A internacionalização do impeachment, o Mercosul e a cláusula democrática

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A internacionalização do impeachment, o Mercosul e a cláusula democrática Publicado em: < http://jota.uol.com.br/internacionalizacao-impeachment-o-mercosul-eclausula-democratica>

Roberto Stuckert Filho/PR

Por José Ribas Vieira Professor de Direito Constitucional na UFRJ

Por Siddharta Legale Professor de Direito Constitucional na UFJF

Por Ranieri Lima ResendeDoutorando em Direito na UFRJ

A Presidente da República do Brasil, Dilma Rousseff, avalia pedir a aplicação da Cláusula Democrática ao Brasil perante o Mercosul. Compreende que processo de impeachment ainda em curso no Congresso Nacional constitui um golpe, sob o fundamento de inexistir crime de responsabilidade, nos termos do art. 85, da Constituição de 1988, e da Lei n.º 1.079, de 1950. A afirmação ocorreu em entrevista concedida a

jornalistas internacionais em 22 de abril de 2016, em sequência a seu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas.[1] A Cláusula Democrática do Mercosul encontra-se positivada noProtocolo de Ushuaia (1998).[2] Trata-se de norma fundamental do Mercosul, ao lado do Tratado de Assunção e de outros protocolos estruturantes do bloco.[3] O seu caráter essencial decorre da constatação de que o pleno funcionamento das instituições democráticas constitui um pressuposto para o ingresso e a permanência no processo de integração dos Estados Partes (art. 1.), vedando-se a “ruptura da ordem democrática” (art. 3.).

O procedimento se inicia com consultas recíprocas entre os demais Estados Partes e com o Estado afetado (art. 4.). Caso tais não surtam efeito, poderão ser aplicadas sanções internacionais que vão desde a suspensão do direito de participar nos órgãos da Entidade, até a suspensão de direitos e obrigações substantivos relacionados aos processos de integração (art. 5.).

As cláusulas abertas previstas no Protocolo de Ushuaia (1998) foram detalhadas no Protocolo de Montevideo (2011),[4] também conhecido como Protocolo de Ushuaia II. De um lado, o Protocolo aborda não só à violação ao princípio democrático e seus valores, mas também da “violação da ordem constitucional” (art. 1.). De outro, as contramedidas tornaram-se mais específicas e severas nos termos do art. 6., tais como o fechamento total ou parcial das fronteiras terrestres; suspensão ou limitação do comércio, do tráfego aéreo e marítimo, das comunicações e do fornecimento de energia, serviços e abastecimento; suspensão do Estado afetado de seu gozo de direitos e benefícios decorrentes dos Tratados do Mercosul; promoção da suspensão do Estado afetado no âmbito de outras organizações regionais e internacionais; promoção junto a terceiros Estados ou grupos de Estados da suspensão de direitos e/ou benefícios do Estado afetado; adoção de sanções políticas e diplomáticas. O Protocolo de Montevideo (Ushuaia II) depara-se com dois problemas centrais. Em primeiro lugar, ainda não se encontra em vigor no plano jurídico-internacional, na medida em que ratificado apenas pela Venezuela,[5] quando necessária a ratificação de quatro membros do Mercosul. Especificamente em relação ao Brasil, o Projeto de Decreto Legislativo n.º 1.290/2013 ainda não foi votado no âmbito do Plenário da Câmara dos Deputados, pois retirado de pauta em junho de 2015.[6] Em segundo lugar, há dúvidas na aplicação da cláusula referente à “ruptura da ordem democrática”, porque não há uma tipificação precisa do seu significado em ambos Protocolos (Ushuaia I e II).[7]

Um problema adicional se situa na definição do tipo de órgão que decidirá sobre a efetiva “ruptura da ordem democrática” do caso concreto, pois isso terá reflexo imediato nos critérios a serem operados no processo interpretativo, ou seja, se serão utilizados parâmetros políticos ou jurídicos. Ilustra claramente a importância desse debate, a aplicação de sanções internacionais pelo Mercosul ao Estado paraguaio por ocasião do impeachment do Presidente Fernando Lugo. Aprovado o impeachmentdo Presidente pelo Congresso paraguaio em 2012, sob o fundamento de mau desempenho das funções presidenciais, os demais Estados Partes do Mercosul efetivaram consultas recíprocas acerca das supostas acusações genéricas imputadas ao Chefe do Poder Executivo, em relação às quais não teria havido prazo suficiente para apresentação de defesa. Tendo em vista que tais consultas resultaram infrutíferas, a [8]

decisão de suspender o Paraguai do gozo de diversos direitos vinculados ao Bloco adveio durante a Cúpula Presidencial de Mendoza, realizada em junho daquele mesmo ano. Uma tentativa de “jurisdicionalização” do conflito foi efetivada pelo Paraguai ao requerer diretamente ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul que declarasse inaplicável a decisão dos Chefes dos Estados Partes que o suspendera, bem como que suspendesse a decisão de incorporar a Venezuela ao bloco nesse período sem a sua anuência.[9] Em síntese, o Tribunal respondeu no sentido de que o acesso direto à sua jurisdição exigia a concordância antecipada de todas as partes envolvidas, a fim de que a decisão final possuísse força de coisa julgada. Tendo em vista que tal pressuposto não foi atendido diante da oposição radical dos Estados demandados, a demanda foi julgada inadmissível.[10] Portanto, a decisão institucional do Mercosul pela aplicação de sanções internacionais ao Paraguai foi titularizada pelo conjunto de Presidentes do Brasil, Argentina e Uruguai, a tornar notória a natureza política de seu órgão prolator e a avaliação discricionária da violação perpetrada à Cláusula Democrática.

[11]

Do ponto de vista do conteúdo, houve severas críticas à decisão do Mercosul por reputar haver deficiência em sua fundamentação.[12]Alegou-se carecer razões de fato e de direito sobre o que especificamente teria gerado a aplicação das contramedidas pela organização internacional. A decisão teria se limitado à argumentação genérica de desrespeito ao devido processo legal no âmbito do processo de impeachment.[13] A decisão do TPR reforça, portanto, a atualidade dos critérios de forte coloração política na definição do que seja uma ruptura democrática na arena do Mercosul, dentro do próprio quadro de membros da Organização. Por tais motivos, já podem

ser vislumbradas divergências acerca da interpretação se houve ou não ofensa à Cláusula Democrática pelo processo de impeachment em curso no Brasil. Note-se que há claras demonstrações em sentido contrário do Paraguai e, mais discretamente, da Argentina.[14] Em contrapartida ou complemento a tal perspectiva, alguns balizamentos de caráter estritamente

jurídico

podem

ser

extraídos

daCarta

Democrática

Interamericana (2001).[15] Há um importante conjunto normativo regente do sistema interamericano de direitos humanos e decisões da Corte Interamericana pertinentes à temática. Essa abordagem mais ampla e rica a respeito da questão do impeachment está a exigir um próximo trabalho. Referências: [1] O ESTADO DE SÃO PAULO. Dilma pedirá ao Mercosul e à Unasul que avaliem ‘golpe em curso’ no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 25 abril 2016. [2] MERCOSUR. Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia

e

Chile.

Disponível

em:

. Acesso em: 25 abril 2016. [3] KLUMPP, Marianne. Schiedsgerichtsbarkeit und Ständiges Revisionsgericht des Mercosur. Heidelberg: Springer, 2013. p. 17. [4] MERCOSUR. Protocolo de Montevideo sobre Compromisso com a Democracia no Mercosul

(Ushuaia

II).

Disponível

em:

. Acesso em: 25 abril 2016. [5] MERCOSUR. Tratados, MERCOSUL.

Protocolos e

Acordos

Depositados

na Secretaria do

Disponível

em:

. Acesso em: 25 abril 2016. [6] CÂMARA

DOS

DEPUTADOS. PDC

n.º

1290/2013.

Disponível

em:

. Acesso em: 25 abril 2016. [7] OLIVAR JIMÉNEZ, M. L. La adhesión de nuevos membros al MERCOSUR: una cuestión fundamental para la evolución de la organización. In: ACCIOLY, E. (Ed.). Direito no Século XXI. Curitiba: Juruá, 2008, apud LIXINSKI, Lucas; CORREA, Fabiano de Andrade. The Legal Future of MERCOSUR. In: FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; LIXINSKI, Lucas; GIUPPONI, María Belén (Eds.). The Law of MERCOSUR. Portland: Hart Publishing, 2010. p. 413-423; 417.

[8] SLOBODA, Pedro Muniz Pinto. A legalidade da entrada da Venezuela no Mercosul. Anuario Mexicano de Derecho Internacional. México, v. XV, 2015, pp. 701-716; 706-707. [9] SANTOS, Ricardo Soares Stersi dos; SANTOS, Rafael de Miranda. Os Vinte e Quatro Anos do Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul e o Caso de Suspensão do Paraguai. Revista Sequência. Florianópolis, n. 70, jan.-jun. 2015, pp. 253-279; 269. [10] MERCOSUR. Tribunal Permanente de Revisión. Laudo n.º 01/2012. Disponível em: . Acesso em: 26 abril 2016. [11] RAMOS, André de Carvalho. Derechos humanos y el mecanismo híbrido del Mercosur: ¿cómo controlar la aplicación de la cláusula democrática? Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión. Asunción, v. 3, n. 6, Agosto 2015, p. 48-68; 63. [12] LAFER, Celso. Descaminhos do Mercosul – a suspensão da participação do Paraguai e a incorporação da Venezuela: uma avaliação crítica da posição brasileira. Política Externa. São Paulo, v. 21, n. 3, jan.-mar. 2013, pp. 19-27; 22. [13] ARGENTINA. Ministério de Relaciones Exteriores y Culto. Cumbre del MERCOSUR Mendoza 2012: decisión sobre la suspensión del Paraguay en el MERCOSUR en aplicación del

protocolo

de

Ushuaia

sobre

compromiso

democrático. Disponível

em:

. Acesso em: 26 abril 2016. [14] VALOR ECONÔMICO. Itamaraty boicota retórica do ‘golpe’. Disponivel em: . Acesso em: 27 abril 2016. [15] ORGANIZACIÓN Interamericana.

DE

LOS

ESTADOS

AMERICANOS. Carta

Disponível

Democrática em:

. Acesso em: 27 abril 2016.

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