o que determina a Constituição. A cláusula de inextradibilidade de nacionais não é peculiaridade brasileira; pelo contrário, é relativamente comum nos diferentes ordenamentos jurídicos. Talvez por isso, preveja o Estatuto Art. 102. Termos Usados Para os fins do presente Estatuto: a) Por “entrega”, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto. b) Por “extradição”, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.

Essa disposição, contudo, em pouco ajuda. Como é bem sabido na hermenêutica, não se interpreta a Constituição conforme qualquer norma inferior, e sim o contrário. A referência para a interpretação constitucional deve ser a própria Constituição, e não qualquer outra norma – salvo haja menção expressão da Constituição em contrário. Desse modo, o previsto no artigo 102 não contribui muito ao debate. Traz apenas uma sugestão de conciliação; se a entrega for distinta da extradição, é porque há margem para isso na própria Carta Magna, e não porque o Estatuto determinou que é. A se pensar distintamente, deve-se também ter por constitucional uma lei que determine que, em caso de determinado crime, o juiz aplicará a medida de perfuração simultânea do corpo por vários projéteis de armas de fogo disparados por homens alinhados – se a lei em questão

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estabelecer que isso se dá a título de aliviamento do fardo de viver nesse mundo, uma vez que a pessoa em questão não se mostrou responsável o bastante para tal, e não a título de pena. A maioria da doutrina que se debruçou sobre a temática do Estatuto de Roma no Brasil considera a entrega como aceita pela ordem constitucional. O argumento básico é o de que extradição não é o mesmo que entrega; o próprio Estatuto determina, como dito, que se trata de institutos distintos. Mazzuoli (2004, p. 251-3), por exemplo, entende que são coisas diferentes, uma vez que a extradição pressupõe um outro Estado; a entrega, por sua vez, um tribunal internacional. Parece clara, assim, a distinção entre a entrega de um nacional brasileiro a uma corte com jurisdição internacional, da qual o Brasil faz parte, por meio de tratado que ratificou e se obrigou a fielmente cumprir, e a entrega de um nacional nosso (esta sim proibida pela Constituição) a um tribunal estrangeiro, cuja jurisdição está afeta à soberania de uma outra potência estrangeira, que não a nossa, e de cuja construção nós não participamos com o produto de nossa vontade (MAZZUOLI, 2004, p. 253).

A tônica, para o autor, é a de que a entrega é distinta da extradição justamente porque é realizada para uma coletividade em cuja construção o Brasil tenha colaborado. Nessa direção, também sustenta Rothenburg (2002, p. 78). Já outros autores entendem que há incompatibilidade com a Constituição (DIMOULIS; SABADELL, 2007, p. 51; TAVARES, 2010, p. 560-2). Para Tavares (2010, p. 561), a distinção entre entrega e extradição é “...meramente grafolófica, não se podendo considerar, seriamente, ser ontológica...” O Estatuto de Roma gera questionamentos frente às Constituições de outros países também, os quais, muitas vezes, buscam emendá-las para que haja compatibilidade. Até onde é do nosso co-

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nhecimento, só houve outro país em que se cogitou de conflito devido a alguma cláusula de inextradibilidade de nacionais: a Alemanha. Considerou-se que havia conflito entre ambas as normas, de modo que se alterou a Constituição – e a emenda se deu justamente na disposição referente à extradição (Auslieferung), relativizando-a frente a casos como o envio de cidadãos alemães a tribunais internacionais. Ou seja, considera-se tal uma extradição, tendo-se apenas aberto uma exceção para ela. Nem doutrina (IPSEN, 2011, p. 264-5), nem tribunais (ALEMANHA, 2005) contestam isso.

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PRISÃO PERPÉTUA

O Estatuto de Roma possibilita a aplicação da pena de prisão perpétua Art. 77 Penas Aplicáveis 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem

Essa possibilidade é ponto de maior debate na doutrina. A Constituição proíbe terminantemente a prisão perpétua em seu artigo quinto: XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo;

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c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;

Resta o impasse. Interpretações conciliadoras são o que não faltam nesse âmbito. Steiner (2003, p. 452-457) entende que os princípios prevalecem sobre as regras, de modo que os princípios da dignidade da pessoa humana e o da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais prevalecem aqui. Aponta também o artigo 7º do ADCT, o qual determina que o Brasil propugnará pela criação de um tribunal internacional de direitos humanos, e que os direitos e garantias fundamentais só tem força dentro do Brasil, não se podendo dar-lhes eficácia transnacional e utilizá-los como óbice a extradição ou entrega. Acrescenta a autora que a recepção do TPI causou uma mutação constitucional, de forma a se permitir esses pontos de dita inconstitucionalidade e, por último, lembra que a própria Constituição permite a pena de morte em caso de crime militar cometido em crime de guerra. Entende ela que, se nessas circunstâncias pode-se ter pena de morte, pode-se ter também pena de prisão perpétua no caso de grande violação de direitos humanos, as quais são tão graves quanto guerras. Mazzuoli (2004, p. 254-255) argumenta que o STF não vê problemas em extraditar indivíduos para locais onde podem ser condenados à prisão perpétua, de modo que a vedação a essa pena não pode servir de óbice ao Estatuto (aqui, para o autor, a entrega pode ser tratada como extradição). Lembra também pode haver a revisão da pena após o cumprimento de dois terços dela, ou de 25 anos. E entende também que essa vedação destina-se apenas ao legislador interno brasileiro, não alcançando legisladores estrangeiros ou internacionais. Nada impede que a pena de prisão perpétua seja instituída “...fora do país, por um tribunal permanente de jurisdição

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internacional, do qual o Brasil é parte e deve obediência, em prol do bem-estar da humanidade”. Dimoulis e Sabadell (2009, p. 52) discordam. Entendem que Adotando o ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, essa incompatibilidade deve ser resolvida no sentido da prevalência da norma constitucional, pois havendo antinomia entre normas de diferentes graus hierárquicos prevalece aquela que, conforme o critério adotado em cada sistema jurídico, for considerada superior.

Rothenburg (2002, p. 79) também defende a inconstitucionalidade do Tribunal Penal Internacional nesse ponto. Já Flávia Piovesan (2000, p.73) entende que nesses casos há um conflito entre a vedação à prisão perpétua e a justiça, devendo a balança pesar a favor desta.

7 IMPRESCRITIBILIDADE Estabelece o Estatuto de Roma Art. 29 Imprescritibilidade Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.

A dúvida é se tal é condizente com a Constituição. Aqui, ao contrário dos últimos casos, não há norma com previsão expressa. Caso haja violação da Constituição, isso se dará devido a norma constitucional implícita. André Ramos Tavares (2010, p. 562) afirma que isso viola a Constituição pelo fato de tornar vulneráveis as situações jurídicas consolidadas com o decurso de longo período de tempo, destruindo um dos pilares do Direito, a pacificação dos conflitos. Além disso,

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isso conflita com a sistemática constitucional, que sempre se referiu expressamente aos casos de crimes imprescritíveis, não podendo ser criadas outras hipóteses. Para Aury Lopes (2011, p.23), Não podemos aceitar que o legislador ordinário crie crimes imprescritíveis diante da taxatividade constitucional. Não houve uma delegação da Constituição para que lei ordinária determinasse quais crimes seriam imprescritíveis (como ocorreu, noutra dimensão, em relação aos crimes hediondos), senão o claro estabelecimento de um rol. Considerando a gravidade da medida no que tange à limitação de direitos fundamentais, inviável tal abertura.

Uma limitação à liberdade, ou sua possibilidade por parte de determinação legal, deve, ao menos, ser expressamente prevista. Rothenburg (2002, p. 79) também entende que a imprescritibilidade não pode ser aceita, porque a Constituição já exauriu o que é imprescritível ou não. Por outro lado, o Supremo aceitou no RE 460.971 a possibilidade de criação de novos crimes imprescritíveis. Segundo a corte, a Constituição “...se limita, no art. 5º, XLII e XLIV, a excluir os crimes que enumera da incidência material das regras da prescrição, sem proibir, em tese, que a legislação ordinária crie outras hipóteses” (BRASIL, 2007, p. 1) Pode-se sempre argumentar que não previsão expressa de limitação aos casos de imprescritibilidade, podendo o legislador criar novas hipóteses. De qualquer forma, caso se entenda que é possível criar mais casos de imprescritibilidade, tal sempre estará sujeito ao princípio da proporcionalidade. Não seria qualquer crime passível de imprescritibilidade; o delito deve agredir bem jurídico de grande importância, e de forma muito grave, para que se possa afastar absolutamente a prescrição. Não se pode ter como imprescritível crime de menor monta: seria claramente inconstitucional a previsão de imprescritiAnais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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bilidade, por exemplo, para crimes de furto. No caso do Estatuto de Roma, como ele prevê crimes de enorme violência e destruição, não haveria muitas dúvidas de que sua imprescritibilidade não violaria a Constituição no que tange à proporcionalidade.

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RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Questão complicada também é a da relativização da coisa julgada que o Estatuto de Roma prevê. Tal pode conflitar diretamente com o direito constitucional à coisa julgada (art. 5º, XXXVI da Constituição: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). Deve-se analisar cuidadosamente para se verificar se os casos de desconsideração de julgamento anterior sobre o mesmo fato não traduzem violações à coisa julgada.

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INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

A Constituição prevê o direito à individualização da pena todo condenado tem o direito a ter uma pena adequada à conduta que cometeu. Contudo, há possibilidade de conflito entre esse princípio basilar da punição no Estado Democrático de Direito brasileiro e o Estatuto de Roma em duas ocasiões. A primeira é grande abrangência das possibilidades de pena a serem cominadas. O Estatuto determina que (art. 77, como acima visto), para qualquer um dos crimes nele previstos, pode ser cumulada pena de prisão até 30 anos e, excepcionalmente, pena de prisão perpétua, além de multa e de perda de bens. Tal amplitude na hora da determinação da pena é inadmissível frente ao princípio da individualização da pena. Segundo Viggiano Luisi (2000, p. 50), não se leva em conta a especificidade de cada tipo penal e a relevância do bem jurídico tutelado, não se considerando a maior ou menor gravidade da ofensa. Termina o autor (2000, p. 50) afirmando que 624

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“O impasse, portanto, é de evidência induvidosa. E mesmo insuperável, pois está a exigir ou uma nova Constituição brasileira, ou uma nova redação do art. 77 do Estatuto”. Steiner, (2003, p.51) por outro lado, não vê problema em previsão tão genérica; segundo a autora, o conflito é apenas aparente, uma vez que tal opção apenas reflete um modo distinto de individualização da pena, e não a ausência de individualização. A outra ocasião é a ausência, no Estatuto, de previsão de progressão de regimes; como ele é nesse ponto silente, entende-se que a prisão será integralmente cumprida no regime fechado. Já é pacífico no STF (2006, p.1) que tal ausência de progressão de regimes é inconstitucional, por afronta à individualização da pena. Caso realmente não haja progressão de regimes para os crimes previstos no Estatuto de Roma, há fortes possibilidades de inconstitucionalidade. Aparentemente, a doutrina ainda não percebeu esse conflito em potencial, pois sequer escreveu a seu respeito.

10 O GENOCÍDIO E O TRIBUNAL DO JÚRI Dentre os vários crimes que o Estatuto de Roma prevê, está o crime de genocídio Art. 6o Crime de Genocídio Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;

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d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

É necessária uma cuidadosa análise do genocídio cometido através do homicídio de membros do grupo; deve-se questionar-se se isso não se trata de crime contra a vida e, portanto, sujeito à jurisdição do tribunal do júri. O STF (BRASIL, 2006, p. 1) já desposou o entendimento contrário, definindo que o crime é tutela penal da existência de grupo racial, religioso, étnico ou nacional, ao qual pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Deve-se questionar se isso realmente procede. O júri tem por competência crimes dolosos contra a vida, por força de disposição constitucional, contida no artigo quinto: XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Deve-se sempre averiguar se o tipo penal em estudo não se trata de crime doloso conta a vida. O Direito Penal tutela diferentes bens jurídicos (vida, liberdade, integridade física, incolumidade pública, fé pública, dentre outros). Grosso modo, ou eles tratam de abstrações relacionadas a interesses extraindividuais, como a fé e a incolumidades públicas, ou tratam de interesses individuais. Isso se dá porque, num Estado Democrático de Direito, adota-se uma concepção eminentemente liberal: o cerne é o indivíduo. Abandonou-se há muito a ideia de grupos sociais como os estamentos.

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Desse modo, quando se trata de um interesse individual na tutela penal, faz-se isso sempre de maneira individualizada. Cuidase da liberdade do indivíduo, da integridade física do indivíduo, etc, porque não há como se violar qualquer desses direitos sem que se viole esse direito num indivíduo. Assim, deve-se questionar-se se há como se tratar coletivamente um interesse individual. Essa é uma interessantíssima questão de teoria do Direito Penal, da qual depende a resposta para esse ponto. Caso não se possa tratar coletivamente um interesse individual, tudo o que se estará fazendo é burlar a Constituição, ao se coletivizar a tutela penal da vida com o intuito de se afastar a competência do tribunal do júri.

11 RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA A Constituição estabelece em seu art. 5º, XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Se, a qualquer momento, surgir nova lei penal que destine um tratamento mais brando ao réu, passará ela a ter efeitos imediatos, alcançando o indivíduo em questão. O Estatuto de Roma, por outro lado, possui seu artigo 24 Art. 24. Não retroatividade ratione personae 1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, de acordo com o presente Estatuto, por uma conduta anterior à entrada em vigor do presente Estatuto. 2. Se o direito aplicável a um caso for modificado antes de proferida sentença definitiva, aplicar-se-á o direito mais favorável à pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada.

Como bem se pode ver, há outro grande potencial de conflito aqui. Enquanto a Constituição não limita a retroatividade da norma penal mais benéfica, o Estatuto a limita à hipótese de não ser

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proferida sentença definitiva. Caso o réu já haja sido definitivamente condenado, a mudança das normas não a beneficiará de jeito algum. Cabe questionar se isso não viola a Constituição. Até onde é de nosso conhecimento, a doutrina ainda não levantou a questão.

11 O ESTATUTO DE ROMA E A INCONSTITUCIONALIDADE POR ARRASTAMENTO O Estatuto de Roma constitui todo um ordenamento jurídico próprio – subordinado à Constituição, devido a sua supremacia na ordem jurídica (DIMOULIS; SABADELL, 2009, p. 52) –, mas ainda assim um ordenamento jurídico próprio. Suas normas encontram-se fortemente interligadas, numa grande relação de interdependência. Dependendo do caso, pode ser que a invalidade de apenas uma delas contamine todo o ordenamento, o minissistema, sendo ele inválido. Tome-se, por exemplo, a previsão de vedação de prisão perpétua, e partamos que ela seja de fato inconstitucional no Brasil. Como todo o indivíduo entregue ao tribunal está sempre propenso a receber essa pena, proibida pela Constituição, não haveria, nunca, como entregá-lo à corte. Se não há como entregar nunca alguém à corte, todas as demais normas do Estatuto perdem o seu sentido, de modo que não há como elas subsistirem no ordenamento jurídico pátrio. Se uma norma inválida no Brasil for tão central ao Estatuto de Roma, a ponto de sem ela ele perder seu sentido, passará ele inteiro a ser inválido, uma vez que não tem mais como ser aplicado. Essa contaminação da invalidade, por grande atrelamento das demais normas à norma que é de fato inconstitucional, tem recebido pelo STF o nome de “inconstitucionalidade por arrastamento”. Esse tipo de inconstitucionalidade já foi abordado em julgamentos desse tribunal, como na ADI 1856, na ADI 2797 e na ADI 2895.

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12 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Tribunal Penal Internacional é importante meio para o combate às graves violações de direitos humanos; possui um rol importante de ferramentas para tal, constituindo-se em importante meio para a construção da paz e a segurança internacional. Por mais relevante que ele seja no cenário internacional, não pode significar atropelo no âmbito nacional, e por diferentes razões. Os fins não justificam os meios, de modo que não pode o Estatuto de Roma prever medida incompatível com as determinações constitucionais. Caso se o faça, agridir-se-á fortemente algum direito fundamental, com prejuízo enorme para o indivíduo e para a sociedade. Caso o Estatuto contenha alguma inconstitucionalidade, e mesmo assim ela seja aplicada, em nome de um bem maior, abre-se com isso um precedente perigosíssimo, ameaçador de todos os direitos fundamentais do cidadão – os quais possuem uma grande proximidade com os direitos humanos. Cair-se-ia no arbítrio e na imprevisibilidade, onde nenhum direito seria mais certo; poderia ele, a qualquer hora, ser relativizado, com base na definição do intérprete de conceitos amplíssimos e vaguíssimos como “justiça”, “bem comum” e “bem maior”. O Estado Democrático de Direito, onde cada indivíduo tem seu valor e deve ser protegido, repugna e rechaça tal arbítrio. Ademais, isso representaria o ignorar da soberania popular, o que levaria, provavelmente, ao fim da democracia. Não houve no Ocidente, nos últimos séculos, conceito de democracia que não se apoiasse na soberania popular; retirando-se esta, aquela desaba. Cabe ao povo decidir o seu próprio destino, e não ser tutelado pelo quadro internacional. Deve-se, assim sendo, analisar com todo o cuidado as disposições do Estatuto de Roma frente à Constituição brasileira; não se deve tolerar qualquer inconstitucionalidade, sob pena de conseqüências das mais amargas.

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Assim, nesse trabalho, fez-se um breve levantamento da estrutura jurídica nacional, passando-se em seguida à análise pontos ensejadores de eventuais inconstitucionalidades; principiou-se pelos aspectos formais, seguindo-se nos materiais. Levantou-se a possibilidade o Estatuto ter sido constitucionalizado no Brasil; hipótese essa que, se correta, leva à superação de todas as inconstitucionalidades não nucleares que ele eventualmente contivesse, uma vez que se trata agora de norma constitucional, com a capacidade de derrogar as normas que lhe são contrárias. Mas, mesmo assim, haveria problemas, uma vez que as inconstitucionalidades nucleares não teriam sido sanadas mesmo nesse caso. Como visto, caso haja inconstitucionalidade no Estatuto, e caso ela seja referente a algo tão central ao seu funcionamento, de modo que, sem a norma em questão, o Estatuto de Roma perca completamente sua razão de ser, todo ele acaba sendo contaminado pela invalidade, conforme a teoria da inconstitucionalidade por arrastamento. Desse modo, ele por inteiro deve não ser aplicado. Essas são sempre hipóteses. Pode ser que o Estatuto seja plenamente compatível com a ordem constitucional vigente. Deve ser feito ainda um cuidadoso estudo a respeito. Deve-se ter sempre em mente, frise-se, que essa análise deve ter em mente a Constituição em si, e não a construção da paz e da segurança internacional como um todo. Senão, o que se terá serão concessões inadmissíveis, amigas do arbítrio e da violação de direitos – e não avanço algum.

13 REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. Manual de direito internacional público. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. ALEMANHA. Grundgesetz (1946). Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2012. ALEMANHA. Bundesverfassungsgerichtshof. BVerfGE 113, 273. Reclamante: D. Reclamados: Bewilligungsentscheidung der Justizbehörde der Freien und Hansestadt Hamburg vom 24. November 2004 - 9351 E - S 6 - 26.4 – e Beschluss des Hanseatischen Oberlandesgerichts Hamburg vom 23. November 2004 - Ausl

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7 MAKING OFF A 4ª Semana de Direitos Humanos – Planejamento e Organização

OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA E A IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS Ana Paula Althoff Graduanda do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do Observatório de Direitos Humanos da UFSC

INTRODUÇÃO Os direitos humanos exprimem uma relação entre o ser humano e a sociedade e entre os próprios seres humanos. Direitos humanos são os direitos que toda pessoa tem por simplesmente ser um ser humano. Existe uma diversidade de direitos, a maioria aplicada a certo grupo de indivíduos. Contudo, os direitos humanos são os únicos aplicados a todo ser humano, isto é, eles são universais. Esses direitos podem ser encontrados na Declaração Universal de Direitos Humanos, o documento mais aceito no mundo sobre o assunto, assinado após a catastrófica Segunda Guerra Mundial. Ao todo, são trinta artigos que compõem a Declaração, os quais defendem que toda pessoa deve ter a sua dignidade respeitada e a sua integridade protegida, independentemente da origem, raça, etnia, gênero, idade, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso ou convicção política. Toda a pessoa deve ter garantido seus direitos civis (como o direito à vida, segurança, justiça, liberdade e igualdade), políticos (como o direito à participação nas decisões políticas), econômicos (como o direito ao trabalho), sociais (como o direito à educação, saú634

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de e bem-estar), culturais (como o direito à participação na vida cultural) e ambientais (como o direito a um meio ambiente saudável). Nos últimos anos, com o objetivo de promover e proteger os direitos humanos, observamos a atuação de numerosos agentes que têm implementado atividades no campo da educação em direitos humanos. Dentro dessa perspectiva, o Observatório de Direitos Humanos versa sobre integração multidisciplinar, unindo o conhecimento acadêmico e científico a comunidade através da divulgação desta diversidade na Semana de Direitos Humanos, nos seus respectivos Anais e nas ações de cidadania ocorridas durante o ano de 2013. O Observatório de Direitos Humanos propõe, por meio da Semana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, fomentar a divulgação dos demais projetos de extensão e iniciativas extensionistas da UFSC e da comunidade local e regional em prol dos direitos humanos. A Semana de Direitos Humanos, com base no modelo europeu, é promovida pelo Observatório de Direitos Humanos, que está inserido em uma Universidade de expressão regional e nacional, com o intuito de reunir, num espaço democrático, atores da sociedade civil, da comunidade universitária, dos movimentos sociais, para juntos, pensar ações em prol dos direitos humanos. Neste sentido, o Observatório de Direitos Humanos propõe-se a integrar, por meio do evento Semana de Direitos Humanos da UFSC, as iniciativas extensionistas realizadas dentro e fora da universidade em prol da promoção e defesa dos direitos humanos, reunindo atores sociais, estudantes e docentes de todas as áreas do conhecimento, visando por meio da divulgação conjunta, ampliar a participação de todos em projetos semelhantes. A Semana de Direitos Humanos não é, todavia, o único projeto de extensão do Observatório, que realiza ao longo do ano, diversos seminários e palestras visando promover os direitos humanos em seus mais variados temas e perspectivas.

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Os resultados obtidos com a Semana de Direitos Humanos são reunidos nos Anais do evento. Os Anais da Semana de Direitos Humanos é outro projeto de extensão que é realizado após a conclusão dos trabalhos da Semana de Direitos Humanos. Os Anais contêm todos os textos produzidos durante o evento, artigos de pesquisadores locais e convidados, exposição fotográfica realizada durante o evento e bastidores, entrevistas, opiniões, críticas e depoimentos dos voluntários que trabalharam no evento. Os Anais da I, da II e da III Semana de Direitos Humanos podem ser vislumbrados no site www.direitoshumanos.ufsc.br

JUSTIFICATIVA O Observatório de Direitos Humanos da UFSC foi criado em 2010, quando a I Semana de Direitos Humanos celebrou o aniversário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Neste ano de 2013, o Observatório se propôs a refletir sobre a Construção da Paz e Segurança Internacional. A concepção de segurança internacional, que era entendida como o uso da força militar contra outros países, alterou-se drasticamente nas últimas décadas. Novos atores, novas agendas e novos parâmetros incorporam o atual entendimento sobre segurança internacional. A construção da paz, uma estrutura de vários níveis e que deve ser construída dentro e fora das nações, é tema pertinente no sistema global. O empenho para a edificação de uma paz sustentável, e não apenas de uma situação de ausência de guerra, é grande entre os pesquisadores, organismos internacionais e os Estados, ao quais necessitam criar condições favoráveis para o desenvolvimento humano sustentado, para amparar os direitos básicos do homem. Nem todos têm consciência de que possuem esses direitos ou da complexidade de assuntos que decorrem deles. Nesse sentido, evitar que se transformem em meros conceitos, limitados à teoria, as pessoas devem refletir tanto individualmente como em grupo e estabelecer vínculos entre os Direitos Humanos e sua vida. Partimos da 636

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base que eles só se tornam reais se a população for bem informada e de que só são eficientes se ela sabe como agir no caso de violação desses direitos. É essa relação de convivência humana que precisa ser revista, para que possamos caminhar na perspectiva de construir uma sociedade humana, livre, igualitária e justa, e quem sabe, num futuro próximo, contribuir para que em nosso planeta exista paz. Vista da grande importância, nossa proposta foi realizar o projeto Semana de Direitos Humanos atingindo os docentes da UFSC e os discentes de pós-graduação e graduação. O projeto também visou à integração entre as linhas de pesquisa em direitos humanos e os programas de pós-graduação com área de concentração em Relações Internacionais da UFSC. O tema da IV Semana de Direitos Humanos, que ocorreu em junho deste ano, foi a Construção da Paz e Segurança Internacional. Para tal, foi feita uma reflexão em torno do processo de consolidação dos direitos humanos em âmbito internacional, através da participação de historiadores, internacionalistas e pesquisadores da área do Direito, Economia, Ciências Sociais, Artes e Sociologia. O evento justificou-se por seu impacto social e relevância internacional, sendo um dos temas da agenda internacional brasileira, bem como uma das metas de desenvolvimento do milênio: a promoção e efetivação dos direitos humanos no plano nacional, regional e local. Assim, a quarta edição da Semana de Direitos Humanos da UFSC possibilitou este espaço de diálogo entre a comunidade universitária, a sociedade civil e seus diversos atores sociais, fomentando a divulgação e a reflexão dos direitos humanos ao público atingido pela Semana. Por se tratar de um assunto interdisciplinar, envolve pós-graduandos, graduandos e professores de Administração, Agronomia, Artes Cênicas, Ciência e Tecnologia Agroalimentar, Ciências Biológicas, Ciências Contábeis, Ciências da Computação, Ciências Econômicas, Ciências Sociais, Cinema, Design, Direito, Educação Física

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(bacharelado e licenciatura), Enfermagem, Engenharias, Farmácia, Filosofia, Geografia, História, Jornalismo, Letras - Língua Alemã, Letras - Língua Espanhola, Medicina, Nutrição, Oceanografia, Odontologia, Pedagogia, Psicologia, Química, Relações Internacionais e Serviço Social. A Semana de Direitos Humanos da UFSC abrangeu a sociedade civil como um todo, através dos servidores da UFSC e da comunidade que vive em torno da universidade. No tocante à pós-graduação, a IV Semana de Direitos Humanos da UFSC visou aproximar os programas de pós-graduação com área de concentração em Relações Internacionais da universidade, em especial os programas de mestrado em Direito (área de concentração em Relações Internacionais) e em Relações Internacionais.

OBJETIVOS, RECURSOS E METODOLOGIA O evento se propôs a despertar a comunidade universitária e a sociedade civil para o “pensar na promoção e efetivação dos direitos humanos”, visando fomentar o “pensar em soluções compartilhadas”. A IV edição da Semana de Direitos Humanos propiciou um importante debate em torno da temática, ao reunir pesquisadores dos mais diversos centros de pesquisa, nacionais e internacionais, além de profissionais com atuação em órgãos públicos e organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Deste modo, como objetivos específicos, a Semana tem o intuito de promover a integração entre os grupos de pesquisa e extensão em direitos humanos atuantes na UFSC; possibilitar reflexões éticas e valores morais; integrar os projetos que abordam a temática dos direitos humanos na UFSC e demais universidades catarinenses e brasileiras; apresentar os instrumentos internacionais e nacionais de proteção aos direitos humanos à comunidade; possibi-

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litar a integração entre os programas de pós-graduação em Relações Internacionais e Direito da UFSC, que possui área de concentração em Relações Internacionais; respeitar as diferenças em suas diversas dimensões; comprometer-se com a construção da cultura de paz na comunidade; promover a compreensão da história da construção dos direitos humanos tanto nacional quanto internacionalmente; aproximar os professores com linhas de pesquisa em Direito Internacional dos Direitos Humanos; refletir sobre o novo conceito de segurança internacional e a construção da paz para a efetivação dos direitos humanos no mundo. Observando os objetivos, algumas atividades foram propostas e realizadas pelo projeto. Entre elas, o Observatório promoveu debates, palestras, seminários, mesas-redondas e minicursos sobre a temática, com professores e profissionais da área qualificados; reuniu nas diversas atividades acadêmicas professores dos programas de mestrado em Direito (área de concentração em Relações Internacionais) e Relações Internacionais da UFSC, objetivando fortalecer a linha de pesquisa em Direito Internacional dos Direitos Humanos e a integração entre os dois programas e possibilitou aos diversos grupos de dança, fotografia, música, artes em geral, educação física, dentro outros, apresentar e divulgar seus projetos em prol da comunidade. Para que tudo ocorresse, foram necessários recursos, com infraestrutura humana e física. O projeto foi composto atualmente de 8 (oito) bolsistas de extensão, 6 (seis) estudantes voluntários e as professoras responsáveis por coordenar o projeto, assim como demais professores e estudantes da UFSC que participam do evento anualmente. Além disso, contou-se com um gabinete compartido com outro docente com acesso à internet e espaço para reuniões, com material de escritório e alguns móveis. A UFSC disponibilizou auditórios do Centro de Ciências Jurídicas e do Centro Socioeconômico, possibilitando a integração entre os pesquisadores dos dois centros de ensino da Universidade.

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A metodologia deste projeto consistiu no planejamento das atividades da Semana de Direitos Humanos, ao longo dos meses que antecedem o evento e na seleção, organização, edição e publicação dos Anais do evento, nos meses posteriores. O Observatório foi separado em Comissões, para melhor atender a demanda do evento. São elas: a Acadêmica, a de Cidadania, a de Marketing, e a de Parcerias. A Comissão Acadêmica é responsável por contatar palestrantes, organizar as oficinas com os grupos de estudos da UFSC, realizar debates e minicursos, planejar a palestra de abertura e de encerramento da Semana de Direitos Humanos. Posteriormente é responsável pela seleção dos textos e material a ser utilizado na publicação dos Anais do evento. A Comissão de Cidadania organiza as atividades que serão realizadas junto à sociedade, promovendo a interação entre os alunos e a comunidade. Também é responsável pela parceria do Observatório de Direitos Humanos com projetos dos cursos da UFSC, como odontologia, educação física, enfermagem, entre outros, abrindo portas para que outros projetos possam alcançar um público diversificado. Após o evento, é responsável pelo relatório das atividades, pelas fotos e pelas entrevistas dos participantes, que serão publicados nos Anais do evento. A Comissão de Marketing tem a responsabilidade de atualizar as mídias sociais e o website do evento, cuidar da parte gráfica e confecção de cartazes e material de divulgação. Após o evento, é responsável pela diagramação dos textos, fotos e transcrição das gravações que serão utilizadas na publicação dos Anais do evento. A Comissão de Parcerias estabelece acordos entre o Observatório e sujeitos públicos ou privados, individuais ou coletivos, como órgãos públicos, empresas privadas, organizações internacionais, ONGs, órgãos de fomento, entre outras entidades para a realização do evento. Junto com a Comissão de Cidadania, desenvolve parcerias com empresas privadas para a concretização das ativida-

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des. Busca apoio dos órgãos públicos, como o MRE, de organizações internacionais, como a Cruz Vermelha, e ONGs, como a Casa São José.

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS Na quarta edição da Semana de Direitos Humanos, que ocorreu nos dias 3 a 5 de junho de 2013, o tema abordado foi a Construção da Paz e Segurança Internacional. O evento é composto por atividades acadêmicas e de cidadania, que inclui palestras, mini cursos e capacitações durante todo o ano e atividades que proporcionam maior integração entre o mundo acadêmico e a comunidade. Desde a parte de logística até o contato com palestrantes e a comunidade, as atividades ofereceram experiência e estímulo a dar continuidade ao projeto, em busca do aperfeiçoamento deste evento que já é reconhecido pelos acadêmicos e docentes da UFSC. Os resultados alcançados pelas comissões são muito satisfatórios, pois envolvem um público eclético interessado pelo evento. Neste ano, temas como “a paz como imperativo de proteção aos direitos humanos”, “conflitos armados e intervenções humanitárias”, “refugiados no mundo e no Brasil”, “tráfico de pessoas” e “segurança internacional e meio ambiente” foram tratados no evento. Assim, contamos com palestrantes de renome do Brasil e de outros países, como Dra. Soledad García Muñoz (Instituto Interamericano de Direitos Humanos – Escritório América do Sul – Uruguay), Dr. Andrés Ramirez (ACNUR/Brasil) e Dra. Susana Borràs Pentinat (URV - Espanha). Além da parte acadêmica, o Observatório de Direitos Humanos também desenvolveu atividades de cidadania durante o ano, em que houve a interação entre os estudantes da universidade com projetos de alunos da própria universidade, projetos da comunidade e entre servidores públicos. As atividades desenvolvidas foram: doação de sangue, parceria com o Núcleo de Estudos da Terceira Idade

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(NETI) e o grupo de Dança El Tango, capacitações em Direitos Humanos aos professores, líderes comunitários e estudantes da UFSC e doações à creche “Céu da Dona Ana”.

DOAÇÃO DE SANGUE Nas últimas décadas, a ciência avançou a passos largos. Contudo, ainda não foi encontrado um substituto para o sangue humano. O sangue é um transportador de substâncias necessárias para o bom funcionamento corporal. Todos os procedimentos médicos que necessitam de transfusão sanguínea precisam dispor de um fornecimento regular e seguro de sangue. Todos os dias ocorrem acidentes, cirurgias e queimaduras violentas, assim como portadores de hemofilia, leucemia e anemias necessitam de transfusão de sangue. Por isso é essencial que os bancos de sangue sempre estejam abastecidos. Doar sangue é simples, rápido, sigiloso e seguro, já que todo o material utilizado é descartável e a coleta é feita por pessoal capacitado. A coleta de sangue constitui na retirada de aproximadamente 450 ml de sangue e apenas uma transfusão pode salvar até 4 (quatro) vidas! 642

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Além de beneficiar outro indivíduo, no estado de Santa Catarina, a lei nº 10.567, de 7 de novembro de 1997, afirma que o doador de sangue fica isento do pagamento de taxas de inscrição a concursos públicos realizados pelo estado, equiparando-se a doador de sangue para os efeitos desta lei, a pessoa que integre a Associação de doadores e que contribua, comprovadamente para estimular de forma direta e indireta, a doação. Além disso, o doador é incluído entre os que prestam serviços relevantes à sociedade e à Pátria. Segundo o HEMOSC, se cada pessoa saudável doasse sangue espontaneamente pelo menos duas vezes ao ano, os Hemocentros teriam hemocomponentes suficiente para atender toda população. Na IV Semana de Direitos Humanos, o Observatório realizou a terceira Doação de Sangue ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU). Em parceria com a Comissão Organizadora da Gincana do Centro Socioeconômico, voluntários, bolsistas e calouros realizaram a doação nos dias 27 e 28 de março e 11 de abril durante o período matutino. Esta ação tem o objetivo de mostrar que ninguém está livre de precisar de uma transfusão de sangue, por isso a doação voluntária é indispensável para banco de sangue dos hospitais. Além disso, durante o período das férias, há poucas doações, fazendo com que o estoque de sangue diminua drasticamente. Como resultado podemos observar a integração entre os alunos por esta grande causa, fazendo com que esta ação se torne contínua. Além disso, muitos estudantes afirmam que não tinham conhecimento do local onde pode realizar a doação, como ela ocorria, quais os procedimentos, ou que não sabiam que os instrumentos eram descartáveis. Desta forma, foi desenvolvida a ideia de que o ato de doar sangue é uma atitude necessária, de solidariedade, cidadania e amor.

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TANGO E OS DIREITOS HUMANOS A dança, assim como as demais manifestações artísticas, é uma via de expressão capaz de representar diferentes ideias. Na Argentina, o tango tornou-se sinônimo de paixão, melancolia e liberdade. A Liberdade, tanto de expressão, de pensamento quanto qualquer outra, é um dos principais direitos dos cidadãos. Na cidade de Buenos Aires do ano de 1900, imigrantes, “gaúchos” e ex-escravos viviam em más condições de higiene e trabalhando com míseros salários. O surgimento do tango ocorreu pela grande necessidade desse grupo, que privados de todos os seus direitos básicos, buscaram sua liberdade com o único recurso de que eram realmente donos: seus corpos. O tango é dançado em todo o mundo e como consequência declarado patrimônio da humanidade. Sobre o seu surgimento se há dito todo o tipo de coisas, a mais conhecida é a versão na que se dançava somente entre homens e por prostitutas, porque as mulheres de “boa família” dançavam somente as danças europeias. Mas o tango se dançava também pela periferia dando início a uma dança popular, completamente original, uma ótima herança cultural. O tango é uma dança de caráter marcadamente social o que o torna um espaço privilegiado de encontro, comunicação e expressão. Tango é uma prática aberta à liberdade individual e à criatividade. Nos dias atuais, questões relativas à terceira idade vêm ganhando importância, já que o processo de envelhecimento populacional vem crescendo nos últimos anos. “Mexer o esqueleto” é uma tarefa para todas as idades. A dança é uma ótima opção para pessoas da terceira idade. Encontram-se estreitas relações entre a dança, a qualidade de vida e o idoso. É uma atividade que promove o bem-estar. As contribuições para a saúde física e mental, como ganhos ligados à força, ritmo, agilidade, equilíbrio e flexibilidade são grandes. Elas podem retardar as doenças e a dança muitas vezes é recomendação médica para amenizar sintomas de doenças como hiper644

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tensão, obesidade, osteoporose, depressão e problemas de memória. Na dança, as pessoas de terceira idade também estimulam a mente, a atenção, a concentração e a memória. Além disso, a prática diminui o stress e a ansiedade, além de melhorar a autoestima. Entre as atividades confirmadas está a aula de tango, uma reedição da atividade de muito sucesso da Semana realizada na primeira e segunda edição, juntamente com o Núcleo de Estudos da Terceira Idade. O Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI) há 30 ANOS abre um mundo de conhecimentos. Os objetivos do Núcleo são ampliar e sistematizar o conhecimento da gerontologia; formar recursos humanos nos diversos níveis; manter atividades interdisciplinares de ensino, pesquisa e extensão; divulgar e desenvolver ações institucionais e interinstitucionais; assessorar entidades na organização de programas de valorização do idoso; oferecer subsídios para uma política de resgate do papel do idoso na sociedade brasileira e realizar treinamentos, palestras e consultorias na área da gerontologia. O objetivo da iniciativa foi alcançar os mais variados grupos e promover a integração entre os graduandos e os alunos da terceira idade. Além disso, o intuito da Comissão de Cidadania foi integrar as diferentes atividades de educação e saúde desenvolvidas com as pessoas idosas no âmbito do NETI e da UFSC promovendo um espaço de animação e sociabilidade. Como resultado das outras atividades realizadas com o NETI, a iniciativa teve uma boa recepção pelas alunas, que gostaram muito da ação e disseram estar dispostas a participar novamente do evento.

DOAÇÃO À CRECHE “CÉU DA TIA ANA” Uma creche é um espaço assistido, em que pedagogos responsáveis administram a rotina da criança promovendo o desenvolvimento cognitivo e motor. Muitos pais utilizam os serviços da creche por motivo de trabalho.

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Atualmente, há 1,4 milhão de crianças em creches no País. A maior parte está em estabelecimentos públicos e cerca de 500 mil estão nos berçários, como a unidade é chamada em escolas particulares. Deixar a criança em uma creche pode ser importante para o seu desenvolvimento. Estímulos com música, cores e brincadeiras, além da socialização, são as bases da educação infantil. As creches têm um papel fundamental no aprendizado e no desenvolvimento dos indivíduos. Nos dias de hoje, infelizmente, várias creches necessitam de doações para manterem seus serviços. O ato de doar é de extrema importância, pois se auxilia os que necessitam de apoio e também é um incentivo para a tal ação seja praticada por outras pessoas. Contribuir com instituições é um ato de solidariedade. Tendo em vista a extrema importância do ato de doar, a equipe do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) realizou no dia 13 de março uma doação à creche “Céu da Dona Ana” situada no humilde bairro Dona Janaína, localizado no município de Biguaçu, Grande Florianópolis. A ação foi iniciada quando Fernando Damázio, estudante do curso de Relações Internacionais da UFSC, teve o interesse em doar uma geladeira, uma máquina de lavar roupas e um botijão de gás. O aluno procurou o Observatório, que entrou em contato com a creche, a qual atende crianças carentes da comunidade. A instituição é uma iniciativa da professora Ana, que auxilia aproximadamente 10 famílias. Atualmente, atende 28 crianças e mantém a instituição apenas com doações, sem cobrar nada dos pais dos meninos e meninas que frequentam a creche, nem recebendo apoio financeiro do município. Observando tal situação, participantes do Observatório de Direitos Humanos da UFSC auxiliaram na doação dos eletrodomésticos, além de um aspirador de pó que posteriormente foi arrecadado, a uma instituição que há 14 anos oferece apoio pedagógico e cuidados às crianças do bairro. No mês de junho e outubro, o Observatório realizou novas doações. Tendo em vista as necessidades da instituição e a grande 646

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importância da doação para que a iniciativa prossiga, vários itens, como roupas (mais de 60 itens), comida (mais de 105 quilos) e material escolar foram arrecadados. Tudo isso com o apoio dos Centros Acadêmicos, como o de Relações Internacionais e o de Direito, e parceria com a Ação Júnior, empresa júnior do Centro Socioeconômico, como ocorreu em edições anteriores do evento. Para o mês das crianças, o Observatório criou o projeto “Adote uma Criança”. Voluntários entraram em contato com o Observatório com o intuito de participar do projeto. Ele consistia na arrecadação de kits para as crianças. Cada criança recebeu um kit que continha: material escolar (caderno, borracha, lápis de escrever e giz de cera), material de higiene pessoal (escova de dente, toalha de rosto) e um brinquedo individual. Foi também durante o projeto que materiais escolares foram arrecadados para a creche.

CAPACITAÇÕES Pela primeira vez, o Observatório de Direitos Humanos realizou capacitações aos funcionários que estão em estágio probatório na UFSC, para graduandos, servidores

e também com a comunidade a partir de Conselhos Comunitários. Houve mais de 5 capacitações e as temáticas envolvendo casos atuais sobre direitos humanos. Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: Construção da Paz e Segurança Internacional

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O objetivo dos Conselhos Comunitários é criar uma comunicação e um relacionamento permanente entre a comunidade e programar projetos que contribuam para o desenvolvimento socioeconômico do município. Tendo em vista tais objetivos, o Observatório de Direitos Humanos, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos, realizou uma capacitação em liderança em direitos humanos. O Brasil tem passado por um processo de expansão do ensino superior. Mas, para isso, é necessário que este crescimento venha acompanhado a uma crescente qualidade da formação dos professores. O ensino superior ganhou mais importância e mais responsabilidade em relação à inovação e ao desenvolvimento econômico. Deste modo, as capacitações oferecidas pelo Observatório tiveram a finalidade de auxiliar na formação de bons professores, e, consequentemente, de uma geração de estudantes qualificados, necessários parra o crescimento do país em todas as esferas.

EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA Seguindo a mesma ideia dos eventos anteriores, a exposição de fotos tem como objetivo conscientizar o maior número possível de pessoas sobre a importância dos direitos humanos e como ele é fator comum no dia a dia dos indivíduos. A edição teve como intuito principal informar a comunidade acadêmica a respeito da situação da população onde ocorrem conflitos armados e intervenções humanitárias. Devido ao grande objetivo da exposição, a exposição permaneceu durante os três dias da IV Semana de Direitos Humanos para que, além dos acadêmicos inscritos no evento, as demais pessoas possam prestigiar a mostra fotográfica. O local escolhido foi o hall da Biblioteca Universitária e do CSE, em que há grande circulação de pessoas. O objetivo principal dessas exposições vai além da conscientização sobre direitos humanos, mas também de mostrar que não é 648

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necessário ser um fotógrafo profissional para presenciar situações em que os direitos humanos são violados ou defendidos e que pessoas comuns têm o poder de mostrar e até mesmo ajudar quem possui seus direitos e liberdades reprimidos.

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CAMISETA DO OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS

Durante o primeiro semestre de 2013 o Observatório teve como bolsistas dois graduandos em Design pela UFSC, Jean Franco e Fernando Vargas. Enquanto estiveram na equipe, foram eles os responsáveis por toda a parte de arte, divulgação e comunicação do Observatório.

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S

Dentre as atividades por eles desenvolvidas, destaca-se a camiseta do Observatório de Direitos Humanos, a qual foi criada para reforçar a identidade visual e facilitar a identificação de bolsistas, voluntários, coordenadores e membros do Observatório de maneira geral, e foi usada por toda a equipe durante a IV Semana de Direitos Humanos.

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EQUIPE

Danielle Annoni Juliana Lyra Viggiano Barroso Amandha Grübel Nunes Ana Paula Althoff Camila Dabrowski de Araújo Mendonça Carolina Nascimento Santana Caroline Scotti Vilain Claudemir da Silva David Fernando Santiago Villena Del Carpio Eduarda Ramos de Souza Fernando Duarte Vargas Giana da Silva Wiggers Isadora Durgante Konzen Jade Philippe dos Santos Jean Lucas Franco

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Krisstarah Dayane Lobo Letícia Ferreira Haines Lívia Campos Silva de Souza Maria Luísa Lange Mariana Serrano Silvério Priscilla Batista da Silva Priscilla Camargo Santos Tatiana de Andrade Goulart Thyana Carolina Spode Conrad Victor Hugo Lopes Organização Priscilla Batista da Silva Jade Philippe dos Santos Maria Luísa Lange

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Realização:

Observatório de Direitos Humanos UFSC

Apoio:

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