A intertextualidade bíblica e Shakespeariana em Dom Casmurro

July 21, 2017 | Autor: Marcia Pinho | Categoria: Machado de Assis, Cristianismo, Letras, Dom Casmurro
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MÁRCIA PINHO

A intertextualidade bíblica e Shakespeariana em Dom Casmurro

SÃO PAULO

2012

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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é o maior escritor brasileiro de todos os tempos, reconhecido dentro e fora do território nacional. Fundador da Academia Brasileira de Letras é alvo de constantes releituras devido ao caráter filosófico e atemporal de suas obras. Dom Casmurro narra a história de Bento Santiago, o Bentinho, um garoto prometido à vida sacerdotal desde que nasceu, filho único e órfão de pai, é criado um ambiente bem familiar. Ao chegar à adolescência vai para o seminário a fim de cumprir a promessa feita por sua mãe D. Glória. Nessa época mantinha uma amizade especial com sua vizinha Capitu, ambos estavam enamorados e juraram casar-se. Frustrados pelo cumprimento da promessa unem-se ao agregado José Dias para que a vida no seminário seja a mais breve possível. Fora do seminário Bentinho e Capitu casam-se. Bento mantém a amizade com o colega de seminário Escobar, este por sua vez casa-se com a melhor amiga de Capitu, Sancha. No decorrer dos anos, os dois casais mantêm relações muito próximas. Bento, um homem extremamente ciumento desconfia de que o melhor amigo e sua esposa são amantes. A desconfiança cresce na medida em que o filho do casal, Ezequiel também cresce. O narrador nos diz que seu filho tem uma grande semelhança com seu amigo Escobar. Sem nunca adquirir provas concretas, aos poucos se afasta emocionalmente de Capitu e do filho. Corroído pelo ciúme deseja a própria morte e a do filho, separa-se da esposa e ajuda Ezequiel numa viagem sem volta, seu filho morre no estrangeiro. Fechado em si mesmo, sem a esposa, sem o filho, sem o amigo que falecera, ganha o apelido de Casmurro e decide escrever sobre sua tragédia para dar sentido a sua existência. Dom Casmurro, de 1899 se tornou um dos livros mais lidos e discutidos em todo o mundo, a obra mais celebre de Machado de Assis figura na lista das grandes obras da literatura universal. Nenhum livro gerou tantas discussões quanto Dom Casmurro, por conta de sua ambigüidade tem feito com que milhares de leitores discutissem a suposta traição de Capitu. Também inspirou diversos artistas, escritores e estudiosos a dissecar essa história

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transformando-a em novas obras, peças de teatros e diversos trabalhos acadêmicos (tese, ensaio, TCC). Dom Casmurro é uma obra erudita, conseqüência da vasta cultura de seu autor. Recheada de referências de obras clássicas, levando ao leitor o conhecimento de autores consagrados como Shakespeare, Homero, entre outros; além das citações bíblicas. Outro aspecto relevante é a intertextualidade e as figuras de linguagens (alegorias, metáforas) utilizadas no decorrer do texto, e nada na construção da narrativa é por acaso, cada item se desenrola numa teia de informações preciosas, uma cadeia bem construída para o fim que se destina: a impossibilidade de um veretido em relação ao adultério. Machado de Assis mantém um dialogo com o leitor, com o propósito de obter um cúmplice, o que torna a leitura agradável. Faremos um breve resumo das figuras de linguagem e da intertextualidade contidas no texto. Dom Casmurro é um romance dentro do romance, há dois Bentinhos, o personagem e o narrador, configura-se a metalinguagem. 1 As metáforas estão presentes em diversas passagens, talvez a mais significativa seja na descrição do olhar de Capitu por Bentinho: 2 “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.” 3

Essa metáfora foi alvo da publicação A metáfora do mar no Dom Casmurro, de Linhares Filho (Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1978). 1

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR., Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 70 2

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR., Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 73 3

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.65

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Ópera é a alegoria na qual o autor dedica um capítulo inteiro. 4 O capítulo nove concentra a maior figura de linguagem. “A vida é uma ópera” diz o narrador na voz de um velho tenor. Essa ópera é a sua vida, já anunciada no capítulo oito, eis outra fala do tenor: —A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente... 5

Segue as representações de cada elemento: Tenor: a voz mais alta, Escobar Barítono: entre o tenor e o baixo, Bentinho (personagem) Baixo: voz masculina mais grave, Bento (narrador) Soprano: voz feminina mais aguda, Capitu Contralto: voz feminina mais grave, Sancha Comprimário: cantor de papel secundário, demais personagens. Agora vamos substituir os elementos da ópera pelos personagens para ter clareza sobre essa analogia: — A (minha) vida é uma ópera e uma grande ópera. O Escobar e o Bentinho lutam pela Capitu, em presença do Bento e dos demais personagens , quando não são a Capitu e a Sancha que lutam pelo Escobar, em presença do mesmo Bento e dos mesmos personagens secundários. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...

4

GOULART,

Audemaro

Taranto.

Dom

Casmurro,

ainda

www.ich.pucminas.br/.../Dom%20Casmurro%20-%20Ensaio.pdf 5

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.18

e

sempre.

Disponível

em:

4

Além da extensa polissemia, encontramos na obra uma intertextualidade explicita. Da arte de Machado de Assis floresceu The brazilian Othello of Machado de Assis, de Helen Caldwell (Berkeley, University of Califórnia Press, 1960). Conhecida como o Othello brasileiro, Dom Casmurro faz um paralelo constante com o texto Shakespeariano. Conforme nos mostra o capítulo 135 (Otelo) do texto Machadiano:6

“Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência.” .

“... pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes

de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo.” “Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. - E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; - que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?” “Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a substancia na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã.” Além de todas as citações de Otelo na obra do bruxo Machado, observemos algumas “coincidências” entre os personagens que a autora Hellen Caldwell propõe:7 Bento Santiago: Otelo

(Santo + Iago )

Capitu: Desdêmona José Dias: Iago Escobar: Cássio

6 7

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.235 e236 CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

http://books.google.com.br/books?id=Q6kETzYptRMC&lpg=PA67&ots=dr9vc8d6Uq&dq=santiago%20santo%2 0iago%20helen%20caldwell&hl=pt-BR&pg=PA33#v=onepage&q&f=false

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O personagem Bento Santiago se reveza no papel de Otelo e de Iago. Podemos concluir que o romance em questão é uma paródia da tragédia inglesa. Outra intertextualidade é no campo do discurso bíblico. Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. 8

Referência ao conflito celestial, o texto nos serve como um adicional para a alegoria da ópera. Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No momento de fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: “Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus.” Tal seria a esperança secreta de minha mãe. 9

Nessa passagem a autor compara a mãe de Bentinho com Abraão, um exemplo de fé e obediência a Deus, e se compara a Isaac (o filho da promessa), indo para o sacrifício (seminário).

“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...” 10

Ainda na Ópera o dialogismo com o texto sagrado no Evangelho segundo S.João:

“No princípio era o Verbo, o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (João 1:1)

8

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011.p.18

9

Ibid. p.151 Ibid. p.20

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A Ópera é a alegoria que traz infinidade de metáforas, dialogismo e é a síntese da obra, pois é a sua ópera (obra). O propósito do narrador ao escrever o livro era “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”, na tentativa de resgatar sua própria história, no entanto o mesmo se via perdido em lembranças das quais havia lacunas, sua memória o traia, como bem declara: “Não, não, a minha memória não é boa.” 11 Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor.

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Nesta passagem Bentinho deixa claro que não devemos confiar em sua narrativa, ao mesmo tempo coloca uma sentença que o contradiz logo em seguida: “Todavia, não há nada mais exato.” 13 Nada é por acaso, como já dito, na obra do mestre da ambigüidade, como bem se percebe neste caso e nas diversas situações em que o próprio autor deixa transparecer suas dúvidas. Há um capítulo especifico intitulado Dúvidas sobre dúvidas. O alto índice de ambigüidade que se reveste o texto é fruto da posição do escritor, que para muitos estudiosos é um bruxo, pois a trama é tecnicamente perfeita, nenhum argumento de defesa ou acusação se sustenta concretamente. Segundo Proença Capitu é duplamente enigmática, para seu ex marido e para os leitores. “Não se ouve, em nenhum momento, a voz de Capitu. Nada sabemos diretamente do seu real pensamento, do seu amor e do seu desejo.” 14

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12

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.115

Ibid. p.91 Ibid. p.91 14 PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR., Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 92 13

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O mistério persiste e Capitu, a moça dos olhos de água, permanece indecifrável. Salvo pelo autor Domício Proença que finalmente deu voz à suposta adultera. Em sua obra Capitu: Memórias Póstumas, o membro da Academia Brasileira de Letras, permite que Capitu conte a sua versão dos fatos.15 Dom Casmurro é leitura obrigatória nos vestibulares, o que o torna bastante conhecido, porém, não o suficiente para declararmos que é uma obra popular, pois a compreensão do romance exige do leitor conhecimento prévio, e para aqueles que não possuem este requisito básico a leitura é estimulante. Para concluir, o clássico de Machado é obrigatório, culturalmente, para todos.

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Leitura dramática de Capitu: Memórias Póstumas, por Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras http://mais.uol.com.br/view/5538xakjh4b4/leitura--fernanda-montenegro-capitu04026AD4B96327?cmpid=cmp-cfb-vdo

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Bibliografia

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011. PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR., Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 69-99

CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. http://books.google.com.br/books?id=Q6kETzYptRMC&lpg=PA67&ots=dr9vc8d6Uq&dq=s antiago%20santo%20iago%20helen%20caldwell&hl=ptBR&pg=PA33#v=onepage&q&f=false GOULART, Audemaro Taranto. Dom Casmurro, ainda e sempre. Disponível em: www.ich.pucminas.br/.../Dom%20Casmurro%20-%20Ensaio.pdf

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo.Editora Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). 2005.

Leitura dramática de Capitu: Memórias Póstumas, obra de Domicío Proença Filho, leitura realizada por Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras. Disponível em: http://mais.uol.com.br/view/5538xakjh4b4/leitura--fernanda-montenegro-capitu04026AD4B96327?cmpid=cmp-cfb-vdo

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Considerações Finais

Dom Casmurro é uma obra de extrema complexidade, é necessário mais de uma leitura para que se comece a perceber além do que está escrito. As inúmeras informações adicionais que o texto nos transmite é a ponta de um imenso “iceberg”. Pesquisar a intertextualidade e as diversas figuras de linguagem é uma viagem fascinante ao mundo machadiano. Ao decorrer do romance, as descobertas de outros textos e discursos contidos nessa trama nos permitem compreender o motivo de Dom Casmurro ser um clássico. Os temas abordados na obra são atemporais e Machado de Assis soube brilhantemente tecer de forma que faz com que há mais de um século as pessoas refletem sobre o que ele escreveu. Dom Casmurro sim, ainda e sempre!

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