A introdução das disciplinas de ciências nos liceus. O primeiro laboratório

June 7, 2017 | Autor: Carlos Beato | Categoria: História Da Educação, Historia da Educação, História das Disciplinas Escolares
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Cultura Escolar Migrações e Cidadania ­ Actas do VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da  Educação  20 ­ 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto)  ISBN 978­972­8614­13­3 

A introdução das disciplinas de ciências nos liceus – o  primeiro laboratório  Carlos Alberto da Silva Beato  Escola Secundária de José Afonso, Loures 

EIXO 6 – Instituições educativas e cultura material escolar 

Introdução  No  período  que  se  seguiu  à  revolução  cartista  de  Setembro  de  1836,  o  poder  instituído  encetou  uma  acção  reformadora  das  instituições,  nomeadamente  das  de  instrução  pública.  Realça­se  a  criação  dos  Liceus  Nacionais,  escolas  que  se  destinavam  a  ministrar  um  ensino  onde  se  incluiriam  conteúdos  técnicos  e  práticos,  em  oposição  ao  ensino  tradicional  que  contemplava  quase  só  as  chamadas  humanidades,  e  que  não  teria  como  objectivo  único  a  preparação  para  o  acesso  à  Universidade.  A  grande  novidade  trazida  pelo  decreto  de  17  de  Novembro de 1836, assinado por Passos Manuel enquanto Ministro e Secretário de Estado dos  Negócios do Reino, foi a introdução no ensino secundário de cadeiras onde seriam leccionadas  as línguas e as ciências modernas.  Apesar do entusiasmo dos seus promotores foram muitas as dificuldades que o processo  de instalação dos novos estabelecimentos de ensino teve que enfrentar. No período que decorre  entre  1837  e  1844  não  houve  cumprimento  das  disposições  legislativas  aprovadas,  devido,  em  grande  parte,  à  instabilidade  política  e  à  grave  crise  económica  e financeira.  Posteriormente,  a  reforma  de  Costa  Cabral  limitou  os  objectivos  do  ensino  liceal  e  pode­se  dizer  que,  de  algum  modo, formalizou a situação vivida anteriormente. Entrementes, só em 1860, cerca de um quarto  de século depois do decreto fundador, estavam definitivamente instalados e a funcionar todos os  liceus que a legislação setembrista pretendera criar.  Inicialmente,  as  disciplinas  de  ciências  físicas  e  naturais,  apesar  de  previstas  na  legislação, estiveram praticamente ausentes dos liceus. As  suas características inovadoras que  levantavam  objecções  da  parte  de  alguns,  e  a  dificuldade  em  recrutar  professores  habilitados,  foram obstáculos maiores à  sua implantação nos liceus que  se iam instituindo. O que é facto é  que  na  vigência  da  lei  de  Passos  Manuel  a  existência  das  ciências  liceais  se  pode  considerar  virtual  e  que  posteriormente,  com  a  reforma  de  Costa  Cabral,  foram  simplesmente  eliminadas  dos planos de estudos.  Em 12 de Agosto de 1854, três anos depois da queda do cabralismo, no mesmo ano em  que  se  iniciavam  os  testes  práticos,  entre  Sacavém  e  Vila  Franca,  para  a  introdução  dos  caminhos de ferro no país, o Governo publicou, com Rodrigo da Fonseca no ministério do reino,  uma  lei  que  permitiu  a  reintrodução  das  disciplinas  de  ciências  nos  programas  liceais  e,  desta  vez, com existência real, porque também as tornava “preparatórios” necessários para o acesso à

A introdução das disciplinas de ciências nos liceus – o primeiro laboratório 



Universidade.  Não  será  demais  realçar  a  importância  deste  instrumento  legal.  De  facto,  foi  a  partir dele que as disciplinas de ciências se instalaram definitivamente nos programas liceais.  Entretanto,  para  que  as  cadeiras  pudessem  funcionar  exigiam­se  vários  tipos  de  equipamentos  e  espaços,  nomeadamente  artefactos  experimentais  e  materiais  de  consumo  concentrados  em locais particulares, os laboratórios.  Em Lisboa, Porto e Coimbra, bastou fazer  uma  mudança  ao  estatuto  das  disciplinas.  As  ciências  “transitaram”  dos  estabelecimentos  de  ensino  superior  para  os  liceus,  o  que  foi  uma  solução fácil  e  sem  grandes  encargos  imediatos.  Nas restantes regiões do país, a criação das ciências liceais foi, acompanhada da instalação de  laboratórios de raiz, adaptando salas e adquirindo mobiliário, material e reagentes. 

A criação da cadeira de ciências no Liceu de Ponta Delgada  Como  se  disse  a  lei  de  12  de  Agosto  de  1854  permitiu,  finalmente,  a  existência  das  disciplinas de ciências nos liceus. Atento a esta situação o Conselho do Liceu de Ponta Delgada,  nem três meses passados, pediu ao governo incluir as ciências físicas e naturais no conjunto das  que aí eram leccionadas:  O Decreto . . . e as circunstâncias especiais em que se acha o Liceu Nacional de  Ponta Delgada . . . obrigam o Conselho deste Liceu implorar de Vossa Majestade a graça  de lhe doar . . . criação de uma cadeira de princípios de física e química, e introdução à  história natural dos três reinos. 1  Depois  do  Governador  Civil  de  Ponta  Delgada  dar  o  seu  aval  à  pretensão  o  documento  chegou  ao  Ministério  do  Reino,  que  o  remeteu,  em  21  de  Novembro,  ao  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública,  onde  foi  presente  na  reunião  do  dia  24,  sendo  a  representação  micaelense  2  consultada favoravelmente uma semana depois, no dia 1º de Dezembro  .  A  pretensão  do  liceu  de  Ponta  Delgada  era  fundamentada  com  um  conjunto  de  argumentos valiosos mas a rapidez com que o processo se desenrolou, assim como os de outros  liceus que  se  seguiram, não poderá deixar de se relacionar com a situação política e o período  então vivido, o da regeneração com a sua aposta desenvolvimentista.  A bem elaborada argumentação do Conselho do Liceu de Ponta Delgada toca em vários  aspectos. Refere os aspectos culturais gerais dado  que “nenhuma educação literária se poderá  dizer  hoje  completa  sem  o  conhecimento  daqueles  princípios,”  e  os  aspectos  económicos,  realçando a dimensão populacional de São Miguel e “o seu comércio e riquezas [que] criando­lhe  maior soma de comodidades, induz uma grande parte dos pais de famílias a levarem seus filhos  aos estudos primários e secundários, seguindo muitos deles depois estudos superiores.” Daí os  “mais de cem alunos que frequentam regularmente as diversas aulas do Liceu Pontadelgadense,  [e] o bom número de alunos filhos desta terra, que todos os anos vão cursar os estudos da nossa  universidade.”  Por  outro  lado  a  terra  “é  particularmente  agrícola,  e  todos  sabem  a  conexão  íntima,  que  existe  entre  aquela  ciência  e  a  agricultura”  e  o  interesse  local  pelas  ciências  tem  raízes fundas, pelo menos desde o tempo em que alguns médicos residentes na cidade deram  “prelecções  elementares  de  física,  química,  botânica  e  zoologia,  e  se  notou  muito  desejo  e 



Representação  do Conselho  do  Liceu Nacional  de Ponta Delgada a pedir  a Cadeira  de  Princípios de  Física  e  Química, e Introdução à História Natural (PFQIHN), 31 de Outubro de 1854: Maço 3576.  Nota: Todos os documentos referenciados pertencem ao Fundo “Ministério do Reino” dos Arquivos Nacionais da  Direcção­Geral de Arquivos.  2 

Actas  do  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública  (CSIP)  de  1854,  24  de Novembro  e  1  de Dezembro:  Maço 

3565.

VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação 

Carlos Alberto da Silva Beato 



afeição, por aqueles utilíssimos conhecimentos.” A acrescentar a isto o facto de que pela criação  da cadeira não ser “aumentada ou muito pouco, a verba da Despesa” e haver ainda a vantagem  de melhorar o trabalho do liceu “principalmente na época de exames, em que só  pela bondade  de alguns doutores, alheios ao Liceu, temos sido coadjuvados naquela árdua tarefa” 3 .  O Conselho Superior de Instrução Pública concorda e perfilha parte da argumentação do  Conselho do liceu de Ponta Delgada considerando a  cidade é “um dos locais mais apropriados  para este Estabelecimento não só pela sua população e riqueza; senão porque a fonte principal  desta  é  ali  a  agricultura,  que  pode  tirar  grandes  vantagens  daquele  estabelecimento.”  Todavia,  faz  questão  de  lembrar  que  as  ciências  não  são  como  as  demais  disciplinas  e  que,  para  ser  criada a respectiva cadeira, é preciso algo mais:  Mas para se conseguir este fim, não basta criar a Cadeira, é preciso dotá­la com  os  instrumentos  próprios  para  as  aplicações  usuais;  e  por  isso  parece  ao  Conselho  Superior de Instrução Pública, que convirá ordenar a criação da dita Cadeira, e autorizar  ao  mesmo  tempo  a  despesa  necessária,  para  a  compra  dos  utensílios  necessários  aos  seus exercícios práticos. 4  Depois  deste  posicionamento  do  Conselho  Superior,  o  Ministério  do  Reino  pede­lhe  que  informe “quais são os utensílios que reputa indispensáveis para a Cadeira funcionar, quando seja  criada  e  a  quanto  montará  a  despesa  com  a  aquisição  de  tais  utensílios” 5 .  Na  lista  que  o  Conselho elabora incluem­se 31 artefactos para a disciplina de Física, começando por um “nónio  rectilíneo”  e  terminando  com  um  “aparelho  para  decompor  a  água.”  Para  a  Química  seria  indispensável  “um  pequeno  laboratório”  e  uma  “colecção  de  produtos  químicos,”  enquanto  a  Zoologia deveria possuir “alguns representantes mais notáveis de cada uma das classes do reino  animal.” A Botânica deveria necessitar de “um herbário” e a Mineralogia e Geologia teriam uma  “colecção industrial de rochas e minerais” e uma “colecção de rochas respectivas aos diferentes  6  terrenos”  .  A  elaboração  desta  relação  de  instrumentos  e  materiais  foi  feita  através  da  colaboração  íntima  existente  entre  o  Conselho  Superior  e  a  Universidade  de  que,  em  realidade,  era  uma  extensão, mais não fosse pela origem dos seus membros. A cadeira tinha sido, na sequência da  lei  de  1854,  criada  no  liceu  de  Coimbra,  e  este  não  era  mais  que  uma  secção  da  própria  Universidade,  desfrutando  os  seus  professores  do  mesmo  estatuto  que  os  universitários  e  transitando  de  uma  para  outra  instituição  sem  qualquer  perda  de  prestígio.  O  professor  que  primeiro leccionou a cadeira no liceu, enquanto não foi possível prover o lugar por concurso, era  um jovem lente universitário destacado para essa tarefa. Foi ele o responsável pela elaboração  original  da  lista  de  apetrechos  para  equipar,  primeiro,  o  laboratório  liceal  de  Ponta  Delgada  e,  posteriormente, dos outros liceus onde a cadeira foi criada.  Nas  circunstâncias,  pode­se  dizer  que  a  lista  terá  sido  elaborada  à  imagem  das  necessidades  da  própria  Universidade,  mesmo  que  “simplificadas”  para  o  uso  liceal.  A  própria  cadeira leccionada na escola secundária deveria seguir de muito perto as equivalentes do ensino  superior, como se depreende de vários indícios. 



Representação do Conselho do Liceu de Ponta Delgada de 31/10/1854: Maço 3576. 



Consulta do CSIP (propondo a criação da cadeira de PFQIHN no liceu de Ponta Delgada) de 5 de Dezembro de  1854: Maço 3576.  5 

Nota inscrita na “Consulta do CSIP” de 5/12/1854: Maço 3576. 



“Relação  dos  objectos  e  utensílios  indispensáveis  para  o  exercício  da  Cadeira  de  PFQIHN  e,  pedida  pelo  Conselho do Liceu de Ponta Delgada; com designação dos preços respectivos” (CSIP): Maço 3576.

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A introdução das disciplinas de ciências nos liceus – o primeiro laboratório 



Assim,  e  por  exemplo,  num  projecto  de  lei  para  o  Governo  considerar,  a  propósito  da  introdução de um curso de economia na Universidade, o Conselho Superior de Instrução Pública  propunha que “devem passar para os Liceus a frequência das Cadeiras de Aritmética, Geometria  e Álgebra até às operações do 2º grau, e a de Introdução à História Natural dos três Reinos da  Natureza, ­ e criando­se no Liceu de Coimbra estas Cadeiras que serão regidas por Professores  competentemente  habilitados” 7 .  Esta  mudança  de  local  de  ensino  não  implicava,  como  se  vê,  alterações  significativas  nos  conteúdos  a  leccionar  o  que  vem  a  reforçar  a  ideia  de  uma  certa  indistinção entre os níveis de ensino, ao menos nessa época a meio do século XIX.  A  aquisição  dos  materiais  propostos  para  o  laboratório  do  liceu  de  Ponta  Delgada  importava  em  358$400  reis,  ultrapassando  largamente  a  disponibilidade  atribuída  às  ilhas  que  em  matéria  de  equipamento  escolar,  “reparos  concertos  e  arranjos”  era  de  200$000  reis.  A  solução encontrada passou por uma medida algo inesperada.  O  orçamento  para  a  Instrução  Pública  é,  geralmente,  considerado  como  pouco  alargado.  Em  tempo  de  crise  económica  e  financeira  os  meios  tendem  a  escassear  ainda  mais  e  os  governos dificilmente disponibilizam as verbas que parecem necessárias. No entanto, em 1855,  havia sobras. E é a partir da recuperação dessas verbas não utilizadas que se consegue creditar  a compra do equipamento laboratorial:  Para  reparos,  concertos  e  arranjos  indispensáveis  para  colocação  das  Escolas  nas  Ilhas  Adjacentes  estão  votados  200$000  rs,  quantia  muito  inferior  àquela  em  que  importa  o  orçamento  da  despesa  de  que  se  trata.  Entretanto,  a  reconhecida  vantagem  desta  despesa,  –  o  achar­se  autorizada  a  criação  da  Cadeira,  para  que  a  despesa  se  torna necessária, – e a circunstância de existirem sempre sobras no Capítulo = Instrução  Pública  =  parece  que  deve  influir  para  que  se  autorize  a  compra  dos  objectos  indispensáveis para o estabelecimento da dita Cadeira, fornecendo­se­lhe os  200$000 rs  que  estão  votados,  e  autorizando  o  dispêndio  dos  restantes  158$400  pelas  sobras  da  soma que foi destinada para o serviço da Instrução Pública no Distrito de Ponta Delgada. 8  Sabe­se  que  o  dinheiro  disponível  para  a  educação  não  é,  em  geral, muito mas, mesmo  assim,  sobrava  o  que  pode  ser  indicativo  do  entusiasmo  dos  políticos  com  tal  Serviço  e,  tendencialmente, relativiza a sempre apregoada falta de meios para justificar o que não se faz.  A  cadeira  foi  efectivamente  criada  por  decreto  de  23  de  Maio  de  1855  e  foi  aberto  concurso em 11 de Junho do mesmo ano para o respectivo provimento com a expectativa da sua  abertura  no  mês  de  Outubro  seguinte.  Para  isso,  o  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública  recomendou,  em  19  de  Junho,  “que  o  meio  melhor,  e  mais  pronto  de  adquirir,  e  fazer  remeter  para o Liceu de Ponta Delgada os referidos utensílios será por via do Encarregado dos Negócios  9  de  Portugal  na  Corte  de  Paris”  .  De  imediato  foram  tomadas  providências  oficiando­se  ao  “Agente  Diplomático  em  Paris  encarregando­o  da  compra  dos  objectos  necessários  para  a  cadeira funcionar, . . .  ficando prevenido de que à Agência Financial em Londres é enviado um  10  crédito até à quantia de 360$000”  . 



Actas do CSIP de 1850, 8 de Outubro: Maço 3551. 



Informe sobre a criação da Cadeira de PFQIHN no Liceu Nacional de Ponta Delgada (Ministério do Reino, 11 de  Maio de 1855): Maço 3576.  9 

Consulta  do  CSIP  (sobre  o  meio  de  haver  utensílios  para  a  Cadeira  de  PFQIHN  no  Liceu  Nacional  de  Ponta  Delgada) de 19 de Junho de 1855: Maço 3576.  10 

Nota inscrita na “Consulta do CSIP” de 19 de Junho de 1855: Maço 3576.

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Carlos Alberto da Silva Beato 



A  situação  complica­se  quando  no  mês  seguinte  vem  de  Paris  a  resposta  de  que  era  preciso  ser  mais  pormenorizado  na  descrição  da  pretendida  compra.  O  representante  da  Corte  em Paris refere a “insuficiência do crédito de 360$000 rs para tal encomenda.. . só os objectos  de Física custariam mais” e nota que “quanto aos objectos de Química, de Zoologia, de Botânica  e  de  Mineralogia  e  Geologia,  é  mister  especificar  os  exemplares  que  se  desejam,  para  poder  saber os  seus preços.” Termina afirmando que passaria, apesar de tudo e enquanto aguardava  novas ordens, “desde já a comprar os objectos de Física” 11 .  Em  função  destes  dados  o  Governo  mandou  de  novo  consultar  o  Conselho  Superior,  oficiando­lhe  em  6  de  Agosto.  O  Conselho,  dois  meses  depois,  responde  especificando  “os  exemplares que se desejam, com os seus respectivos preços extraídos literalmente do Catálogo  de  L.  Hachette  e  Cia,  Livreiros  em  Paris.”  Só  foi  enviado  o  “aviso  ao  Ministro  de  Portugal  em  12  Paris  em  25  de  Fevereiro  de  1856”  ,  ou  seja,  sete  meses  depois  da  nota  do  representante  diplomático,  tornando,  deste  modo,  impraticável  a  abertura  da  cadeira  no  ano  lectivo  de  1855­  1856.  Toda  esta  lentidão  contrasta  com  a  aparente  celeridade  da  inicial  tomada  de  decisão  de  incluir uma cadeira de ciências entre as que eram leccionadas no liceu de Ponta Delgada.  De qualquer modo as aulas não poderiam ter começado na data prevista também porque o  concurso para provimento da cadeira se prolongara e só em Fevereiro de 1856 é que o Conselho  Superior  de  Instrução  Pública  se  sentiu  em  condições  de  pedir  “autorização  ao  Governo  para  prover  temporariamente  a  Cadeira” 13 ,  recebendo  a  anuência  do  ministério  no  princípio  de  Março 14 . Logo a seguir o professor foi nomeado o que permitia, havendo condições materiais, o  início das actividades da cadeira de ciências em Ponta Delgada.  O  candidato  nomeado  foi  o  único  opositor  ao  concurso,  fazendo  lembrar  as  dificuldades  em  encontrar  pessoal  qualificado.  Na  proposta  para  o  provimento  da  cadeira,  o  órgão  coordenador do ensino público realça que o opositor, que teve de se deslocar a Coimbra, como  era  então  norma,  para  efectuar  as  provas,  “posto  que  não  obtivesse  qualificação  para  o  provimento  vitalício,  mostrou­se  habilitado  para  exercer  desde  já  com  suficiência  o  ensino  na  Cadeira  a  que  se  propõe,  sendo  muito  conveniente  que  no  tirocínio  temporário  não  só  adquira  mais  alguma  segurança,  mas  também  se  torne  um  hábil  Professor.”  E  é  na  convicção  desta  última  crença  que  é  feita  a  proposta  da  sua  nomeação,  até  porque  era  pessoa  de  “bom  15  comportamento moral, civil e religioso”  .  A  nomeação  do  professor  para  a  cadeira  de  ciências  na  Ilha  de  S.  Miguel  concretiza­se  com  o  pagamento  dos  direitos  de  mercê  a  que  os  empregados  do  estado  estavam  obrigados  para  poderem  ser  providos.  Neste  caso  o  súbdito  pagaria  noventa  e  um  mil  e  oitocentos  e  setenta  e  cinco  reis  “de  Direitos  de  Mercê,  e  cinco  por  cento  adicionais  correspondentes  ao  Emprego de Professor por três anos da cadeira de Física e Química do Liceu Nacional de Ponta 

11 

Ofício da Legação em França de 20 de Julho de 1855: Maço 3576. 

12 

Consulta  do CSIP (com novo  orçamento  mais discriminado para  apetrechar  as  aulas  de ciências  no liceu  de  Ponta Delgada) de 2 de Outubro de 1855: Maço 3576.  13 

14 

Actas do CSIP de 1856; 22 de Fevereiro: Maço 3575.  Actas do CSIP de 1856; 4 de Março: Maço 3575. 

15 

Proposta  do  CSIP  para  provimento  temporário  da  cadeira  de  PFQIHN  do  Liceu  de  Ponta  Delgada  de  26  de  Fevereiro de 1856: Maço 3573.

VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação 

A introdução das disciplinas de ciências nos liceus – o primeiro laboratório 



Delgada,”  mais  quarenta  reis  de  imposto  de  selo 16 .  A  quantia  exigida  pela  mercê  não  era  despicienda como mostra o requerimento que o professor fez solicitando, o que era uma prática  comum, porque não se encontrava “em circunstâncias de pagar de pronto, e por uma só vez,” o  pagamento em prestações, no seu caso, “pelo desconto da quarta parte do seu ordenado” 17 .  Entretanto  a  odisseia  do  material  encomendado  em  França  prosseguia.  Os  objectos  adquiridos para Física e Química e a colecção de minerais são remetidos para Lisboa por barco  a vapor, em 20 de Março de 1856 18 , sendo dado conhecimento ao Ministério, vinte dias depois,  pelos respectivos responsáveis de que nos “Armazéns desta Alfândega existe um caixote vindo  do Havre” 19 . Mais uma semana passada, é dada ordem para que o material precedente de Paris  seja entregue a quem “ali se apresentar competentemente autorizada pelo Ministério” 20 .  Alguns  dias  depois  é  remetido  novo  ofício  da  representação  portuguesa  em  Paris  informando  que  mais  material  iria  viajar  com  destino  a  Lisboa  ainda  em  Abril 21 .  Quando  finalmente a remessa se completa, no princípio de Maio, o representante diplomático em França  oficia a fazer o balanço da operação. Refere, numa primeira parte, como o processo do envio se  desenvolveu  e,  numa  segunda,  as  atribulações  que  passou  com  a  aquisição  tendo  em  conta  o  pouco crédito que lhe fora disponibilizado.  Tive  a  honra  de  remeter  para  Lisboa,  à  direcção  de  V.  Exa.  ;  em  data  de  19  de  Março; uma caixa contendo parte dos objectos encomendados – em data de 21 de Abril,  uma  segunda  caixa  com  quase  todo  o  resto  da  encomenda,  –  e  remeto  finalmente  o  complemento dela em um pequeno caixote.. . .  O pronto pagamento do custo desta encomenda havia a vantagem de dez p% de  abatimento;  e  conquanto,  apesar  da  expressa  declaração  de  V.  Exa.  já  tinham  decorrido  dez meses sem que a Agência Financial em Londres recebesse ordem alguma para ter à  minha disposição para este mister, um crédito até à quantia de 360$000; não duvidei, no  interesse da economia do Estado, fazer o desembolso da soma de fr.1767,85c. para pagar  à  vista  a  importância  dos  ditos  objectos..  .  .  Aguardo  pois  que  V.  Exa.  se  sirva  mandar  quanto  antes  pagar­me  aquele  desembolso,  e  tomo  a  liberdade  de  ponderar  muito  respeitosamente  a  V.  Exa.  quanto  é  dura  a  decepção  de  recorrer  a  um  crédito  formalmente  anunciado  e  receber  em  resposta  que  ele  não  existe!...  Parecerá  que  pretendi surpreender a Agência. 22  A  comprovar  juntava  o  recibo  respeitante  à  regularização  da  compra  feita  na  Librairie  Hachette pelo ministro de Portugal tendo o material sido posto à disposição do cliente em 24 de  23  Abril de 1856  . 

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Documento da Secretaria do CSIP de 26 de Abril de 1856 (“guia nº 1”): Maço 3573. 

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Requerimento de C. Morais de 16 de Maio de 1856 (L 14; N 264): Maço 3573.  Ofício da Legação em França de 19 de Março de 1856: Maço 3576.  Ofício da Alfândega Grande de Lisboa de 9 de Abril de 1856: Maço 3576.  Ofício da Direcção Geral das Alfândegas e Contribuições Indirectas de 17 de Abril de 1856: Maço 3576.  Ofício da Legação em França de 21 de Abril de 1856: Maço 3576.  Ofício da Legação em França de 2 de Maio de 1856: Maço 3576. 

Recibo anexo ao Ofício da Legação em França de 2 de Maio de 1856: Maço 3576.

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Carlos Alberto da Silva Beato 



Antes de o material adquirido em Paris chegar ao seu destino, regista­se ainda, entre Maio  e  Junho  de  1856,  uma  troca  de  ofícios  entre  o  Ministério  do  Reino  e  a  Direcção  Geral  das  Alfândegas  a  propósito  da  cobrança  dos  direitos  de  importação  de  que  o  material  não  tinha  isenção 24 . Finalmente, uma portaria passada pelo governo com a data de 23 de Junho é enviada  ao  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública  para  informar  este  tribunal  superior  de  que  todo  o  material destinado à cadeira de ciências no liceu de Ponta Delgadas seguia a bordo de um barco  para aquela cidade:  De Lisboa para a Cidade de Ponta Delgada vão quatro caixotes, com direcção ao  respectivo  Governo  Civil, mas  com  destino  ao  Liceu  Nacional  daquele  Distrito,  contendo  eles, como contém, os diversos objectos, que . . . se tornam necessários para o exercício  da  Cadeira  de  Princípios  de  Física  e  Química  e  Introdução  à  História  Natural  dos  três  Reinos, pertencente ao mesmo liceu. 25  O  material  é  finalmente  entregue  ao  reitor  do  liceu  em  11  de  Julho 26  ficando  disponível  para o começo das aulas de ciências no liceu de Ponta Delgada. Assim, depois do pedido, em 31  de Outubro de 1854, do Conselho do Liceu Nacional de Ponta Delgada para se criar localmente  a Cadeira de Princípios de Física e Química, e Introdução à História Natural; depois da Consulta  do  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública  que,  em  5  de  Dezembro  desse  ano,  propunha  a  criação da cadeira e chamava a atenção para a necessidade de adquirir equipamento adequado;  depois de nova Consulta deste Conselho Superior que, em 24 de Abril de 1855, apresenta a lista  e o orçamento dos materiais que julga imprescindíveis para o funcionamento da cadeira; depois  da  autorização  da  despesa  orçamentada  e  consequente  criação  da  cadeira  de  ciências  por  decreto passado um mês depois, em 23 de Maio; depois de outra Consulta do Conselho, com um  orçamento mais discriminado, em resposta à solicitação que fora feita pelo ministro encarregado  de  fazer  a  aquisição,  em  2  de  Outubro  de  1855;  depois  da  definitiva  encomenda  enviada  ao  representante  diplomático  da  monarquia  em  Paris  no  dia  25  de  Fevereiro  de  1856;  depois  de  todas  estas  peripécias,  o  material  entrou  em  Ponta  Delgada  exactamente  vinte  e  um  meses  depois  da  diligência  inicial  do  Conselho  do  Liceu  local  e  a  cadeira  de  Princípios  de  Física  e  Química, e Introdução à História Natural começou a funcionar em pleno no ano lectivo de 1856­  1857 regendo o professor que tinha sido provido por decreto governamental em 29 de Fevereiro  de 1856. A cadeira teve durante esse ano lectivo uma frequência de 11 alunos o que constitui um  assinalável sucesso, mesmo sendo, de todas as existentes no liceu de Ponta Delgada, a menos  frequentada 27 . 

Conclusão  A introdução das disciplinas de ciências nos programas liceais foi um processo demorado,  acompanhando  aliás  a  morosidade  da  própria  instalação  dos  liceus,  o  que  se  deveu  a  razões  diversas,  em  particular  as  crises  económica  e  financeira,  mas  também  crises  política  e  social,  inerentes às dificuldades que o regime liberal teve para se impor definitivamente.  Realça­se  que  o  primeiro  equipamento  laboratorial  adquirido  destinou­se  a  um  liceu  de  uma região periférica, os Açores. No entanto verifica­se que havia, nessas ilhas, nomeadamente  em  São  Miguel,  uma  certa  tradição  de  ensino  das  ciências  e  matemáticas,  dentro  e  fora  das 

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Ofício da Direcção Geral das Alfândegas e Contribuições Indirectas de 15 de Maio de1856: Maço 3576  Actas do CSIP de 1856; 25 de Junho: Maço 3575.  Recibo passado pelo Reitor do Liceu Nacional de Ponta Delgada em 11 de Julho de 1856: Maço 3576. 

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Mapa  anexo  (2/9/1857)  ao  Relatório  Literário  de  1856­1857  do  Comissário  de  Estudos  do  Distrito  de  Ponta  Delgada: Maço 3577.

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instituições públicas de ensino, fruto da antiga presença liberal. Não foi, portanto, surpreendente  que  o  Conselho  do  liceu  de  Ponta  Delgada,  atento  aos  interesses  locais,  tenha  tomado  a  iniciativa de pedir ao governo, logo que a lei de 12 de Agosto  de 1854 o  permitiu, a criação de  uma  cadeira  de  ciências.  Deste  modo  o  liceu  da  ilha  de  São  Miguel  foi  o  primeiro  de  todos  os  existentes em Portugal, inclusive no continente europeu, a incluir na sua oferta as disciplinas de  física e química e de ciências naturais associadas a um laboratório construído de raiz.  Constata­se  que  para  se  conseguir  que  a  cadeira  funcionasse  em  Ponta  Delgada  o  processo foi, em si, algo atribulado cheio de diligências e incidentes inesperados o que o tornou  demorado,  levando  quase  dois  anos  a  concretizar­se.  Tudo  isso  poderá  ser  atribuído,  sem  grande dificuldade de prova, a procedimentos e ritmos de trabalho que vinham de trás, e que a  inexperiência da nova burocracia não conseguiu, nessa fase inicial de introdução de novas áreas  disciplinares nos liceus, ultrapassar.  A criação da cadeira de Princípios de Física e Química, e Introdução à História Natural no  liceu  de  Ponta  Delgada,  e  a  consequente  instalação  do  seu  laboratório,  foi  a  primeira  de  um  conjunto  que,  até  meados  do  ano  de  1859,  quando  o  Conselho  Superior  de  Instrução  Pública,  sediado em Coimbra, foi extinto e as suas competências transferidas para um novo organismo –  o  Conselho  Geral  de  Instrução  Pública  em  Lisboa  –  já  incluía,  pelo  menos,  Braga  e  Angra  do  Heroísmo (1856), Horta e Faro (1858) e Vila Real e Funchal (1859).  O processo de aquisição do material para os diversos liceus terá sido semelhante. No caso  do  liceu  de  Braga,  o  segundo  da  série,  assim  foi.  Apesar  de  tudo,  verificou­se  uma  maior  presteza  no  andamento  das  diversas  diligências,  até  porque  já  havia  a  experiência  anterior,  o  que  se  veio  a  reflectir  numa  duração  de  apenas  cerca  de  seis  meses  a  concretizar­se.  Não  deixaram  de  surgir  alguns  aspectos  secundários  semelhantes  como,  por  exemplo,  o  do  crédito  que,  apesar  de  concedido  a  tempo,  continuou  a  não  ser  suficiente  para  a  totalidade  da  28  despesa  .  O  que vem  a  revelar­se  interessante  é  a  contestação  que  os  liceus  contemplados  fazem  relativamente  ao  equipamento  que  lhes  é  atribuído,  considerando­o  insuficiente  ou  inadequado  ao programa leccionado localmente. Há elementos que mostram que isso se passou, ao menos,  com os liceus de Braga 29 , Angra do Heroísmo 30  e da Horta 31 . Mesmo em Coimbra 32 , onde o liceu  era  parte  da  Universidade,  o  caminho  seguido  pelo  professor  nomeado  por  concurso  terá  divergido do que era apontado pela instituição.  O modo  como foi  escolhido  e  imposto  a  todos  os  liceus  uniformemente,  e  a forma  como  esse  material  de  uso  laboratorial  condicionou  o  ensino  praticado,  ou  limitou  a  autonomia  dos  professores de uma disciplina que não dispunha de um programa, são alguns aspectos a serem  mais  ponderados  futuramente.  Os  desacordos  manifestados  terão  a  ver  com  perspectivas  diferentes para o desenvolvimento da cadeira. Confrontando a lista original do material comprado  com as propostas pelos professores da cadeira nos diversos liceus do país, abre­se a  hipótese  de perceber o que é que cada professor leccionava, ou gostava de leccionar (na pré­história da 

28 

Processo nº 152: Maço 3580. 

29 

Processo nº 148: Maço 3583. 

30 

Processo nº 335: Maço 3584. 

31 

Actas do CSIP de 1859; 18 de Fevereiro e 25 de Fevereiro: Maço 3586. 

32 

Actas do CSIP de 1857; 23 de Outubro: Maço 3580.

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cadeira  e  dos  programas)  e,  portanto,  compreender  o  processo  de  formação  das  disciplinas  liceais de ciências e a própria história dessas disciplinas.

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