A interpretação tópico-sistemática sob o olhar crítico da Semântica da Enunciação (Resenha crítica

May 28, 2017 | Autor: Miresnei Oliveira | Categoria: Hermenêutica Do Direito, Semantica Da Enunciação, Semántica Argumentativa
Share Embed


Descrição do Produto

A interpretação tópico-sistemática sob o olhar crítico da Semântica da Enunciação (Resenha crítica) Miresnei Bomfim de Oliveira*

Não é de hoje as discussões em torno da questão do sentido e da significação, afinal, já no Crátilo de Platão (348 a.C) encontrava-se inscrita a tentativa de se encontrar um fundamento lógico-ontológico para a linguagem dos homens, dado que o fato da linguagem transcorre e perpassa toda a humanidade conhecida. Todavia, é no desenvolvimento secular da Linguística, principalmente a partir dos estudos de enunciação de Benveniste (1958), que diferentes contribuições revelam-se e fundam o espreitado olhar do linguista sobre a linguagem e sobre a língua. A partir desta apresentação, propositadamente, procuro mostrar que, ao se operar e sistematizar papéis nos estudos de linguagem, ficam definidas também diferentes áreas do saber lingüístico, entre elas a da Semântica e, ainda mais especificamente, a de uma Semântica Enunciativa. Assim, antes de qualquer coisa, uma distinção se faz premente no presente texto: a diferença entre se praticar uma análise textual propriamente dita, e a de se proceder com uma descrição semântica sobre o texto, qualquer que seja ela, de forma que esta contribua com aquela, num procedimento de análise que vise, por exemplo, aos aspectos enunciativos enquanto produtores de sentido e que, em seguida, possibilite um procedimento de interpretação de textos que passe especialmente por esse viés. Isto posto, o texto A interpretação tópico-sistemática: ou a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação, presente no 2º capítulo da obra A interpretação sistemática do direito (Santa Catarina: Malheiros, 1994), do eminente jurista gaúcho Juarez Freitas, prefaciado por outros dois juristas renomados, Eros Roberto Grau e Paulo Bonavides, configura-se como uma tentativa lógico-formal, esmiuçada e densa de se mostrar, no âmbito da hermenêutica jurídica, como o direito positivo sempre se manifesta em linguagem e, face a isso, que papel ocupa o fazer interpretativo do sujeito intérprete nesse espaço, bem como o que se entende efetivamente por interpretação sistemática (frise-se, textual) que aí se pratica. Para tanto, o referido capítulo encontra-se dividido em cinco partes, sendo a primeira Revendo a tarefa da interpretação jurídica, na qual o autor classifica sua interpretação como sistemática, adjetivo decorrente da ideia de sistema, ali considerado aberto e organizado hierarquicamente, presente no primeiro capítulo. Para o jurista, a interpretação jurídica encontra-se inscrita num arcabouço maior, denominado sistema jurídico, o que implica dizer que caberá ao exegeta alcançar, pela interpretação da norma jurídica, o melhor significado a partir de uma escolha axiológica, em cuja base encontram-se “disponíveis” princípios, regras e valores. Assim, uma interpretação sistemática envolve, existencialmente, o sujeito que interpreta e “lê” o sistema, não lhe permitindo ser apenas um expectador, descobridor ou revelador de significados (sic.), mas também como um sujeito que atua como conformador prescritivo ou partícipe estruturador do objeto normativo. Por fim, Juarez afirma que a condição do intérprete 1

sistemático é a de “positivador” derradeiro, o qual tem a responsabilidade de culminar o Direito Positivo ao exercer seu papel de intérprete, que não deve se prestar à vassalagem das normas, nem se colocar passivamente diante do jogo interpretativo. Já na segunda parte, observa-se o caráter estruturalista da abordagem do autor, uma vez que, ao afirmar que as frações do sistema guardam conexão entre si, admite não só que cada preceito normativo deve ser visto como parte viva do todo, mas também que há uma noção pré-existente de estrutura, isto é, pré-existente ao ato de interpretar. Justamente por isso o dever de, em cada fazer interpretativo, a necessidade de haver um pensamento de “ajustamento” ao sistema como um todo. Isso se opera pelo que o autor denomina processo de hierarquização de princípios, regras de valores, no qual a interpretação tópico-sistemática (tópico no sentido de se buscar o melhor significado) os escalona, na medida em que “renova seus significados” (grifo meu), nas palavras do próprio autor. A terceira parte do capítulo, denominada A interpretação sistemática e finalística em face no ordenamento jurídico, comporta a tese de que deve haver, segundo o autor, a primazia do fator teleológico sobre os fatores legais como característica determinante para a interpretação tópico-sistemática pretendida. Há uma menção de que o intérprete, cuja referência principal é o juiz, e a interpretação, devem revelar a vontade do sistema (grifo meu). Nesse sentido, o papel do intérprete é o de “retirar o véu, ou invólucro (o texto, para o autor), que cobre a norma”, objeto de quem interpreta. (Há aqui uma clara noção de transparência da linguagem). Nessa linha, o autor elenca os principais critérios da interpretação jurídica que devem ensejar a tônica do administrador ou juiz quando intérpretes, são eles: o sentido literal, o contexto, a análise da intenção reguladora, fins e ideias normativas do legislador histórico, critérios teleológico-objetivos, o preceito da “interpretação conforme a Constituição”, e, por fim, a imbricação dos critérios interpretativos. Dessa lista de critérios, observe-se, não consta uma que leve em consideração aspectos enunciativos ou discursivos, ausência que avulta em importância para a descrição semântica, como se verá. Encerra a seção afirmando que não somente a interpretação extensiva ou aplicação analógica, senão que toda e qualquer interpretação, deve ser vista, funcionalmente, como sistemática e, em razão disso, hierarquizadora. Na quarta parte, sob o título A interpretação literal como apenas uma fase da interpretação literal, trata o autor de uma literalidade que deve ser considerada, tratando-a nos seguintes termos: “há um significado restrito no literal que deve, mesmo assim, se submeter à ordem sistêmica do processo”. Essa tal literalidade é tratada como “a interpretação conforme a Constituição”, como uma faceta da interpretação sistemática. Na última parte, intitulada Reconceituando a interpretação sistemática do Direito, o autor retoma o afirmado no topo do texto. Isto é, ao se submeter a um sistema, o trabalho do intérprete da lei deve primar em “mexer” uma de suas peças sempre se preocupando com a harmonia com o todo, por isso ela é sistemática e não independente. Além disso, a busca da melhor significação possível, daí a ideia de ser topical, e sempre endereçada aos princípios, regras e valores jurídicos, de tal forma que os hierarquize num todo sistêmico aberto, visando a superar sempre as antinomias, em 2

sentido amplo. Por fim, equaliza as posições crítica e hermenêutica do intérprete, na tentativa de lhe atribuir alguma autonomia, denominada discricionariedade jurídica no processo. Afirma o autor que ao interpretar o “objetivamente dado”, o exegeta realiza a sistematização e, ao fazê-lo, transcende inevitavelmente o objeto em si, porquanto na transcendência o imanente jurídico experimenta sentido. Como dito acima, a análise textual não é, necessariamente, objeto de trabalho da semântica, haja vista que áreas como a análise do discurso de corrente francesa lidam mais direta e frequentemente com as discussões relativas à noção de interpretação textual, principalmente quando tratam das implicações de fatores discursivos nesse processo, tais como contexto, sujeitos que, ideologicamente, segundo essa corrente, direcionam sentidos para aquilo que pode ser reformulado linguisticamente. Além disso, criticam as práticas interpretativas do, digamos, mainstream escolar, que consistem basicamente, de um lado, na tarefa de explicar significados “originais” que já estariam postos nos textos e, de outro, enquanto prática de linguagem notadamente ligada às intenções do autor, que busca reconstruir a essência de conteúdos que uma materialidade linguística representa. Efetivamente, não é essa a questão tratada aqui. Numa perspectiva enunciativa, sabe-se, muitos são os caminhos de estudo da significação ou sentido da linguagem, de forma que entendo o sentido considerado como que a partir de um funcionamento da linguagem num acontecimento enunciativo específico e em condições específicas. Apesar dessa pretensão, a presente reflexão não se pretende exaustiva, mas sim como um start, ou, ponto de partida em cuja base encontra-se a dúvida, minimamente. Por esse ponto de vista, um estudo semântico enunciativo (pela descrição semântica) dos princípios que regem a hermenêutica jurídica é, antes de qualquer coisa, um debruçar sobre um texto, um corpus, ou ainda, a um só tempo, um recorte lingüístico e social importante e representativo de uma categoria, a jurisdicional. Ora, um primeiro ponto a se considerar no texto de Juarez é o fato desse autor, com alguma regularidade, buscar o sentido da norma a ser interpretada por uma operacionalização a priori. Ou seja, se sistêmica, cabe ao intérprete apenas manipular os elementos lingüísticos de tal forma que encontre harmonia com o todo, com a jurisprudência, independente das ocorrências inerentes ao texto. Por esse processo, a primazia aloca-se no sistema jurídico em detrimento do acontecimento no texto em si. Portanto, a metodologia interpretativa operada ignora qualquer processo enunciativo no interior do texto, de forma que o significado de uma expressão, por exemplo, é resultado não da forma como esta expressão se integra ao enunciado em que se faz presente, se articulando localmente, mas de uma determinação a priori, que encabeça o sistema jurídico e que pré-existe ao método de interpretação a ser aplicado. Por essa visão interpretativa, não há uma unidade que integre um texto enunciativamente e sim um texto que deve, no seu todo, seguir um comando principiológico qualquer. A afirmação, pelo autor, de que cabe ao intérprete dialogar construtivamente com o texto legal e com a realidade diacrônica não se confirma com a ideia mais ampla de seu trabalho, configurando-se, a meu ver, numa antinomia de regras. Ora, em primeiro lugar, não se 3

trata de dialogar com o texto e sim, como se espera num processo interpretativo, de observar pelo método e permitir que este enseje que sentidos serão ali produzidos em termos de linguagem. Em segundo lugar, resta indagar de que vale a consideração da realidade diacrônica e do modo como as mudanças sociais exigem a transformação de conteúdos, como defende o autor, se, em regra, o intérprete é visto como o positivador derradeiro. Isto é, como considerar o histórico e o político nas enunciações diante da exigência de que qualquer norma singular apenas se esclarece na totalidade das regras, dos valores e dos princípios jurídicos, os quais norteiam o espectro significativo do Direito positivo? Para o autor, dizer que a interpretação do Direito tem de ser sistemática equivale a dizer que as fases exegéticas (histórica, original (sic.), textual, crítica, etc.) são apenas momentos de uma mesma atividade [interpretativa] cognitiva, construtiva e relacional. Por esse ponto de vista, interpretar é sistematizar, noutros termos, “juntar os cacos”, rearranjar o amálgama até que se o torne simétrico, menos fragmentário e isolado. Nesse ponto, importaria verificar nos acontecimentos enunciativos da norma, o que não ocorre em nenhum momento no método desse autor, que operações de articulação podem ser consideradas na determinação do sentido, refiro-me, principalmente, à determinação, predicação e argumentação. A resposta a esse “estímulo” interpretativo não viria de fatores discursivos como o contexto, mas do acontecimento enunciativamente localizado. A proposta de uma análise textual a partir de uma semântica enunciativa com base no acontecimento, como a que aqui se desenhou minimamente, tem suas condições de realização comprometidas se nas bases de seu objeto de análise operar-se uma axiologia positivo-dogmática em cujo interior funcione uma hierarquização tal que vise à reafirmação de valores e princípios fundamentais, como as do Direito positivo. Posto dessa forma, uma reflexão mais apurada sobre o método interpretativo jurisdicional o colocará, inescusavelmente, em xeque. Diante disso, é indiscutível a necessária leitura e análise do texto do renomado jurista, a fim de que uma ciência social como o Direito, se abra, cada vez mais, ao serviço de outras ciências. Por fim, que se cumpra o pedido do próprio autor no final de seu texto, qual seja, o de que sua obra seja um sistema aberto, isto é, acolhedor de toda forma de contribuição.

*Mestrando do Programa de Pós Graduação da Universidade Estadual de Campinas IEL – Instituto de Estudos da Linguagem

4

Referência Bibliográfica

BENVENISTE, E. Problemas de linguística Geral I. 2 ed. Pontes: Campinas, SP. 1988. ______________. Problemas de linguística Geral II. 2 ed. Pontes: Campinas, SP. 1988. BREAL, M. Ensaio de Semântica – Ciência das significações. 2 ed. Editora RG, 2008. FREITAS, J. A interpretação sistemática do direito. 5 ed. Editora Malheiros, São Paulo. 2010. GUIMARÃES, E. Os limites do sentido – um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 3 ed. Pontes: Campinas, SP. 2005. ______________; MOLLICA, M. C. A palavra – forma e sentido. Pontes Editores: Campinas, 2007.

5

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.