A internet como emancipadora do consumidor: a evolução dos selos e produtoras independentes no Brasil

May 25, 2017 | Autor: Karina Moritzen | Categoria: Música, Economia Criativa, Cultura da Convergência, Napster, Música Independente
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO PUBLICIDADE E PROPAGANDA

KARINA MORITZEN BARBOSA

A INTERNET COMO EMANCIPADORA DO CONSUMIDOR: A EVOLUÇÃO DOS SELOS E PRODUTORAS INDEPENDENTES NO BRASIL

NATAL-RN Novembro 2016

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KARINA MORITZEN BARBOSA

A INTERNET COMO EMANCIPADORA DO CONSUMIDOR: A EVOLUÇÃO DOS SELOS E PRODUTORAS INDEPENDENTES NO BRASIL

Monografia submetida ao Curso de Comunicação Social como requisito básico para a conclusão do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Orientador: Prof. Ms. Gustavo Henrique Ferreira Bittencourt

NATAL-RN Novembro 2016

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KARINA MORITZEN BARBOSA

A INTERNET COMO EMANCIPADORA DO CONSUMIDOR: A EVOLUÇÃO DOS SELOS E PRODUTORAS INDEPENDENTES NO BRASIL

Monografia submetida ao Curso de Comunicação Social como requisito básico para a conclusão do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda.

MONOGRAFIA DEFENDIDA E APROVADA EM _____/ _____/2016, PELA SEGUINTE BANCA AVALIADORA:

__________________________________________________________ Prof. Ms. Gustavo Henrique Ferreira Bittencourt Orientador

__________________________________________________________ Membro interno

__________________________________________________________ Membro externo

NATAL/RN, NOVEMBRO DE 2016.

III

Mas hoje o que toca na novela não tem graça, E vai pro rádio pra tocar mais uma vez, Então eu corro pra internet, Sou garoto antenado e baixo o novo embalo quente, Que é de sessenta e seis, Sessenta e seis. O Terno - 66.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a meu orientador Gustavo Bittencourt por aceitar a difícil tarefa de fazer malabarismo com o tempo, à minha mãe por apoiar minha caminhada pela universidade, e a Pedro Lucas pelo papel de orientador extracurricular. Agradeço também ao selo Freak, a Fernando Dotta e Heloisa Cleaver da Balaclava Records, a Felipe Soares da Transtorninho Records, Fred Zgur da Bichano Records, Gui Jesus Toledo do Selo Risco, e Mancha Leonel da Casa do Mancha. Todos esses citados acima são pessoas envolvidas ativamente na cena independente nacional, e que carinhosamente destinaram um pouco do seu tempo para responder minhas perguntas e me ajudar a coletar as informações aqui reunidas.

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RESUMO Este trabalho busca analisar a trajetória das mídias sonoras disponíveis hoje no mercado, culminando na ascensão dos selos independentes. O objetivo é compreender a maneira na qual a internet contribuiu para emancipar o apreciador de música, tirando o poder das grandes empresas e colocando diretamente nas mãos dos artistas e entusiastas da música. Procura-se entender também como essas transformações possibilitaram um aumento no surgimento dos selos e produtoras independentes no Brasil. Palavras-chave: Economia Criativa. Cultura da Convergência. Selos Independentes. Napster. Música Independente.

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ABSTRACT This work seeks to analyse the path of sound media available in markets today, culminating at the rise of independent labels. The goal is to comprehend the way in which the internet contributed to the emancipation of the music lover, taking the power away from big companies and placing it directly in the hands of artists and music enthusiasts. It also searches to understand how these changes made it possible to raise the emergence of independent labels and producers. Keywords: Creative Economy. Convergence Culture. Independent Labels. Napster. Independent Music.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Loja da Starbucks em Fukuoka .............................................................................. 12 Figura 2 – Responsáveis e envolvidos com a turnê gorduratrans Nordeste ........................... 18 Figura 3 – Leitor da Mídia Ninja comemora a liberdade de expressão................................... 21 Figura 4 – O Twitter regozija com a punição de Biel ............................................................. 24 Figura 5 – Divulgação online do disco “Tribunal do Feicibuqui” .......................................... 26 Figura 6 – O cantor Líniker em apresentação ......................................................................... 27 Figura 7 – Lars Ulrich do Metallica entrega nomes de usuários que compartilharam canções da banda .................................................................................................................................... 32 Figura 8 – Anúncio da Sarah veiculado em revistas de música .............................................. 37 Figura 9 – Logotipo da Balaclava Records ............................................................................. 44 Figura 10 – Carne Doce (GO) fechando o Festival C.R.I.A. .................................................. 48 Figura 11 – Integrantes do Selo Risco em sua sede em Perdizes ............................................ 49 Figura 12 – Mancha Leonel na casinha ................................................................................... 51 Figura 13 – Produtos da TranstorninhoRecords ...................................................................... 53 Figura 14 – Logotipo de Bichano Records .............................................................................. 54

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9 2. INDÚSTRIAS CRIATIVAS E O DESENVOLVIMENTO CULTURAL NO NORDESTE ............................................................................................................................ 11 2.1 ARTE VS. PRODUTO ................................................................................................ 13 3

A

INTERNET

COMO

EMANCIPADORA

DO

CONSUMIDOR

-

A

PROLIFERAÇÃO DOS PROSUMERS ............................................................................... 16 3.1 A JOVEM VOZ DO DISCURSO POLÍTICO NAS REDES SOCIAIS ........................ 20 4 CULTURA DA CONVERGÊNCIA - AS MÍDIAS EM PÉ DE IGUALDADE ............ 23 5 A TECNOLOGIA QUE REVOLUCIONOU O CONSUMO DA MÚSICA - O NAPSTER E O MP3 ............................................................................................................... 28 6 UM HISTÓRICO DO SELO INDEPENDENTE MAIS CATIVANTE: SARAH RECORDS ............................................................................................................................... 36 7 A CENA INDEPENDENTE DO BRASIL ANTES DA INTERNET ............................. 41 8 A NOVA CENA INDEPENDENTE BRASILEIRA: A EXPLOSÃO DOS SELOS E PRODUTORAS INDEPENDENTES ................................................................................... 44 8.1 A BALACLAVA RECORDS ............................................................................................ 44 8.2 O SELO FREAK ............................................................................................................. 46 8.3 O SELO RISCO .............................................................................................................. 49 8.4 A CASA DO MANCHA ................................................................................................ 50 8.5 A TRANSTORNINHO E A BICHANO RECORDS ..................................................... 52 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 56 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 61

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1 INTRODUÇÃO Em 2015, dei início a uma produtora independente em Natal/RN chamada Brasinha Produções. A Brasinha surgiu de uma frustração pessoal ao notar que determinados eventos que ocorriam em várias das capitais vizinhas do Nordeste, como Recife e João Pessoa, acabavam por não aportar na cidade do Natal. Em especial, posso citar a turnê Nordeste da banda paulistana O Terno em 2014, que coincidiu com uma época na qual eu não poderia viajar a João Pessoa para assistir o show e mais uma vez não chegou à capital potiguar. Durante a pesquisa, me reconheci como uma “prossumidora”, termo que será discutido amplamente adiante e que significa basicamente: aquele que para de esperar que algo aconteça para fazer acontecer. Nosso lema foi desde o início colocar Natal no mapa dos eventos de produção cultural independentes e alternativos que já eram rotineiros nas capitais próximas, promovendo-os de maneira profissional e responsável apesar de todos os limites que a falta de incentivo fiscal nos apresenta. Descobrimos então que o conceito de independente se apresenta bastante diferente de alguns anos atrás. A realidade de bandas e artistas que tentam sem sucesso disseminar seu trabalho para um público desinteressado mudou completamente. Cada um dos artistas com os quais trabalhamos apresenta um público específico ávido para assisti-los. Dos gêneros mais populares entre nosso público, podemos citar o Rock e a Nova MPB. No caso do último, para nossa surpresa, encontramos um nicho de mercado rentável esperando que algum produtor local o abraçasse. Desde então, tive contato com diversas bandas independentes que percorrem o Brasil mostrando seu trabalho, arrastando uma legião de fãs, admiradores, e curiosos sobre música em geral para os eventos por onde passam. O que tenho visto é uma crescente onda de profissionalismo no underground - em tradução literal o subsolo, aquilo que é subversivo e não se encontra na superfície -, algo que ainda recebe pouca visibilidade na grande mídia mas que, a meu ver, tem chances de se tornar um grande legado da nossa geração. Em Natal, já tivemos contato com bandas independentes de Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, e até da China. Essas bandas são formadas por pessoas na média dos 20 anos, de classe média, em sua maioria homens, que possuem histórias de relação com a música desde muito cedo e abraçaram a oportunidade de tomar o protagonismo de suas respectivas cenas. As turnês muitas vezes são organizadas através de redes sociais como Facebook e Twitter, contando com a ajuda de fãs que, assim como eu, saíram da condição de meros

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expectadores para assumirem o papel de produtores, tornando reais experiências que antes seriam apenas planos. Esse panorama atual da música no Brasil mostra-se extremamente relevante e demonstra uma qualidade que encontrou uma maneira de acontecer através do ambiente democrático de informação promovido pela internet. Nos últimos anos, o desenvolvimento das tecnologias e do acesso à internet tem revolucionado a relação das pessoas com a música. Após passar por diversos tipos de mídia que marcaram determinadas eras, tais quais o vinil, os CD’s e as fitas cassete, vivemos hoje a era da música digital e das plataformas de streaming1. Por fim, chegamos a um momento onde a inovação tecnológica permite que qualquer pessoa com acesso a um computador ou uma câmera de vídeo grave suas produções e as distribua na internet. Não é preciso passar por um processo caro como o de gravação em estúdio e de distribuição de CD's físicos: a tecnologia deu ao artista a possibilidade de autonomia sobre sua própria produção. Esse cenário gerou o que chamamos hoje de cena alternativa brasileira: bandas dos mais diversos lugares desse país enorme e multicultural chamado Brasil passaram a se conectar e a unir pessoas com um interesse em comum: o amor à música. Este estudo pretende registrar o trabalho desses artistas, mapear o envolvimento dos fãs e tornar público à maior quantidade de pessoas possível a revolução que está ocorrendo no que tange à música independente em nosso país. Com a intenção de responder questões como a maneira com qual a internet revolucionou a relação dos fãs com a música; quais acontecimentos acarretaram nas evoluções tecnológicas das mídias sonoras; qual o papel do fã no cenário atual do mercado da música; como surgiram os selos e produtoras independentes que formam a cena alternativa brasileira de hoje; e como esses selos e produtoras mudaram os hábitos das cidades onde estão inseridos. A partir da análise da relação do fã com a indústria cultural através dos anos, leva-se em conta o papel que a internet e a democratização da informação e tecnologia teve em todo este processo. Pretende-se também mapear a evolução das mídias sonoras até as plataformas de streaming utilizadas hoje; exemplificar casos de sucesso de selos, artistas, e produtoras independentes que se mantêm vivos no cenário alternativo; ilustrar a relação entre a internet e as evoluções tecnológicas e o aumento considerável nas produções culturais regionais.

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Plataformas de streaming são empresas que disponibilizam um catálogo de músicas online em um serviço por assinatura, oferecendo uma versão paga e ilimitada, e uma grátis interrompida por anúncios publicitários. Entre as mais conhecidas do mercado podemos citar o Spotify, o Deezer, e o Tidal.

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2 INDÚSTRIAS CRIATIVAS E O DESENVOLVIMENTO CULTURAL NO NORDESTE Durante muito tempo, as Indústrias Criativas representaram um setor do mercado constantemente ignorado por pesquisas relacionadas à economia. Segundo Jeffcut (2009), somente a partir de 2004 os relatórios nacionais e transnacionais passaram a reconhecer o valor do trabalho criativo. Essas pesquisas revelaram que no Reino Unido, as indústrias criativas respondem por 5% do PNB (£112 bilhões do faturamento anual). Para ser considerada uma indústria criativa, as atividades precisavam se encaixar na seguinte descrição: possuir origem na criatividade, habilidade e talento individual; e lidar diretamente com a geração e exploração de propriedade intelectual. O governo inglês classifica os seguintes campos como setores criativos: publicidade, arquitetura, mercado de artes e antiguidades, artesanato, design, design de moda, cinema, software, softwares interativos para lazer, música, artes performáticas, indústria editorial, rádio, TV, museus, galerias e as atividades relacionadas às tradições culturais (BENDASSOLLI et al, 2009, p. 24). Após extensos estudos realizados na Irlanda do Norte, chegou-se à conclusão de que não há “poção mágica” para o desenvolvimento de uma economia cultural. Não basta apenas seguir modelos pré-formados, confiando que repetir os feitos de determinados lugares traga automaticamente o sucesso. É preciso um estudo específico que leve em consideração as circunstâncias, e pense de maneira realista as capacidades e oportunidades. Cada lugar possui suas particularidades, cultura e necessidades. Como exemplo disso, trazemos a rede mundial de cafeterias Starbucks. Ao adentrar um novo mercado, a empresa realiza pesquisas relativas à cultura e aos costumes do local onde deseja se inserir, adaptando-se ao máximo sem perder a essência da marca. No Japão, a cafeteria se uniu a designers locais para entender o que é considerado atrativo no país. Foi descoberto que a religião local, o Shintoismo, era algo de extrema importância para os clientes. Como resultado, foi construída uma loja na província de Fukuoka, na ilha de Kyushu, contendo 2000 pedaços de madeira interligados para dar um sentimento de floresta ao local e reiterar o espírito do Shintoismo: honrar a natureza. 2 Já no Brasil, a Starbucks lançou por tempo limitado o Brigadeiro Frappucino, mostrando mais uma

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JACK FLANAGAN. How Starbucks adapts to local tastes when going abroad. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2016.

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vez uma preocupação bastante justificada em incorporar os hábitos locais onde quer que se instale. Figura 1 - Loja da Starbucks em Fukuoka

Fonte: . Acesso em: 04 nov. 2016.

Devido à natureza recente do campo de estudos sobre indústria e economia criativa, são poucos os pesquisadores no Brasil que atualmente focam seus esforços nessa direção. Em 1997, é encomendada através da Fundação João Pinheiro (MG) - por requisição do Ministério da Cultura - a primeira radiografia do setor econômico cultural do país. Os dados se referem aos anos de 1985 a 1995 e demonstram uma participação quase nula no PIB (em 1997, 0.8%). Todavia, a pesquisa constatou que o número de empregos no setor é superior ao da indústria de eletroeletrônicos, por exemplo. Além disso, o salário médio da produção cultural chegou a duas vezes mais do que o salário médio das atividades econômicas restantes (BERTINI, 2008, p. 74). Esta pesquisa foi de extrema importância para que a economia cultural passasse a ser incluída em discussões e congressos, o que fez com que mais estudiosos se voltassem para o tema no país. Segundo Miguez (2009), a maior parte dos estudos está direcionada ao financiamento da cultura. Em 2006, uma nova pesquisa feita pelo IBGE afirmou que a região Nordeste apresenta a maior quantidade de municípios financiadores de eventos (67%). Neste ano, o Nordeste produziu 78 filmes, 266 publicações culturais e 1.189 eventos. Esses dados demonstram que o investimento em cultura está se tornando cada vez mais significativo. Os números em questão

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servem também para justificar um aumento da cena cultural independente do Nordeste, que atualmente exporta para o resto do Brasil diversos produtos culturais. A rede é universal por totalidade, porque ela aproxima pessoas de vários territórios na intenção, nessa articulação que permite que eu chame de comunitária. E o que isso tem a ver com o grupo? Uma vez que eu faço isso, eu tenho uma outra produção cultural, uma nova forma de produção cultural, que parte das culturas efetivamente locais, regionais, mas que ao se encontrarem na rede, elas estão criando uma nova possibilidade de criação em grupo (AMADEU apud SAVAZONI; COHN, 2009, p. 68).

Em Recife, o Festival No Ar: Coquetel Molotov é um exemplo da expansão do alcance da produção cultural do Nordeste. O Festival, que ocorre há 13 anos, começou no teatro da UFPE e desde 2014 ocorre na Coudelaria Souza Leão, lugar que serviu perfeitamente às necessidades do evento até 2016. Em Outubro deste ano, o festival contou com uma programação que incluía como principais atrações a cantora Céu (SP), o grupo Baiana System (BA), e a rapper curitibana Karol Conka (PR). O evento alcançou proporções inesperadas ao ponto de sua estrutura mostrar-se insuficiente para atender as 7 mil pessoas que compareceram causando muitas filas que geraram inúmeras reclamações. Transtornos à parte, é inegável notar que o festival ganhou fama nacional por sua curadoria impecável e a abertura para artistas novos e promissores. É uma prova tanto de que a cena alternativa vive seu auge, já que os principais artistas eram nacionais, quanto de que a produção cultural do Nordeste não fica atrás de nenhuma das demais regiões do país. 2.1 ARTE VS. PRODUTO É na “Dialética do Esclarecimento” que Adorno e Horkheimer (1985) colocam em questão pela primeira vez o termo “indústria cultural”. Segundo os estudiosos, a indústria cultural na era moderna tratava-se de um segmento de mercado calculista que seguia um padrão pré-fabricado de produção com fins inteiramente capitalistas. Desde o começo do filme, já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar uma música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto. (...) Sua produção é administrada por especialistas, e sua pequena diversidade permite reparti-las facilmente no escritório. A indústria cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o

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detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era, outrora, o veículo da Ideia e como essa foi liquidada (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 118).

A definição acima é utilizada em discussões que visam o mérito do que é de fato arte e do que é um produto fabricado mecanicamente com o intuito simples de gerar lucro para uma determinada empresa. O mérito da distinção entre produto e obra de arte é algo bastante polêmico, mas focaremos aqui em como a internet apresenta uma alternativa animadora aos entusiastas de cultura em geral. Ao fornecer uma opção que foge às regras do mercado, tanto às iniciativas independentes quanto aos consumidores saturados dos produtos culturais feitos com o intuito da venda, a internet ocupa papel essencial na ligação entre essas duas partes. Enquanto havia um monopólio dominado pela grande mídia, as iniciativas independentes não encontravam uma voz que demonstrasse interesse em ecoar aquilo que tinham a dizer. O que temos hoje é uma enxurrada de informações e, cada vez mais, fica à cargo do público continuar consumindo os mesmos produtos para os quais os nossos sentidos já estão treinados para receber, ou surpreender-se e consumir produtos novos e inesperados. No livro “Indústrias Criativas no Brasil” (2009), Lawrence e Phillips propõem um novo foco de estudo e uma nova leva de discussões. Segundo eles: O conceito de indústria cultural, como estamos aqui definindo, origina-se das razões por que um produto é valorizado por compradores em vez de as características inerentes ao produto ou das empresas que o produzem (LAWRENCE; PHILLIPS, apud WOOD JR. et al., 2009, p. 8).

Com isso, Lawrence e Phillips (2009) procuram direcionar os olhares dos estudiosos para o consumo ao invés da produção. É mais interessante, em seu ponto de vista, focar nas práticas de consumo e naquilo que valoriza o produto, do que no processo de produção em si. Este olhar inicia uma nova fase nos estudos da indústria cultural, pois é neste momento em que vemos uma valorização do trabalho intelectual como processo criativo. Segundo Bendassoli et al. (2009), a expressão indústrias criativas começa a aparecer há apenas poucos anos, a partir dos anos 1990, em países industrializados. A temática surgiu na Austrália, em 1994, quando o país cria o conceito de creative nation (MIGUEZ, 2009), e passa a prestar maior atenção a uma política pública onde o Estado assume o papel de incentivar o desenvolvimento cultural do país. Porém, o conceito ganhou maior visibilidade na Inglaterra, onde em 1997, o novo Partido Trabalhista inglês finalmente reconheceu a importância das indústrias criativas como

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um setor em rápido desenvolvimento e direcionou políticas públicas para que seu crescimento fosse estimulado (MIGUEZ, 2009). Entre estas ações de políticas públicas, foi realizado no Reino Unido um mapeamento das atividades criativas e fundado um Ministério das Indústrias Criativas. Vários conceitos podem ser encontrados na literatura sobre a expressão “indústrias criativas”. Para Howkins (2005 apud WOOD JR. et al., 2009, p. 26), “é mais coerente restringir o termo ‘indústria criativa’ a uma indústria onde o trabalho intelectual é preponderante e onde o resultado alcançado é a propriedade intelectual”. Já para o Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Reino Unido (DCMS, 2005 apud WOOD JR. et al., 2009, p. 26), são “atividades que têm a sua origem na criatividade, competências e talento individual, com potencial para a criação de trabalho e riqueza por meio da geração e exploração de propriedade intelectual”. Ao comparar seis definições elaboradas por seis escritores diferentes, Bendassoli et al. (2009) observam que existem quatro componentes principais presentes nelas. Em primeiro lugar, é visível que a criatividade é o critério essencial para a criação de uma propriedade intelectual. Também é possível analisar que a cultura é na verdade definida através de objetos culturais, que possuem seu valor atribuído no momento do consumo, ao invés de levar em conta de fato as propriedades materiais. Por fim, os autores ressaltam a importância da transformação da propriedade intelectual em valor econômico. É aí que entram os selos independentes: a busca atualmente é por uma maneira de transformar o cenário independente em uma alternativa rentável aos músicos e produtores. As iniciativas mais sobresselentes do país serão discutidas mais a fundo ao decorrer deste estudo.

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INTERNET

COMO

EMANCIPADORA

DO

CONSUMIDOR

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PROLIFERAÇÃO DOS PROSUMERS Em 1980, Alvin Toffler (1928-2016), cria o termo “prosumer”, ou “prossumidor”, em seu livro “A Terceira Onda”, que viria a se tornar significativo para a cultura na atualidade. Na época, o autor se referia aos pequenos avanços da indústria que transferiam cada vez mais responsabilidade ao consumidor em detrimento das próprias empresas. Um exemplo interessante citado é o caso da crise petrolífera de 1973/74, quando os postos de gasolina dos Estados Unidos enfrentaram sérios problemas para manter-se abertos e a solução encontrada foi substituir os trabalhadores dos postos pelo próprio cliente, fazendo com que estes utilizassem sozinhos as bombas para abastecer seus carros. O hábito tornou-se regra e perdura até os dias atuais causando certa estranheza, por exemplo, a um turista brasileiro chegando aos Estados Unidos. O que nós vemos é um padrão que corta caminho em muitas indústrias inclusive externalização, aumentando o envolvimento do consumidor em tarefas outrora feitas para ele por outros e mais uma vez, por conseguinte, ocorre a transferência da atividade (...) do setor de troca para o setor de prossumo (TOFFLER, 1980, p. 272).

É muito interessante perceber que Toffler criou o conceito do “prosumer” antes de perceber as mudanças acarretadas pela internet no dia a dia da sociedade, mais especificamente pelas redes sociais. Em 1980, ele previa um modelo de comércio em que o consumidor tinha total autonomia e direito sobre aquilo que iria consumir. Toffler nem sequer imaginava que, em alguns anos, o consumidor teria todas as informações sobre os produtos disponíveis no mercado, os meios de produção, e tudo aquilo que é necessário para que ele mesmo produza aquilo que deseja. Toffler não contava, por exemplo, com o fã que observa sua banda preferida à distância e, cansado de esperar a passagem dela em sua cidade, decide ele mesmo fazer o papel de produtor. Como exemplo, podemos citar a banda mineira Lupe de Lupe que em 2015 realizou uma turnê chamada “Sem Sair na Rolling Stone” pelo país de carro, com shows organizados através das redes sociais com a ajuda de pequenos produtores, amigos e fãs. Este caso é muito interessante, pois ao final da turnê a banda divulgou na internet uma prestação de contas onde descreveu minuciosamente os custos e ganhos da viagem, onde perderam e ganharam

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dinheiro, o que é de valor imensurável para outras bandas que pretendem seguir o mesmo caminho.3 A turnê rendeu bons frutos e incentivou outros artistas a repetirem a experiência. Em fevereiro de 2016, a banda carioca gorduratrans realizou uma turnê de sete shows em seis cidades pelo Nordeste, contando apenas com a ajuda de amigos e fãs. A movimentação começou através de conversas no Twitter, e tornou-se uma possibilidade real graças aos esforços dessas pessoas. Nós somos absurdamente ligados à internet. Tanto na nossa vida pessoal, como na profissional, e enquanto banda também. Muitas das decisões que nós tomamos em relação à banda foram feitas na internet; a grande maioria do conteúdo musical que consumimos vem da internet; grande parte dos amigos que conhecemos pela banda não é da nossa cidade, então nosso contato com eles também é pela internet. E toda essa rede de contatos que hoje existe entre as bandas e selos do país inteiro só é possível graças à existência da internet. Hoje nosso disco pôde chegar ao ouvido de pessoas que moram tão longe da gente também graças à internet. Então posso dizer que nós somos dependentes da internet nesse aspecto”, explica o guitarrista Felipe Aguiar (AGUIAR, 2016)4.

O intercâmbio de bandas entre regiões do Brasil, algo que anteriormente seria muito difícil considerando o tamanho continental do país e os custos relacionados ao deslocamento de em média 4 integrantes por banda, tornou-se algo bastante comum. Em 2016, as bandas Amandinho (PE) e Talude (RN) realizaram turnês pelo Sudeste, enquanto bandas como Ventre (RJ), Catavento (RS), e My Magical Glowing Lens (ES) aproveitaram a passagem pelo Festival DoSol em Natal para estender-se por uma turnê pela região Nordeste. Em todos esses eventos, o denominador comum é: a internet, os amigos e os fãs na condição de produtores.

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LUPE DE LUPE. Turnê “Sem Sair Na Rolling Stone” - A Prestação de Contas. (14 set. 2015). Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2016. 4 AGUIAR, F. Da internet para a estrada: depoimento. [22 jun. 2016]. Recife: Rock Jovem. Entrevista concedida a Danilo Galindo. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2016.

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Figura 2 – Responsáveis e envolvidos com a turnê gorduratrans Nordeste

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

A internet é basicamente uma grande formadora de prossumidores, fornecendo àquele que se dá ao trabalho de buscar a informação necessária para solucionar qualquer que seja o problema assolando o pesquisador. Um de meus amigos, que recentemente comprou um velho harmônio e desejava consertá-lo (ao mesmo tempo que temia o custo da restauração), contou-me que encontrou na Net dois sites que explicavam em detalhes os passos a seguir para consertar harmônios e um newsgroup no qual obteve as respostas para as últimas dúvidas que o perturbavam (LEVY, 1999, p. 86).

O exemplo de Levy nos mostra que as redes sociais são o elo perdido do quebracabeça que Toffler montou em 1980, ou seja, a peça que faltava para que o mercado ficasse independente das grandes empresas, democratizando o comércio e possibilitando o surgimento de iniciativas autônomas. Existem diversos tutoriais ao longo da rede que ensinam os segredos para realizar as mais variadas tarefas, muitos deles inclusive hospedados no Youtube contendo registros visuais, o que facilita ainda mais o processo de aprendizagem do internauta. O selo musical de Caxias do Sul, HoneyBomb Records, é também um exemplo do uso das redes sociais para capacitar e ajudar a divulgar conhecimento que nas mãos de pessoas capazes, pode gerar frutos e mais iniciativas independentes. Foco aqui na POLÉN, que é

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descrita em sua página no Facebook como “um espaço para conversar sobre o funcionamento do mercado musical independente brasileiro”5. A POLÉN foi a plataforma encontrada pela HoneyBomb para ampliar o alcance da discussão online sobre a cena alternativa musical atual. Ela se utiliza de textos, podcasts, vídeos, e até conversas múltiplas via Google Hangout transmitidas via Youtube. Como exemplo da última opção, cito a conversa sobre financiamento coletivo (uma espécie de “vaquinha” online) que envolveu bandas bem sucedidas na utilização do artifício - como a potiguar Mahmed e a gaúcha CuscoBayo - assim como especialistas que trabalham com consultoria na área. Dessa maneira, a HoneyBomb mostra-se muito valiosa para a cena nacional, tanto pelo trabalho musical, quando pelo informacional que desempenha. Em mais uma afirmação assustadoramente atual de Toffler (1980), a desmassificação dos meios de comunicação de massa é colocada em questão: A desmassificação dos meios de comunicação de massa desmassifica igualmente as nossas mentes. (...) Hoje, em vez de massas de pessoas recebendo todas as mesmas mensagens, grupos desmassificados menores recebem e enviam grandes quantidades de suas próprias imagens de uns para os outros. (...) Isto, em parte, explica porque as opiniões, sobretudo de música pop e política, estão cada vez menos uniformes. O consenso se despedaça. Num nível pessoal, são todos cercados e assaltados por fragmentos de fantasia, contraditória ou desconexa, que abala as nossas velhas ideias (TOFFLER, 1980, p. 171).

Com a internet, diversas opiniões tornam-se acessíveis e facilmente difundidas através da rede. A democratização que as redes sociais proporcionam ao usuário transformam as opiniões de cada um equivalentes às outras em nível de importância e alcance, excluindo deste pensamento as postagens patrocinadas e alavancadas através de mecanismos disponibilizados por estas redes. Aquilo que identificamos, de forma grosseira, como “novas tecnologias” recobre na verdade a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo que se cristaliza sobretudo em volta de objetos materiais, de programas de computador e de dispositivos de comunicação (LEVY, 1999, p. 28).

Na internet, discursos podem alcançar distâncias nunca antes imaginadas. Através de plataformas como Youtube, Facebook e Twitter, a informação circula rapidamente para

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Página oficial da POLÉN no Facebook. (2016). Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2016.

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qualquer lugar do globo. Os assuntos viralizam facilmente e as pessoas podem experimentar um súbito sucesso ou fracasso graças à rede. 3.1 A JOVEM VOZ DO DISCURSO POLÍTICO NAS REDES SOCIAIS Recentemente, o discurso de uma adolescente de 16 anos na Assembleia Legislativa do estado do Paraná chegou a ser noticiado na revista americana Forbes após viralizar nas redes sociais brasileiras. No vídeo, Ana Júlia denuncia o descaso da política com a educação e defende o movimento conhecido agora como primavera secundarista, que consiste na ocupação de inúmeras escolas e universidades ao longo do país contra as reformas do ensino médio e a PEC 241/55, que congela os gastos em saúde e educação por 20 anos.6 A atual diversificação dos canais de comunicação é politicamente importante porque expande o conjunto de vozes que podem ser ouvidas: embora algumas vozes tenham mais proeminência que outras, nenhuma voz sozinha fala com autoridade inquestionável. A nova mídia opera sob princípios diferentes daqueles que regiam a mídia de radiodifusão que dominou a política americana por tanto tempo: acesso, participação, reciprocidade e comunicação ponto a ponto, em vez de um-para-muitos. Em vista desses princípios, podemos antever que a democracia digital será descentralizada, dispersa de forma desigual, profundamente contraditória e vagarosa em seu surgimento (JENKINS, 2009, p. 288).

Jornais alternativos como a Mídia Ninja e o Jornalistas Livres compartilham frequentemente através de seus perfis nas redes sociais conteúdos de cunho político, seja denunciando a violência policial, seja discutindo temas que não são de interesse para a mídia hegemônica, e mais obscuramente para aqueles que a financiam por trás das cortinas.

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SHANNON SIMS. Brazil's Youth See Their Future, And Her Name Is Ana Júlia. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2016.

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Figura 3 – Leitor da Mídia Ninja comemora a liberdade de expressão

Fonte: . Acesso em: 04 nov. 2016.

O jornalista Glenn Greenwald, estadunidense que mora hoje no Brasil, é também um grande exemplo de uma nova iniciativa que ganhou voz na internet, sendo o criador do jornal The Intercept, fundado com o objetivo inicial de divulgar informações fornecidas por Edward Snowden sobre a espionagem mundial da NSA, agência de segurança nacional estadunidense. O jornal discute principalmente política e possui uma versão em português, denunciando escândalos brasileiros que passam propositalmente despercebidos da mídia tradicional. Existem também outros jornais estrangeiros existentes apenas no âmbito online no Brasil que acabam por fazer o papel de um jornalismo profissional e isento, como o El País e a BBC. Ao não receber verbas de publicidade do Governo Federal, estes jornais acabam representando uma escapatória para aqueles que buscam informação não tendenciosa. Para barrar estes veículos, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) entrou com um recurso no Supremo Tribunal Federal na tentativa de proibir a atuação deles no Brasil invocando o marco regulatório de Comunicação Social.7

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CONJUR. ANJ vai ao STF para que portais de notícia sigam mesmas leis que jornais. Disponível em:. Acesso em: 05 nov. 2016.

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Pelo menos por enquanto, a informação corre livre assim das amarras que seguraram por décadas os grandes conglomerados de comunicação existentes no Brasil, correspondentes a oligarquias que disseminam seus interesses através de uma programação desatualizada e que reflete valores conservadores. O padrão privado, comercial e oligopolista de radiodifusão se estabeleceu de forma integrada ao capitalismo monopolista brasileiro, consolidado pela Ditadura Civil-Militar, que promoveu a indústria de bens de consumo duráveis e semiduráveis, mantendo um sistema político-econômico conservador e socialmente excludente de amplos setores de baixa renda. Estabeleceu-se, entre os anos 60 e 80, um tipo de dominação marcado pela estética da mercadoria, baseado na promoção do consumo concentrado nos estratos de renda mais altos, na hipertrofia do espaço reservado ao entretenimento, na reprodução dos discursos oficiais e com pouco espaço para a expressão da diversidade social e de pontos de vista. (...)Além da Globo, os poucos indivíduos e grupos selecionados pela Ditadura, ou que já existiam e passaram pelo filtro da ideologia da Segurança Nacional, conformaram basicamente a burguesia radiodifusora que domina o setor até hoje. Esse grupo só vai se ver desafiado, recentemente, pela invasão do capital estrangeiro no setor de TV paga e de internet, dada a convergência dos mercados, e pelo fortalecimento das igrejas cristãs na radiodifusão (MARINONI, 2015, p. 14).

A história da democracia sofre uma reviravolta que não ocorria há décadas com a popularização da internet. Vivemos hoje uma era de polarização política extrema no Brasil, algo que surgiu com as manifestações de 2013 e se intensificou durante as eleições presidenciais de 2014, para atingir o auge no período do golpe parlamentar de 2016. A mídia exerceu papel direto em todos os acontecimentos políticos que marcaram este período e o fato de que exista uma polarização de ideias é consequência direta da quantidade de informações distintas estão disponíveis ao espectador, em detrimento de épocas anteriores, onde apenas um ponto de vista era propagado. Ao mesmo tempo em que o cidadão torna-se emancipado politicamente pelos novos dados que foram disponibilizados a ele, seus interesses e consequentemente os produtos que consome sofrerão também uma mudança. Aquele indivíduo comum que antigamente conhecia novas músicas apenas através de revistas, jornais e televisão, agora pode encontrar todo um novo acervo musical a um clique de distância. A abertura das redes forneceu o espaço que o mercado nacional precisava para mostrar ao público tudo o que aprendeu no cenário independente underground, apresentando um produto profissional e de qualidade semelhante e por vezes melhor ao que costumava antes ser importado de países estrangeiros.

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4. CULTURA DA CONVERGÊNCIA - AS MÍDIAS EM PÉ DE IGUALDADE Henry Jenkins (2006) em seu livro “Cultura da Convergência” elenca as mudanças que Toffler havia previsto em 1980, mostrando como a internet teve um poder avassalador de unir culturas e originar conteúdo de maneira democrática, fazendo com que este alcance qualquer parte do mundo. Já na introdução, Jenkins relata o nascimento do que pode ser tratado como um dos primeiros memes. É relatada a história de Dino Ignacio (estudante secundarista filipinoestadunidense) e de sua montagem que unia Beto, do programa de TV infantil americano Vila Sésamo, a uma imagem de Osama Bin Laden. A brincadeira atingiu níveis exorbitantes quando protestantes no Oriente Médio imprimiram a imagem de Dino em seus cartazes, utilizando-a em protesto contra o governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que a rede de TV americana CNN transmitiu o acontecimento, consequentemente levando a imagem às salas de estar de milhares de americanos. Este exemplo serve para ilustrar a democratização que a internet acarretou no processo de globalização, como foi citado anteriormente. Logo após este exemplo, Jenkins declara: “bem-vindo à cultura da convergência, onde as velhas e as novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (JENKINS, 2009, p. 29). A possibilidade de uma resposta rápida e instantânea do consumidor acarreta grandes mudanças. Diferentemente da mídia hegemônica onde o espectador possui somente o papel de receptor da mensagem, as redes sociais fornecem uma plataforma para que haja finalmente uma resposta ao conteúdo disseminado. A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros, e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento (JENKINS, 2009, p.29).

Como usuária do Twitter, observei em 2016 um fenômeno impressionante que serve de exemplo de como a internet tem o poder de julgar o conteúdo que é veiculado nas outras mídias. É interessante contextualizar que uma situação como a relatada a seguir seria impensável na era de ouro da TV e do rádio, onde o lugar do espectador era apenas de receptor e não de produtor de conteúdo.

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O cantor de pop Biel no início do mês de Junho se viu no meio de uma polêmica envolvendo uma jovem jornalista, que foi à mídia denunciar assédio sexual sofrido durante uma entrevista. Um dos motivos para que a acusação fosse tão forte foi o fato de que havia uma gravação em áudio comprovando o acontecido, já que frequentemente a palavra das vítimas deste tipo de crime é desconsiderada. O áudio foi disponibilizado na internet e dessa maneira o caso foi parar na delegacia, e consequentemente nas páginas dos maiores jornais e tablóides do país. Incrivelmente, esse caso não foi o suficiente para destruir a reputação do cantor. A jornalista, no entanto, estagiária do portal de notícias IG, perdeu o estágio. Após um tempo de polêmica, ele gravou um vídeo onde pedia desculpas às fãs e o caso ficou por isso mesmo. Até que certo dia, um vídeo de Biel apresentando-se em uma festa repetindo as palavras proferidas à jornalista no microfone em cima do palco viralizou, mostrando que para ele, a situação era uma piada. Os internautas então tomaram para si o trabalho de expor o cantor: ao pesquisar seus tweets antigos encontraram declarações homofóbicas, racistas, e como era de se esperar, misóginas. A hashtag #ErrarÉHumanoPersistirÉBiel chegou ao topo dos assuntos mais falados do dia e, como é de praxe na internet, a história virou piada e diversos memes foram produzidos sobre o assunto. Figura 4 – O Twitter regozija com a punição de Biel

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

Biel então voltou novamente às manchetes, mas dessa vez com a notícia de que havia perdido o contrato com a gravadora Warner, vendido o carro Porsche que comprou, saído de sua mansão no Rio de Janeiro e voltado para a casa dos pais em Lorena, SP. Porém, continuou

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com a agenda de shows e postou imagens em estúdio no Instagram. Fica a dúvida se a perseguição da internet continuará ou se o cantor conseguirá continuar uma carreira depois do ocorrido. Outro exemplo prático da cultura da convergência é o do tropicalista Tom Zé, que em 2013 aceitou participar de um comercial da Coca-Cola, o que lhe rendeu diversas críticas nas redes sociais. Em fevereiro, Tom Zé emprestou sua voz para a locução de um comercial de refrigerante, "A copa de todo mundo". A propaganda trazia as costumeiras imagens festivas do Brasil, emolduradas por um discurso inclusivo que associava o País de todo o mundo ao esporte de todo mundo e à bebida de todo mundo. A gritaria contra o artista foi notável: ele foi julgado e condenado nas redes sociais como "vendido". A premissa é que o "artista autêntico" não pode fazer propaganda, ainda mais do refrigerante gringo, ícone do capitalismo. Curioso é lembrar que o episódio aconteceu poucas semanas antes da onda de protestos de junho, que também encontrou nas redes sociais um ponto de mobilização e articulação.8

Tom Zé respondeu com uma extensa reflexão em sua página no Facebook, onde afirmou estar perdendo o sono graças a polêmica9. No mesmo ano, o músico lançou rapidamente um EP duplo chamado “Tribunal do Feicibuqui”, vendido em formato de vinil prensado na República Checa em apenas 500 cópias, tornando-o um item de colecionador. No disco, o cantor traz canções como a faixa que dá título ao EP e “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”. O trabalho conta ainda com a participação de diversos artistas da nova cena nacional, incluindo O Terno e Emicida. Papa Francisco vem perdoar O tipo de pecado que acabaram de inventar O povo, querida, com pedras na mão Voltadas contra o imperialismo pagão Sou a garotinha ex-tropicalista Agora militando em um movimento Já não penso mais em casamento Mas se tomo coca-cola acho que estou me vendendo Mas eu sei que Papa Francisco vem perdoar O tipo de pecado que acabaram de inventar 8

WILSON ALVES BEZERRA.Tom Zé, um artista que se imola e devora as críticas. Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016. 9 "SOBRE O ANÚNCIO DA COCA-COLA" (Texto disponível na página oficial de Tom Zé no Facebook. 08 mar. 2013). Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016.

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O povo, querida, com pedras na mão Voltadas contra o imperialismo pagão Meu coração fundamentalista Pede socorro aos intelectuais Pois a diferença entre esquerda e direita Já foi muito clara, hoje não é mais10

Ao final, Tom Zé doou seu cachê de 80 mil reais para a Sociedade Lítero-Musical 25 de Dezembro de Irará, já que passou a se sentir desconfortável com a quantia depois das críticas, apesar de se reconhecer como pobre e trabalhar como jardineiro do próprio prédio. Tom Zé comentou a polêmica, falou sobre o trabalho que surgiu a partir dele e disse que não está esbanjando. "Eu sou pobre, continuo pobre. Agora, a banda de Irará precisa e esse dinheiro estava me atrapalhando, me incomodando, resolvi doar. Estou nervoso hoje por causa disso. Estava agora com a minha mulher fazendo as contas e está um aperto 'fela da puta'", explicou.11

Dessa maneira, o tribunal da internet demonstra sua relevância e mostra também que não perdoa, apesar de nem sempre estar do lado da razão. Temas polêmicos e conservadores que fariam sentido na mídia hegemônica pré-era da convergência não são mais aceitos, sendo duramente criticados. Figura 5 – Divulgação online do disco “Tribunal do Feicibuqui”

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

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"Papa Francisco Perdoa Tom Zé" (Compositor: Tim Bernardes; Intérprete: Tom Zé). Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016. 11 UOL. Tom Zé diz que vai doar R$ 80 mil de comercial polêmico da Coca-Cola. Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016.

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O feminismo, o protagonismo LGBT, o ativismo negro, dentre outros tópicos progressistas encontram finalmente o espaço necessário para levar tais pautas adiante, o que se reflete também no cenário musical. Jaloo (PA), Líniker (SP) e Johnny Hooker (PE) são exemplos de artistas que trouxeram à tona temas como identidade de gênero e ativismo LGBT, enquanto Karol Conka (PR) e MC Carol (RJ) exaltam em suas letras o feminismo e o ativismo negro. Figura 6 – O cantor Líniker em apresentação

Fonte: . Acesso em: 04 nov. 2016.

Ao vivenciar um mundo onde a convergência das mídias acaba com a hierarquia existente até então, a indústria e o mercado da música são atingidos diretamente e sofrem um grande impacto do qual ainda estão em processo de reestruturação. Ao alterar os hábitos de consumo, a internet desarticula todo um sistema extremamente lucrativo que esteve instaurado por décadas.

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5. A TECNOLOGIA QUE REVOLUCIONOU O CONSUMO DA MÚSICA - O NAPSTER E O MP3 Voltando nossos olhares para o mundo da música, é impossível falar sobre as mudanças na indústria sem falar sobre o Napster. Porém, para contar a história do Napster, é preciso falar antes sobre o mp3. As informações a seguir foram coletadas em um podcast (uma espécie de programa de rádio no formato da web) que conta com uma entrevista com o próprio Karlheinz Brandenburg, frequentemente conhecido como o pai do mp3 - título que rejeita para humildemente dividir o crédito com seus colegas de pesquisa. O áudio está em plataformas online como o Youtube e o Soundcloud, além de estar também disponível para download. A entrevista completa encontra-se descrita na página do Internet History Podcast, site responsável pelo conteúdo12. Nos anos 80, Brandenburg era um doutorando na Universidade de ErlangenNurenberg, estudando uma interseção entre os cursos de Engenharia Elétrica e Matemática. Seu orientador, Dieter Seitzer, era pioneiro no ramo da “psicoacústica”, matéria que se dedica a compreender como os seres humanos percebem o som. O ouvido humano não recolhe todas as frequências de um ambiente como um microfone. Na realidade, nós escutamos o que ao longo da evolução foi selecionado como os sons mais importantes para nossa sobrevivência. No início da digitalização da música, havia uma preocupação em captar todas as frequências de áudio possíveis, o que para Seitzer era claramente um equívoco. No início dos anos 1980, Seitzer criou um projeto que chamava de “jukebox digital”. Sua ideia era usar as linhas de telefone que estavam na época sendo instaladas pela Alemanha para transmitir música através de pedidos do cliente, algo que se assemelha às plataformas de streaming existentes hoje. O grande problema na época era o tamanho demasiado dos arquivos que tornava impossível suas transferências, já que os níveis necessários de compressão seriam por volta de 128.000 bits por segundo. Por este motivo, o pedido de patente à invenção foi negado a Seitzer.

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BRANDENBURG, K. On The 20th BirthdayOf The Mp3, An Interview With The 'father' Of The Mp3, KarlheinzBrandenburg: depoimento [13 jul 2015]. New York: Internet history podcast. Entrevista concedida a Brian McCullough. Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016.

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Ele (Seitzer) estava procurando um estudante de PhD que aceitasse o assunto. E tenho que admitir, eu sabia o suficiente sobre o estado da invenção que pensei “OK, o examinador da patente está certo; eu vou fazer umas análises para provar que isso é impossível. Isso vai me garantir um PhD, e logo após eu posso perseguir algo real (trecho da entrevista de podcast com Karlheinz Brandenburg, jul. 2015)13.

A grande surpresa de Brandenburg ao estudar o assunto foi descobrir que, afinal, a invenção não era impossível. A resposta encontrada para o problema foi comprimir os arquivos de maneira que o ouvido humano não notasse a diferença, ou seja: economizando espaço no arquivo ao desperdiçar aquilo que era irrelevante à percepção humana. Já que tons mais graves cancelam tons mais agudos, se houvesse uma gravação com instrumentos que se sobrepõem, Brandenburg poderia designar menos bits aos sons que não seriam audíveis para o ouvinte. Outro exemplo é relacionado ao fato interessante que o cérebro humano cancela o barulho antes e depois de um ruído alto. Então Brandenburg poderia eliminar alguns preciosos bits, digamos, de uma batida alta de chimbal (trecho da entrevista de web radio com Karlheinz Brandenburg, jul. 2015)14

O algoritmo de Brandenburg funcionava interativamente, então a cada vez que o arquivo era submetido ao procedimento, a compressão ocorria de maneira mais intensa. É interessante lembrar que toda essa pesquisa foi feita com um orçamento limitado e computadores antigos coerentes com a década de 1980. Em 1986, Brandenburg registrou sua primeira patente do algoritmo aos 31 anos, antes sequer de defender sua tese. Seitzer e Brandenburg mudaram-se então para o Instituto Fraunhofer, onde havia uma equipe inteira à sua disposição e um orçamento mais robusto. Apesar do aperfeiçoamento, a tecnologia e a confiança em seu potencial, foi difícil para comercializá-la, tendo o mp3 perdido batalhas iniciais para o mp2, produzido pelo grupo MUSICAM financiado pela Phillips. Por volta dos anos 1990, quando tudo parecia perdido para o mp3, surgem dois elementos que mudariam tudo: o Windows 95 e a internet. Com o Windows Media Player rodando o formato e a aceitação orgânica posterior de toda a internet, o mp3 finalmente estabeleceria seu lugar como o novo formato de música padrão. O mp3 foi o passo essencial para viabilizar o segundo grande desenvolvimento tecnológico musical da década de 90, o Napster. 13

BRANDENBURG, K. On The 20th Birthday Of The Mp3, An Interview With The 'father' Of The Mp3, Karlheinz Brandenburg: depoimento [13 jul 2015]. New York: Internet history podcast. Entrevista concedida a Brian McCullough. Disponível em:. Acesso em: 04 nov. 2016. 14 Idem.

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No documentário Downloaded15 de 2013 - que ironicamente chegou até mim através de um download -, conhecemos a história de Shawn Fanning, um estudante da Universidade da Carolina do Norte que largou os estudos para perseguir o que via como uma maneira de compartilhar música e conhecer pessoas com gostos similares. Da mesma maneira que Shawn conheceu em fóruns na internet aqueles que com ele construiriam o Napster, inúmeras outras pessoas tornaram-se interligadas pelo interesse em comum pela música. Eu não me sentia conectado à minha família intelectualmente, não havia muitos outros na escola com os quais eu me conectava também, então eu me sentia muito perdido e deslocado às vezes. Ficar online e encontrar pessoas que tinham os mesmos interesses, em um lugar onde sua reputação era criada por você mesmo, não tinha a ver com o quão bem sucedida financeiramente era a sua família, ou como você se vestia, ou se você falava bem, ou a linguagem corporal, tinha a ver com o mérito do que você estava dizendo, o que para mim era intoxicante. Shawn Fanning, criador do Napster (DOWNLOADED, 2013).

O software representou uma das maiores revoluções tecnológicas da década e transformou inteiramente a relação entre o ouvinte e a música. Criado em 1999, permitia que o usuário fizesse download de faixas em sua maioria no formato mp3 de maneira descentralizada, unindo os interessados por música em uma rede de compartilhamento tão extensa quanto o alcance da própria internet. Ao mesmo tempo em que o Napster oferecia uma plataforma para o compartilhamento de música, havia também uma janela de bate-papo que permitia que essas pessoas conversassem entre si. Dessa maneira, surgiu a possibilidade de um diálogo entre internautas que apesar de estarem localizados nas mais diversas partes do mundo, possuíam interesses musicais em comum. Isso pode ser analisado como uma das primeiras formas de rede social que inspirariam o MySpace e o Facebook, por exemplo. Os anos 1980 são citados como a época de ouro das vendas de música, quando vários selos independentes - como Island Records e a A&M Records - estavam em negociação com grandes corporações. A indústria da música movimentava uma quantidade massiva de dinheiro, o que foi afetado severamente com o surgimento do Napster. Inicialmente, o programa foi divulgado no IRC (Internet Relay Chat) - uma plataforma de bate-papo online, e começou a se popularizar através do boca a boca. Segundo Fanning, um momento que alavancou o crescimento da rede foi um artigo no site de tecnologia ZDNet, que tocava nos aspectos legais do Napster e em como o programa facilitava o encontro de 15

Documentário dirigido e escrito por Alex Winter.

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músicas pirateadas na internet, o que gerou uma imensa resposta de downloads. Após isso, o Napster virou uma empresa, contratou pessoas e montou um escritório no sudeste da Califórnia. Agregando 10 milhões de usuários nos primeiros seis meses e atraindo uma taxa de crescimento de 200.000 novos usuários em um só dia, o serviço de compartilhamento de música Napster.com se tornou o centro turbulento de uma nova realidade que aterrorizou até os mais experientes executivos do mundo da música. Nós introduzimos a ideia de uma forma social de emancipação. Uma forma social de emancipação é teorizada como um sistema social relacionado ao consumo, auto-referencial e de maneira operacional fechada, que através da comunicação social está engajado em um processo permanente de prover uma distinção social entre si mesmo e o seu ambiente. (GIESLER; POHLMANN, 2003, s/p).

O Napster dividia a opinião dos artistas: enquanto uns o consideravam roubo, outros o viam como a maior revolução da música desde o disco compacto. Enquanto os grandes nomes da música viam seus direitos autorais sendo compartilhados sem que fossem recompensados financeiramente, o documentário mostra o exemplo da banda Dispatch, que sem apoio algum da mídia acabou por construir uma base de fãs em lugares que nunca havia sequer tocado antes, graças ao compartilhamento de suas músicas na internet. De repente, toda a indústria da música e as grandes gravadoras foram obrigadas a lidar com o fato de que os usuários poderiam compartilhar música entre si, escanteando a compra de CDs físicos, algo que por anos financiou grandes empresas e o estilo de vida ostentado pelas estrelas do rock/pop. Como retratado no documentário Downloaded (2003), a resposta foi um processo milionário arquivado pela Associação da Indústria dos Discos dos Estados Unidos (RIAA). A história do processo estava em todos os noticiários e envolvia nomes conhecidos da indústria. A situação chegou ao ponto em que a banda Metallica foi ao escritório do Napster para entregar caixas de papelão contendo papeis onde estavam escritos os nomes de usuários que infringiram seus direitos autorais, exigindo que estes fossem expulsos da plataforma. O acontecimento foi feito diante de várias câmeras da imprensa, que novamente mostravam um interesse nacional pelo desenrolar da história. Ao mesmo tempo que demonstra uma falta de contato com a tecnologia ao usar folhas de papel ao invés de alternativas modernas, o Metallica exibiu publicamente a posição dos artistas e da indústria da música naquele momento: eles queriam que as coisas voltassem ao modo como eram antes. Ao invés de admitir o futuro e criar novas estratégias para tornar a

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música digital lucrativa, como acontece hoje com o Spotify e o iTunes, a posição da indústria foi realizar uma caça às bruxas e lutar judicialmente contra uma revolução inevitável. Metallica e o Dr. Dre tomaram o protagonismo da luta contra o Napster. Ironicamente, a primeira é uma banda de metal e o segundo é um rapper, dois gêneros musicais que historicamente lutam contra o conservadorismo e são a voz da contra-cultura. Figura 7 – Lars Ulrich do Metallica entrega nomes de usuários que compartilharam canções da banda

Fonte: . Acesso em: 06 nov. 2016.

Apesar de receber investimentos multimilionários, o Napster foi obrigado a declarar falência após inúmeras batalhas judiciais e seus integrantes seguiram em frente para perseguir outros projetos. A RIAA processou também alguns dos usuários do Napster, lutando para sobreviver à crise sem se adaptar a nova era. Sean Parker, um dos fundadores iniciais juntamente com Fanning, envolveu-se também na criação do Facebook e investiu 15 milhões na empresa que hoje dá seguimento ao que o Napster começou de maneira legal: o Spotify. Ironicamente, o Napster transformou-se hoje numa plataforma de streaming similar ao Spotify que conta com o acervo do Metallica16. Finalmente, após décadas de controle total das grandes gravadoras quanto àquilo que chegava aos ouvidos dos fãs de música, os artistas e fãs decidem por si próprios o que é ou não relevante, e isso mudou todo o universo e o mercado da música. Após o fim do Napster, vários outros programas parecidos tomaram o seu lugar, visto que é impossível impedir que os internautas se comuniquem entre si e troquem dados.

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"Metallica is back on Napster, so maybe we can all get along after all". (HEATER, Brian. 16 nov. 2016). Disponível em:. Acesso em: 18 nov. 2016.

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O que as gravadoras não entendem é que o Napster é apenas uma ilustração da crescente frustração sobre o quão as gravadoras controlam a música que as pessoas escutam, sobre como as ondas sonoras, selos, e lojas de discos que são agora todas parte desse sistema que as gravadoras foram bem sucedidas em estabelecer, estão ficando cada vez mais dominadas por ‘produtos’ musicais em detrimento da música real. Por que uma gravadora deve ter controle sobre o que ele, o amante da música, quer ter como experiência na música? Do ponto de vista do verdadeiro amante da música, o que está acontecendo hoje só pode ser visto como um emocionante novo desenvolvimento na história da música. E, para a sorte dele, não parece haver nada que as velhas gravadoras possam fazer para prevenir essa evolução de acontecer. (PRINCE apud GIESLER; POHLMANN, 2003, s/p).

Um exemplo interessante de como programas sucessores ao Napster fortaleceram o trabalho dos artistas independentes é o do músico Lucas Santtana no livro “Cultura Digital.br” (2009). Lucas vivenciou as duas eras da produção fonográfica: o disco compacto feito por gravadoras e a nova era digital. Em sua participação no livro, ele discorre sobre seu primeiro disco, gravado com a empresa BMG, e na dificuldade que era encontrada na hora de comercializar os CDs físicos. Logo após, ele fala sobre o momento em que as tecnologias de compartilhamento de informação afetaram diretamente o alcance do seu trabalho. A história do Lucas Santtana lembra muito a da banda Dispatch, que dedica seu sucesso ao Napster. A facilidade de compartilhamento de música em rede que causou tantos problemas para a RIAA e os grandes artistas, para os artistas pequenos ofereceu uma oportunidade de consagração instantânea. (...) em 2005, eu fiz uma turnê em algumas cidades que eu nunca tinha tocado, algumas capitais, e rolou um negócio interessante em Brasília que virou um marco para mim. Porque eu fui agendado para cinco dias no CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil] de lá, nunca tinha ido lá antes, e na quintafeira à tarde, a gente ia passar o som, chega alguém da produção e diz que os ingressos haviam se esgotando em menos de uma hora. Eu pensei que tudo bem, que primeiro dia sempre tem muitos convidados, mas o cara respondeu que já estava esgotado até domingo. Era um teatro de 300 lugares. Porra, uma loucura! Eu fiquei grilado com aquilo, e depois do show de quinta fizeram um coquetel e o público ia pedir autógrafo, e eu comecei a perguntar como conheciam o disco. E eles diziam que tinham baixado no E-mule, ou em não-sei-qual-programa de download. Foi quando eu entrei nessa onda de internet, comecei a baixar música, caí dentro da rede. (SANTTANA apud SAVAZONI; COHN, 2009, p. 190).

O que vemos no compartilhamento de música na era pós-Napster é basicamente essa troca em sua forma mais básica, ignorando o papel mediador das grandes gravadoras. Indo

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mais a fundo, focando apenas no cenário nacional, encontramos bandas que se conectam diretamente com seus fãs através das redes sociais, impossíveis de serem previstas por Toffler em 1980, mas mesmo assim essenciais ao seu ponto de vista de que o papel do mediador no mercado torna-se cada vez mais obsoleto. Após o Napster, outras redes sociais de música ganharam destaque, como o MySpace: uma espécie de precursor do Facebook onde as pessoas interagiam entre si e havia uma plataforma específica para que as bandas disponibilizassem seu material para quem tivesse interesse. O Youtube, apesar de ser uma plataforma direcionada para o vídeo, também representa a maneira com a qual muitas pessoas escutam música hoje em dia. Porém, o formato mais conhecido hoje e que sucedeu na tarefa de agradar tanto as gravadoras quanto os clientes foram as plataformas de streaming, mais especificamente o Spotify. O serviço oferece um catálogo extenso de músicas que podem ser acessadas tanto gratuitamente, na versão que veicula anúncios publicitários, como na versão paga, onde o cliente pode ouvir as músicas mesmo offline e de maneira ininterrupta. Além dele, existem outros como o Deezer, Apple Music - criado pela Apple em 2015 para competir com o já estabelecido Spotify -, e o próprio Napster, que se reformulou e hoje também oferece o serviço. Criado em Estocolmo, na Suécia, o modelo tem se tornado eficiente em manter os executivos da música felizes, mas nem sempre os artistas. Em 2008, a empresa anunciou contratos de direitos autorais com gravadoras como EMI, Sony BMG, Universal e Warner17. Apesar do crescimento exponencial da empresa, a cantora Taylor Swift foi um caso famoso de artista que não se sentiu contemplada pelo novo método e retirou seu catálogo do Spotifyem 2014, em protesto quanto a uma divisão injusta de valores de streaming, na versão dela18. Em 2015, um contrato milionário de 2011 entre o Spotify e a Sony foi compartilhado na internet, deixando claro que 70% do faturamento total da plataforma vai para as gravadoras. Este documento seria uma prova de que a culpa por um repasse injusto aos artistas seria um problema das gravadoras, e não da plataforma19. O Bandcamp é a plataforma que mais interessa a este trabalho, pois é utilizada pelos selos independentes para lançar suas produções no formato “do it yourself”, algo que só foi 17

"We’ve only just begun!" (spotifysehr; The Spotify Team. 07 out. 2008). Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2016. 18 G1. Taylor Swift retira todas suas músicas do Spotify antes de lançar álbum. Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2016. 19 CANAL TECH. Cerca de 80% do faturamento do Spotify é pago às gravadoras. Disponível em:. Acesso em: 08 nov. 2016.

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possibilitado pelo avanço da tecnologia de gravação, possibilitando que qualquer pessoa com acesso a computadores de qualidade pudessem produzir e lançar música com o potencial de atingir qualquer lugar do mundo. O objetivo deste estudo é compreender quais foram as circunstâncias que acarretaram tais mudanças e como o mercado da música está reagindo a elas. O barateamento do computador pessoal e do telefone celular, aliado à rápida evolução das aplicações em software livre e dos serviços gratuitos na rede, promoveu uma radical democratização no acesso a novos meios de produção e de acesso a conhecimento. A digitalização da cultura, somada à corrida global para conectar todos a tudo, o tempo todo torna o fato histórico das redes abertas algo demasiadamente importante, o que demanda uma reflexão específica. (CARVALHO JUNIOR apud AVAZONI; COHN, 2009, p. 9).

Tudo isso nos leva a pensar na internet como emancipadora do consumidor, já que agora não estamos apenas presos aos discursos da mídia de massa: o próprio espectador tem um meio de fazer com que sua voz seja ouvida. Muito da mídia hoje acaba por trazer para a programação aquilo que foi muito discutido na internet, demonstrando uma troca de foco e de alternância do poder de fala.

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6 UM HISTÓRICO DO SELO INDEPENDENTE MAIS CATIVANTE: SARAH RECORDS A música independente esteve sempre presente ao redor do mundo, contrapondo-se ao mainstream, focando no underground. Usaremos aqui a definição de mainstream fornecida por Fréderic Martel no livro de mesmo nome: A palavra, de difícil tradução, significa literalmente “dominante” ou “grande público”, sendo usada em geral para se referir a um meio de comunicação, um programa de televisão ou um produto cultural que vise um público amplo. Mainstream é o inverso da contracultura, da subcultura, dos nichos; para muitos, é o contrário de arte. (MARTEL, 2012, p. 20).

Por consequência, o underground seria tudo aquilo que não se encaixa nesta definição: a contracultura, subcultura, feita especificamente para os nichos de público. Frequentemente sem compromisso com as exigências do mercado, o underground é muitas vezes relacionado a produções mais verdadeiras, que representam pontos de vista livres de influências externas. Não entraremos aqui no mérito artístico que diferencia os dois termos por ser uma discussão bastante extensa que não nos cabe neste momento, mas o underground também costuma ser definido como obra de arte, enquanto o mainstream como produto. A passagem para o mainstream é o que querem todos os artistas em busca de público e mais ainda todas as majors [gravadoras] em busca de dinheiro; ao mesmo tempo, é a crítica feita recorrente aos puristas à comercialização e supremo insulto aos Estados Unidos, ao “selling out” (“tosell out”, venderse). (MARTEL, 2012, p. 144).

Neste capítulo, pretendemos contar a história de um exemplo de iniciativa que foi extremamente importante para a história da música independente, abrindo caminho para que cada vez mais pessoas seguissem seus passos adaptando os modelos a suas próprias realidades: a Sarah Records, de Bristol. Eu conheci a Sarah Records através de uma postagem no Facebook de um selo chamado Bichano Records, sobre o qual falarei adiante, e que em sua curta vida lançou bandas como a gorduratrans, citada anteriormente. O conteúdo do texto era uma mensagem póstuma da Sarah Records. Era uma mensagem bonita, triste, e que anunciava o breve fim do selo: em 1995, o da Sarah, e em 2016, o da Bichano.

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(...) porque quando você tinha 19 anos nunca quis criar algo belo e puro só para que um dia você pudesse colocar fogo nisso e assistir a cidade se iluminar enquanto ele queima? Você não quis fazer isso todos os dias da sua vida? Nada deve ser para sempre. Bandas deveriam lançar um single e se separar, fanzines terminar depois de uma edição impecável, amantes partir às 5 da manhã e nunca se verem novamente - o hábito e o medo da mudança são as piores razões para se fazer QUALQUER COISA (A day for destroying things - Sarah Records)20. Figura 8 – Anúncio da Sarah veiculado em revistas de música

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

O texto acima foi veiculado em anúncios de metade da página nas revistas NME e Melody Maker na época em que a Sarah Records anunciou seu centésimo lançamento, ao mesmo tempo que declarava seu fim. A propaganda era ao mesmo tempo um convite para a festa de encerramento em Bristol no dia 28 de Agosto de 1995, que aconteceu em forma de um festival estrelando diversas das bandas assinadas pelo selo. O último lançamento da Sarah foi uma compilação chamada There And Back Again Lane, cuja capa mostra a Ponte Pênsil de Clifton: o maior atrativo turístico de Bristol e destino comum para suicídios. O festival esgotou seus 400 ingressos rapidamente atraindo os

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SARAH RECORDS. A day for destroying things. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016.

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fãs que acompanharam o selo durante toda a sua existência - alguns deles inclusive vindo de fora do Reino Unido. Antes da internet e das redes sociais, a maneira encontrada pelos independentes de se comunicar e trocar informações sobre música eram os fanzines: publicações literárias independentes abordando os mais diversos temas. Da mesma maneira que Shawn Fanning fugia de sua cidade pequena para fóruns na internet para encontrar outros que compartilhassem seus interesses, os jovens dos anos 80 conversavam por cartas e aqueles mais ativos criavam fanzines para divulgar o que considerassem interessante. Os fanzines eram também, para aqueles que eram novos na cena, uma maneira de adentrar e fazer parte dela. Sabendo disso, o jovem Matt Haynes decidiu criar seu próprio zine “Are You Afraid to be Happy”, uma imitação do aclamado e popular Hungrybeat. Dessa maneira, ele poderia agora abordar pessoas em shows com um propósito, vencendo sua timidez e tornando-se conhecido na cena. O fanzine tornou-se popular e rendeu citações inclusive em grandes periódicos musicais da época, como a revista Melody Maker. Por este motivo, uma outra jovem que chegaria a Bristol em 1986 procurou conhecê-lo enviando uma cópia de seu próprio fanzine Hvatched via correio. Pouco após se conhecerem, Wadd e Haynes envolveram-se amorosamente, passaram a morar juntos, e começaram a planejar o que viria a se tornar a Sarah Records. A primeira banda assinada pelo selo foi a The Sea Urchids, que aceitou o convite por já conhecerem o trabalho de Haynes com seu fanzine e possuírem uma relação pessoal de amizade. Para prensar e distribuir os discos, novamente, o trabalho anterior de Haynes mostrou-se bastante útil. A Revolver, loja de discos local, aceitou prensar seus discos e distribuí-los, descontando o valor do processo posteriormente das vendas, algo que foi essencial para o sucesso do selo já que nenhum de seus fundadores possuía recursos para custear o trabalho: Wadd estava na universidade e Haynes desempregado. O primeiro lançamento da Sarah Records, “Pristine Christine” de 1987, foi um sucesso de vendas graças a indicações de fanzines e de aparições no programa de rádio de John Peel, conhecido na época por dar espaço às melhores produções independentes e, portanto, um forte formador de opinião. O formato escolhido foi o vinil de 7 polegadas, que tornou-se padrão dos lançamentos da Sarah. A preferência ao vinil continuou firme mesmo com a popularização dos CD’s, momento em que os dois tipos de mídia foram prensados e comercializados simultaneamente.

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No início, pensei que a Sarah era só mais um dos pequenos selos ingleses lançando ótima música pop. Mas à medida que a filosofia de Matt e Clare emergiram em seus fanzines, boletins de notícias e propagandas, tornou-se claro que a Sarah era diferente. Muitas das nossas composições iniciais eram repletas de coisas que nos deixavam raivosos: corretores de imóveis mesquinhos destruindo as colinas onde crescemos, políticos que mentem, sexismo, o estupro do meio-ambiente, desigualdade. A Sarah, ao que nos pareceu, não esperava que você deixasse seu cérebro na porta - as músicas pop podiam estar repletas de paixão política ao mesmo tempo que paixão pessoal. (MEADOWS apud WHITE, 2015, cap. 15, p.10).

Após seu fim, a Sarah Records acabou sendo ainda mais revisitada, comentada e apreciada pelos fãs de música. Em 1995, a internet começava a se popularizar e as revoluções discutidas anteriormente facilitaram o acesso dos interessados aos materiais da Sarah. As correspondências que antes ocorriam por carta tornaram-se mais fáceis e rápidas. O fórum online Indie Pop Mailing List foi um dos primeiros ambientes online utilizados pelos fãs para discutir e compartilhar suas ideias e gostos pela música. Dessa maneira, várias gerações seguidas foram influenciadas pela Sarah Records e desenvolveram uma conexão emocional com o selo. O compartilhamento de arquivos, a velocidade de streaming e downloading, e as redes sociais permitiram que todos transmitissem seus gostos e desgostos para uma audiência sem limites, e coleções musicais inteiras estavam de repente sendo compartilhadas globalmente como uma mixtape21 que circula entre amigos. Bandas e subgêneros inteiros que historicamente tinham sido o segredo de poucos encontraram novas e vastas audiências, e músicos emergentes poderiam apresentar seu último trabalho para julgamento sem gastar um centavo na manufatura. Era - e ainda é incrivelmente conveniente, impressionantemente eficiente, de uma igualdade nunca antes vista e, de longe, completamente sem charme (WHITE, 2015, cap. 17, p. 15).

A Sarah manteve-se viável financeiramente durante seus oito anos de duração graças a uma cena que os apoiava e mais do que isso, sentia-se conectada ao selo. É uma das iniciativas mais puras que iremos encontrar: algo feito com paixão, criado com um objetivo específico, que quando explorado ao máximo, condenado ao fim. Porém, é importante ressaltar que por estar localizado em um país bem desenvolvido e bem estruturado economicamente, a Sarah Records encontrava-se numa posição privilegiada para seguir seus princípios puros sem motivações financeiras.

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As mixtapes eram fitas cassete utilizadas pelos ouvintes para montar uma lista de músicas específica. Eram compartilhadas entre amigos, maneira pela qual muitos conheciam novos artistas na época.

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É um exemplo para os selos que se estabelecem hoje na cena de um movimento com identidade e estética definidas, princípios políticos declarados, e coerência a tudo que se dispôs desde o início. Para o fã de música que sentia-se acuado pela indústria e desinteressado pelo rumo que a música seguia antes da internet, a Sarah Records representou um refúgio muito necessário e que não será esquecido.

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7 A CENA INDEPENDENTE DO BRASIL ANTES DA INTERNET Não é coincidência e nem algo recente o fato de que a televisão era e ainda é o caminho mais rápido para a consagração musical no Brasil. As raízes desse fato remontam das décadas de 1960 e 1970, quando a televisão popularizou-se e passou a ocupar o lugar que antes pertencia ao rádio em questão de anúncios publicitários (VICENTE; DE MARCHI, 2014). Programas como O Fino da Bossa, Jovem Guarda e os Festivais da Canção consagraram grandes nomes como Elis Regina, Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Por anos, a produção da Música Popular Brasileira foi um artifício muito forte utilizado pela televisão na tentativa de aglomerar audiências, pois o estilo tinha a particularidade de agradar às mais diversas classes sociais. Os formatos citados acima funcionaram para ambos os lados, tanto para as redes televisivas na formação de público, quanto para os artistas que recebiam uma plataforma extremamente valiosa para escoar suas produções. Havia uma preocupação latente com a valorização daquilo que era nacional em detrimento aos grandes conglomerados estrangeiros adentrando no mercado brasileiro, e um viés político de esquerda sempre presente nas produções musicais da época (DE MARCHI, 2007). Os Festivais da Canção personificavam esta tendência de culto ao nacional, dando espaço e valorização aos artistas brasileiros dentro da televisão. Enquanto o ‘mercado’ serviu aos interesses dos produtores televisivos e fonográficos – revelando compositores; popularizando intérpretes e canções; consolidando um público televisivo – e aos dos intelectuais e músicos engajados – expondo artistas; formando uma audiência comprometida com seus projetos, o que passava uma imagem de legitimidade popular – realmente não foi problema nem à estética nem à política. Entre 1964 e 1968, de fato, a MPB parecia ter atingido seus objetivos: tornara-se um produto valorizado e que difundia os princípios da cultura nacional e popular através da televisão. (DE MARCHI, 2007, p. 12).

Porém, após o golpe de 1964, a intervenção militar nas telecomunicações e na cultura desfez a aliança que por anos mostrou-se valiosa para ambas as partes da equação, posicionando toda a produção de conteúdo nas mãos da iniciativa privada, monitorada de perto pelo Estado. Todo o trabalho de valorização do que é nacional se perde, algo que terá impacto profundo nas gerações seguintes. Em resposta a este cenário de descaso com a produção nacional, surge aquilo que chamamos de música independente como discurso no final da década de 1970.

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No entanto, o que poderíamos denominar como “movimento musical independente” surgiria apenas no final dos anos 1970, com o lançamento de discos como Racional, de Tim Maia, de 1975, Feito em Casa, de Antonio Adolfo, em 1977, Boca Livre, do grupo Boca Livre, em 1979, e com o surgimento do Teatro Lira Paulistana, em São Paulo em 1978. (VICENTE, 2014, p. 126). Foi a partir de Antonio Adolfo, da Cooperação dos Músicos do Rio de Janeiro (liderada por Chico Mário) e da atuação de diversos nomes ligados a esses polos, que a expressão “independente” passou a fazer parte dos discursos de artistas e das manchetes de jornais, sendo utilizado como sinônimo de “qualidade artística” e “autonomia criativa”, em oposição a alguma produção mais “massificada” e “alienada”, estética e politicamente falando. (DE MARCHI, 2007). Apesar de seu caráter “alternativo”, é preciso notar que esse movimento independente se desenvolveu marcadamente no eixo Rio-São Paulo e que não sobreviveria ao difícil cenário econômico da década de 1980. (VICENTE; DE MARCHI, 2014, p. 19-20).

Apesar da existência do eixo Rio-São Paulo, isso não significou que artistas de outros estados não teriam espaço no movimento, apesar de que muitos deles precisariam mudar-se para fazer parte dele. Como símbolos do boom nordestino podemos citar Belchior, Fagner, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, e Elba Ramalho. De Minas Gerais, o Clube de Esquina também representou uma maior abertura à regionalização permitida pelo cenário independente. Paralelamente à cena da MPB, uma cena underground inspirada no punk anglo americano começava a tomar forma através de um de seus mais importantes fundadores, Luís Carlos Calenca. Proprietário de uma loja de discos chamada Baratos Afins na Galeria do Rock em São Paulo, inaugurou um selo homônimo em 1982 e lançou artistas como Ratos de Porão, Akira S., e Voluntários da Pátria (De Marchi, 2014) Segundo Vicente (2002), as iniciativas independentes de 1980 não obtiveram o êxito que era esperado não pela falta de profissionalismo dos artistas, mas pelas dificuldades de distribuição encontradas na época e a crise econômica que levaria a década de 1980 ser considerada a “década perdida”. Por este motivo, Vicente (2002) considera esta cena a frente de seu tempo. Como iniciativas louváveis podemos citar a APID - Associação dos Produtores Independentes de Discos; e o Teatro Lira Paulistana, no bairro de Pinheiros, que fornecia um palco aos artistas independentes. (…) muitos dos artistas que gravavam de forma independente nos anos 70 e 80 ainda continuam independentes… há novas formas de produção e distribuição via internet e outras também… o número de produções independentes é hoje muitíssimo maior… houve uma evolução do processo. Alguns selos fecharam, outros continuam e outros nasceram, alguns artistas passaram para Grandes Gravadoras, fizeram sucesso, se apagaram, outros

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continuam à margem ou no seu caminho tranquilo. Uns inovam, outros ficam na mesmice do compromisso com a imagem… (Depoimento de Antonio Adolfo apud VICENTE, 2002, p. 134).

A modernização e o crescimento que o país vivenciou até 2014, a popularização da internet e a profissionalização de uma nova geração que cresceu atenta às novidades dessa nova era possibilitaram a formação da cena independente que conhecemos hoje. Nessa era da informação, onde a quantidade de conteúdo é vasta, os selos fazem o papel de curadoria e formação de opinião, auxiliando os que se interessam por música a garimpar o que há de mais específico na internet e criando nichos. A internet forneceu também uma ferramenta que possibilitou o fim da exigência do eixo Rio/São Paulo como as únicas opções para produzir e distribuir música. Pode-se citar aqui cidades criativas que se destacam em quantidade e qualidade de produção musical que é escoada ao resto do país, como: Goiânia (GO), Natal (RN), Recife (PE), Belo Horizonte (MG), e Caxias do Sul (RS). Na semana do dia 08 de Outubro de 2016, estive em São Paulo para comparecer ao Popload Festival. Aproveitando a oportunidade, encontrei-me com representantes dos selos que mais se destacam no cenário independente nacional, além do proprietário da Casa do Mancha, lugar que há anos abre espaço e serve de plataforma de exposição para bandas independentes e autorais. A grande maioria deles se reúnem na Vila Madalena, recorte da cidade que serve como berço para os mais diversos tipos de arte e economia criativa.

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8 A NOVA CENA INDEPENDENTE BRASILEIRA: A EXPLOSÃO DOS SELOS E PRODUTORAS INDEPENDENTES 8.1 A BALACLAVA RECORDS O primeiro contato que tive com a Balaclava foi quando a banda instrumental potiguar Mahmed assinou contrato com o selo, no momento para divulgar seu primeiro disco “Sobre a Vida em Comunidade”. Acumulando uma ótima recepção de público e de crítica, o primeiro EP da banda “Sob o Domínio das Águas e dos Céus” tornou o Mahmed um dos casos mais relevantes de sucesso da cena potiguar fora do Rio Grande do Norte, rendendo futuramente a parceria com a Balaclava. A banda circulou por várias regiões do Brasil chegando até a tocar num dos festivais de maior prestígio internacional atualmente, o Primavera Sound em Barcelona. Desde então, mantive curiosidade e acompanhei de perto seus lançamentos. Hoje a Balaclava representa um dos selos mais proativos e de certa forma pioneiros da nova cena. As informações a seguir foram coletadas em entrevistas com Fernando Dotta, sócio fundador, e Heloisa Cleaver, relações públicas e assessora de imprensa da empresa. Heloisa cedeu também seu próprio Trabalho de Conclusão de Curso que usou a Balaclava como tema, de onde extraí diversas informações práticas sobre a formação e a estrutura do selo. Em atividade desde Março de 2012, a Balaclava foi fundada por Fernando Dotta e Rafael Farah, o primeiro formado em Publicidade e o segundo em Administração. A ideia de criar o selo veio da necessidade de encontrar alguma parceria que fizesse o lançamento do disco que a banda dos dois, a Single Parents, havia acabado de produzir. Ao notar que as buscas não encontraram os resultados esperados, Dotta e Farah resolveram tornar-se prosumers e iniciar o próprio selo. Figura 9 – Logotipo da Balaclava Records

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

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De início, as bandas lançadas eram em sua maioria de amigos e pessoas próximas que produziam um bom conteúdo mas pecavam na distribuição e divulgação do trabalho, serviço que o selo disponibiliza. Em 2014, ocorre o primeiro grande lançamento da Balaclava com o grupo carioca Bonifrate. Logo após, acontece o licenciamento de duas bandas americanas Splashh e Minks -, processo que dá ao selo os direitos de revenda dos discos e ao mesmo tempo auxilia as bandas estrangeiras a adentrar no mercado nacional de maneira mais eficiente, através de um intermediário inserido diretamente no mercado. Assim como no exemplo da Starbucks citado anteriormente, é importante adaptar-se ao local onde deseja inserir-se no mercado, o que acaba gerando uma situação vantajosa para ambas as partes envolvidas. De acordo com o site da Balaclava, as atividades desenvolvidas pelo selo são “o lançamento de discos, organização e produção de shows, promoções e licenciamento, além de divulgação, produção executiva e gerenciamento de carreira”22. Ao notar a falta de um ambiente para a troca de experiências entre os fatores envolvidos na cena independente, a Balaclava surgiu com o evento Sacola Alternativa. Sua mais recente iniciativa é o projeto Sacola Alternativa, uma feira de selos e produtores independentes, em parceria com o MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de São Paulo). Em sua primeira edição, com realização em 28 de fevereiro de 2015, reuniu gravadoras e selos nacionais em atividade, com relevância e destaque nos cenários em que atuam, para exposição e venda de lançamentos exclusivos de seus artistas e produtos do catálogo - como LPs, CDs, EPs, DVDs, fitas K7, além de materiais de merchandising. A programação contou com palestras e mesas de debate com profissionais do mercado da música, documentários nacionais, e show com venda de ingressos a preços populares. A iniciativa aproximou músicos e produtores que movimentam o mercado fonográfico e cultural no país, valorizando o trabalho dessas empresas independentes em seus diferentes modelos de negócio. Foi também uma oportunidade de apresentar ao público quem são os responsáveis por trás dos lançamentos mais interessantes da atualidade, além de instigar o empreendedorismo e o método "faça você mesmo" que deu origem aos selos participantes.23

Além de tudo isso, a Balaclava organiza o Balaclava Fest por onde já passaram artistas de renome internacional como Yuck e Mac deMarco, ao mesmo tempo unindo-os com bandas expoentes do cenário nacional participantes do próprio selo como o próprio Mahmed (RN), Ventre (RJ), e Terno Rei (SP).

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Site da Balaclava Records, disponível em: . Acesso em 18 nov. 2016. 23 Idem.

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8.2 O SELO FREAK No primeiro dia de entrevistas, me dirigi à Vila Madalena para conversar com representantes do selo Freak, em atividade na cidade de São Paulo desde 2010. O que encontrei na minha visão de produtora saída de uma realidade amadora foi uma surpresa: um escritório montado e equipado com estúdio para ensaios, estúdio para gravação, e um ambiente central para reuniões. Fui muito bem recebida e durante a conversa aprendi bastante sobre o funcionamento da cena paulistana. A Freak surgiu como estúdio em 2010, montado pelos quatro integrantes da formação do Mel Azul na época: Antonio Carvalho, AntonioPaoliello, Gustavo Prandini e Alexandre Silveira. Ocupando um imóvel no bairro paulistano da Aclimação, os sócios começaram a oferecer serviços de gravação e produção de bandas, mixagem, gravação de locução, criação de trilhas sonoras, sound design, tratamento de áudio e mixagem para filmes e publicidade.24

Apesar de continuar no ramo publicitário, o Freak após três anos passou a investir também em produção cultural com o objetivo de atrair público para a cena independente. Como referência, eles citam o Coletivo Fora do Eixo25 como uma iniciativa que incentiva o discurso do faça você mesmo. Entre as produções do selo estão a XXXBornia, um evento que mescla o conceito de festival com festa que acontece desde 2013 na boate Trackers contando com 2 palcos e 3 pistas de dança, o recebendo uma média de 6 bandas e 6 DJs por noite; a “Eu Quero É Te Ver Dançando”, no Z Carniceria com a proposta de levar bandas autorais dançantes; e o Festival C.R.I.A. que envolve exposições fotográficas, música, feira gastronômica, de moda e artesanato. O Festival C.R.I.A. tem uma ligação forte com economia criativa, pois acredita que com as redes sociais abriram as oportunidades para que os jovens aderissem ao empreendedorismo em detrimento do corporativismo, tornando esta alternativa mais atraente e possível. A feira de expositores é selecionada pessoalmente pela equipe do selo através de uma curadoria que analisa o perfil da marca e o público do evento para assim fornecer uma troca valiosa para ambos os lados. Os expositores compram seus lugares na feira, e este dinheiro é utilizado para custear o festival, que ocorre de maneira gratuita para o público.

24

DAVID DINES. Ressonância: Freak. (Disponível em:. Acesso em: 18 nov. 2016. 25 Carta de Princípios. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2016.

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Além disso, o Freak também produz trabalhos audiovisuais. Em 2013, a Mel Azul realizou uma turnê de 17 datas pelo Brasil levando o equipamento necessário para montar shows em qualquer situação. A viagem foi patrocinada pela Riachuelo, documentada e transformada em webserie chamada Hip Rock Gira Brasil, disponibilizada no Youtube26. O deslocamento da banda pelo país além de fornecer o material necessário para a webserie também rendeu contatos com produtores locais que fortalecem a conexão da Freak com outras cidades, principalmente Brasília estabelecendo contato com Miguel do Festival Picnic. Segundo Gustavo Prandini, as bandas da cena independente hoje geram visibilidade o suficiente para que as marcas tenham interesse em se associar com elas e financiar iniciativas parecidas. O apoio de marketing empresarial é de grande importância estratégica para o desenvolvimento de trabalhos independentes, na opinião de Gustavo. O empreendedor e artista lista empresas do ramo da moda e vestuário (como Levi’s, Ray-Ban, West Coast e ChiliBeans) e de bebidas (Red Bull, Jack Daniel’s e Heineken, entre outras) entre os principais investidores desse mercado na atualidade.27

O selo propriamente dito foi criado em 2015, momento em que a empresa mudou-se para a Vila Madalena. Inicialmente, questionei os integrantes do selo sobre a importância do fã na realidade da banda independente, ao que eles me responderam que o fã é o que contagia as demais pessoas que estão assistindo a banda e talvez ainda não a conheçam a sentirem vontade de conhecer. São aqueles que acompanham e escutam as músicas produzidas, portanto, aquilo que o artista tem de mais precioso. O catálogo do selo inclui quatro bandas: Raça (SP), Cupin (SP), Monza (SP), e Mel Azul (SP). O selo escolhe as bandas que lança levando em consideração além do som, a estética escolhida pela banda e o profissionalismo com o qual os artistas levam o trabalho. Segundo Prandini, a cena independente já se encontra muito bem estruturada, o que falta para completar o sucesso das ações é um público que esteja mais disposto a interagir com esta e esteja disposto a consumir ingressos e produtos das bandas, fazendo desse jeito a economia independente girar. Já são percebidas mudanças nos hábitos da cidade nesse sentido, como o aumento na frequência de adolescentes e pessoas mais jovens usando camisetas de bandas da cena (por exemplo, O Terno). Algo citado também é que a força da 26

Websérie Hip Rock Gira Brasil 01 - "O primeiro, para mais luta" (c). (20 jun. 2013). Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2016. 27 "Ressonância: Freak". (DINES, David. 11 nov. 2016). Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2016.

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cena está muito ligada a uma união maior desta, trocando experiências e fortalecendo as iniciativas uns dos outros. A existência de novas casas de show como o Z Carniceria28 - que antigamente era uma casa chamada Aeroanta e recebeu shows como Chico Science e Nação Zumbi -, reestruturada pelo Grupo Vegas, também foi algo importante para a cena. O espaço bem equipado e aberto para as bandas da cena independente é algo importante e valioso, pois a ajuda a circular. Prandini acredita que o caminho para a cena é estruturar-se e manter-se autogerida, mas fazendo uso do financiamento privado para que esta continue mantendo-se viável e possuir capital para crescer, e assim seja possível ver mais adolescentes exibindo suas camisetas de bandas da cena. O Festival C.R.I.A. acontece anualmente e coincidiu com a minha estadia em São Paulo. A edição que pude comparecer contou com shows das bandas Cupin (SP), Raça (SP), Carne Doce (GO), Strobo (PA), FingerFingerrr (SP) e Monza (SP). A feira possuía roupas de marcas locais, revendedores de LP’s, gastronomia variada, exposição fotográfica, palestras, workshops, e exibição de curtas. A resposta e presença em massa do público foi mais uma demonstração do alcance que esta cena tem hoje. Figura 10 – Carne Doce (GO) fechando o Festival C.R.I.A.

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

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REDAÇÃO DA ROLLING STONE BRASIL. Z Carniceria renasce no Largo da Batata como novo palco da música em SP. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2016.

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8.3 O SELO RISCO Figura 11 – Integrantes do Selo Risco em sua sede em Perdizes

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

O selo Risco também possui uma sede próximo à Vila Madalena, no bairro de Perdizes. Começou como o Estúdio Canoa gerido por Gui Jesus Toledo em uma casa aconchegante e familiar, no ano de 2013. Em 2014, oito bandas independentes - O Terno, Charlie e os Marretas, Memórias de um Caramujo, os MojoWorkers, Noite Torta, Luiza Lian, Grand Bazaar, Caio Falcão e o Bando, Mustaches e os Apaches, - e Gui Jesus Toledo resolveram unir-se para lançar seus trabalhos no formato de vinil através de um selo coletivo. O primeiro produto da parceria foi o LP de 66, d’O Terno, lançado também em 201429. A motivação inicial do Risco de produzir discos em vinil esbarrou nos altos preços desta mídia, algo que pode estar prestes a tornar-se mais acessível com a chegada da Vinil Brasil30 ao mercado, uma fábrica nacional de discos. A história coletiva foi ficando cada vez mais fraca e o projeto passou a se concentrar mais em mim e no Guilherme Giraldi, que é baixista do Charlie e as Marretas, outra banda do selo. E recentemente entrou o João Bagdá, que é outro parceiro nosso. A partir daí a gente está tentando dar uma cara de selo para isso e buscando o que o mercado musical quer de um selo. (Gui Jesus Toledo apud TOUCA, 201631). 29

PAULA MOIZES. Risco: coletivo e independente. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2016. 30 Site Vinil Brasil Discos. Disponível em:. Acesso em 20 de nov. de 2016. 31 FELIPE TOUCA. O selo Risco: música independente. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2016.

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Conversei com Toledo sobre o papel da internet na evolução do mercado, ao que ele me respondeu que a internet mudou todas as relações. Existem inúmeros conteúdos disponíveis na rede, uma quantidade que torna impossível um conhecimento total e ao mesmo tempo cria a importância dos filtros: os blogs, sites de música, e formadores de opinião. As plataformas de streaming geraram uma maior acessibilidade ao conteúdo musical, mas a música independente ainda encontra-se presa nas bolhas dos algoritmos do Facebook. Quanto à relação entre a internet e o aumento nas produções regionais, Toledo cita o caso da banda goiana Boogarins, que gravou seu primeiro disco em casa e com ele fez diversas turnês internacionais, sendo hoje um dos maiores exemplos de sucesso do underground. Já na relação fã e banda, o produtor diz que a proximidade é muito maior e é muito mais fácil entender o que funciona ou não. O fã no cenário independente ocupa o papel importantíssimo de apoiar a cena percebendo que aquilo que ele consome tem valor e acompanhar o trabalho das bandas. A troca com os fãs impacta diretamente na qualidade dos shows, e quanto mais o fã se entrega à banda, mais há uma resposta de volta. Gui também aponta que a quantidade e qualidade de bandas independentes está atingindo números inéditos, porém ainda há mais produção do que público, algo que esbarra muito na síndrome do viralatismo brasileiro32. Para sanar este problema, a solução seria sair do independente e furar o mainstream, motivação para a qual a internet não é motor, e sim o caminho. 8.4 A CASA DO MANCHA Mancha Leonel, o fundador da Casa do Mancha, vivenciou duas eras: a analógica e a digital. Mancha recorda que para descobrir música, precisava viajar e sair do interior do Mato Grosso do Sul, onde cresceu. Ele encara a internet como uma ferramenta do “faça você mesmo”, utilizada para se comunicar com as pessoas e mostrar o que está sendo produzido, da mesma maneira que antigamente os zines, as cartas, e a troca de fitas cassetes funcionava. Segundo Mancha, a principal diferença da internet para as outras mídias tradicionais é a sua horizontalidade: é possível produzir conteúdo e outras pessoas em qualquer lugar podem consumi-lo. O fato de que não há mais um intermediário entre a banda e o consumidor gera uma maior proximidade entre estes, o que faz com que o consumidor se relacione muito mais diretamente com a obra do artista. O surgimento do Napster aumentou a facilidade de 32

Termo cunhado inicialmente por Nelson Rodrigues em 1958 em artigo para a revista Manchete Esportiva.

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encontrar até as bandas mais obscuras como o Radiohead, algo que na sua época precisaria ser garimpado nas prateleiras das Lojas Americanas. Figura 12 – Mancha Leonel na casinha

Fonte: . Acesso em: 20 nov. 2016.

Assim como os selos, a Casa começou em 2006 como um estúdio do Mancha para gravar projetos pessoais e de amigos. Até que dois amigos que também possuíam home studios levaram seus equipamentos para a casa, transformando o estúdio em algo mais sofisticado. Um dos amigos em questão era Rafael Crespo, ex-guitarrista do Planet Hemp e na época integrante da banda de emocore Polara33. O fato de o homestudio encontrar-se localizado na Vila Madalena - bairro conhecido pela vida boêmia - atraía vários outros músicos e curiosos que frequentemente realizavam festas entre amigos no local. Isso abriu a mente dos donos para a possibilidade de usar o espaço para a realização de shows. Em 22 de Setembro de 2007, a casa fez seu primeiro evento aberto ao público com um show do Polara, que ao mesmo tempo em que inaugurou o espaço, fez também o show de despedida da banda. Mancha percebeu que havia uma demanda das bandas por um lugar para mostrar suas produções, num momento em que a cena começava a mostrar certo profissionalismo, e atraía atenção genuína do público em detrimento ao apoio rotineiro e inicial dos amigos. A casa tem como princípio ser palco exclusivo para a música autoral, e se orgulha em dizer que nunca 33

Polara é uma banda de post-harcore emo que esteve em atividade entre 1999 e 2007 e hoje é um dos nomes clássicos do underground.

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produziu shows cover - com exceção de uma apresentação especial do Cidadão Instigado (CE) tocando Beatles. O sucesso da casa vem de uma percepção do público de que a cena tem produtos de qualidade para oferecer, da insistência do Mancha em abrir o palco apenas para o independente, e o crescente profissionalismo da cena. No momento, Mancha trabalhava com publicidade, então a preocupação financeira com a sustentação da casa não era uma prioridade e isso o dava a segurança necessária para manter o foco na cena. Hoje em dia, Mancha conta que ao olhar a programação de grandes festivais como o Lollapalooza e o Planeta Terra, grande parte das bandas nacionais já passaram pela casa. Apesar de que o lugar ainda não representa para Mancha um retorno financeiro considerável, ele diz se sentir gratificado ao saber que a Casa apresenta relevância inegável ao crescimento da cena. Em Maio de 2016, fui a Goiânia para conhecer o Festival Bananada. Em meio a dois palcos grandes, havia um terceiro, tímido, num canto extremo do festival que foi montado com a curadoria do Mancha. Ali apresentaram-se bandas como My Magical Glowing Lens (ES), Ventre (RJ), e Catavento (RS) - que, em minha opinião, fizeram os melhores shows do festival34. Não é coincidência o fato de que as mesmas bandas seriam convidadas mais tarde para os festivais DoSol, em Natal, e Coquetel Molotov, em Recife. Com seu palco, Mancha auxiliou diretamente na alavancada na carreira de bandas que na época eram pequenas, mas já possuíam qualidade impressionante. Estas encontraram em seu palco o espaço necessário para mostrar isso aos responsáveis pelos grandes festivais. Foi depois desse show também que a Ventre (RJ) assinou contrato com a Balaclava Records, fato que ainda deve render muitos bons frutos para ambos. Mancha mostra-se assim uma ligação extremamente importante entre a nova cena e os agitadores culturais que podem dar vazão a ela. 8.5 A TRANSTORNINHO E A BICHANO RECORDS Em uma cena paralela a dos selos profissionais encontram-se a Transtorninho e a Bichano Records: ambas criadas e geridas por pessoas ainda mais jovens que as outras citadas acima e que se identificam mais como um hobby do que como realmente uma corporação. As iniciativas são as que mais se assemelham a Sarah Records no cenário atual: um trabalho focado mais na ideologia, despretensioso e feito por amor.

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A respeito, vídeo que fiz dos shows do palco. .

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A Transtorninho Records é baseada em Recife e nasceu em 2014, criada pelos membros da banda Amandinho, principal cartão de visitas do selo. A ideia veio do interesse em tocar, ver pessoas tocarem e mudarem por causa da música, não limitando-se assim a um gênero específico. Felipe Soares e Smhir Garcia na época haviam acabado de se mudar para Recife, vindos de Maceió onde a cena independente era mais intensa - Smhir fazia parte do coletivo Popfuzz, e Felipe toca em bandas desde os 14 anos. No mesmo momento, conheceram Danilo Galindo e João Eduardo35. Figura 13 – Produtos da TranstorninhoRecords

Fonte: . Acesso em: 21 nov. 2016.

No início, a cena do indie rock de Recife não era muito animadora, algo que vem mudando aos poucos. Para viabilizar o selo, a Transtorninho comercializa CDs em pequenas tiragens como algo de valor afetivo, camisetas, e posters. O trabalho feito por eles inclui encontrar bandas que possuam uma identificação com o selo para que seja estabelecido um contato, e então uma possível parceria. Quando a banda entra para o selo, o material sonoro é disponibilizado em sua página do Bandcamp36, e é feita uma divulgação na internet. Em 35

SOARES, F. Transtorninho Records - Recife é experimental, Indie e Shoegaze: depoimento. [9 set 2015] São Paulo: Duofox. Entrevista concedida a Diego Fernandes. Disponível em:. Acesso em 20 nov. 2016. 36 Site utilizado por bandas para disponibilizar seus discos para audição e download. Na segunda opção, o consumidor tem a opção de pagar pelo material, sendo o valor definido pelo artista e existindo também a opção de disponibilizá-lo gratuitamente.

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atividade até hoje, os discos mais procurados no perfil do selo no Bandcamp são o do 151515 - projeto fruto da adolescência de Felipe -, e o da banda Lindbergh Hotel. A Bichano Records possui uma história muito parecida. Criada por Fred Zgur, a inspiração veio de selos estrangeiros como Driftwood Records e Too Far Gone Records, e tornou-se realidade no início de 201437. O nome do selo veio da ilustração criada por Guilherme Freitas de um gato usando uma camiseta da banda Title Fight. Figura 14 – Logotipo de Bichano Records

Fonte: . Acesso em: 20 nov. 2016.

O trabalho da Bichano é focado em música, shows e zines. As bandas do selo chegam até ele de maneiras variadas, seja através de amigos, de um contato feito pelo próprio Fred devido a uma admiração pessoal, e de bandas que entram em contato com o selo e caem nas graças dele. Quanto aos shows, a Bichano se encarrega de fazer uma ponte ligando as bandas com produtores locais em diversos locais através do país. Há sempre um espaço também para zines, aberto a quem quiser disponibilizá-los nos eventos da Bichano. O selo ainda produz também uma coletânea chamada Diários Emocionais no Bandcamp, contendo em média 20 bandas, que possui quatro volumes. A iniciativa foi inspirada nos “emo diaries” produzidos pela Deep Elm Records e a Bichano surgiu em função dela. 37

ZGUR, F. Bichano Records - O selo carioca para fãs de HC melódico e suas vertentes: depoimento. [26 ago 2015]. São Paulo: Duofox. Entrevista concedida a Diego Fernandes. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2016.

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Após lançamentos que geraram grande comoção no cenário nacional como o disco “lado turvo, lugares inquietos” do maquinas (CE) e “repertório infindável de dolorosas piadas” do gorduratrans (RJ), a Bichano inesperadamente anunciou seu fim utilizando o mesmo texto “a day for destroying things”, da Sarah Records. Deixando os fãs, os músicos, e todos aqueles que o acompanhavam surpresos, a Bichano sai de cena deixando para trás toda uma geração de jovens que aprenderam que podem fazer música sozinhos e chegar longe.

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9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Todos os caminhos levam à consagração da cena Chris Anderson (2006) em seu livro “A Cauda Longa” resume tudo o que foi discutido neste trabalho até então. Já na introdução, Chris compara sua infância nos anos 1980 à infância de alguém que é jovem nos tempos atuais, e a diferença nas opções de entretenimento disponíveis. Artigos da cultura japonesa como o mangá, por exemplo, seriam opções impensáveis para Chris à época e por isso os programas de TV e rádio possuíam níveis de audiência que hoje são inatingíveis. Esse fato não se deve a uma diferença na qualidade dos programas, e sim na quantidade de opções que temos à disposição. A economia da era do broadcast exigia programas de grande sucesso - algo grandioso - para atrair audiências enormes. Hoje, a realidade é a oposta. Servir a mesma coisa para milhões de pessoas ao mesmo tempo é demasiado dispendioso e oneroso para as redes de distribuição destinadas a comunicação ponto a ponto. Ainda existe demanda para a cultura de massa, mas esse já não é mais o único mercado. Os hits hoje competem com inúmeros mercados de nicho, de qualquer tamanho. E os consumidores exigem cada vez mais opções. A era do tamanho único está chegando ao fim e em seu lugar está surgindo algo novo, o mercado de variedades. Ainda existe demanda para a cultura de massa, mas esse já não é mais o único mercado. Os hits hoje competem com inúmeros mercados de nicho, de qualquer tamanho. E os consumidores exigem cada vez mais opções. A era do tamanho único está chegando ao fim e em seu lugar está surgindo algo novo, o mercado de variedades (ANDERSON, 2006, p. 7)

Segundo Anderson (2006), existe um princípio chamado “regra dos 98%” que prega que a porcentagem de conteúdo consumido da totalidade das opções disponíveis ao consumidor é de 98%. A chamada cauda longa designa um gráfico em que o comércio dos grandes hits é comparado com as vendas das faixas mais obscuras, demonstrando que apesar de os hits atingirem muitos consumidores, a quantidade deles que buscam por outras opções é tão significativa quanto. A diferença principal entre a realidade da cauda longa e a economia anterior à revolução digital é que anteriormente os varejistas eram obrigados a investir em produtos de massa que apelariam a mais pessoas, já que o espaço ocupado por um CD físico era dispendioso. Dessa maneira, para mantê-lo ali eram necessárias vendas expressivas. Isso mostra-se completamente avesso ao ambiente digital, em que não há esse custo adicional por

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opções, muito pelo contrário: quanto mais diversidade, maior a chance de atingir um nicho diferente de mercado. Eis que então, “pela primeira vez na história, os hits e os nichos estão em igualdade de condições econômicas, ambos não passam de arquivos em bancos de dados, ambos com iguais custos de carregamento e a mesma rentabilidade. De repente, a popularidade não mais detém o monopólio da lucratividade.” (ANDERSON, 2006, p. 19). É o cenário que citamos anteriormente da comunicação no Brasil. As opções antes da chegada da internet eram ainda mais escassas que as de Anderson, crescendo em um país com uma liberdade de imprensa mais estabelecida e um mercado mais amplo. A cauda longa no Brasil tornou possível que cada vez mais pequenos empreendedores tivessem acesso ao mercado, através do contato com seus próprios nichos. O mercado da moda é um exemplo. As grandes lojas de fast fashion como Riachuelo e C&A acumulavam um número de vendas exorbitante não por uma preferência pessoal do consumidor, mas por ser o único produto em um valor acessível ao público em geral. Hoje, cada vez mais pequenos designers descobrem que é possível e viável manter lojas online que encontram clientes satisfeitos por ter a opção de vestir-se diferente por um preço justo. Voltando aos selos independentes atuantes no momento no Brasil, é possível dizer que estamos na era mais propícia de todas para seu sucesso. A ascensão dos mercados de nicho e a possibilidade de torná-los lucrativos é diretamente positivo para a música independente, que até então precisava lutar de maneira desgastante para manter-se viva como os artistas no cenário brasileiro da década de 1970. A possibilidade de comercializar um produto local, que cria uma identificação com aquele que a consome é uma mudança estrutural do mercado. Ela trará consequências negativas às grandes empresas que não souberem se adaptar, e positivas aos pequenos empreendedores que souberem fazer bom uso das ferramentas disponíveis como é o caso dos selos independentes citados no capítulo anterior. O que está acontecendo cada vez mais é que a identidade local (nacional, regional, municipal) está encontrando nos nichos um lugar importante para se manifestar. Ao invés da cultura de hits de outrora, onde uma massa capitalista distribuía conteúdos estrangeiros às realidades dos mercados em que adentrava, hoje o que vemos é uma volta da valorização ao nacional, como pregava o discurso dos músicos independentes antes do golpe militar. É ainda mais interessante observar que isto ocorre não de maneira revolucionária, onde o culto ao nacional é incentivado como resistência ao capitalismo; mas de maneira natural, onde o simples fato de que este conteúdo encontra-se disponível ao consumidor é o suficiente para gerar a identificação e a valorização que antes precisava ser reivindicada.

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Essa tendência é facilmente observada na quantidade de bandas de rock alternativo que hoje em dia apresentam uma preferência pela língua portuguesa em detrimento da inglesa, e até a existência de jovens que, por estarem envolvidos demais com a cena nacional, decidem por ignorar a cena internacional - e nisso me incluo. Em um espaço de pouco mais de um ano, o meu envolvimento com a cena independente tornou-se tão intenso que não sinto necessidade ou vontade de me manter atualizada com o que ocorre fora do Brasil musicalmente falando, com poucas exceções. Os inúmeros lançamentos nacionais são o suficiente para me manter ocupada e com bons discos novos para apreciar frequentemente. Para citar apenas algumas da cena que optam por cantar na língua materna, nomeio: Amandinho (PE), Ventre (RJ), Boogarins (GO), Carne Doce (GO), Cupin (SP), e Raça (SP). Hoje me encontro mais inclinada a desenvolver um relacionamento pessoal com um conteúdo cantado em português, por ser algo que me representa e me faz criar significados pessoais mais únicos para as letras, do que com aqueles cantados em inglês. Reconhecendo o mercado como esse lugar plural em que há público para os mais diversos nichos, e a internet como um espaço infinito onde a quantidade avassaladora de conteúdos pode fazer com que alguns deles acabem renegados a seus confins, os selos desempenham a função de funil, filtrando aquilo que há de mais interessante e facilitando o trabalho dos fãs que interessam-se por determinado tipo de nicho. Cada selo representa um gênero ou subgênero, uma ideologia, uma estética, e sua existência tem o papel de colocar as bandas no mapa da cena. Como disse Gustavo Prandini do selo Freak a mim em entrevista, a cena encontra-se em um estado profissional, onde tudo está ajustado e preparado para lidar com o grande público. A meu ver, estamos muito próximos dessa aproximação, mas antes precisamos ultrapassar algumas barreiras. A primeira delas é, como citado com Gui Toledo do selo Risco, a da “síndrome do vira-latismo brasileiro”. Para o público do mainstream, a realidade de uma cena nacional independente de qualidade é algo impensável. Apesar do alcance cada vez maior da internet, a mídia ainda molda os pensamentos da grande maioria da população, e não poderia ser diferente visto o poder que a televisão ainda exerce no dia-a-dia do brasileiro. A televisão está na sala, no quarto, nos restaurantes, nas padarias, nas lojas, em todo lugar refletindo esse discurso e retratando o estrangeiro como superior e livre de problemas. Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é

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uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos. (RODRIGUES, 1958, s/p).38

A expressão foi criada por Nelson Rodrigues em 1958 em uma coluna na revista Manchete Esportiva, na semana seguinte ao primeiro título mundial do Brasil em uma Copa do Mundo, conquistado na Suécia. O documentário “Complexo de Vira-latas” (2014) da Sem Cortes Filmes, dirigido por Leandro Caproni explora a veracidade do termo numa época prévia à realização da Copa do Mundo no Brasil, quando as expectativas dos brasileiros eram negativas, e existiam diversas dúvidas quanto à capacidade do país de completar um evento deste porte. Os entrevistados recordam de como a sensação de inferioridade do brasileiro foi imposta pelos imigrantes europeus para facilitar o processo da colonização. A dominação não limita-se apenas ao âmbito da violência física, mas baseia-se muito também na violência cultural, que diminui aquilo que temos de mais valioso: nossa identidade nacional. Isso perdura até hoje, sendo muito visível no mundo da música. A abertura para as bandas estrangeiras ainda é muito maior do que para as nacionais, o que apresenta-se um obstáculo que precisa ser vencido para que o independente possa furar o mainstream. O trabalho da Bichano e da Transtorninho Records representa um passo importante nessa direção, pois como são geridas por pessoas mais jovens, acabam por atrair uma nova geração de consumidores de música que pode transformar essa realidade e fazer com que mais pessoas acreditem e confiem na produção nacional. Outro ponto que a meu ver dificulta a popularização da cena independente é o que chamarei aqui de “envelhecimento precoce”. As mudanças no mercado fonográfico e na maneira consumir música citadas acima contribuíram para um envelhecimento precoce de grande parte da população. Desnorteados com as mudanças da indústria, muitos acreditam que o rock está morto - discurso que vem se repetindo década após década, normalmente proferido por aqueles que decidem parar de procurá-lo. Em uma busca rápida no Google pela expressão “o rock está morto”, encontrei um artigo da revista Veja.

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NELSON RODRIGUES. Complexo de vira-latas. . Acesso em: 20 nov. 2016.

Disponível

em:

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Em sua história de mais de seis décadas, o rock foi dado como morto inúmeras vezes. (...) A imensa variedade de informação e a pirataria propiciadas pela internet, a situação difícil do mercado fonográfico e, principalmente, as transformações sociais decorridas nos últimos anos completam o painel. “O rock em determinado momento representou uma certa oposição à cultura hegemônica reinante, foi uma trilha revolucionária e isso foi mudando”, diz Micael Heschmann, historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Houve o esgotamento de uma certa agenda de reinvindicações. O rock fazia parte desse movimento de resistência cultural, de contestação, mas o próprio mundo mudou. Aquelas bandeiras dos anos 1960 não estão mais aí.”39

Como o próprio artigo relembra, através da história, inúmeras vezes o rock foi dado como morto e em todas essas vezes existia uma cena alternativa para contestar a afirmação. Um exemplo disso foi a cena de Seattle nos anos 1990 e o nascimento da gravadora Subpop, responsável por bandas como Nirvana, Pearl Jam, e Soundgarden, tendo acontecido no underground por anos antes de ser descoberta pela mídia. O envelhecimento precoce não tem idade e acontece quando há uma falta de disposição para absorver aquilo que é novo, de procurá-lo, e dar a ele uma chance de ser conquistado. A rotina atarefada é um obstáculo grande na luta contra o envelhecimento precoce, mas é preciso estar sempre aberto para a arte. Envelhecer não deve ser sinônimo de se fechar para o que é de novo, e sim entender que os jovens estarão sempre dispostos a revolucionar seus ambientes produzindo conteúdo de qualidade. A cena está montada, preparada, e qualificada, esperando apenas o reconhecimento do grande público para manter-se viável e rentável para todos os que estão nela envolvidos. Resta esperar: graças à internet, à cauda longa, aos prosumers, ao consumo de nicho, e à cultura da convergência, é apenas uma questão de tempo (e como sabemos, na era da informação, o tempo corre mais rápido do que nunca).

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RAFAEL COSTA. O rock morreu – e desta vez não há engano. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2016.

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