A INTERFERÊNCIA DE TERCEIROS NA VIOLAÇÃO DO CONTRATO (ALVINO LIMA)

June 6, 2017 | Autor: R. Rdcc | Categoria: Private law, DERECHO CIVIL, Direito Civil, Diritto Civile, Contratos
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A interferência de terceiros na violação do contrato1 Intentional interference with contractual relations Alvino Lima Professor aposentado de Direito Civil na Faculdade de Direito da USP.

Área do Direito: Civil

1 – A interferência de terceiros na execução do contrato tem suscitado na doutrina, como nos tribunais, as mais vivas controvérsias e os mais acirrados debates. Essa intervenção na vida das relações contratuais entre as partes, pode apresentar-se, entretanto, sob vários aspectos, que devem ser apontados, a fim de se focalizar o assunto a ser estudado. 2 – Desde logo devemos afastar da discussão a matéria concernente à responsabilidade contratual pelo fato de outrem. Nesta hipótese a responsabilidade do contratante, pelo fato de terceiro, tem seu fundamento na representação. O terceiro age, como representante legal ou convencional do contratante; no exercício de suas funções, o representante atua em nome do representado, o qual responde, contratualmente, pelos atos culposos daquele.2 Em rigor, aliás, como faz sentir Jean Van Ryn, a responsabilidade contratual pelo fato de outrem se confunde, na realidade, com a responsabilidade pessoal do devedor.3 3 – O terceiro pode intervir no contrato em prejuízo não só do credor, como do devedor; a hipótese que ora nos preocupa é a da intervenção do terceiro, inteiramente estranho à relação contratual, prejudicando os direitos do credor. Esta interferência ilegal se refere ao terceiro estranho, de modo absoluto, ao contrato; o ter-

1. Artigo publicado na Revista dos Tribunais vol. 315. p. 14. São Paulo: Ed. RT, jan. 1962. Foram mantidas a ortografia e as notações bibliográficas da versão original. 2. Vide Mazeaud, “Traité théorique et pratique de la responsabilité civile”, Sirey, 1934, vol. I, ns. 965 e segs.; André Brun, “Rapports et domaines des responsabilités contractuelle et delictuelle”, Sirey, Paris, 1931, ns. 32 e segs. 3. “Responsabilité aquilienne et contrats”, Sirey, Paris, n. 32. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 ceiro absoluto, como o denomina Roguin, o terceiro que nem explícita, nem implicitamente consentiu em se tornar credor ou devedor nos termos da convenção, o “penitus extranei”, como o denominava Dumoulin.4 Finalmente, devemos observar que o terceiro pode intervir na relação contratual sem a menor cooperação do devedor, impedindo o adimplemento do contrato, ou que o credor possa auferir as vantagens decorrentes do mesmo; ou pode nêle intervir, com a cooperação ou co-participação do devedor.5 O presente estudo se refere à responsabilidade de terceiro, partícipe, com o devedor, da violação contratual. 4 – A matéria relativa à responsabilidade do terceiro violador da relação contratual e pela qual deve contas ao credor, solidàriamente com o devedor, tem sido designada por expressões diferentes: “Responsabilidade de terceiro cúmplice da violação de uma obrigação contratual”.6 “Responsabilidade delitual do terceiro em relação a um contratante e de um contratante a respeito de terceiros”.7 “A tutela aquiliana do credor contra terceiros”.8 Alex Weill9 julga imprópria a expressão usada por Hugueney e outros, porquanto a cumplicidade implica um entendimento entre o autor principal e o cúmplice; ora, êste acordo entre o terceiro e o devedor não é elemento indispensável, de sorte que propõe a expressão “Responsabilité d’une tiers coupable de la violation d’une obligation contractuelle”. 5 – O problema da responsabilidade de terceiro, partícipe da violação contratual, envolve questões atinentes à sua própria existência, à sua estrutura e aos seus efeitos. Quanto à primeira questão, isto é, à possibilidade da existência de uma responsabilidade concernente à violação de um contrato, por parte de terceiro absolutamente estranho, constituindo tal responsabilidade um princípio genérico, a matéria não é pacífica. Adriano de Cupis, professor de Direito da Universidade de Perugia, sustenta10 como princípio geral a irresponsabilidade do terceiro violador do contrato, do qual

4. Vide Alex Weill, “La relativité des conventions en droit privé français”, Dalloz, Paris, 1939, n. 70. 5. Vide Guido Tedeschi, “La tutela aquiliana del creditore contro i terzi”, “in” “Rev. del Diritto Civile”, 1935, págs. 291 e segs. 6. É a denominação preferida por Savatier, Pierre Hugueney, “Responsabilité civile du tiers complice de la violation d’une obligation contractuelle”, Paris, 1910; Demogue e outros. 7. Henry Lalou, “in” Vidal, ob. cit., pág. 326, nota 4. 8. Guido Tedeschi, artigo citado. 9. Alex Weill, ob. cit., n. 251. 10. “Il danno – Teoria generale della responsabilitá civile”, Milão, ed. Giufrè, 1945, págs. 290 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil não é parte; “não se pode violar o dever que não limita a nossa possibilidade de agir e que assim não é tal, isto é, não é dever para nós”. Admite, entretanto, “dentro de um certo limite”, a responsabilidade do terceiro, referindo-se ao caso de ter o mesmo agido com o “escopo de impedir a execução da prestação devida”, “ùnicamente ou principalmente com o escopo de causar prejuízo ao credor”. Aponta ainda o citado escritor outra exceção à regra formulada: a hipótese da concorrência desleal. “No desenvolvimento das atividades industriais ou comerciais, quando em concorrência, somos obrigados a agir conforme os princípios da correição profissional (art. 2.598, n. 3, do Código Civil italiano). A circunstância especial de concorrência numa atividade econômica induz uma obrigação particular, onde uma atividade normalmente lícita pode assumir um caráter ilícito”. 6 – Também Guido Tedeschi, no artigo citado, se filia, no direito italiano, à doutrina de Adriano de Cupis. Depois de estudar, no direito inglês, a responsabilidade do terceiro, na interferência lesiva do contrato, concluindo pela sua responsabilidade aquiliana, e, conseqüentemente, reconhecendo ao credor uma ação contra aquela interferência do terceiro, de modo “a corazzare il contratto di un’armatura aquiliana”, Tedeschi passa a examinar a hipótese no Direito italiano vigente. No Direito atual italiano, assim como no francês, diz Tedeschi,11 parece-nos que se deve raciocinar de modo diverso, porquanto, aqui, o princípio da responsabilidade aquiliana é firmado geral e abstratamente e é sempre subordinado à existência da “injúria” no caso concreto; tal responsabilidade não deve aplicar-se senão quando a atuação em questão resulte “aliunde” ilícita. E acrescenta textualmente: “Ora, dell’art. 1.372, Código Civil italiano (art. 1.165, Código Civil francês) sembra resultare lecito per il terzo – in via di principio – tutto ciò che gli sarabbe lecito se la ‘res inter alios acta’ (il contratto de cui igli no é parte) non esistisse; in questo senso, sembra lecito per il terzo ‘ignorare le obbligazioni contrattualli altrui, anche se, di fatto, ne sia a conoscenza’”. Verifica-se das opiniões expostas, que os seus partidários sustentam que o princípio da relatividade das convenções, nos têrmos dos arts. 1.372 do Código Civil italiano e 1.165 do Código Civil francês, limitando os efeitos dos contratos às partes contratantes, confere, em regra, plena liberdade de ação aos terceiros, ainda que venha atingir os direitos dos credores, decorrentes da relação contratual. Entretanto, a opinião dominante se opõe a esta interpretação do princípio da relatividade das convenções. 7 – O princípio da relatividade das convenções não pode ser entendido hoje, como o foi no século XIX, com a rigidez de regra absoluta, conferindo ao tercei-

11. Artigo citado, “in” “Rev. de Direito Italiano”, 1955, pág. 312. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 ro ampla liberdade de ação.12 O contrato produz efeitos relativamente às partes contratantes, conferindo-lhes direitos e impondo-lhes deveres; tais efeitos, entretanto, não atingem os terceiros absolutamente estranhos à relação contratual.13 Contra os terceiros, os efeitos dos contratos são inoponíveis; trata-se da ineficácia, em relação aos mesmos, de um direito oriundo de um ato jurídico do qual não participaram.14 Mas o contrato não pode ser considerado apenas nos seus efeitos jurídicos; sendo uma realidade concreta, um fato social, um valor patrimonial, a sua existência não se limita às partes contratantes, mas age, como tal, “erga omnes”.15 Aquêle mesmo sujeito passivo universal, que existe no direito real, observa Demogue,16 existe no direito de crédito, sujeito obrigado ao dever de abster-se de violar o contrato, não se tratando de uma obrigação resultante da relação contratual. Há um dever legal de não intervir na esfera da atividade de outrem, de respeitar os direitos de outrem, de “neminem laedere”; um direito, que apenas o contratante seja obrigado a respeitar e que terceiros possam impunemente desprezar, não teria absolutamente valor; não poderiam subsistir mais relações sociais, nem jurídicas, possíveis; a anarquia sucederia ao reino da lei.17 8 – O contrato, pois, como fato social, em virtude da sua existência, conferindo direitos e deveres, não pode deixar de produzir certas repercussões relativamente a terceiros; não pode deixar de ser logicamente oponível contra terceiros, não quanto aos seus efeitos diretos, imediatos, mas os indiretos, nascidos do jôgo de interferências entre êles e as situações marginais.18 Há um dever jurídico de não interferir ou

12. Vide Pothier, “Tratado de las obligaciones”, trad. esp. de M. C. de Las Cuevas, Buenos Aires, 1947, ns. 85 e segs.; Barassi, “La Teoria gen. delle obbligazioni”, Milão, 1946, vol. II, págs. 447 e segs. 13. Vide Jean Foyer, “Les obligations” “in” “Le Droit civil français”, dir. de Renè David, vol. II, págs. 162 e segs. 14. Vide Daniel Bastian, “Essai d’une théorie générale de l’inoposibilité”, Paris, 1929, pág. 13. 15. Vide Alex Weill, ob. cit., n. 237; Simone Calastreng, “La relativité des conventions – Étude de l’article 1.165 do Cod. Civil”, pág. 353; Henri de Page, “Traité élémentaire de de droit civil belge”, vol. 1, ns. 117 e segs. 16. “Traité des obligations”, vol. VII, n. 1.175. 17. Vide Alex Weill, obr. cit., n. 239; Marco Cohin, “L’abstencion fautive en droit civil et penal”, Paris, 1929, pág. 15; Savatier, “Traité de la responsabilité civile”, Paris, 1939, vol. I, ns. 35 e 144; Polacco, “Le obbligazioni nel diritto civile italiano”, 2.ª ed., Roma, 1915, págs. 25 e segs. 18. S. Calastreng, ob. cit., págs. 363 e segs.; Demogue, ob. cit., vol. VII, n. 703, págs. 68/69; Beudant-Lagarde, “Cours de droit civil français”, 2.ª ed., 1953, vol. IX (“Les contrats et les obligations”), n. 896. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil impedir o cumprimento do contrato; trata-se de um ilícito gerador de responsabilidade que no direito inglês se denomina “tort of interference”.19 Fixado o princípio da oponibilidade do contrato contra os terceiros, absolutamente estranhos, nos têrmos expostos, surge o problema da responsabilidade dos mesmos, quando participem com o devedor, da violação do contrato, prejudicando o credor. 9 – Se existe uma obrigação de respeitar os direitos resultantes dos contratos, é óbvio que a sua violação, prejudicando direitos de terceiros, causando-lhes danos, deve fazer surgir a responsabilidade com fundamento no princípio genérico do art. 1.382 do Código Civil francês, preceito consagrado em todos os Códigos Civis.20 Fixada a existência desta responsabilidade, cumpre examinar o problema da sua natureza relativamente ao terceiro e ao contratante-devedor. A solução do problema tem sido apresentada sob modalidades diversas: 1.ª) A responsabilidade do terceiro deve ser sancionada pela aplicação do princípio “Fraus omnia corrumpit”; 2.ª) A responsabilidade do terceiro, partícipe da violação do contrato, equivale à do terceiro na fraude pauliana; 3.ª) A responsabilidade do terceiro é fundada na causa ilícita; 4.ª) A responsabilidade do terceiro não passa de um caso de abuso de direito; 5.ª) A responsabilidade do terceiro, interferindo no contrato, violando-o com a coparticipação do devedor, é simples caso de responsabilidade decorrente do ato ilícito. 10 – A aplicação da ação pauliana aos casos particulares, em que haja violação de um primeiro contrato, em virtude da confecção de um segundo ato jurídico, de molde a tornasse, de fato e de direito, inexeqüível o primeiro contrato, tem sido acolhida por inúmeros julgados dos tribunais franceses. A ação pauliana tem sido admitida, ainda que o devedor seja solvável, e, conseqüentemente, podendo indenizar o primeiro contratante pelos danos decorrentes do inadimplemento do contrato.21 Segundo esta jurisprudência, “se o prejuízo do credor, com garantia geral, consiste única e essencialmente na insolvabilidade do devedor, para o credor, titular de um crédito ou de uma garantia especializada sôbre uma coisa, o prejuízo aparece desde que o devedor dispôs desta coisa, alterando o valor da garantia, em tais condições que acarreta um sério atentado ao exercício da prerrogativa do credor; pou-

19. Vide Losé Luiz Brutau, “Fundamentos de derecho civil”, tomo II, vol. I, págs. 267/268; E. Betti, “Teoria generale delle obbligazioni”, Milão, 1955, vol. III, págs. 189/190. 20. S. Calastreng, ob. cit., págs. 265 e segs.; Savatier, ob. cit., vol. I, n. 144; Alex Weill, ob. cit., n. 238. O art. 159 do nosso Código Civil é consagrado em têrmos genéricos, abrangendo perfeitamente a hipótese ora apreciada. 21. Vide J. Vidal, ob. cit., págs. 219 e segs.; Alex Weill, ob. cit., n. 240; Mme. Sinay, art. cit., n. 13. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 co importa que o devedor não seja totalmente insolvável e que o credor possa obter uma satisfação equivalente; a insuficiência da garantia especial resultante do ato de disposição do devedor, ou a agravação desta insuficiência, constitui o prejuízo necessário à propositura da ação pauliana”.22 Mas a quase unanimidade dos escritores rejeita tal aplicação da ação pauliana, que, tradicionalmente, não tem outro objetivo, senão o de proteger os credores, os quais têm um direito de garantia geral sôbre o patrimônio do devedor, contra a sua insolvabilidade. É desvirtuar a pauliana do seu papel, conferi-la a um credor contra um devedor solvável, tornando-a um meio de punir a inexecução de uma obrigação, de molde a lançar a confusão nos meios jurídicos.23 Alex Weill24 também refuta a aplicação da ação pauliana contra a violação dos contratos por terceiros, com a participação do devedor. Embora as situações se assemelhem, “existem diferenças sérias entre esta matéria e a situação contra a qual se opõe a pauliana”. “A responsabilidade do terceiro cúmplice surge realmente em casos em que a ação pauliana não pode ser invocada. A ação pauliana protege o credor contra o devedor que se torna insolvável; quem vende pela segunda vez um imóvel, precedentemente alienado, quem transgride uma cláusula de não concorrência, se torna insolvável? Absolutamente não. Os autores partidários da explicação pela ação pauliana sustentam que se trata de uma ação pauliana especial em que a insolvabilidade não será apreciada senão “pro subjecta materia”, isto é, relativamente à prestação especial prometida. Mas a insolvabilidade sancionada pela ação pauliana não teve jamais êste sentido; em nossa matéria trata-se pura e simplesmente de inexecução de um contrato”. Entretanto, Weill adverte que não devemos desconhecer o laço que une o caso em exame com a ação pauliana, a qual é, na realidade, uma “aplicação particular” da responsabilidade do terceiro cúmplice; o devedor contrata com seus credores a obrigação de não agir em fraude de seus direitos; se um devedor se torna insolvável aparentemente, graças à cumplicidade de um terceiro, o credor pode perseguir por perdas e danos este terceiro; se vamos ao fundo das coisas, a ação pauliana pode ser encarada como um derivado da teoria mais geral da responsabilidade civil do ter-

22. Côrte de Paris, em 23 de julho de 1937 (Vidal, ob. cit., pág. 229). 23. Vidal, ob. cit., pág. 230; Demogue, ob. cit., vol. VII, ns. 1.125, 1.177 e 1.181; Hugueney, ob. cit., págs. 183 e segs.; H. e L. Mazeaud, “Traité de la responsabilité civile contractuelle et delictuelle”, vol. I, n. 144. Mme. H. Sinay, em seu citado artigo “Action paulienne et responsabilité délictuelle à la lumière de la Jurisprudence récente”, “in” “Revue trimestrielle de droit civil”, 1948, págs. 183 e segs., depois de citar a jurisprudência francesa referida no texto, manifesta-se também contra a mesma, declarando que a ação de perdas e danos oriunda do contrato será amplamente suficiente, não existindo nenhuma razão de ser da ação pauliana. 24. Ob. cit., n. 240, págs. 420 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil ceiro cúmplice, desde que este tenha conscientemente auxiliado o devedor a não cumprir o seu dever. 11 – Em que pese a autoridade dos notáveis juristas que negam a aplicação da ação pauliana, por analogia, aos casos de violação de um contrato anterior, por interferência de um terceiro, parece-nos que aquela jurisprudência, que a admite, merece aplausos. E vários são os argumentos que autorizam a concepção jurisprudencial, como passamos a examinar: a) A solução de um conflito de interêsses se justifica, com mais rigor e segurança, quando podemos ampará-la na lei. Esta é a tendência lógica e natural dos julgamentos, de molde a assegurar melhor a estabilidade dos direitos. Em face dos dispositivos expressos, que disciplinam e reprimem a fraude pauliana, a sua aplicação aos casos de fraudes urdidas pelos devedores e terceiros, quando violam a relação contratual preexistente, consulta melhor aos interesses da Justiça, não permitindo aos fraudadores, em face da lei, recorrerem a subterfúgios para escapar à sanção da fraude. b) A fraude, como antítese do direito, deve ser punida com o máximo rigor, não só com o fim de impedir que se possa burlar a eficácia integral do texto legal, mas ainda como um exemplo que deve influir nos que alimentam o desejo de auferir proventos, pondo em prática meios desonestos. A mais grave e completa sanção contra o fraudador consiste em proclamar a ineficácia do seu ato fraudulento, restaurando a plena eficácia do contrato violado, além das perdas e danos porventura sofridos pelo credor. Ora, a ação pauliana nos conduz, com segurança, a este resultado, com o fundamento irretorquível no texto legal. Verificaremos que a doutrina que assimila a fraude à responsabilidade civil não satisfaz esta exigência, embora seja a doutrina dominante. A aplicação do brocardo “Fraus omnia corrumpit” aceita por uns, combatida por outros, como verificaremos em breve, assegura uma aplicação uniforme, irretorquível, da ineficácia do ato fraudulento. c) A simples indenização do credor, por perdas e danos, não satisfaz plenamente o seu direito à prestação devida, de sorte que ele sofre, mesmo indenizado, um dano, maior ou menor, conforme os interesses em jogo. A tendência do direito moderno consiste em satisfazer o credor, dando-lhe, quando possível, o próprio objeto da prestação; a execução específica do contrato confere ao credor exatamente a utilidade que ele pretendia obter, ao passo que a prestação “por equivalência” substitui a prestação devida, quando esta não seja possível.25

25. Barassi, ob. cit., vol. II, pág. 1.004 ; Gian Antonio Michel, “Esecuzione forzata”, “in” “Com. del Codice civil – Tutela dei diritti’, dir. de A. Scialoja e G. Branca, 1953, págs. 512/513 ; Betti, “Teoria Generale delle obbligazioni”, vol. II, pág. 153, nota 48: V. Polacco, “Le obligazzioni nel diritto civile italiano”, 2.ª ed., 1915, vol. I, pág. 79; Ernest Barda, “L’execution specifique des contrats”, 1928, págs. 185 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 d) A insolvabilidade, na ação pauliana, é exigida, porque dela é que decorre a impossibilidade da satisfação da prestação ao devedor. Logo, é a impossibilidade da prestação, em virtude da fraude do devedor e do terceiro, que constitui a razão de ser da ação pauliana. A restauração do patrimônio do devedor, pela ineficácia do ato fraudador, em benefício do credor, repõe as coisas no estado anterior, conferindo ao credor a possibilidade de executar o seu crédito e receber o valor correspondente. No caso em exame, a impossibilidade da prestação decorre dos efeitos do segundo ato jurídico praticado pelo devedor e o terceiro, em fraude do credor. Aquela mesma impossibilidade da prestação, por fôrça da insolvabilidade, que autoriza a ação pauliana, é a mesma que deve autorizar a pauliana, no caso do segundo contrato violador do primeiro. A ação pauliana decorre, pois, da impossibilidade da prestação a favor do credor, em virtude da fraude do credor e do terceiro, qualquer que seja a causa desta impossibilidade imputável aos seus causadores. Em qualquer hipótese, a pauliana visa repor as coisas no seu estado anterior, protegendo os direitos do credor. Ripert declara que não há razão alguma para não aplicar à ação de nulidade por fraude, as regras da ação pauliana.26 12 – Não só na doutrina, como na jurisprudência, encontramos no princípio “Fraus omnia corrumpit” o fundamento invocado para justificar a ineficácia do ato fraudulento, urdido pelo devedor e o terceiro, para prejudicar os direitos do credor. Os princípios gerais de direito, em face das inevitáveis lacunas da lei, constituem, sem dúvida, uma das fontes de solução de várias situações jurídicas não previstas pelo legislador; se muitos destes princípios estão incorporados a várias manifestações da vontade legislativa, outros se afirmam principalmente pelo espírito informador da organização social do momento e constituem um “indispensável elemento de fecundação da ordem jurídica positiva”.27 Surgem, portanto, os princípios gerais de direito, como diz René David, como um complemento necessário da ordem jurídica, fazendo-se apêlo aos mesmos para realizar-se a plenitude desta mesma ordem jurídica.28 A máxima “Fraus omnia corrumpit” é apontada sem discrepância, como um destes princípios gerais de direito, cujo valor e aplicação são proclamados quase unani-

26. Ob. cit., n. 171, pág. 330. 27. Boulanger, “Principes généraux du droit et droit positif”, “in” “Études offerts à Georges Ripert”, I, pág. 63; Alberto Trabucchi, “Il nuovo diritto honorario7’, “in” “Rivista de diritto civile”, 1959, págs. 502 e segs., n. 5; Paul Roubier, “Ordre juridique et sources de droit”, “in” “Études offerts à Georges Ripert”, pág. 63, n. 17 ; Del Vecchio, “Les principes généraux du droit”, “in” “Études à l’honneur a François Geny”, vol. II, págs. 71 e segs.; “Los principios generales del derecho”, trad. esp., págs. 85 e segs. 28. “Le droit civil français”, vol. I (“Les données fondamentales du droit français”), Paris, 1960, págs. 174 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil memente; na impossibilidade de fixação de um preceito legal genérico, que possa abranger todos os casos singulares, temos de recorrer a um princípio autônomo e geral, como o que encerra a aludida máxima. A jurisprudência e a doutrina francesas apoiam a aplicação da aludida máxima, como expressão tradicional do princípio segundo o qual a vítima de uma fraude tem direito à reparação do prejuízo sofrido.29 Contra a aplicação da aludida máxima se tem objetado, entretanto, o seguinte: (a) a máxima não tem valor jurídico, porque não está inscrita em parte alguma; (b) é muito vaga; (c) sua aplicação confere amplo arbítrio ao juiz.30 Vidal31 combate esta doutrina, demonstrando a improcedência das referidas objeções. Mostra que o princípio está fixado em vários dispositivos legais e que as máximas tradicionais são admitidas em direito; o problema reside apenas na fixação da sua extensão, o que constitui uma razão para estudá-la e não para rejeitá-la. Mas, cumpre acrescentar que o fato de não estar inscrita, em parte alguma como norma, não exclui a sua aplicação. Inúmeras são as máximas tradicionais, que, em idênticas condições, são acolhidas como princípios incontestáveis e cuja aplicação pelos tribunais, através de uma jurisprudência constante, não merece qualquer reparo.32 Aliás, não seria necessário inscrever como norma legal um princípio que defende a própria aplicação do direito e que combate, de modo absoluto, uma das formas mais graves de burlar a obrigatoriedade da lei. Toda violação de um princípio, diz Pugliatti, é violação de uma norma.33 A regra “Fraus omnia corrumpit”, princípio geral de direito, é a expressão de uma necessidade que decorre da própria natureza da regra jurídica. Esta, com efei-

29. Luiz Carraro, “Il valore attuale della massima “fraus omnia corrumpit”, “in” “Studi in onore a Francesco Carnelutti”, vol. III, págs. 431 e segs.: Alex Weill, ob. cit., n. 241. 30. Ripert, “La régle morale dans les obligations civiles”, pág. 319; Demogue, “Traité des obligations”, vol. VII, ns. 1.129 e segs.; F. Gorphe, “Le principe de bonne foi”, pág. 77; Josserand, “Les mobiles dans les actes juridiques en dr. priv.”, n. 178; “Cours de droit civ. fr.”, vol. I, n. 29; Brette de la Grassay et Laborde-Lacoste, “Introduction générale à l’étude du droit”, Paris, 1947, pág. 325; Vidal, ob. cit., págs. 381 e segs. O Prof. Alberto Trabucchi, que na sua obra “Il dolo nella teoria dei vizi del volere” (Cedam, 1937), repudiara a máxima “Dolus omnia corrumpit”, para encará-la apenas como expressão de uma tendência; por entender que na lei italiana não existia a afirmação de um princípio geral sobre a obrigatoriedade de agir de boa-fé (ob. cit., págs. 106/107), passou, em face dos dispositivos dos arts. 1.175 do novo Código Civil Italiano e 88 do Código de Processo Civil Italiano, a defender o princípio oposto da necessidade de uma regra geral da boa-fé, de um requisito mínimo de dignidade moral como pressuposto para eficácia de pretendida invocação dos direitos (“Il nuovo diritto onorario”, “in” “Rev. de Diritto Civile”, 1959, pág. 499). 31. Vidal, ob. cit., págs. 381 e segs. 32. Vide E. H. Perreau, “Technique de la jurisprudence”, 1923, vol. I, págs. 148 e segs. 33. Salvatore Pugliatti, “Diritto civile”. Metodo – teoria – pratica, “Saggi”, pág. 352. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 to, não deve ser válida somente em relação a uma ordem jurídica; deve ser eficaz e para o ser, deve ser garantida não apenas contra a violação direta, mas contra as astúcias que têm por fim contorná-la por meios técnicos mais ou menos engenhosos. Assim, se encontra esclarecido, pelo próprio aprofundamento da noção de fraude e suas relações com o imperativo jurídico, o próprio fundamento da regra “Fraus omnia corrumpit”. São conceitos de Gabriel Marty, Professor da Faculdade de Direito de Toulouse, no prefácio à citada obra de José Vidal, que justificam plenamente a verdade encerrada na aludida máxima e a necessidade de sua aplicação, como imperativo que decorre da própria subsistência da norma legal. Finalmente, quanto à objeção de que sua aplicação irá conferir ao julgador um amplo arbítrio, a sua improcedência é manifesta. Cumpre, preliminarmente, advertir que este temor do arbítrio do juiz, além de ser injusto, é inevitável, porquanto em toda solução de litígio existe, previamente, uma apreciação dos fatos, da qual resulta um poder mais ou menos pronunciado do juiz.34 Na interpretação da lei, como na sua aplicação, é inexorável o poder conferido ao juiz; daí o dizer Ripert, com absoluta propriedade, que “o juiz é o legislador dos casos particulares”.35 Mas a história do direito nos revela o papel proeminente e salutar da jurisprudência, como fonte criadora do direito; o juiz, na sua missão, é portador de uma espécie de soberania no domínio da interpretação da lei, permitindo-lhe dirigir eficazmente o desenvolvimento sucessivo do direito.36 Daí o falar-se no “govêrno dos juízes”, mas no domínio “das idéias, dos equilíbrios constitucionais e morais, que se coloca acima das leis, bem mais do que nas leis”. Desta forma a sua obra é subversiva, mas tendo hoje, como no passado, a completar e aperfeiçoar a do legislador.37 13 – A aplicação da teoria da causa tem sido adotada por alguns escritores para justificar a nulidade do ato fraudulento. A intenção fraudulenta, a vontade de iludir uma regra obrigatória constitui a causa impulsiva e determinante do ato fraudulento; esta causa sendo ilícita ou imoral, o ato deve ser anulado, nos termos do art. 1.131 do Código Civil francês. O motivo fraudulento determinante do ato jurídico

34. E. H. Perreau, ob. cit., vol. II, págs. 233 e segs.; Marcel Satti, “Le standard juridique”, Paris, 1927, pág. 180, n. 92. 35. “La règle morale dans les obligations”, pág. 26, n. 15. 36. Geny, “La tecnique legislative dans la codification civil moderne”, “in” “Livre du centenaire”, Paris, 1904, vol. II, págs. 1.021/1.022; vide “Méthode d’interpretation et sources en droit positif”, Paris, 1919, vol. II, ns. 173/182, págs. 195 e segs.; Perreau, ob. cit., vol. I, págs. 17 e segs.; Ed. Meynial, “Les recueils d’arrêts et les arrêtistes”, “in” “Livre du centenaire”, vol. I, págs. 173 e segs. 37. Henri de Page, “À propos du gouvernement des juges”, Bruxelas-Paris, 1931, pág. 189. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil se incorpora à causa como elemento intrínseco e seria desvirtuar a convenção separá-lo, ainda mesmo que não fosse comum às duas partes.38 Esta doutrina tem sido vigorosamente combatida por inúmeros escritores.39 Destaquemos dos argumentos aduzidos, os que julgamos mais decisivos: (a) Há uma diferença fundamental no confronto dos conceitos de causa e fraude. A causa ilícita ou imoral é exclusivamente subjetiva, porquanto só a intenção do autor do ato é tomada em consideração, com exclusão das consequências, dos resultados. A fraude, ao contrário, não é exclusivamente subjetiva; ela supõe a realização efetiva de um resultado contrário ao direito, uma regra obrigatória, efetivamente frustrada. (b) A intenção fraudulenta, a vontade de iludir a regra, não é verdadeiramente o motivo determinante da fraude, mas o de empregar o meio fraudulento, tanto assim que certos resultados da fraude podem ser separados dos meios empregados. Só o resultado fraudulento será ineficaz, sendo válido o meio empregado.40 (c) O ato jurídico cuja causa é imoral ou ilícita é nulo “erga omnes”; o ato fraudulento não é nulo, eivado de nulidade absoluta, mas é simplesmente inoponível à vítima da fraude. (d) O terceiro que pratica a fraude aos direitos do credor visa a um fim pessoal egoístico, mas não ilícito, aproveitando-se da oportunidade para a realização de um bom negócio.41

38. Henri des Bois, “La notion de fraude à la loi et la jurisprudenca française”, Paris, 1927, n. 7 e segs.; Josserand, “Les mobiles dans les actes juridiques”, n. 190. 39. Vidal, ob. cit., pág. 333 e segs. ; Alex Weill, ob. cit., n. 242; Saiget, ob. cit., pág. 258; L. Carraro, ob. cit., ns. 16 e 17. 40. O casamento do médico assistente, com a doente que vem a falecer para frustrar a proibição do art. 909 do Código Civil francês, permanecerá válido, embora não prevaleça quanto à liberalidade relativa aos bens, resultado visado pelo casamento. O meio empregado para produzir o resultado, para frustrar a lei, ou seja, o casamento, permanece válido e produz todos os demais efeitos. 41. Vidal, ob. cit., págs. 333 e segs.; Alex Weill, ob. cit., n. 242; Saiget, ob. cit., pág. 258. Especialmente contra a fraude à lei devemos advertir que o Código Civil italiano, em vigor, dispõe no art. 1.344: “Reputa-se igualmente ilícita a causa quando o contrato constitui o meio de iludir a aplicação de uma norma imperativa”. Os escritores que têm comentado o citado dispositivo legal, declaram que nos contratos “in fraudem legis”, a causa não é ilícita no sentido técnico, mas o “intento pratico che con esso le parti intendevano persiguire” (Michel Fragali, “Dei contrati in generale”, “in” “Codice Civil”, ed. D’Amemio e Finzi, vol. I, “Libro delle obbligazioni”, pág. 383). Francisco Messineo declara que não existe uma “effetiva illicità della causa”, mas uma “supposta illicità in considerazione del risultado” (“Dottrina generale del contratto”, Milão, 1948, pág. 285, n. 112). Luigi Carraro declara que a fórmula, pouco feliz, usada no art. 1.344 do Código Civil italiano, não pode ser interpretada no sentido de que o negócio fraudulento tenha causa ilícita (ob. cit., n. 17, págs. 59 e segs.). Emilio Betti parece-nos seguir opinião oposta (vide “Causa del negozio giuridico”, “in” “Novissimo Digesto italiano”, vol. III, pág. 38, n. 3). Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 14 – A teoria do abuso do direito tem sido invocada no caso da prática do ato fraudulento, quando seus autores, com o fim de contornar uma regra de ordem pública, uma instituição de ordem fundamental, oferecem um exemplo de abuso, por causa da malignidade, da trapaça, mas sem intenção de prejudicar.42 A matéria comporta um exame longo e minucioso, em face dos vários critérios fixadores do fundamento da teoria do abuso do direito.43 Tratando-se, porém, da interferência de terceiro no inadimplemento do contrato, o problema poderá ser dirimido em termos simples, tal como o fez Alex Weill.44 Diz Weill que o conceito de abuso de direito não pode ser utilizado em matéria de fraude, sendo ao mesmo tempo insuficiente, falso e inútil. Insuficiente por esbarrar em graves dificuldades para precisar o critério do abu45 so. Invoca-se o critério subjetivo da intenção de prejudicar. Nem sempre, porém, tal se verificará por parte do terceiro, mas, apenas o desejo de obter uma vantagem pessoal. O mesmo se verifica em face do critério econômico de falta de interesse legítimo e do desvio do direito de sua função social. Ademais é falso invocar o conceito de abuso de direito, que pressupõe um direito; ora, na nossa concepção da relatividade das convenções, o direito, para os terceiros, de contratar, com violação de um contrato, não existe; o terceiro comete mais do que um abuso, ou um “depassement de droit”; ele se torna culpado de um ato ilegal, contrário ao direito.46 Na violação do contrato mediante interferência de terceiro, quando haja fraude, existe por parte do devedor um ato doloso em virtude da violação intencional do contrato; por parte do terceiro, a sua intervenção, ciente e consciente da violação da relação contratual, também se caracteriza pela má-fé. Segundo a opinião mais acolhida, como veremos oportunamente, a responsabilidade do devedor é contratual, ao passo que a do terceiro coparticipante na fraude, será uma responsabilidade aquiliana. Ambos agem sem direito, portanto, não se podendo falar em abuso de direito. 15 – A interferência de terceiro na violação do contrato é considerada pela grande maioria dos doutrinadores franceses, como um caso de responsabilidade civil

42. Josserand, “De l’esprit des droits et de leur relativité”, Paris. 1927. ns. 200/201. pág. 252; n. 274, pág. 347; n. 300, pág. 381; Demogue, “Traité des obligations en générale”, vol. IV. n. 687, vol. VII, n. 1.112. 43. Vidal, ob. cit., pág. 341. 44. Ob. cit., n. 247, pág. 424. 45. No capítulo “Do abuso do direito e a responsabilidade extracontratual”, na monografia “Culpa e Risco”, ed. “Rev. dos Tribs.”, 1960, tivemos oportunidade de expor os vários critérios adotados pelos escritores. 46. Ob. cit., n. 243; Josserand, “De l’esprit des droits et de leur relativité”, n. 108, pág. 143; Hugueney, ob. cit., pág. 253 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil extracontratual. Terceiro que intervém, ciente e consciente da fraude do devedor, concorrendo desta forma, para a violação de um contrato anterior, comete uma “culpa delitual”. A lei, diz Savatier, faz aplicação desta ideia, no art. 1.167, regulando a fraude pauliana. É preciso generalizar esta responsabilidade a todos os casos que um terceiro provoca ou auxilia dolosamente um devedor a não executar.47 Mas não se aplica, ao caso, o disposto no art. 1.167, que trata da ação pauliana, mas o disposto na regra geral do art. 1.382, encarado o ato do terceiro interferente como um delito civil.48 Planiol-Ripert-Esmein sustentam que a intervenção do terceiro na violação do contrato constitui ato ilícito, visto como “tôda participação consciente a uma fraude cometida por outrem é igualmente um ato ilícito, como aliás tôda provocação ou participação a um ato ilícito com conhecimento de causa”.49 Entretanto, a doutrina que confunde a responsabilidade decorrente da fraude com a responsabilidade civil, tem encontrado contraditores. Vidal tece em torno da questão longas considerações, chegando à conclusão de que as duas teorias – a da fraude e a da responsabilidade – são independentes. Procuremos resumir os argumentos principais da distinção: (a) As condições de aplicação são distintas, porquanto pode existir fraude sem prejuízo, ao passo que a responsabilidade só pode surgir no caso de um dano ao patrimônio de outrem. (b) No caso de existência de dano decorrente do ato fraudulento, pode não existir uma relação certa, necessária, entre a causa e o efeito, como deve acontecer na hipótese da responsabilidade. Para elucidar estas afirmações, o escritor lança mão de casos concretos. (c) Os fundamentos, e, consequentemente, os efeitos são diversos. O problema da responsabilidade é o da reparação do dano causado pelo ato culposo. A fraude consiste na frustração da regra jurídica; o problema da sua sanção consiste em indagar se é possível tolerar que o caráter obrigatório de uma regra jurídica seja postergado pela mistificação. O problema focalizado pela fraude é o da validade, em direito, do ato fraudulento e não o da reparação de seus efeitos nocivos. A fraude não acarreta a nulidade do ato fraudulento, mas a sua “inoponibilidade” contra a sua vítima; o ato permanece válido entre as partes e em relação a terceiros,

47. “Le pretendu principe de l’effet relatif des contrats”, “in” “Revue trim. de droit civil”, 1934, págs. 527 e segs., n. 25; “Traité de la Responsabilité Civil en Droit Français”, Paris, 1939, n. 144, pág. 187. 48. Gorphe, ob. cit., págs. 87 e segs.: Demogue, ob. cit., vol. VII. n. 1.171; Andrè Brun, “Rapports et domaines des responsabilités contractuelle et délictuelle”, Paris, 1931, n. 206 e segs.; J. Deliyannis, “La notion d’acte illicite”, Paris, 1952, n. 173; A. Weill, ob. cit., n. 244; Jacques Léante, “Les contrats-types”, “in” “Revue Trimestrielle de Droit Civil”, 1953, pág. 154, n. 45; L. e H. Mazeaud, ob. cit., vol. I, n. 144. 49. “Traité pratique de droit civil français”, vol. VI (Obligations), Paris, 1930, ns. 515, 590 e nota 3, pág. 810; Simone Calastreng, ob. cit., pág. 312 e segs.; Hugueney, ob. cit., págs. 199 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 mas é ineficaz relativamente à sua vítima. A ação de inoponibilidade, decorrente da fraude, não visa a assegurar a reparação de um dano, mas tem como conseqüência impedir que se produza o prejuízo; o que se quer é que a regra jurídica, frustrada pelo ato fraudulento seja obedecida de molde a prevalecer, em todos os seus efeitos, o ato jurídico anterior, que se procurou destruir. Assim, por exemplo, exercendo a ação pauliana, suprime-se a possibilidade de um dano.50 O fim da ação contra o fraudador, diz Daniel Bastian, não é o de reparação, mas é o de revogação do ato fraudulento, é uma sanção preventiva, que difere, por isto, da ação de responsabilidade.51 No caso particular da interferência de terceiro na violação da um contrato, de acordo com o devedor, a vítima não propõe ação de reparação do dano sofrido, mas a execução da regra jurídica que, através da fraude, se pretendeu frustrar, declarando-se ineficaz o segundo contrato, de maneira a prevalecer o primeiro.52 Esta teoria procura destacar a teoria da fraude, libertando-a da teoria da responsabilidade. Na verdade a ação contra o fraudador tem por finalidade precípua obter a ineficácia do ato fraudulento, de molde a prevalecer a regra jurídica frustrada. A proclamação desta ineficácia afasta a possibilidade do dano ocasionado pelo ato fraudulento. Consequentemente, só indiretamente obtém a vítima a satisfação do dano sofrido, uma vez que o ato fraudulento se torne inoponível à mesma vítima. Não se trata, pois, de uma ação de responsabilidade “ex delicto”, cuja finalidade exclusiva consiste na reparação do dano, mas numa ação que visa a aplicação de regra jurídica frustrada, a fim de se proclamar a ineficácia jurídica do ato fraudulento contra a sua vítima, restaurando-se a plena eficácia da relação contratual anterior. Se o proprietário vende um imóvel ao primeiro adquirente e logo a seguir vende o mesmo imóvel a terceiro, que consegue rapidamente a transcrição do seu título aquisitivo, surge o problema da fraude, uma vez existentes os seus requisitos. A ação não visa a obter perdas e danos, não é uma ação de responsabilidade delitual, mas tem, como finalidade a proclamação da ineficácia da segunda escritura e da sua transcrição, condenando-se a fraude à lei, com a restauração do imperativo legal que se procurou frustrar. A restauração do império da regra jurídica, que se procurou frustrar, importa em proclamar a ineficácia do ato jurídico fraudulento, e, consequentemente, se restabelecerá a validade e os efeitos da primeira escritura de compra e venda. Não é por causa do dano que se proclama a ineficácia do

50. Vidal, ob. cit., págs. 364 e segs.: Lucienne Hipert, “La reparation du préjudice dans la responsabilité délictuelle”, Paris, 1933, n. 46, págs. 50/51. 51. “Essai d’une théorie générale de l’inopposibilité”, Paris, 1929, págs. 152/153; Japiot, “Des nullités en matière d’actes juridiques”, Dijon, 1909, pág. 26, nota 1; Georges Lutzesco, “Theorie et pratique des nullités”, vol. I, pág. 297. 52. Vidal, ob. cit., pág. 373. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil ato fraudulento, mas em virtude do vício que o infesta – a fraude; condena-se o vício, para assegurar a eficácia das regras jurídicas.53 16 – Pode, entretanto, surgir, a responsabilidade por perdas e danos, a despeito da revogação do ato fraudulento. Estudando as relações entre a teoria da fraude e a da responsabilidade, Vidal, nos aponta três situações possíveis: (a) As condições de aplicação da teoria da fraude estão reunidas, mas não as da teoria da fraude. (b) As condições de ambas as teorias estão reunidas. (c) As condições de aplicação estão reunidas quanto à teoria da responsabilidade exclusivamente. Na primeira hipótese cabe apenas a aplicação da teoria da fraude; a ação revocatória do ato fraudulento visa a obter a declaração de ineficácia do ato fraudulento, tornando-o inoponível ao credor. Restabelece-se o império da regra jurídica que se pretendeu frustrar e restaura-se a eficácia do ato jurídico anterior. No segundo caso, como existem os requisitos da ação de responsabilidade e os da ação contra a fraude, as respectivas ações podem ser propostas, separadamente, obtendo-se, em primeiro lugar a revogação do ato fraudulento e a seguir procura-se obter o ressarcimento dos danos sofridos, com a competente ação de indenização, com fundamento no ato ilícito comum, cometido pelo devedor e pelo terceiro interferente na violação da relação contratual. Podem as duas ações ser cumuladas, tendo como pedido primordial a revogação do ato fraudulento. Neste caso o devedor e o terceiro respondem por uma obrigação “in solidum”.54 Finalmente, na terceira hipótese, só a ação de indenização pode ser proposta, uma vez que não existem todos os requisitos da ação contra a fraude. Como exemplo, cita-se a hipótese da boa-fé do terceiro interferente na violação do contrato; neste caso, é óbvio, a ação de perdas e danos só pode ser proposta contra o devedor fraudulento.55 17 – Quais os elementos indispensáveis relativamente ao devedor e ao terceiro interferente no inadimplemento do contrato, para que se possa determinar a fraude? Quanto ao devedor, o problema não oferece dificuldades e nem comporta divergências. Desde que o devedor viola o contrato, mediante a outorga de nova escritura de transferência dos direitos, que, já constituíam objeto de transação anterior, o seu dolo é manifestamente indiscutível. O problema surge quanto à participação de terceiro, divergindo as opiniões. Para uns é indispensável que tenha havido um acordo fraudulento entre o devedor

53. Vidal, ob. cit., págs. 386 e 390. 54. Demogue, ob. cit., n. 1.185: Giorgio Amorth, “L’obligazione solidale”, Milão, 1959, pág. 70; Vidal, ob. cit., pág. 327; Alex Weill, ob. cit., n. 252; Radu V. Valsanesco, “La solidarieté au cas de faute commune”, Paris, 1931, págs. 110 e segs.; Andre Brun, ob. cit., ns. 300 e segs. 55. Vidal, ob. cit., págs. 374 e segs.; Lucienne Ripert, ob. cit., pág. 50, n. 46. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 e o terceiro.56 Para outros, em grande maioria, basta que o terceiro tenha conhecimento da existência do contrato anterior.57 Diz com razão Ripert, que quem compra a coisa, que já sabia ter sido vendida a outrem, pratica um ato imoral e contribui para uma injustiça.58 O simples conhecimento do contrato anterior admoesta ao terceiro interferente na violação do contrato, que sua co-participação é substancial à efetivação da fraude e conduz, sem dúvida, à existência de um acordo, a um concerto fraudulento. Por mais respeitável que seja o interesse do terceiro, não lhe assiste o direito de ser coautor da fraude do devedor; quem participa e concorre conscientemente, para a prática de um ato ilícito, não pode justificar-se perante o direito e muito menos perante a moral. Na sua citada obra “Le principe de bonne foi”, no capítulo intitulado “La bonne foi exigée dans les actes de tiers”, págs. 77 e segs., François Gorphe passa em revista a jurisprudência e a legislação de vários países, demonstrando que a fraude de terceiro, “cúmplice” da violação de um contrato, caracteriza-se pelo simples conhecimento da fraude do devedor. Assim particularmente à hipótese da aquisição de um imóvel já vendido a outrem, a fraude do terceiro resulta do conhecimento da alienação anterior. Quem conhece a alienação anterior e apesar disso consente em adquirir do mesmo vendedor, “teve o ânimo de espoliar o primeiro comprador de sua aquisição”; e o conhecimento da alienação precedente importa necessariamente na coparticipação da fraude do vendedor. Não é possível conciliar-se a boa-fé do segundo comprador com o seu conhecimento da alienação precedente.59

56. Josserand, “Cours de droit civil français”, vol. II n. 692; “Les mobiles dans les actes juridiques”, n. 191; Emilio Betti, “Teoria generalle delle obbligazione”, pág. 139; “Cours de droit civil comparé des obligations”, Milão, 1958, pág. 105; Achille Giovene, “Il negozio giuridico rispetto ai terzi”, Turim, 1917, pág. 306, n. 70 e nota 2; Mirabelli, “Del diritto dei terzi secondo il codice civ. it.”, Turim, 1889, vol. I, pág. 142, n. 17. 57. Aubry et Rau, “Cours de droit civil français”, 5.ª ed., 1902, vol. IV, § 313; Planiol-Ripert-Radouant, ob. cit., vol. VII, n. 933; Demogue, ob. cit., vol. VII, n. 1.044; Alex Weill, ob cit., ns. 253 e segs.; Vidal, ob. cit., pág. 142 e segs., sustentando que o conhecimento da fraude constitui uma presunção muito forte do concerto fraudulento; Colastreng, ob. cit., pág. 384; Rosario Nicoló, “Tutela del diritto”, “in” “Comentario del codice civile”, dir. de Scialoja e Branca, págs. 214/215; Maierini Giorgi, “Della revoca degli atti fraudulenti”, 4.ª ed., Pirenza, 1912, págs. 187 e 230 e segs.; Luigi Carraro, “La revoca degli atti fraudolenti”, Padua, 1940, n. 45; Pacchioni, “Delle Obbligazioni”, pág. 89; Conforti, “Azione revocatória”, n. 55, “in” “Nuovo digesto italiano”, vol. II, pág. 155. 58. Ob. cit., n. 171. 59. Francesco Ricci, “Corso teorico-pratico di diritto civile”, 3.ª ed., Turim, 1929, págs. 90 e segs., n. 45. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil 18 – Dissentem os escritores quanto à natureza da responsabilidade do devedor e do terceiro, na violação de um contrato anterior. Deve-se sem dúvida a Pierre Hugueney, na sua citada monografia “Responsabilité civile du tiers cumplice de la violation d’une obligation contractuelle”, o estudo pormenorizado da responsabilidade de terceiro, co-participante da violação do contrato. Hugueney sustenta que a responsabilidade do terceiro não é própria, mas de empréstimo, modelada sobre a responsabilidade do próprio contratante-devedor, só podendo ser de caráter delitual. A responsabilidade do devedor, sustentam alguns escritores, ainda que decorra de um delito, qualquer que seja a gravidade do ato por ele cometido, violando o contrato, é sempre uma responsabilidade contratual. Hugueney os combate, para concluir que a responsabilidade do devedor, que viola sua obrigação contratual, deve ser considerada delitual.60 19 – Demogue sustenta, entretanto, a opinião oposta à de Hugueney; para ele a responsabilidade do terceiro é contratual, como a do devedor, porquanto, desde o dia em que ele teve conhecimento do contrato – “il devient adherent a ce contrat”.61 Mas a opinião dominante combate as doutrinas expostas, concluindo que a responsabilidade do contratante-devedor é contratual, ao passo que a do terceiro, interferindo na violação do contrato, com pleno conhecimento de sua existência, é uma responsabilidade delitual. Assim se manifestam H. e L. Mazeaud,62 Savatier,63 Alex Weill,64 S. Calastreng,65 Vidal,66 Betti,67 André Brun68 e outros. A responsabilidade do devedor decorre da violação contratual; embora ilícito o seu ato, ele responde pelas consequências do inadimplemento do contrato. Quanto ao terceiro, estranho à relação contratual, a sua responsabilidade só pode ser delitual, extracontratual, surgindo da participação de ambos, no ato fraudulento, uma

60. Ob. cit., págs. 200 e segs. e especialmente págs. 230 e segs.; Ripert, ob. cit., n. 170; Planiol -Ripert Hamel, “Contrata civils”, vol. X, n. 170. 61. Ob. cit., vol. I, n. 1.176. 62. “Traité theorique et pratique de la responsabilité civile, delictuelle et contractuelle”, 1.ª ed., 1934, vol. I, n. 144. 63. “Traité de la responsabilité civile”, vol. I, n. 114. 64. Ob. cit., n. 247, págs. 428 e segs. 65. Ob. cit., pág. 335. 66. Ob. cit., págs. 326 e segs. 67. “Teoria generale delle obbligazione”, Milão, 1955, vols. III e IV, págs. 189/190. 68. “Rapports et domaines de responsabilité contractuelle”, Paris, 1931, ns. 296 e 297. Êste escritor confere à vítima de fraude a opção entre a responsabilidade contratual e a delitual. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2015 • RDCC 5 obrigação “in solidum”. Esta solidariedade decorre do fato de terem sido ambos autores de um ato ilícito.69 20 – A sanção contra a fraude deve ser a mais rigorosa possível, não só para evitar que se possa burlar o império da lei, assim como para satisfazer de maneira a mais completa possível, o dano sofrido pelo credor lesado. Ora, o mais eficaz meio de reparar o dano é negar eficácia ao ato jurídico praticado pelo devedor e pelo terceiro, partícipe da fraude, sempre que se possa, desta forma, recorrer à execução específica do contrato anterior, restaurando integralmente os seus efeitos jurídicos. Não se trata de apurar a responsabilidade e nem sequer existe uma nulidade a ser decretada; visa-se a tornar ineficaz o ato fraudulento, relativamente ao credor prejudicado. O problema foi focalizado e resolvido pela teoria da “inoponibilidade”, que proclama a ineficácia do ato jurídico fraudulento, em face apenas da vítima do mesmo ato.70 Assim, pois, o ato fraudulento praticado para prejudicar o direito adquirido anteriormente, torna-se ineficaz; se, por exemplo, o imóvel foi vendido pela segunda vez, fraudulentamente, prejudicando os direitos do primeiro comprador, o segundo contrato de compra e venda, realizado fraudulentamente, será totalmente inoponível ao primeiro adquirente.71 Desta forma a fraude terá, como efeito, a sua própria ineficácia e a regra obrigatória frustrada será aplicada, a despeito do ato fraudulento. A sanção contra a fraude, não constituirá apenas uma proteção da vítima, mas será, além da punição mais severa contra os fraudadores, a restauração do império da lei, a defesa da ordem legal. É preciso combater sem tréguas o espírito de desobediência à lei, que constitui “o perigo mortal para o direito, como fonte da desordem, gerando o sentimento da inutilidade da lei”.72 “Na época que atravessamos, verificamos, sob o abandono das idéias morais, a violação dissimulada da lei aceita por pessoas que se jactam de honestas. Técnicos hábeis prestam seu consenso aos interessados. Publicações existem destinadas a ensinar como se frauda.”73 Há, pois, na sanção severa, inflexível e inexorável da fraude, mais do que uma simples reação de justiça; há um combate de profunda significação moral. Os fraudadores já não se limitam aos interesses materiais das suas falcatruas; pos-

69. Demogue, ob. cit., vol. VII, n. 1.135; Planiol-Ripert-Esmein, “Obligations”, VI, n. 290, nota 3, pág. 810. 70. Daniel Bastian, “Essai d’une théorie générale de l’inoposibilité”, Paris, 1929, págs. 13 e 314 e segs. 71. Vidal, ob. cit., pág. 446. 72. Ripert, “Le declin du droit”, págs. 94 e segs. 73. Ripert, “Les forces creatrices du droit”, pág. 187. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

Memória do Direito Civil suem ainda “o vaidoso desejo de afirmar sua superioridade intelectual em face de suas vítimas!”74 Em todas as relações contratuais há um requisito superlegal, qual seja o de um mínimo de dignidade moral, como pressuposto para a eficácia de uma invocação dos direitos.75

Pesquisas do Editorial Veja também Doutrina • A eficácia externa dos contratos e a responsabilidade civil de terceiros, de Hugo Evo Magro Corrêa Urbano – RdPriv 43/180-231, Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos 3/1.0531.100 (DTR\2010\415); • A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e o interferência alheia na execução dos negócios jurídicos, de Otavio Luiz Rodrigues Junior – RT 821/80-98; Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos 3/1225-1250 (DTR\2004\919); e • A responsabilidade de terceiros nas relações contratuais, de Renata Regina Bueno Fernandes – RDPriv 50/227-259 (DTR\2012\38914).

74. Del Vecchio, “La Justice, La verité. Essais de philosophie juridique et morale”, Paris, 1965, pág. 213. 75. Alberto Trabucchi, “Il nuovo diritto onorario”, “in” “Rivista de diritto civile”, 1959, págs. 493 e segs. Lima, Alvino. A interferência de terceiros na violação do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 307-325. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015.

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