A interação online a produção de sentido nos seriados de ficção científica: O caso de Babylon 5

June 20, 2017 | Autor: Andre Emilio | Categoria: Cultura Participativa, Narrativas Transmídia, Complexidade narrativa
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A INTERAÇÃO ONLINE E A PRODUÇÃO DE SENTIDO NOS SERIADOS DE FICÇÃO CIENTÍFICA: O caso de Babylon 51 André Emilio Sanches 2 Resumo: Babylon 5 foi um seriado de ficção científica lançado em 1993, inovador em muitos aspectos tanto do ponto de vista narrativo quanto do relacionamento de seus produtores com o público. Possuindo uma narrativa complexa para a época, marcada por diversos arcos de história, e sendo veiculado na mesma época em que a internet estava em sua infância, a maneira como o showrunner3 interagiu com o público, desde a criação de fóruns de discussão até o aproveitamento das ideias dos fãs, pautou a maneira como os seriados subsequentes passaram a entender a seu público, não mais como espectadores passivos, mas como fãs engajados. Com esse foco, o artigo busca entender como se deu essa parceria entre produtor e consumidores em uma época em que a internet não oferecia tantos recursos tecnológicos, bem como os seus efeitos duradouros e reflexos nas práticas de fãs e produtores nos dias de hoje. Palavras-Chave: Fã. Complexidade. Cultura Participativa. Transmídia. Franquia.

1. Introdução Desde a introdução dos conceitos de narrativas transmídia por Henry Jenkins em 2003 e posteriores ampliações e revisões dessas ideias, como as feitas por Derek Johnson para

franquias de entretenimento e Jason Mittell para narrativas complexas, tais conceitos tem sido aplicados de diversas maneiras tanto em produções contemporâneas à essas sistematizações como em obras anteriores, de modo a tentar explicar suas características principais de migração entre diversas plataformas de mídia, bem como as novas maneiras de se relacionar com uma audiência cada vez mais participativa. Muito embora esses conceitos sejam de maior aplicabilidade na análise de produções mais recentes, ou para aquelas já criadas em meio à era digital, há sempre um intento de se enquadrar produções mais antigas de sucesso dentro desses arcabouços teóricos com o objetivo de explicar o seu sucesso, ou mesmo fracasso, a exemplo do que Jenkins (2009) promove com o universo expandido da franquia de Guerra nas Estrelas, classificando-o como transmidiático, ainda que boa parte de seu processo de migração entre mídias tenha se dado 1

Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho de Análise de Processos e Produtos Midiáticos do IX Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura, realizado pelo PPG em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, em parceria com o PPGCom da ECA/USP, na Universidade de Sorocaba – Uniso – Sorocaba, SP, nos dias 26 e 27 de outubro de 2015. 2 Especialista em Redes de Computadores pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS) da UFSCar. E-mail: [email protected] 3 Na televisão norte-americana o showrunner é o produtor executivo responsável pelo funcionamento do dia-adia da produção de um seriado televisivo, combinando funções de roteirista, produtor e, às vezes, diretor. (JEAN, 2004).

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por meio de licenciamentos e produções independentes, com pouca ou nenhuma interferência por parte do criador da franquia e ainda que a maior parte do engajamento e produção dos fãs não tenha sido sancionado pelo criador da franquia, George Lucas. Mesmo que tal análise seja válida e dotada de significado, Derek Johnson alerta que, para essas grandes franquias, em especial as mais antigas, apenas a dimensão transmídia não é suficiente para explicar a totalidade do seu funcionamento tanto produtivo quanto de consumo, uma vez que estas teorias “são um tanto limitadas como paradigma para o entendimento de franquias nas suas dimensões histórica e discursiva” (JOHNSON D., 2009, p.29, tradução nossa) já que elas se embasam no fato de que “narrativas transmídia emergem de um ‘novo’ conjunto de relações formais e práticas produtivas possibilitadas pelas mídias digitais” (JOHNSON D., 2009, p.29, tradução nossa), práticas essas surgidas com o advento da web 2.0, após os anos 2000. Tal entendimento limita, embora não impeça, a aplicação desses arcabouços teóricos em franquias mais antigas que, porventura, não tenham com produções de sentido e conteúdo contemporâneos, porém tenham engajamentos e produções semelhantes realizadas de outras maneiras que não a digital, ou ainda que tenham estado presentes no início da era da internet, fazendo parte dos estágios iniciais do que hoje são as redes sociais. Em paralelo a essa visão temos as teorias de Steven Johnson (2005) sobre as mudanças na complexidade narrativa do entretenimento, entendendo-o como um sistema complexo e não verticalizado, aonde forças diversas e por vezes conflitantes interagem, causando e fazendo uso de mudanças tecnológicas que possibilitam novos tipos de entretenimento e de comunicação social, em última instância mudando a maneira como produzimos e consumimos cultura (JOHNSON, S. 2005, p. 11). Ou, como sintetiza Fátima Régis: As forças desencadeadas nesses sistemas operam em vários níveis e atingem diferentes áreas: evoluções tecnológicas que engendram novos tipos de entretenimento; novas formas de comunicação on-line que possibilitam o comentário do público sobre os trabalhos da cultura popular; mudanças na economia da indústria da cultura que estimulam que os programas sejam exibidos mais de uma vez; os anseios arraigados no cérebro humano que buscam recompensa e desafio intelectual, entre outros (RÉGIS, 2007, p.2).

O resultado dessa miscelânea de possibilidades, segundo os autores, revela uma nova tendência no entretenimento, a de que a audiência tem ficado mais exigente e participativa e

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os produtos de mídia tem se tornado mais complexos com o decorrer do tempo (JOHNSON S., 2005), o que nos leva sempre a analisar a evolução desses produtos sob a óptica das teorias mais recentes, ainda que as obras mostrem-se anacrônicas e, em parte desligadas de determinados conceitos, tais teorias poderão indicar aonde se deu sua evolução, e o que foi ganho ou perdido com isso. Dentro dessa visão, esse texto pretende prestar uma contribuição para a análise, indicando as possibilidades aonde o seriado de ficção científica Babylon 5 pode ter inovado em termos de formato e de conteúdo, dentro desses arcabouços teóricos, em especial no que diz respeito à complexificação da narrativa televisiva e à interação com a audiência, em uma época em ambos os conceitos eram novos e pouco compreendidos, inserindo-se assim nessa evolução.

2. Babylon 5 Babylon 5 é um seriado norte-americano de ficção científica criado pelo escritor e produtor J. Michael Straczynski, sob selos próprios, e que foi ao ar entre os anos de 1994 e 1998, tendo perdurado por cinco temporadas. Ambientada em um ponto futuro da história da humanidade, o seriado narra a história de uma estação espacial localizada nos confins do território humano que abriga as mais diversas raças alienígenas e coloca-se como palco de intrigas bélicas e diplomáticas entre esses poderes. Descrito como “um dos mais complexos programas na televisão, com vários arcos de história concomitantes e múltiplos personagens regulares” (SPELLING, 1996, tradução nossa), Babylon 5 foi lançado com um telefilme piloto em 1993, intitulado The Gathering, de aproximadamente 90 minutos que apresenta à audiência o palco dos acontecimentos, seus principais atores e abre as diversas lacunas que viriam a ser preenchidas pelas cinco temporadas subsequentes. Essas diversas lacunas foram a base para arcos de história com temáticas tão díspares quanto profecias, fanatismo religioso, tensões raciais, problemas sociais e ideologias políticas, de modo a criar um contexto tal que ecoasse as ações dos protagonistas bem como suas consequências, investindo majoritariamente no desenvolvimento das personagens, ou, nas palavras do próprio Straczynski: “oferecer uma abordagem adulta para Ficção Científica,

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e tentar fazer pelo gênero o que Hill Street Blues4 fez pelos seriados policiais” (STRACZYNSKI, 1996). Oriundo de seriados de ficção, fantasia e animação da década de 80, tais como Além

da Imaginação, He-Man e os Mestres do Universo, Straczynski acreditava que o insucesso de vários seriados de televisão residia tanto na falta de planejamento a longo prazo para seu desenvolvimento quanto na ausência de um retorno crítico por parte dos fãs no decorrer desse desenvolvimento, e não apenas no fim de cada temporada. Em uma tentativa de mudar esse panorama, planejou e vendeu Babylon 5 à Warner Bros Television como uma história fechada, constituída de cinco temporadas, bem como de alguns outros materiais complementares, na prática criando o equivalente a um romance na televisão, com começo, meio e fim bem definidos, aonde cada episódio seria análogo a um capítulo, mas ainda assim independente o suficiente para ter seu próprio arco dramático resolvido. Em um esforço para manter a coerência entre as histórias, e desenvolver de maneira satisfatória todos os arcos dramáticos, o criador do seriado também foi o responsável pelo roteiro de 92 de todos os 110 episódios, tendo também escrito os sete telefilmes, bem como criado alguns dos materiais extras que são considerados canônicos no universo narrativo. Muito embora tenha trabalhado com outros autores, Straczynski concentrou em si o esforço criativo no intuito de atingir as seis principais metas colocadas para uma bem sucedida realização do seriado: a) Deve ser ficção científica de qualidade; b) Deve ser televisão de qualidade; c) Deve conter uma abordagem adulta para ficção científica tal qual Hill Street

Blues foi para seriados policiais; d) Deve ter custos acessíveis; e) Não pode ser semelhante a nenhum seriado já visto na televisão; f) Deve apresentar não apenas histórias individuais, mas colocar essas histórias como parte de um pano de fundo mais abrangente. (SHANKEL, 2013).

Com esses objetivos colocados e a ideia do seriado comprada pela Warner Bros

Television para exibição em seu canal por assinatura PTEN5, ele se descortinou por suas cinco temporadas até 1998, englobando também outros produtos como livros, adaptações 4

No Brasil o seriado recebeu o nome de Chumbo Grosso. Estreou em 1981 nos EUA e é creditado como tendo sido o seriado que deu início à tendência, na televisão, de enredos múltiplos entrelaçados em vários episódios. (JOHNSON, S. 2005, p.65) 5 Prime Time Entertainment Network: Canal de TV pago vinculado à Warner Bros Television, uma divisão da Time Warner, criado em 1993 e finalizado em 1997, dando lugar à WB Television Network.

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literárias de seus episódios, revistas em quadrinhos, jogos de representação, alguns telefilmes e um seriado spin-off intitulado Crusade, que, dado ao caráter mais episódico de sua produção, incapacidade em apresentar conflitos complexos como seu predecessor, bem como desentendimentos entre o produtor e a nova rede de televisão que o exibia, a TNT6, não foi capaz de superar a primeira temporada. Mesmo após o cancelamento do seriado Crusade, uma série de outros produtos chegou a ser lançada, incluindo vários romances literários, servindo tanto de conclusão para o seriado cancelado como para elucidar pontos obscuros do seriado anterior, bem como histórias em quadrinhos, jogos de computador e jogos de representação de papéis (RPGs) que, de uma maneira ou outra avançavam e completavam a história do universo ficcional, deixando cada vez menos margem para dúvidas, especulações ou mesmo histórias paralelas acerca de fatos obscuros dos roteiros. Devido ao alto grau de continuidade e coesão obtidos e requeridos para que tais obras viessem a ser produzidas, seu número foi bastante pequeno, fazendo que com que sua produção finalizasse pouco tempo depois das últimas exibições de ambos os seriados, falhando, de certo modo, em dar continuidade maior ao universo narrativo. Dentre essa miríade de extensões, o que deve ser destacado é o fato de Straczynski ter participado direta ou indiretamente de todas elas, conferindo alto grau de canonicidade à todos os produtos, e, dessa forma, garantindo a coesão do universo narrativo.

3. Princípios Complexos Ao se aplicar as recentes teorias do campo da Cultura da Convergência à produções mais antigas, que, não obrigatoriamente, contemplariam todas as possibilidades na época de sua produção, deve-se tomar o cuidado de indicar o ponto aonde essas classificações de fato se aplicam e aonde elas tratam de situações para as quais as produções se mostram anacrônicas e não facilmente classificáveis. Para que Babylon 5 pudesse ser classificado como um produto transmidiático, sua narrativa deveria ser fragmentada em diversos meios e formatos (JENKINS, 2009), permitindo diferentes pontos de entrada na trama, que seriam independentes entre si, porém comporiam um mesmo pano de fundo para todo o universo narrativo, permitindo aos fãs escolher aqueles que mais lhes agradavam sem perder a noção de totalidade da história a ser contada, ou, mais especificamente: 6

Turner Network Television: Canal de TV pago vinculado a Turner Broadcasting System, por sua vez uma divisão da Time Warner.

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Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. (...) Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. (...) A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais consumo. (...) A redundância acaba com o interesse do fã e provoca o fracasso da franquia (JENKINS, 2009, p. 138).

Ainda que o universo de Babylon 5 disponha de vários desses elementos, diluídos em vários meios, como o seriado televisivo, os telefilmes, os romances literários, histórias em quadrinhos e mesmo histórias curtas publicadas pelo próprio criador da série, não é possível identificar pontos diferentes de entrada na trama que não o seriado televisivo. Como já mencionado, este foi criado com o intuito de ser um romance em cinco temporadas, aonde cada episódio, apesar de circunscrito em seus 50 minutos, seria tal qual um capítulo de um livro e, portanto, essencial para a compreensão do todo. Ainda assim, há que se mencionar que o controle criativo do universo sob a égide de J. Michael Straczynski adere à várias outras premissas de composição de um universo transmídia, como definições de canonicidade, projeto de longo prazo definido e interação com os fãs (JENKINS, 2009), que, da maneira rudimentar que a Internet permitia em 1994, tinha o objetivo de levar as opiniões e sugestões da audiência diretamente para o showrunner, sem o filtro do estúdio (JMSNEWS, 1996), interação essa que será explorada mais à frente de maneira mais aprofundada. No que tange ao conceito de franquias de mídia, Derek Johnson as define como “uma propriedade intelectual distribuída, cujo mundo imaginário se estende por diferentes espaços de mídia através de uma gama de linhas de produtos, estruturas criativas e outros nós de distribuição” (JOHNSON, 2009, p.25, tradução nossa). Dentro dessa visão, pode-se dizer que Babylon 5 funciona, majoritariamente, como uma franquia de mídias, visto que existe uma propriedade intelectual, e ela se encontra distribuída entre várias mídias e nós de distribuição, compondo uma grande linha de produtos que variam desde os narrativos, como um seriado

spin-off até os mercadológicos, como bonecos, brinquedos e guias de episódios. Entretanto, quando, mais a frente, Johnson entende que algumas das características principais das franquias de mídia incluem “mundos narrativos persistentes construídos não apenas pelas práticas dos produtores de mídia profissionais, mas também através das atividades dos consumidores nômades de mídia” (JOHNSON, 2009, p.29), somos obrigados

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a entender que, apesar da franquia Babylon 5 conter diversos produtos de mídia construídos, estes são exclusivamente o trabalho dos produtores profissionais, mais especificamente do

showrunner J. Michael Straczynski, que, por vezes trabalhou com sugestões de fãs, mas que, em última instância, a título de manutenção da coerência narrativa do material, decidiu com exclusividade o que existiria e o que não existiria no universo narrativo, dessa maneira limitando a interação da audiência, trabalhando, assim, mais na linha de um produtor transmídia. Em se tratando da complexidade narrativa do seriado, torna-se essencial, em um primeiro momento, elencar quais seriam as características a serem buscadas no sentido de identificar a presença ou ausência dessa complexidade. Dessa maneira, buscando as referências a esse respeito, Fátima Régis (RÉGIS, 2007), recordando Steven Johnson, elenca que alguns dos mais importantes atributos de uma narrativa para que esta seja considerada complexa são: a) Enredos Múltiplos: A presença de enredos múltiplos revela-se na apresentação de uma multiplicidade de personagens principais, bem como na presença de múltiplas tramas dominantes e de tramas menores que podem realizar-se em um ou mais episódios, podendo persistir durante o seriado inteiro; b) Arcos Dramáticos: A presença de uma variedade de arcos dramáticos enfatiza o item anterior, no sentido de que cada núcleo de personagens possui seus próprios arcos específicos, seguidos de arcos menores que se resolvem de maneira episódica; c) Setas Intermitentes: Melhor definidas como clichés narrativos, a autora sinaliza que conforme os seriados tonaram-se mais complexos o uso dessas setas diminuiu, aumentando o trabalho cognitivo necessário para se compreender a narrativa, e dessa maneira prendendo a atenção dos fãs por mais tempo, sob penalidade de perder algum detalhe importante cuja ausência impediria o total entendimento da trama; d) Uso de Redes Sociais: Intimamente ligado aos itens anteriores, a autora coloca que o aumento de enredos, tramas e o concomitante uso menor de setas intermitentes leva o fã a procurar o entendimento daquilo que tenha lhe escapado em outros fãs, em geral congregando-se em redes sociais, fato que acontece desde o início dos dispositivos de comunicação via internet, ou seja, aonde hoje temos o Facebook e os fóruns de discussão, em tempos anteriores havia os newsgroups e listas de discussão via correio eletrônico.

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Tomando por base esses itens elencados como constituintes de uma narrativa complexa, podemos então aplicá-los ao seriado em questão e verificar se este, como se supõe, compõe uma narrativa complexa ou então apenas apresenta algum grau de complexidade inerente. Dessa forma, segundo as métricas de complexidade narrativa encontramos alguns resultados significativos. No que diz respeito aos enredos múltiplos, Babylon 5 de fato traz à tona uma multiplicidade de tramas e personagens principais, que a todo momento se transmutam em secundários e retornam a condição de principais no decorrer dos cinco anos de seriado dependendo de sua importância para a trama geral naquele momento da narrativa. Ou, como cita a autora: Babylon 5 estabeleceu uma história contínua e intrincada, de uma grandiosidade até então inédita na televisão. Ao contrário da maioria das séries que a precederam, Babylon 5 exigia fidelidade absoluta de seus espectadores (RÉGIS, 2007, p. 4).

Quanto aos arcos dramáticos, enfatizando o que foi descrito no item anterior, a multiplicidade de tramas e personagens principais se revela na grande quantidade de arcos dramáticos presentes na história, ou, nas palavras do showrunner: A série consiste de um arco coerente de história de cinco anos, distribuído em cinco temporadas de 22 episódios cada. Diferentemente de outros programas da época, Babylon 5 foi concebido como um romance para a televisão, com um começo, meio e fim bem definidos, aonde, em essência, cada episódio seria um capítulo desse romance (JMSNEWS, 1993, tradução nossa).

Quanto à questão das setas intermitentes, a ausência de clichés conhecidos dos seriados de ficção científica da época, notadamente Jornada nas Estrelas, bem como a subversão de outros clichés, funciona como sério indicativo de que o seriado possuía poucas setas intermitentes, obrigando seus espectadores a concentrar-se em cada um dos episódios, como já citado anteriormente, e, em especial, ter atenção redobrada quando alguma seta intermitente conhecida era utilizada, ou como cita Johnson-Smith: (...) de qualquer modo, ao invés de repetidamente utilizar-se do artifício de viagens no tempo, Babylon 5 o usa com parcimônia, e aqueles que o experimentam não tem poder pra controlá-lo completamente (...) assim, de modo único na ficção científica televisiva, Babylon 5 dispõe, prediz, adverte e prefigura, e a audiência pode tentar extrair algum significado a partir de extrapolação, mas a ela nunca é dado o contexto total (JOHNSON-SMITH, 2005, p. 217, tradução nossa).

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Por fim, com relação ao uso de mídias sociais, lembrando que enquanto nos itens anteriores Babylon 5 se destaca na complexidade narrativa, neste atributo ela não exatamente falha, entretanto dado à época de sua criação e veiculação, a internet encontrava-se de tal forma incipiente que o uso de mídias sociais era bastante reduzido, sendo feito no âmbito de listas de discussão via correio eletrônico e, posteriormente, já próximo ao final do seriado, por um website, que funcionava mais como repositório de informações do que realmente como um ambiente de fomento a discussão. Ainda assim, é importante citar que o autor, mesmo antes do início da produção do seriado era bastante prolífico em postagens e comentários nesses ambientes, em geral tratando de temas de televisão e ficção científica, e que esse comportamento se manteve durante a produção de Babylon 5, levando às questões de interação que discutiremos à seguir.

4. Babylon 5 e o uso da Internet Podemos dizer que o uso da internet pelo seriado Babylon 5 começou muito antes do início de sua produção e veiculação, quando, em 1991, o criador do seriado, J. Michael Straczynski, que participava de maneira regular de vários fóruns de discussão online sobre ficção científica naquela época, como o GEnie7 e a Usenet8, começou a citar detalhes sobre seu próximo trabalho, nomeando de maneira mais específica estação espacial Babylon 5 (JMSNEWS, 1991) Quando do lançamento do seriado, o criador e principal roteiristas continuou com suas interações regulares com os fãs, ainda nos mesmos canais, e, uma vez que controlava um amplo espectro das questões produtivas, podia se dar o direito de deixar tais interações com os fãs refletirem e influenciarem na criação de conteúdo para a obra, de tal forma que os fãs consideravam-se muito próximos do produtor e do produto, tendo inclusive ideias bastante semelhantes a respeito de como ficção científica deveria ser produzida e conduzida, bem como que direção gostariam que o show como um todo tomasse e como arcos específicos de história ou personagens deveriam ser finalizados (KUPPERS, 2004).

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Foi um serviço online de troca de mensagens criado pela General Electric em 1985. Foi um dos precursores dos atuais fóruns de discussão e redes sociais. Encerrou suas atividades em 1999. 8 Também um dos primeiros serviços de discussão online divido em grupos e por assuntos. Teve início em 1979, nos computadores que interligavam as diversas universidades norte-americanas. Ainda hoje encontra-se em funcionamento, e com um tráfego de cerca de 25.000 mensagens por dia. É um conhecido reduto de grupos que optam por não fazer parte de tecnologias mais recentes como Twitter ou Facebook.

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Ainda que os fãs se deleitassem com a interatividade do criador, bem como com as discussões metatextuais presentes nos diversos fóruns de discussão, não há como negar a existência de uma certa tensão entre criador, criatura e consumidor no que diz respeito aos discursos sobre a qualidade da obra bem como sobre a história já predeterminada desde o início da produção. Ou seja, mesmo que mudanças e influências fossem possíveis, o grande pano de fundo já estava tecido, bem como os destinos dos personagens principais, deixando pouco espaço para manobras narrativas, ainda que elas existissem, mas sendo, em parte, suficientes para agradar uma grande maioria dos fãs, que, como dito, dado a qualidade do que estava sendo entregue, via pouca ou nenhuma necessidade de mudar os acontecimentos (KUPPERS, 2004). Mesmo assim, nem todas as interações eram produtivas ou desprovidas de críticas ao produtor, ao canal de televisão ou aos rumos que o seriado estava tomando. Em diversas oportunidades, um grupo de fãs descontentes com o desenrolar dos acontecimentos no seriado, ou mesmo incomodado com mudanças de horário de exibição por parte do canal exibidor aproveitavam o fato de Straczynski interagir com frequência com sua audiência para destilar sua insatisfação e ódio com relação ao que estava acontecendo, muitas vezes dando início à flame wars9 que perduravam por dias até que fossem necessários moderadores apagarem ou fecharem os tópicos de discussão com o objetivo de evitar insultos ou ameaças, até chegar ao ponto do autor estar sendo seguido virtualmente e criticado em qualquer lugar aonde emitisse sua opinião (PLUME, 2000). Outra situação que se criou devido à interação não mediada do showrunner com os fãs diz respeito às discussões acerca do metatexto do seriado bem como a sugestão, por parte dos fãs, de várias possibilidades de histórias e arcos dramáticos a serem seguidos. Tais discussões e sugestões tornaram-se tão frequentes e populares que, de acordo com Straczynski, mais de um roteiro em fase de pré-produção deixou de ser produzido ou teve de ser modificado de maneira significativa porque, no curso de algumas semanas, um fã postou ideias muito semelhantes àquelas que já estavam preparadas e sendo desenvolvidas para o seriado, de tal modo que mantê-las sem modificação poderia levar ao entendimento de que o produtor teria

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Dentro do contexto social da internet, flaming pode ser entendido como uma discussão acalorada entre membros de um mesmo grupo de discussões acerca dos assuntos ali compreendidos. Mais do que meramente uma discussão exaltada, uma flame war é uma troca de provocações entre múltiplos usuários, muitas vezes escondidos atrás do anonimato da rede, e que pode escalar para troca de ofensas e de ameaças reais se não for moderada de alguma forma (MOOR; HEUVELMAN; VERLEUR, 2010).

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aceito, ou pior, plagiado as ideias do fã em questão, podendo trazer problemas tanto para si quanto para a rede de televisão (JMSNEWS, 1996). Tais circunstâncias passaram a tornar-se tão comuns que o autor viu-se na obrigação de pedir aos fãs que evitassem usar aqueles canais de discussão para sugestões tão detalhadas, e que, ao menos durante a produção do seriado evitassem a produção de fan fictions que pudessem ir de encontro à histórias pré-estabelecidas, tanto com o objetivo de evitar que mais mudanças precisassem ser feitas quanto com a intenção de evitar que tais produções de fãs derivassem os arcos dramáticos para assuntos que pudessem, eventualmente, ser explorados em seriados ou produtos subsequentes, efetivamente limitando a participação dos fãs à discussões e indagações sobre o que de fato era produzido, mas deixando as conjecturas para ambientes mais informais (JMSNEWS, 1996). Ainda que tais medidas não tenham diminuído o interesse dos fãs pelo produto, ele levou a uma divisão, ainda que informal, desse grupo. Parte dele permaneceu fiel a produção como vinha acontecendo, inclusive consumindo outros materiais midiáticos que foram produzidos, como sagas literárias e revistas em quadrinhos, enquanto outra parte, mais reduzida e interessada no embate de ideias e com opiniões muito próprias sobre como alguns fatos dentro da ficção deveriam ter acontecido optaram por montar grupos de discussão e, posteriormente, websites paralelos para dar continuidade à tais práticas longe dos olhos tanto do autor quanto da rede de televisão que produzia e exibia o seriado, de certa forma retornando às práticas de fãs como estas haviam surgido, sem contato ou sanções por parte das forças produtivas. Tal racha entre o grupo de fãs gerou duas situações bastante específicas ao seriado. Por um lado, em meio à nascente onda de criação de websites dedicados na internet nos primeiros servidores que permitiam isso, os membros menos fiéis ao produtor, porém ainda interessados no universo narrativo, começaram a criar uma série desses sites com o intuito de propagar suas próprias ideias, organizando listas de episódios e propagando suas versões de como os diversos arcos dramáticos do seriado deveriam ser entendidos, ainda que buscassem, por vezes, informações do produtor, essas eram apenas tomadas como possibilidades e não como verdades definitivas. Por outro lado, o grupo que manteve-se fiel às discussões nos fóruns mais antigos não via necessidade de tais criações ou elucubrações, visto que todas as questões eram respondidas pelo próprio criador, que, afinal, era quem detinha a “palavra da verdade” acerca

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de tudo que acontecia naquela universo narrativo, não havendo assim necessidade de criar interpretações próprias ou histórias paralelas, exatamente como Straczynski havia pedido de início. Levando em conta que o primeiro grupo, o que permaneceu nos fóruns de discussão mediados pelo autor, era significativamente maior que o segundo, o que sucedeu-se após o término da produção e exibição do seriado, e subsequente falha de Crusade, o novo seriado que daria continuidade à história foi uma total paralisação da interação entre produtor e fãs, haja vista que nada mais havia para ser discutido. Ainda que essa paralisação tenha sido gradual, inexoravelmente havia cada vez menos assuntos a serem discutidos, uma vez que os arcos de história já estavam fechados, o segundo seriado havia sido cancelado e não existiam mais pontos obscuros no universo narrativo para serem questionados. Tal dependência dos fãs nos materiais produzidos exclusivamente por Straczynski provou ser o último suspiro daquele universo narrativo. Uma vez que produções próprias, como fan fictions e sugestões elaboradas de arcos dramáticos tinham sido desencorajadas desde o início, podemos compreender que a interação dos fãs com o produtor dava-se apenas no campo da discussão do material já produzido, e não na influência que esses fãs, como consumidores ávidos, poderiam ter no rumo de um universo narrativo vasto que poderia ser mantido vivo mesmo após o fim das produções midiáticas, como foi o caso de Guerra nas

Estrelas. Dessa maneira, ao invés de continuarem a povoar o universo ficcional de Babylon 5 com ideias próprias, haja vista que as lacunas narrativas para isso existem, pois foram criadas com outras produções midiáticas em mente, os fãs que guardavam interesse nesse aspecto da cultura da participação simplesmente migraram para a próxima produção de seu interesse, deixando assim um universo ficcional sólido, complexo e vasto estagnado no tempo, principalmente pela inabilidade da cadeia produtiva de lidar com esse tipo de participação, gerando não uma via de mão dupla nesse início de interação online, mas meramente um canal para veicular as mesmas ideias que já eram transmitidas pelo seriado.

5. Conclusões A análise empreendida aponta para uma presença, em múltiplos níveis, de vários dos itens citados como componentes de narrativas transmídia, franquias midiáticas e narrativas complexas. Dentre essas classificações, a que mais se aproxima de configurar uma melhor

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análise do seriado é de que se trata de uma narrativa de alta complexidade. Entretanto, a ausência de mais indicadores de transmidiação ou franqueamento não são determinantes para que o programa não seja classificado como tal. Nessa primeira visão, o que é válido concluir é que o seriado analisado, Babylon 5, apresenta, em seu processo criativo, várias das sementes do que, em teorizações posteriores, seriam chamadas de convergência de mídias, narrativas transmídia e mesmo franquias transmídia. Dessa forma, fica claro afirmar que, enquanto este não se encaixa totalmente nessas definições, ele demonstra que a produção televisiva encontra-se em constante evolução, em grande parte ecoando os anseios de sua audiência e de seus fãs mais ardorosos, e dessa maneira desafiando as classificações existentes, precipitando a necessidade de constante reanálise dos processos criativos e a criação de novas teorias que congreguem essas ideias e melhor

explicitem

essa

relação

entre

produtor,

produto

e

consumidor

que,

contemporaneamente, não se enquadra mais na estrutura verticalizada do processo produtivo convencional. Sob outro aspecto, em especial no que diz respeito à cultura da participação como geradora de sentido para o seriado de ficção, podemos entender que Babylon 5 fica muito aquém daquilo que se acredita que foi seu processo de interação entre produtor e consumidores. Ainda que seja possível argumentar que tenha sido uma das primeiras vezes, senão a primeira, em que o criador e principal produtor de um seriado televisivo teve interações não mediadas tão frequentes com o grupo de fãs de sua obra, fica claro que essa interação não subverteu, nem tampouco desafiou as estruturas de poder presentes na televisão contemporânea, mantendo o showrunner como dono da palavra final sobre a produção, e segregando os fãs mais participativos e proativos como “incômodos” ao processo interativo como um todo. Nessa visão, fica claro que ainda que essa interação entre produtor e consumidor possa ser entendida como a precursora de muito do que se vê hoje em termos de mídias sociais dos universos ficcionais mais importantes, a extrema dependência desse grupo de fãs nas produções “assinadas” pelo criador do seriado revela uma estrutura totalmente vertical de consumo, estrutura essa que foi incapaz de manter o interesse no universo ficcional ativo uma vez que o seriado deixou as grades televisivas, levando assim a estagnação de um universo vasto, porém pouquíssimo explorado, que pode ser revisitado à qualquer momento, mas cujas

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histórias só serão aceitas como “válidas” à partir do momento que tenham a mão de seu criador nelas, de certa maneira inviabilizando vários dos conceitos e entendimentos de “cultura participativa” e “cultura de fãs”. Em outra análise, fica, também, claro que é necessário tomar cuidado ao se fazer análises retroativas de produções anacrônicas às teorias desenvolvidas quando o único intuito é o de corroborar a teoria pela existência de produções consistentes anteriores a ela. O fato da internet e seus usuários hoje não seguirem os mesmos moldes dos usuários da década de 1990 não invalida a aplicação da teoria da convergência em produções da época, nem tampouco obscurece seus resultados. Entretanto, o que deve ser observado é o processo de evolução dessas produções e de seus respectivos consumidores e suas práticas, evolução essa que acontece de maneira paulatina à evolução das tecnologias de comunicação, e, portanto, suscita que entendamos as produções como reflexos de uma época, e não como obras atemporais, mas sim sujeitas a sucessivas releituras.

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