A interdiscursividade do contexto político e a crise de identidade na obra Ensaio sobre a Lucidez

July 11, 2017 | Autor: Yara Castaldini | Categoria: José Saramago
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A interdiscursividade do contexto político e a crise de identidade na obra Ensaio sobre a lucidez RESUMO Este artigo tem como objetivo principal estabelecer a interdiscursividade presente na obra Ensaio sobre a lucidez (2004), de José Saramago e o contexto político do período ditatorial em Portugal, a partir da teoria dialógica e, também, desenvolver a questão de identidade e crise existencial da personagem protagonista, sob o ponto de vista do herói problemático. Palavras-chave: Interdiscursividade; Ditadura; Democracia; Protagonista problemática. José Saramago (1922-2010) foi um escritor português pós-moderno, autor de diversas obras, entre elas Levantando do chão (1980), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995) e Ensaio sobre a lucidez (2004). Saramago é dono de um estilo próprio, no qual se encontra uma linguagem diferenciada, parágrafos longos e a falta de pontuação e marcação de diálogo entre as personagens, o que provoca um estranhamento inicial ao leitor, a fim de induzi-lo a não se comportar passivamente diante da leitura. As suas obras, em geral, abordam temas como a crise do homem moderno, a crítica ao passado, por meio de alusões alegóricas e, também, elementos fantásticos. O seu romance Ensaio sobre a lucidez (2004) é publicado, coincidentemente ou não, aproximadamente um mês antes do trigésimo aniversário da revolução de Abril, ou revolução dos Cravos, a qual marcou o fim do período ditatorial. O enredo do livro se passa em um país não especificado, em que, nas épocas eleitoras, grande parte da população vota em branco, o que causa uma indignação dos governantes, os quais tem o discurso de que esse acontecimento era uma afronta à democracia. Os políticos, em vez de procurar investigar o motivo dos votos e da insatisfação da população, acabam ordenando uma operação policial para descobrir o que teria começado e quem estaria por trás disso, para eliminá-lo e dar fim a essa situação.

Interdiscursividade na obra de Saramago A obra Ensaio sobre a Lucidez (2004), de José Saramago, representa a sociedade portuguesa em formação, décadas após a Revolução dos Cravos e a ditadura de Salazar. Dessa maneira, a questão da identidade e a vontade de libertação é muito presente durante toda a trama, a qual discorre sobre um período de eleição, em que grande parte da população vota em branco, o que causa um transtorno aos governantes, os quais acabam utilizando sua tirania para

oprimir a população, inclusive por meio de castigos e prisões, a fim de investigar e reprimir o acontecimento. Pode-se dizer que o texto de Saramago estabelece relações de diálogo com o período histórico da ditadura de Salazar, recurso esse que é chamado de interdiscursividade. Segundo Bakhtin, “Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa.” (1988, pg.88). A democracia, dentro da obra, é ironizada, pois não reflete o poder do povo, sentido literal da palavra, e sim o poder tirano da classe dominante. O sistema político de Ensaio sobre a lucidez (2004) dialoga com a ditadura sofrida por Portugal, na época de Salazar (1926), período em que a população era oprimida e sofria constantes censuras, sem ter o direito à liberdade de expressão, exatamente como ocorre na obra de Saramago, em que os eleitores foram perseguidos por exercer a sua democracia, ou seja, votar em branco, como no trecho “a senhora é suspeita de ser a organizadora, a responsável, a dirigente máxima do movimento subversivo que veio pôr em grave perigo o sistema democrático, refiro-me ao movimento do voto em branco” (2004, pg. 247). O autor ironiza o sistema político democrático capitalista, uma vez que dentro da obra o voto em branco é entendido como uma ameaça à democracia, dialogando, assim, com o período do governo de Salazar. Saramago deixa claro que essa é uma democracia camuflada, podendo ser comparada a uma ditadura. A personagem protagonista da obra também estabelece relações de diálogo como pensamento e o comportamento da população na época do período ditatorial de Salazar, por se mostrar alienado e acomodado com a situação. Durante a ditadura, os indivíduos, inicialmente, se alienavam por meio do discurso religioso e moralista de Salazar e, posteriormente, buscavam a sua liberdade de expressão, a qual era negada. O governo de Portugal era repressivo e o ditador tinha como objetivo alienar a população e exercer o poder soberano, limitando os direitos e a liberdade dos cidadãos, o que muitas vezes fazia utilizando o discurso religioso, para justificar suas ações, exatamente como ocorre na obra Ensaio sobre a Lucidez (2004), (...) um amanhã que rezo aos céus não se faça esperar demasiado, o arrependimento penetrará docemente nos vossos corações e voltareis a congraçar-vos com a comunidade nacional, raiz de raízes, e com a legalidade, regressando como o filho pródigo, à casa paterna. (2004, pg.95)

No decorrer da obra Ensaio sobre a Lucidez (2004), vários outros discursos são acoplados ao texto, como o da opressão, da ditadura, da democracia, da liberdade e, também, o discurso religioso, todos expressos com muita ironia. Dessa maneira, por meio do diálogo com esses discursos, Saramago estabelece uma crítica a essa sociedade e exige uma interação e um pensamento crítico e engajado maior do leitor.

1- A protagonista problemática No cenário político de injustiça e falsa democracia, no qual se desenvolve a trama, encontrase a personagem protagonista, que é o comissário da polícia, a qual não é identificada com um nome, pois ela representa uma alegoria, mais especificamente o sujeito pós-moderno que deseja buscar a sua identidade. Segundo Beth Brait, O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopeia e o conto, de outro. (2006, pg.39)

O comissário de polícia, no romance de Saramago, sofre uma dicotomia, pois fica entre exercer o papel de policial, ou seja, cometer injustiças e se submeter aos governantes tiranos, e o seu papel social como ser humano, quando começa a refletir sobre a política da época e criticá-la, ao perceber a manipulação social e a corrupção presentes. Isso reflete um problema de identidade e uma crise existencial por parte da personagem, que ainda está em busca de seu papel e lugar na sociedade capitalista. Lukács (1920) diz que esse tipo de personagem vive em fase de construção e em processo de amadurecimento, quando lida com a realidade que o cerca. Em primeiro plano, nota-se o comportamento da personagem protagonista assumindo a função de policial dentro da sociedade, o que faz com que ela utilize o discurso autoritário e repressivo diante dos demais, sendo um indivíduo frio e calculista, como é mostrado no trecho abaixo, momento em que o comissário da polícia dá instruções a outros agentes: Seremos duros, implacáveis, não usaremos nenhuma das habilidades clássicas, como aquela, velha e caduca, do polícia mau que assusta e do polícia simpático que convence, somos um comando de operacionais, os sentimentos aqui não contam, imaginaremos que somos máquinas feitas para determinada tarefa e executá-la-emos simplesmente, sem olhar para trás. (2004, pg. 209).

O uso dos adjetivos “duros” e “implacáveis” mostra a determinação do sujeito em seguir as ordens e, por consequência, culpar pessoas inocentes sem nenhuma piedade ou senso de justiça. Ele próprio diz que os sentimentos não têm importância na função em que está desempenhando e, também, o compara com uma máquina que está programada para desempenhar determinada tarefa, sem expressar nenhuma comoção ou avaliar criticamente o que acontece. O uso da palavra “máquina”, como comparação, remete à ideia da pósmodernidade, a qual é marcada pelo desenvolvimento das tecnologias, fazendo com que o indivíduo seja muitas vezes substituído e dominado pelas máquinas. O sujeito, então, comporta-se como um ser egoísta e alienado pelo próprio governo que, inicialmente, não percebe a realidade na qual está inserido, típico reflexo do ser humano pós-moderno.

O discurso autoritário e irônico do comissário também é expresso no trecho abaixo, em que ele exerce sua superioridade e ataca os seus subordinados: Nem ao menos lhe passou pela cabeça, seu idiota, que pode haver microfones instalados no elevador, Senhor comissário, estou desolado, realmente não me lembrei,balbuciou o pobre, Amanhã não sai daqui, fica a guardar o local e aproveita o tempo para escrever quinhentas vezes Sou um idiota, Senhor comissário, por favor, Deixe, não faça caso, já sei que estou a exagerar. (2004, pg.218).

Percebe-se que o comissário de polícia utiliza palavras ofensivas como “idiota”, ao dialogar com a outra personagem, o que mostra um ser humano rígido, desrespeitoso e, também, individualista, pelo fato de não se preocupar com a situação alheia do seu subordinado, que está em estado de desolação. No decorrer da narrativa, o cenário muda quando a protagonista alcança a sua lucidez e não acha justo culpar a mulher do médico pelos votos em branco, percebendo, assim, que está situada em um sistema opressivo e não democrático, sentindo-se desapontada com o poder abusivo dos governantes. A partir daí, desencadeia-se a crise existencial do sujeito, o qual questiona seu lugar no mundo, como faz a personagem protagonista, “perguntava a si mesmo que merda estava a fazer ali” (2004, pg. 242). A palavra de uso coloquial “merda” carrega, nesse contexto, um valor semântico de indignação e raiva do indivíduo perante o contexto social em que se encontra, mostrando todo seu descontentamento. A personagem sente-se, assim, frustrada e angustiada diante desse meio, como diz Domício (1995, pg.20), “(...) veio também o cerceamento da liberdade individual, o desencantamento da vida prosificada, uma sensação de vazio existencial. O sonho começava a desvanecer-se.” O comissário de polícia começa a questionar a sua identidade e sofre uma contradição entre o seu papel social como policial e o seu papel como ser humano. O sujeito coloca-se como alienado, pois sabe que a mulher é inocente, mas mesmo assim deve cumprir sua função policial de acusá-la injustamente, pois teme as consequências caso não cumpra com o seu papel. Por outro lado, ele também demonstra certo ressentimento em ter de culpá-la, (...) a senhora pode saber muito de comissários, mas garanto-lhe que deste não sabe nada, é certo que não vim aqui com o honesto propósito de apurar a verdade, é certo que da senhora se poderá dizer que já está condenada antes de ter sido julgada, mas este papagaio-do-mar, que é como me chama o meu ministro, tem uma dor no coração e não sabe como livrar-se dela (2004, pg. 247).

O policial, ao mesmo tempo em que se sente culpado no momento da acusação da mulher, também sabe que, acima de tudo, seu cargo social é prioridade, frustrando-se com o sistema político e admitindo ser rebaixado por ele, “Há pessoas que continuam de pé mesmo quando são derrubadas, e a senhora é uma delas, Pois nesta altura bem gostaria eu que me ajudassem a levantar, Lamento não estar em condições de lhe dar essa ajuda (...)” (2004, pg. 315). Dessa forma, ele age de modo alienado, pois têm ciência da corrupção e hipocrisia do

sistema político, mas acaba se contentando com isso e obedecendo às ordens dos governantes, devido ao fato de estar submetido às repressões e, consequentemente, temêlas. Desse modo, pelo simples medo da punição, ele coloca em primeiro plano sua carreira profissional e seu individualismo, ignorando as hipocrisias do sistema democrático. Ao final da narrativa, a personagem é morta com dois tiros por um agente da polícia, por ter considerado a mulher inocente, o que mostra o desfecho dessa personagem problemática, a qual é morta pelo próprio sistema ao qual trabalhou, e também revela a sua incapacidade em mudar o cenário político a sua volta. Ela trava uma luta solitária e passiva diante do governo tirano e não consegue alcançar nenhum objetivo, como diz Goldmann, “Através da confusa busca do herói, que se termina pela tomada de consciência da impossibilidade de concluir e dar um sentido à vida (...)” (1972, pg.22). Desse modo, nota-se que o discurso da classe dominante é mais uma vez predominante, “Embora haja, numa formação social, tantas visões de mundo quantas forem as classes sociais, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante” (FIORIN, 2005, pg.31). Em Ensaio sobre a lucidez (2004), Saramago ataca o falso sistema político democrático e capitalista e, também, deseja que os indivíduos tenham uma ação e se expressem de forma direta contra esse sistema hipócrita e abusivo. O autor exige de seu leitor um pensamento e leitura críticos, rejeitando a passividade e preocupando-se com o engajamento social. Em uma entrevista à revista Época (2005), Saramago diz: Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.

O autor denuncia a instituição democrática e apoia o fato de que o cidadão deve ter sua voz e intervir no mundo, o que é bem visível em sua obra. Logo na epígrafe do livro, José Saramago coloca “Uivemos, disse o cão” (Livro das Vozes), isso deixa implícito logo de início que o leitor tem que ser diferenciado, isto é, terá de interagir, se expressar e utilizar sua voz, como protesto ao sistema democrático, que mais parece uma ditadura.

REFERÊNCIAS: - BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ed. Ática, 2006. - FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ed. Ática, 2005. - HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1991. - PROENÇA, Domício. Pós-Modernismo e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 1995. - SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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