A Intencionalidade nos processos criativos

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A Intencionalidade nos processos criativos1

Este artigo tem por intuito debater a intenção autoral tendo por base os processos criativos de obras artísticas. Não utilizaremos nenhum relato criativo ou obra artística em específico, mas nos voltaremos para a análise do que considero ser apenas um problema de confusão com o termo “intenção”, diante do consenso arbitrário que faz Jacques Derrida com o conceito referido, sem ao menos expor o problema, tornando-o essencialmente um dogma para sua teoria comunicativa. Gostaria de principiar por uma distinção básica. Ao narrar o processo de uma obra artística, um artista em específico não está a falar de sua obra em si. Há uma diferença substancial entre narrar os percursos para se chegar a “x”, e descrever como é “x”, em que o primeiro momento é um ato de gênese, e o segundo, um ato descritivo ou valorativo. Falar sobre as escolhas feitas para se chegar à instalação, ou de que modo utilizei o projetor para ter um resultado que esperava encontrar não é uma única e mesma coisa que dizer que minha obra tem um apelo por demonstrar a transformação das experiências que tive em minha cidade natal. A primeira coisa é um relato de meu percurso para alcançar minha intenção poética, a segunda é avaliar ou estabelecer juízos sobre minha obra. Assim, acredito que o processo aponta para um caminho específico, intencionado por mim, mas ele não nos diz que aquele é o único caminho para se chegar ao lugar determinado. Serei norteado pelo seguinte questionamento, que me coloco desde já: o que queremos dizer quando falamos sobre a intenção nos processos criativos artísticos? Acredito que esse assunto em especial gera algumas confusões e polêmicas, nos estudos das humanidades e das artes. Contudo, ao longo de minha análise, procurarei sustentar que o engano partiria do modo como colocamos a pergunta (“o que queremos dizer quando falamos sobre a intenção nos processos criativos artísticos?” ou “ao dizer intenção autoral nos escritos literários o que teríamos em mente?”), mais do que de uma dificuldade intrínseca em lidar com o conceito, o que acaba por torná-lo um dogma para as artes, teoria do cinema ou a teoria literária em geral. 1

Anésio Azevedo Costa Neto – PPG Arte UnB IdA/Vis. E-mail: [email protected] Trabalho apresentado como atividade avaliativa do primeiro semestre de 2011 (1º/2011) para a disciplina “Estética e teoria da arte”, sob a supervisão da profª Drª Maria Beatriz de Medeiros. Data de finalização: 19/06/11.

Para iniciar, proponho seguirmos o rastro deixado pelo texto de Jacques Derrida, “Acontecimento assinatura contexto”, no qual o autor, mediante uma abordagem desconstrucionista, pensa o caráter diferencial da linguagem e a sua unidade central, o signo. A leitura a partir do texto me deu a sensação de lidar com alguns equívocos, quanto à compreensão do conceito de ‘intenção’. Ao longo do texto, esforçar-me-ei por demonstrar uma distinção que acredito ser válida entre intenção e Intencionalidade, e, posteriormente, as características dos estados Intencionais. Tudo isso se tornará mais claro quando situarmos essa discussão no interior dos processos criativos, buscando fundamentar que compartilhar um processo visa, sim, um horizonte. Há a intenção do produtor numa determinada obra, e sua intenção é associada a um direcionamento para algo. Seria como a montagem de um filme, cuja justaposição de imagens em uma dada sequência, filmadas de uma dada forma, objetivasse a um plano em que a certeza tivesse em suspensão, e, nisso, seus espectadores o tomasse como um filme do gênero suspense. Contudo, buscaremos defender que esse direcionamento não necessariamente corresponde à um engessamento do efeito sobre os espectadores/público, no qual houvesse uma relação de causa e efeito determinada, o que acabaria por gerar uma confusão entre gênese e intenção autoral com a "natureza de x", que está aberta a vários significados.

INTENCIONALIDADE E PROCESSOS CRIATIVOS

Tal como um fotógrafo opera um recorte de uma cena para compor uma imagem, um poeta escolhe atentamente uma ou outra palavra para compor um verso, intencionando, ambos, efeitos de sentido em seus espectadores/leitores. O ato da escolha em si não representa a intenção, mas a intenção de algo determina a escolha de modos/meios para se realizar o que se intenciona. Contudo, a intenção é apenas uma das formas do que por nós será tido como “Intencionalidade”, compreendida por nós como um direcionamento para, ou acerca de, algum objeto ou estados das coisas no mundo. Dessa forma, haveriam vários estados Intencionais, tais como a crença, temor, desejo, esperança etc. Ora, se eu tenho uma crença é uma crença de ou sobre algo; se eu tenho um temor, da mesma forma há um direcionamento para ou acerca de alguns determinados objetos ou estados de coisas no mundo. Sendo a intenção uma forma da

Intencionalidade, é certo de que ela também seja direcionada. Dessa forma, intencionar 2

algo é pretender fazer alguma coisa no mundo. Intencionalidade e intenção são coisas distintas: essa é apenas uma forma de

Intencionalidade, tal como o desejo, crença, temor, esperança etc. Isso posto, gostaria de situar os estados mentais Intencionais no processo de criação de obras artísticas. Em um processo de criação o estado Intencional prevalente é o pretender e as intenções. Não que não imaginemos se, ou que duvidamos de alguma coisa ou que não desejamos que algo dê certo. Esses estados estão, sim, presentes em nossas ações criativas, contudo de forma secundária. Mesmo que nossa obra sustente dúvidas, desejos ou qualquer outra coisa nos espectadores, isso só ocorre porque pretendemos alcançar dúvidas, desejos ou qualquer outro sentimento naqueles. Ter dúvida de que um flash luminoso de uma câmera atrapalhe a ênfase pretendida num elemento em primeiro plano é diferente, supositivamente, de sentir dúvida quanto às nossas posições pessoais no mundo ao nos depararmos com uma fotografia de Steve McCurry sobre os refugiados afegãos. Portanto, situar os estados Intencionais nos processos criativos de obras artísticas é enfatizar a intenção direcionada das escolhas que fazemos, a fim de alcançarmos determinados efeitos de sentido em nossos espectadores. Contudo, algumas correntes filosóficas do século XX, marcadas pela tentativa de fundar o conhecimento como pluralidade, i.e., como o encontro dos distintos e plurais saberes, em contraposição à unidade cognitiva de um saber universalmente pretenso, postulam a intenção como mero ‘querer-dizer’ consciente, sendo reticentes quanto à ideia da intenção autoral. Para os seus representantes, a intenção configura como sendo uma eterna razão que funda os discursos, um “pra quê se diz?” sempre presente. Essas são características marcantes na filosofia estruturalista e pós-estruturalista, cujos filósofos representantes (Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze etc.) endereçam suas críticas à epistemologia moderna, tendo como intuito certa crítica ética à modernidade, ou seja, uma crítica ao modo de se fazer ciência e a relação do homem com a natureza. Ainda que essas sejam premissas fundantes, aquelas correntes filosóficas tiveram um período de intensa reflexão e diferentes posturas quanto ao filosofar. Os caminhos trilhados por seus representantes são distintos, seja na escrita, seja no modo como interpelam à favor do conhecimento como diferença. 2

Utilizarei caixa alta para dizer ‘Intencionalidade’, e caixa baixa para dizer ‘intenção’.

Nessa perspectiva, proponho uma compreensão inicial da particularidade da filosofia de Jacques Derrida, no que tange ao seu texto “Acontecimento assinatura contexto” do livro Margens da filosofia. O conceito de écriture (escritura) demanda uma multiplicidade cognitiva, que é articulada pela ‘diferença’. Para Derrida, a escritura não é um complemento à comunicação, mas é aquilo que torna a produção de sentido possível. Contudo, os sentidos não são fechados em si mesmo, homogêneos. São antes disseminados pela leitura que fazemos. Disso resultam as várias possibilidades interpretativas dos textos, ou obras de arte, não havendo um escopo intencional determinado, ou seja, um ‘querer dizer’ que funda, por parte do artista, uma razão de ser da obra. A estratégia de Derrida é marcada por uma escrita que se questiona constantemente de seus limites como produtora de um único sentido. Tanto que podemos perceber constantemente recursos literários como uma recusa em reconhecer determinações cognitivas. Em sua escrita: Frequentemente, a substituição de estratégias argumentativas por estratégias poéticas é justificada com a alegação de que não há uma linha nítida de separação entre o discurso filosófico e o literário, e de que uma palavra com uma sonoridade sugestiva ou imagem multifacetada – da espécie produzida por jogo de palavras – é uma estratégia tão legítima como qualquer uso mais tradicional da lógica. (ALLEN; SMITH, 2005, p.?)

O que é a diferença (différance) senão a irrupção de conceitos, senão ambíguos, multiperspectivos? Essa “estratégia poética”, por mais bela que seja no presente de sua inscrição, não reconhece os diferentes objetivos e ênfases da escrita. Imaginemos um cientista que, solicitado a desenvolver um extenso estudo sobre o bioma marinho fizesse o relatório desse estudo sem a intenção de que sua escrita fosse compreendida como – o que comumente se espera – de um tratado científico. Até onde sei, ele o escreve com a intenção de que qualquer pessoa tome seu texto escrito como um estudo científico, e não como um romance sobre um determinado bioma. Nesse contexto, a produção do sentido é estritamente científica, e torná-lo literário não seria condizente com o contexto da recepção do próprio texto. Nenhuma forma de escrita é idêntica, posto que necessitamos partir de distintas intenções a fim de configurar objetivos e ênfases distintas. Claro, para que as forma de escritas fossem idênticas, deveríamos apelar “ao raciocínio grosseiro de que ambas são forma de escritura” (ALLEN; SMITH, 2005, p.?).

Na esteira do pensamento de Derrida naquele texto, proponho compreender, agora, o que o autor entende por “intenção”. Já que Derrida está fundando uma modalidade de escrita que não é mero produto da comunicação oral, mas um ato significante que permite conhecimentos plurais, ele tem de abrir mão do ‘contexto’ como fundador de um logos, motivo da produção da escrita, destruindo a escrita como mera referência a um autor que ‘quer dizer’ algo determinado. Nessa perspectiva, a escrita seria mero produto de uma ausência. Essa referência a uma ‘verdade’ por parte do autor do discurso é o que o filósofo denomina de ‘intenção’: Fazem parte deste pretenso contexto real um certo ‘presente’ da inscrição, a presença do escritor que a escreveu, todo o ambiente e o horizonte da sua experiência e sobretudo a intenção, o querer-dizer, que animaria num dado momento a sua inscrição. Pertence ao signo ser justamente legível mesmo se o momento da sua produção está irremediavelmente perdido e mesmo se eu não souber o que o seu pretenso autor-escritor quis dizer com consciência e com intenção no momento em que escreveu, quer dizer, abandonou à sua deriva essencial. (DERRIDA, 1991, p. 358 – grifo meu)

Para Derrida, a autoria de um dado discurso seria dada no momento em que “seu pretenso autor-escritor” declara suas intenções de modo consciente. Contudo, como não é possível sermos conscientes de nossas ações e de nosso ‘querer-dizer’ todo o tempo, então a intenção não pode estar presente na enunciação. Discordo com Derrida, no que tange à sua interpretação do conceito de intenção, pelos seguintes motivos. Comecemos por um exemplo da fala comum para ilustrar as classes dos estados Intencionais. Ao falar “quero água” o que pretendo com isso? Será que ‘quero dizer’ que não “quero água” ou que quero outra coisa que não seja assemelhada com água? Penso que, se não houvesse um direcionamento para, ou acerca de, coisas ou estados de coisas no mundo, nossa comunicação diária estaria fadada à uma constante confusão. Ao dizermos que temos “medo de alguma coisa ou algo” o “de” já nos fornece a direcionalidade, assim como para a intenção ou o pretender. Como buscamos sustentar aqui, há uma diferença entre Intencionalidade e intenção, sendo essa uma das formas de Intencionalidade, que é caracterizada por um direcionamento para as coisas no mundo. Apenas algumas ações ou estados mentais apresentariam esse direcionamento (o nervosismo ou a ansiedade, que fazem parte da classe dos estados Intencionais, podem não ter um referência a alguma coisa em particular). Só que essa direcionalidade dos estados mentais não se deve exclusivamente

à linguagem, mas antes da percepção sensorial que temos do ambiente em nossa volta. Por isso mesmo, outras espécies animais também apresentam ações Intencionais que as direcionam para coisas ou estados de coisas no mundo. Um animal poderia emitir um grunhido característico de irritação ou temor, caso houvesse uma causa para tal, e logo poderíamos associar aquele grunhido àquela causa determinada. Portanto, a natureza dos estados Intencionais é antes biológica, do que propriamente linguística. Embora sejam biológicos, muitos fenômenos Intencionais podem estar associados à linguagem. No caso humano, em particular, isso fica reforçado, pois nossas intenções, muitas delas, são significadas pela linguagem. Contudo, esse significado presumido é “um desenvolvimento especial de formas mais primitivas de Intencionalidade” (SEARLE, 1995, p. 224). Nesse sentido, completa Searle, “a linguagem e o significado, ao menos no sentido que lhes é atribuído pelos seres humanos, surgiram bem tardiamente” (SEARLE, 1995, p.223). Dessa forma, ao associar a ‘intenção’ ao ‘querer-dizer’ Derrida, arbitrariamente, torna dependente o “pretender” e a “intenção”, ou seja, estados Intencionais, da linguagem, sobrepondo essa àquela. Se nos dirigimos ao mundo visando comportamentos, ou enunciações, com sentido, então devemos fazê-lo mediante a convenção e produção de sentido da linguagem comum. É a mesma coisa para um texto literário (obra de arte em geral): na gênese criativa, temos a intenção de que determinando grupo de pessoas, os espectadores/leitores, compreendam que o que escrevemos é um poema/romance, e é ai que reside o sentido de nossa ação. Outra arbitrariedade de Derrida se dá na sobreposição entre intenção e estados mentais conscientes. Se aceitarmos que os estados conscientes são aqueles sobre os quais nos detemos num momento específico, veríamos que: Muitos estados conscientes não são Intencionais – por exemplo, um sentimento súbito de exaltação – e muitos estados Intencionais não são conscientes – por exemplo, tenho muitas crenças sobre as quais não estou pensando no momento e nas quais posso nunca ter pensado (SEARLE, 1995, p. 3)

Existindo muitas crenças, ou coisas, “sobre as quais não estou pensando no momento” da enunciação de uma dada sentença, penso que a intenção não pode se resumir a um ‘querer dizer constantemente consciente’, acreditando que estados

conscientes são aqueles sobre os quais nossa atenção se detém. Se eu faço uma constatação como “o clima está ruim”, está claro que me detenho conscientemente em não aprovar o clima, mas, de modo não consciente, estou fazendo um juízo de valor contido de uma prescrição valorativa para climas que estejam naquela condição. Com isso, quero dizer que posso ter uma intenção consciente ao dizer que “o clima está ruim”, mas, talvez, sem ter a consciência de afirmar que meu juízo é, de fato, prescritivo para climas que estejam naquela condição.

CONCLUSÃO De posse desses preceitos, portanto, ressalto que a Intencionalidade nos processos criativos artísticos não é necessariamente um ‘querer-dizer’, em que engessemos a obra a fim de provocar um efeito determinado no público, mas sim uma direcionalidade. Intencionar nos processos criativos significa: apresentar uma estrutura x de signos com sentido ao público, produzido por um emissor, com uma determinada intenção para que aquele (o público) os reconheça como sendo um poema, e não uma lista de compras ou uma bula de remédio; um filme ficcional, e não um mero comercial ou filme documental; ou uma fotografia artística, e não meramente uma lembrança de férias. Contudo, há casos em que determinadas estruturas x de signos com sentido acabam por serem recebidas pelo público de modo distinto daquela intencionada por seus produtores. Esses casos são exceções muito curiosas, haja vista que levantariam outro problema: o da valoração de suas intenções: por terem sido estruturadas com outra intenção, diferente daquela pela qual foram recebidas, essas obras seriam falhas? Ou seria simplesmente uma falha de seu produtor? Tais questões demandariam mais tempo de análise, que não caberia aqui, em linhas gerais. Esses casos mereceriam uma atenção especial em outro momento propício. Assim, gostaria de deixar claro que nesse trabalho busquei propor que em todo processo de criação artístico há, sim, um norte, que não corresponde ao engessamento do efeito sobre os espectadores/público. A intenção não encerra o modo como o público deve responder à causa y, dada pelo autor, no momento da fruição pelo público. Não devemos confundir o ato da gênese criativa e a intenção autoral com a "obra em si", que está aberta a significados plurais. Se assim fosse, a fruição seria puramente mecânica e a

arte não teria razão de ser. Todo processo artístico possui uma direcionalidade, e é isso que caracteriza a intenção do artista.

Referência bibliográficas:

ALLEN, Richard; SMITH, Murray. “Teoria do cinema e filosofia” in: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do Cinema Vol. II. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005, págs.: 71-112. CARROLL, Noëll. “Ficção, não ficção e o cinema da asserção pressuposta: uma análise conceitual” in: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do Cinema Vol. II. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005, págs.: 69-104. DERRIDA, J. O animal que logo sou (A seguir). São Paulo: Editora UNESP, 2002. DERRIDA, Jacques. “Assinatura acontecimento contexto” in: Margens da filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1991. SEARLE, John R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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