A Invasão da Líbia: Legitimidade dos Instrumentos de Intervenção Internacional em Face da Soberania dos Estados

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO ADJUNTA DE TRABALHO DE CURSO ARTIGO CIENTÍFICO

A INVASÃO DA LÍBIA: Legitimidade dos Instrumentos de Intervenção Internacional em Face da Soberania dos Estados.

ORIENTANDO(A): MATHEUS LOPEZ AVELINO DA SILVA ORIENTADOR(A): PROF. ESPECIALISTA MÉRCIA MENDONÇA LISITA

GOIÂNIA 2013

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MATHEUS LOPEZ AVELINO DA SILVA

A INVASÃO DA LÍBIA: Legitimidade dos Instrumentos de Intervenção Internacional em Face da Soberania Dos Estados.

Projeto de Artigo Científico apresentado à disciplina Trabalho de Curso I, do Departamento Ciências Jurídicas, Curso de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUCGOIÁS). Prof. Orientador: Especialista Mércia Mendonça Lisita.

GOIÂNIA 2013

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MATHEUS LOPEZ AVELINO DA SILVA

A INVASÃO DA LÍBIA: Legitimidade dos Instrumentos de Intervenção Internacional em Face da Soberania Dos Estados.

Data da Defesa: ____ de _______________ de 2013.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Orientadora: Profª. Especialista Mércia Mendonça Lisita

Nota

_________________________________________________ Examinador Convidado:

Nota

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SUMÁRIO RESUMO……………………………………………………………………….5 INTRODUÇÃO……………………….……………………………….……….6 1. A DOUTRINA DA GUERRA JUSTA..................................................8 1.1 – O DIREITO DOS POVOS...............................................................................................8 1.2 – O IMPÉRIO DA DECÊNCIA.........................................................................................11

2. A INVASÃO DA LÍBIA…………………………………………............14 2.1 – MOTIVAÇÕES…………………………………………………………………..………….....14 2.2 – LEGITIMIDADE………………………………………………………………………………..18

CONCLUSÃO.........................................................................................20

REFERÊNCIAS......................................................................................24

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RESUMO O presente estudo pretende examinar como as intervenções militares internacionais, nomeadamente as de caráter humanitário, podem ser nocivas ao equilíbrio das relações internacionais e, notoriamente, à proteção e desenvolvimento dos direitos humanos. Quer-se, ainda, estudar a legitimidade do direito de ingerência dos Estados que o reclamam, a fim de determinar se tais Estados deveriam possuir tal direito ou não, sob o ponto de vista do Direito Internacional Público. Esse artigo científico utilizou, como foco de estudo, a intervenção internacional ocorrida na Líbia, na altura do ano de 2011. Dentro dessa perspectiva de análise, o presente trabalho de conclusão de curso procurou analisar o instrumento da intervenção como mecanismo de proteção dos Direitos Humanos e sua eficácia real, examinando a doutrina que inspira o direito de ingerência humanitária, a obra de John Rawls; finalmente procedeu-se à identificação, de forma crítica, dos interesses das nações que fomentam as intervenções internacionais, avaliando a situação geopolítica em que se inseria a Líbia no decorrer da guerra. Com as constatações recolhidas, percebeu-se que a intervenção no país teve um legado desastroso para a estabilidade política regional, e que as consequências podem ter alcançado o cenário global. Observou-se também que tal operação, criada, no âmbito jurídico internacional, para proteger os Direitos Humanos, apenas visa à expansão econômica e política de seus idealizadores. Assim, o Direito Internacional Público, que deveria servir ao interesse coletivo, de todos os povos, dá suporte às relações de poder estabelecidas entre as nações. Palavras-chave: intervenção. direitos humanos. legitimidade. Líbia. guerra justa.

ABSTRACT The current study is ought to examine how the international military interventions, namely the humanitarian ones, can be bad to the balance in the international relations and, especially, to the protection and construction of the human rights. It’s also supposed to study the legitimacy of the State’s humanitarian intervention right, in order to determine whether those States should have such a right or not, under the point of view of the International Public Law. This scientific article had, as a focus, the study of the international intervention that took place in Libya, in 2011. From this perspective, the present paper sought to analyse the intervention instrument as a mechanism created to protect the Human Rights, and its real efficiency, examining the work of John Rawls, the doctrine that inspires the humanitarian intervention right; the research finally proceeded to identifying, critically, the interests of the nations that promote the interventions, weighing the geopolitical situation in which Libya was during the war. Given the collected findings, it got clear how the intervention in the country had a disastrous legacy to the political stability regionally; it’s also supposed to have had world-wide consequences. It was perceived as well that the operation, created under the international juridical order to protect the Human Rights, aims nothing else but the economical and political expansion of their founders. Therefore, the International Public Law, shaped to serve the collective interest, supports, in the other hand, the might-based relationships established by the nations. Keywords: intervention. human rights. legitimacy. Libya. just war.

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A INVASÃO DA LÍBIA: Legitimidade dos Instrumentos de Intervenção Internacional em Face da Soberania Dos Estados.

Matheus Lopez Avelino da Silva1

INTRODUÇÃO O interesse do presente trabalho é o de estudar a invasão da Líbia, que se deu em 2011, tendo como fundamento o exame do uso do direito de ingerência humanitária como instrumento de intervenção internacional em face da soberania dos Estados. O interesse surgiu da necessidade de identificar certas incoerências que circundam o direito ao uso da força, afim de averiguar se tal direito é legítimo ou não. Sabe-se que, a partir da Segunda Guerra Mundial, construiu-se uma ordem jurídica internacional, pautada nos Direitos Humanos, de abrangência universal; o ideal é o de que a dignidade humana é indivisível, e não se restringe mais às fronteiras nacionais dos Estados. Com isso, a partir da criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, a manutenção da paz, os interesses da comunidade internacional e do Direito Internacional alcançaram importância maior do que a soberania dos Estados. A pessoa humana se torna alvo de tutela do Direito Internacional, e surgem os primeiros mecanismos de proteção do ser humano. Um exemplo desse fenômeno é o fato de que, quando um Estado viola alguma norma de Direitos Humanos, mesmo sem ter ratificado tratado prévio referente a estes, a comunidade internacional tem legitimidade para intervir em seu território, inclusive usando meios militares, se necessário for. O que se pretende mostrar, por outro lado, é que são nítidos alguns aspectos contraditórios na construção e no uso dos Direitos Humanos. Desenvolvido sob a égide das superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, para satisfazer seus desígnios, o direito à ingerência vem sendo utilizado, desde o fim do conflito, como justificativa para empreender 1

Acadêmico do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil), pós-graduando em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra (Portugal), [email protected]

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intervenções em determinados Estados. Observa-se, atualmente, que o imperialismo econômico, através de intervenções militares, possui o respaldo da ordem jurídica internacional. algumas nações possuem o direito de empreender ações coercitivas em favor dos oprimidos, seja para prevenir, reagir ou evitar ameaças à humanidade. À doutrina da Guerra Justa, que assumiu diversas feições ao longo da História, é atribuído novo arsenal, os mecanismos de proteção aos Direitos Humanos, amplamente utilizados pelas potências ocidentais nos conflitos que ocorreram nas décadas de 1990, 2000, e nos últimos anos. A pretensão do presente trabalho é analisar, sob tal ótica, a legitimidade da intervenção internacional operada na Líbia em 2011, bem como as consequências do conflito. Foi preciso, primeiramente, estudar a Guerra Justa e sua doutrina, nomeadamente a obra de John Rawls, para compreender o fenômeno do uso da força, e quais são os argumentos utilizados pelos edificadores do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos, que é, em sua essência, muito similar à “sociedade dos povos” idealizada por Rawls. O objetivo da pesquisa é, então, estudar e compreender o direito ao uso da força, para que seja possível analisar sua legitimidade, para então, enfim, perceber qual é o papel dos Direitos Humanos na construção da atual ordem internacional. Finalmente, é preciso analisar os fatores que motivaram a guerra da Líbia, identificando os atores envolvidos, o contexto político e econômico, e as consequências para os Direitos Humanos, com o fim de questionar se tal espécie de operação é válida ou não. Para tanto utilizou-se, como amparo doutrinário e de dados, a doutrina de Rawls e de Marcelo Dias Varella, bem como as conclusões de Leif Wenar, contidas na Enciclopédia de Filosofia de Stanford; houve o uso, sem embargo, da opinião de diversos autores, renomeados por serem especialistas em seu campo, de professores universitários a jornalistas, bem como a sabedoria e experiência pragmática de Kofi Annan, ex-Secretário Geral das Nações Unidas. Pretende-se realizar uma abordagem legal, doutrinária e política, tendo em vista demonstrar a problemática que os direitos humanos enfrentam, em um contexto em que sua proteção está sujeita aos interesses políticos e econômicos de alguns Estados. A pretensão é, assim, contribuir para a reflexão sobre o papel do Direito Internacional Público, principalmente no que diz respeito à manutenção da paz e proteção aos Direitos Humanos, para que estes possam servir ao propósito que inspirou seu reconhecimento internacional.

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1. A DOUTRINA DA GUERRA JUSTA 1.1. O DIREITO DOS POVOS

Os grandes impérios da história da humanidade compartilham uma característica: faziam o uso da guerra para expansão territorial, política e econômica. Os invasores utilizaram ampla gama de justificativas para suas intervenções: o direito natural que o mais forte possui de conquistar o mais fraco, a necessidade de se estabelecer a paz entre os povos, a premência da evangelização, a expansão da vida civilizada, ou o direito à democracia. Discursos que buscam abonar conflitos que apenas visam, como desígnio de fato, à expansão do poder. No mundo atual, pode-se perceber a existência de um discurso comum, uma regra, ou princípio, de abrangência universal: por mais que os Estados tenham seus objetivos, sejam eles externos ou domésticos, a manutenção da paz e os interesses da comunidade e do Direito internacional possuem importância maior do que a soberania e a vontade das nações. John Rawls, em “O Direito dos Povos”, descreve uma ordem internacional em que os povos – e não Estados – são os destinatários e operadores do Direito no âmbito internacional. Tal Direito seria uma espécie de contrato entre os povos, um padrão para regular suas condutas. A ordem seria, assim, baseada na razoabilidade e na decência dos sistemas democráticos. O ordenamento jurídico e legal seria, portanto, reflexo da conduta liberal dos povos. Leif Weinar (2012) diferencia povos de Estados, na visão de Rawls: Rawls contrasts peoples with states. A state, Rawls says, is moved by the desires to enlarge its territory, or to convert other societies to its religion, or to enjoy the power of ruling over others, or to increase its relative economic strength. Peoples are not states, and as we will see peoples may treat 2 societies that act on such desires as outlaws .

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“Rawls diferencia os povos dos Estados. Um Estado, diz Rawls, é movido pelo desejo de estender seu território, ou de converter outras sociedades à sua religião, ou de tirar proveito do poder de comandar outros, ou de aumentar sua força econômica. Povos não são Estados e, como veremos, os povos podem tratar a sociedade que age com tais desígnios como fora-da-lei”. (Tradução livre)

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Como a sociedades liberais possuem uma estrutura institucional básica, haveria um padrão comum entre os diferentes povos; tal padrão acabaria por criar a composição fundamental das instituições internacionais. Rawls delimita as funções básicas do direito internacional na Sociedade dos Povos (2001, p. 35): Desde a Segunda Guerra Mundial, o Direito internacional tornou-se mais estrito. Ele tende a limitar o direito de guerrear de um Estado em casos de autodefesa (também no interesse da segurança coletiva) e a restringir o direito da soberania interna de um Estado. [...] O essencial é que a nossa elaboração do Direito dos Povos se ajuste a essas duas mudanças básicas e lhes dê uma fundamentação lógica adequada.

Pode-se inferir, assim, que o papel dos Estados seria inferior ao dos povos, uma vez que aqueles apenas protegem e asseguram o direito destinado a estes. O padrão que define o direito internacional é baseado nos princípios dos povos (decência e moralidade liberais), e não nos objetivos estatais. O mesmo padrão razoável, que regulamenta o modo de agir dos povos e define as bases do direito internacional, serve de fundamento para proteger os direitos humanos, os quais possuem um relevante papel na ordem, conforme explica Rawls (2001, p. 103): Os direitos humanos são uma classe de direitos que desempenha um papel especial num Direito dos Povos razoável: eles restringem as razões justificadoras da guerra e põem limites à autonomia interna de um regime. Dessa maneira, refletem as duas mudanças básicas e historicamente profundas em como os poderes da soberania têm sido concebidos desde a Segunda Guerra Mundial. Primeiro, a guerra não é mais um meio admissível de política governamental e só é justificada em autodefesa ou em casos graves de intervenção para proteger os direitos humanos. (grifo nosso).

Dessa forma, o Direito Internacional, representado, na obra de Rawls, como o Direito dos Povos, possuiria legitimidade para operar uma guerra, caso houvesse violação aos direitos humanos. Trata-se de uma possibilidade de guerra justa, delineada pelo próprio Rawls (2001, p. 120), que restringe a possibilidade de iniciar a guerra que um Estado possui: Violar a liberdade dos cidadãos pela conscrição ou outras práticas semelhantes na formação de forças armadas só pode ser feito, numa concepção política liberal, em nome da própria liberdade, isto é, como necessário para defender as instituições democráticas liberais, as muitas tradições religiosas e não-religiosas, e as formas de vida da sociedade civil.

Assim, Rawls acredita que o Direito dos Povos seria um guia para que as nações “decentes” entrem em confronto com os Estados violadores dos direitos humanos e do liberalismo político. O autor deixa claro o objetivo de tais ações: “o objetivo a longo prazo é levar todas as sociedades a honrar o Direito dos Povos e se

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tornarem membros plenos e de boa reputação da sociedade dos povos bem ordenados. Os direitos humanos, assim, seriam assegurados em toda parte” (2001, p. 122). Observa-se, na doutrina de Rawls, que os povos liberais e democráticos possuem a prerrogativa de indicar aos demais o caminho para a consecução do Direito dos Povos, podendo, para tanto, iniciar a guerra e executar a intervenção humanitária. Rawls abre espaço, ainda, para a criação de instituições e organismos que ajudem os povos a dissolverem seus problemas sociais, econômicos e políticos. Essa seria uma visão idealizada de organizações como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU). O ordenamento internacional, criado para a manutenção da paz, bem como seus povos idealizadores, possuiria, portanto, legitimidade para proteger os direitos humanos, empreendendo a guerra justa, caso necessário. De fato, a doutrina de Rawls inspira a configuração do atual ordenamento internacional, e seus princípios são defendidos por algumas nações, tanto em órgãos políticos, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, quanto em instituições de natureza econômica, como o Banco Mundial. É interessante perceber que, em ambos os exemplos, relevante número de ações estão relacionadas aos direitos humanos; quer seja quando o Conselho de Segurança declara guerra a um Estado autoritário, violador da integridade física e moral de seus habitantes, ou quando o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)3 direciona recursos financeiros para assistência, organização, ou recuperação de alguma população que necessita. Percebe-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos está direta ou indiretamente relacionado, assim, às principais decisões que ocorrem na ordem internacional. Os Estados que operam o direito internacional, atualmente, reclamam sua legitimidade para agir em face das mais variadas violações aos direitos humanos. Essas nações atuam com o respaldo lógico de Rawls: defendem os direitos naturais dos povos oprimidos, e alegam agir, também, como povos, e não como Estados4.

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Banque Internationale pour la Reconstruction et le Développement. O termo povos é empregado segundo a própria definição de Rawls, ou seja, não possuem os objetivos expansionistas de um Estado. 4

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Fica muito claro, por outro lado, que, se realmente agissem como povos, as operações destes Estados seriam desprovidas de qualquer caráter imperialista. Faz-se necessário averiguar a provável existência de um discurso falacioso, uma vez que, para obter a aprovação de suas ações, os Estados expansionistas teriam que fabricar uma legitimidade que careceria de fundamento5. É forçoso refletir, assim, sobre a supremacia de caráter universal que se atribui aos direitos humanos. Na verdade, cabe a indagação: a supremacia é, realmente, dos direitos humanos?

1.2. O IMPÉRIO DA DECÊNCIA

É preciso entender o papel dos direitos humanos, e de seus mecanismos de proteção, na construção da ordem internacional atualmente vigente. Isso porque o direito de ingerência humanitária é, em suma, a única possibilidade que a comunidade internacional tem de agir em face da soberania dos Estados. Há, no mundo globalizado, a construção de uma sociedade de Estados semelhante à de John Rawls em “O Direito dos Povos”. No mínimo, há a intenção de se estabelecer uma ordem global, pautada nos esforços comuns das nações, em busca de manter a paz e proteger as instituições democráticas e os Direitos Humanos. Assim como na obra de Rawls, conforme exposto, as nações denominadas liberais e democráticas afirmam possuir a prerrogativa de indicar aos demais o caminho para a consecução do Direito dos Povos, podendo, para tanto, iniciar a guerra e executar a intervenção humanitária. Desse modo, o ordenamento jurídico internacional, criado para a manutenção da paz, bem como seus Estados idealizadores, possuiria legitimidade para proteger os direitos humanos, empreendendo a guerra justa, caso esta seja necessária. O que se pode constatar, hoje em dia, é que algumas nações, como os Estados Unidos da América, a França, ou o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de fato reclamam para si a legitimidade de executar as intervenções humanitárias, visando o bem geral. 5

Esse fundamento seria, justamente, o fato de agirem conforme o discurso, de tal forma que as intervenções humanitárias sejam única e exclusivamente voltadas para os direitos humanos.

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É necessário recordar a diferença, construída pelo próprio Rawls, entre povos e Estados. Se as nações citadas realmente agem com vistas à obtenção de um bem geral, ou seja, o alcance pleno do bem-estar humano, tais ações seriam verdadeiramente legítimas. Se, por outro lado, as intervenções humanitárias tiverem qualquer caráter unilateral, conforme observado anteriormente, tais operações seriam, no mínimo, incoerentes. Legitimidade é a qualidade daquilo que é legítimo, ou seja, algo que se pauta na racionalidade e na justiça. Esse é um conceito genérico do termo, que também possui um significado específico, de vital relevância para o presente trabalho; tal definição específica está relacionada ao poder político que um determinado ente pode possuir. Como poder político, a legitimidade é a competência para manter a ordem estabelecida, e é assegurada pelo interesse comum, que garante a obediência; esse consenso, em grande parte das situações, dispensa o uso da força. A legitimidade, como poder político, é qualidade fundamental do Estado, por exemplo. É importante ressaltar, antes de qualquer prosseguimento, que a ideia de legitimidade está, assim, ligada à atribuição de poder político a um sujeito, para que este aja em defesa de um interesse comum, requisito indispensável para a construção verdadeira do Direito dos Povos. A ordem internacional vigente, vale ressaltar, também se pauta nessa legitimidade. Isso pode ser percebido pela própria configuração da Organização das Nações Unidas. O Conselho de Segurança, órgão responsável por agir em nome de todos os membros das Nações Unidas, possui o poder de determinar as intervenções humanitárias que, segundo o órgão, sejam necessárias, o que tem sido frequente nas duas últimas décadas. O artigo 24 da Carta das Nações Unidas deixa evidente o papel do Conselho de Segurança: A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles.

O Conselho de Segurança, assim, pode agir em prol dos princípios norteadores das Nações Unidas. O tratado constitutivo da ONU enumera as possibilidades em que o órgão pode executar suas competências, atribuindo ao Conselho de Segurança o arsenal jurídico necessário para empreender a

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intervenção militar que urgir. Ou seja, a “guerra justa”, nos moldes definidos por Rawls, encontra pleno respaldo legal. Os Direitos Humanos, definidos pelos Estados ocidentais como indivisíveis, inalienáveis e universais, aplicáveis a todos os seres humanos, garantem ao Conselho de Segurança amplo poder político. Os membros do órgão podem agir, em tese, em todo o mundo, protegendo todos os povos, conforme a doutrina de Rawls. Kofi Annan, Secretário Geral das Nações Unidas de 1997 a 2006, em defesa da tutela internacional dos direitos humanos, e das ações que a ONU tem realizado nesse sentido, declarou (Annan, 1998): Os direitos humanos são universais; neste caso, não se deve considerar as fronteiras, mas considerar a humanidade como um todo, indivisível. A definição do interesse nacional, no mundo contemporâneo, deve compreender os direitos humanos. Então, agindo dessa forma, as Nações Unidas estarão agindo em nome do direito nacional desses países.

Seria evidente, portanto, a legitimidade da ONU, de seus membros, e, principalmente, de seu Conselho de Segurança, visto que suas ações estariam voltadas para proteger todos os povos, assegurando suas instituições democráticas, seus direitos humanos e a igualdade entre todos. Afinal, as ações se voltariam para o interesse da humanidade. A semelhança entre a doutrina de Rawls e o sistema das Nações Unidas seria notável, e, vale lembrar, as operações protagonizadas por tal sistema seriam legítimas de fato. Há, entretanto, uma importante ressalva, uma diferença entre o Direito dos Povos e o sistema internacional de proteção aos direitos humanos. O Conselho de Segurança possui cinco membros permanentes, com poder de veto. A China, a Federação da Rússia, os Estados Unidos da América, a França e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, detentores dos assentos permanentes desde a criação da ONU, detêm a discricionariedade de, individual e unilateralmente, impedir que qualquer decisão seja tomada pelo órgão, segundo seus próprios interesses nacionais. Pode-se observar, ainda, uma série de incoerências no sistema internacional de proteção aos direitos humanos. As nações que possuem maior poder econômico e militar, principalmente, utilizam o direito de ingerência humanitária para agir em defesa de interesses próprios. E as violações aos Direitos Humanos que essas próprias nações causam não são combatidas. Ou seja, os estados operadores do direito internacional não se submetem às regras que criaram

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para todos os demais. E pode-se observar, continuamente, a falta de eficácia das intervenções humanitárias, que não são sequer protagonizadas em regiões em que se fazem necessárias. Nesse sentido, observa Varella (2011, p. 511): Tais críticas são de fato procedentes. Os Estados Unidos e a Rússia poderiam ser coerentes com as políticas empregadas em todo o mundo e agir conforme as convenções internacionais de proteção aos direitos humanos; a comunidade internacional deveria concentrar esforços em outras regiões. Os Estados Unidos, por vezes, aproveitam a ONU para sua política nacional e as operações realizadas não chegam, na maior parte dos casos, aos objetivos propostos. No entanto, tais críticas não atingem o direito de ingerência humanitária. Atingem a inexistência de um direito coerente e efetivo.

O fato é que os Estados operadores do sistema internacional de proteção aos direitos humanos agem conforme seus interesses nacionais, o que é evidente nas operações humanitárias dos Estados-membros da Organização doTratado do Atlântico Norte (OTAN)6, por exemplo. Estados com assento permanente no Conselho de Segurança violam, ainda, o Direito que eles mesmos se propõem a proteger, como o fez a Rússia na Geórgia, em 2008, e como o faz Washington, ao manter o presídio de Guantánamo, uma das mais notáveis agressões aos direitos humanos de que se tem conhecimento. Tais nações utilizam um poder concedido por todos, e, por isso, deveriam agir em prol do interesse comum. Cabe, assim, a reflexão sobre a legitimidade legal que alguns Estados afirmam possuir. Tal prerrogativa não soa tão justa quanto deveria soar. Observa-se, atualmente, que o imperialismo econômico, através de intervenções militares, possui o respaldo da ordem jurídica internacional. A supremacia não parece ser, afinal, dos Direitos Humanos. Estes são, na realidade, verdadeiro instrumento de imperialismo e expansão política e econômica. A ordem construída pelo discurso fabrica a sociedade dos povos, nos termos de John Rawls, compelindo os Estados periféricos, como a Líbia, a se submeterem à supremacia inevitável da “decência”.

2. A INVASÃO DA LÍBIA 2.1. MOTIVAÇÕES

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North Atlantic Treaty Organization.

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Em 2011, a Jamahiriya Árabe da Líbia7, nação governada por Muammar Kadhafi desde 1969, sofre uma intervenção internacional, protagozinada pela OTAN. A França e o Reino Unido são as principais nações idealizadoras da operação, que contou, não obstante, com o apoio tático e operacional de outros Estados membros da Organização, como Estados Unidos, Itália e Canadá. A intervenção militar durou pouco mais de 7 meses, e grande parte da estrutura do país fora destruída. A ação fora então aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em sua Resolução nº 1973, e teve como fundamento uma guerra civil que massacrava a população. Os combates começaram quando manifestantes, inconformados com o regime autoritário que vigorava naquele país, foram violentamente reprimidos pelas forças de segurança pública. As manifestações, inicialmente pacíficas, tornaram-se, em pouco tempo, violentas. Rapidamente, o movimento anti-Kadhafi ganhou força, e uma guerra civil avassaladora teve início. Os rebeldes conquistaram algumas regiões da Líbia, com o objetivo de derrubar o governo que perdurava há 42 anos. Em resposta às manifestações, Muammar Kadhafi, líder do governo, iniciou uma série de ataques contra os rebeldes, atingindo também a população de forma geral. A guerra civil entre o governo líbio e os rebeldes ocasionou uma crise no abastecimento de água, combustível e alimentos, recursos indispensáveis para a sobrevivência humana. A intervenção na Líbia fora motivada pelas constantes violações aos Direitos Humanos por parte do Estado líbio: a carnificina assombrava a população líbia, pois esta sofria com os combates, com a fome, doenças, falta de moradia e de locomoção. O direito de ingerência humanitária, construído no âmbito das Nações Unidas, fora, mais uma vez, reclamado. É necessário, no entanto, que o contexto geopolítico da Líbia nos últimos anos seja avaliado, para que seja possível perceber quais são as possíveis motivações da guerra de 2011. A Líbia, Estado localizado no norte do continente Africano, possui uma vasta quantidade de petróleo em seu território. Segundo Séréni (2011), desde o 7

O termo Jamahiriya, expressão cunhada por Muammar Kadhafi, pode ser traduzido como “Estado das massas”; o nome oficial da Líbia passou por modificações durante seu governo. O último, estabelecido em 1986, era “Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia”, e perdurou até 2011. Devido às constantes mudanças em seu nome oficial, o país era comumente denominado “Jamahiriya Árabe da Líbia”, termo utilizado no presente trabalho. Desde agosto de 2011, o nome oficial do país é simplesmente “Líbia”.

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início da década de 1970, as reservas petrolíferas da Líbia foram sucessivamente nacionalizadas por Khadafi, e o país, que era, até então, extremamente pobre, passou a gerar uma renda per capita de US$ 10.000,00 em 1979. Fora criada, para tanto, a Lybian National Oil Company8 (LNOC), companhia pública que assumiu a exploração de todo o petróleo na Líbia. Os Estados Unidos, em resposta à nacionalização do petróleo da Líbia, decidiram aplicar um embargo econômico àquele país, proibindo a compra de qualquer produto líbio por cidadãos norte-americanos. Washington acusava Khadafi de patrocinar organizações terroristas. Nos anos de 1988 e 1989, o governo líbio foi responsabilizado pela explosão e queda de dois aviões comerciais; por esse motivo, o embargo se estendeu a todos os aliados dos Estados Unidos, e a LNOC deixou de exportar para os mercados da Turquia, do Brasil e da Europa Ocidental, principais compradores na época. No intento de reativar suas exportações, Khadafi, nas duas últimas décadas, atuou sempre de acordo com as lideranças norte-americanas, agindo em cooperação na “Guerra ao Terror” decretada pelo presidente George W. Bush, a partir de 2001. As indenizações referentes às duas tragédias da década de 80 foram pagas, e os agentes do governo líbio suspeitos de terem sido responsáveis pelos ataques foram entregues à jurisdição internacional. Com isso, a LNOC recuperou suas exportações, destinando a maior parte de seu petróleo à Europa. O bem-estar entre Trípoli e Washington só foi possível, vale dizer, pelo fato de a Líbia ter renunciado ao seu programa nuclear. Sabe-se que a Líbia possuía, até o final de 2010, as maiores reservas de petróleo da África, avaliadas em mais de 46 bilhões de barris, segundo relatório da British Petroleum (2011, p. 6). Porém, tamanha riqueza é subaproveitada, pois a Líbia é apenas o quarto maior exportador do continente. Há, dentre as maiores companhias petrolíferas europeias e norte-americanas, o enorme desejo de explorar o vasto petróleo líbio, sem o intermédio da LNOC. E o potencial petrolífero do país é ainda mais irresistível quando se leva em consideração a sua privilegiada localização, confortavelmente próxima do poderoso mercado europeu. É mister perceber que a Líbia desperta o interesse dos Estados mais poderosos do mundo. Mas o argumento que desencadeou a invasão fora outro,

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Compania Nacional do Petróleo Líbio, em tradução livre.

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claramente explicado pelo texto da Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas nº 1973: [...] Condemning the gross and systematic violation of human rights, including arbitrary detentions, enforced disappearances, torture and summary executions, further condemning acts of violence and intimidation committed by the Libyan authorities against journalists, media professionals and associated personnel and urging these authorities to comply with their obligations under international humanitarian law as outlined in resolution 9 1738 (2006) [...]

A preocupação humanitária que revestiu a intervenção é nítida; fora deflagrada por causa da “violação sistemática de direitos humanos”, pomposamente citados pelo

Conselho

de

Segurança.

Se

prisões

arbitrárias,

execuções,

perseguições a jornalistas e tortura originaram a intervenção na Líbia, por qual motivo o mesmo não ocorreu na grande maioria dos países sul-americanos durante as décadas de 1960, 1970 e 1980? A mesma indagação poderia ser feita acerca de inúmeros regimes que, atualmente, submetem sua população a igual tratamento. Caberia, ainda, uma saudável discussão sobre as condições em que vivem os palestinos em Israel, país aliado dos Estados Unidos. É interessante analisar a observação de Ted Rall, feita ainda em meio à guerra (RALL, 2011): Ah, irony: the International Criminal Court at The Hague has issued a warrant for the Libyan ruler's arrest for the killing, torture and imprisonment of Libyan citizens. On the scales of bloody mayhem, however, Gadafi is a mere piker next to another man who has killed many thousands of Libyans (and Afghans and Iraqis, etc.) and controls an international gulag archipelago of secret prisons and torture camps. When will the ICC send cops after Obama? As things now stand, both Gadafi and Obama carry out 10 their misdeeds with impunity.

Vê-se, portanto, que as violações aos Direitos Humanos não são as verdadeiras desencadeadoras da ingerência militar; o que realmente desperta a interferência internacional é o desejo de manutenção do poder, o might-makes-right (o poder cria o certo, o direito), expressão que sintetiza a política externa da OTAN. 9

“Condenando a violação flagrante e sistemática aos direitos humanos, incluindo detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, tortura e execuções sumárias, e ainda condenando atos de violência e intimidação cometidos por autoridades líbias contra jornalistas, profissionais da mídia e pessoal associado, e exortando tais autoridades a cumprir suas obrigações sob o direito humanitário internacional como definido pela Resolução 1738 (2006)”. (tradução livre) 10 “Ironia: o Tribunal Penal Internacional em Haia expediu um mandado de prisão ao líder líbio pela morte, tortura e encarceramento de cidadãos líbios. Na escala da sangrenta mutilação, entretanto, Kadhafi é mero aprendiz, se comparado a outro homem, que matou milhares de líbios (e afegãos e iraquianos, etc.) e controla um arquipélago gulag internacional repleto de prisões secretas e campos de tortura. Quando irá o TPI mandar forças para prender Obama? Como estão as coisas, tanto Kadhafi quanto Obama carregam seus erros com impunidade.” (tradução livre)

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De tal modo, muitas das intervenções humanitárias ocorridas nos séculos XX e XXI foram, na verdade, invasões motivadas por interesses econômicos. Observa-se, assim, que as circunstâncias que permeiam a invasão na Líbia permitem que sejam colhidas evidências sobre seu caráter imperialista, econômico e privado. Interesses estes que não podem ser exercidos por uma ordem internacional que se propõe agir em nome de um interesse comum, universal e indivisível.

2.2. LEGITIMIDADE

Com o fim do conflito, ao final de 2011, o mundo contemplava Khadafi, exlíder da Líbia, sendo assassinado em frente à câmera. Sua expressão é de dor, seu rosto está repleto de sangue, está ferido e inflamado; as pessoas à volta comemoram quando, finalmente, o homem é morto. Após o fim da estrutura política-institucional da Líbia e a morte de seu chefe de Estado, a OTAN confirma o término da operação militar. Os objetivos traçados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, no entanto, não foram alcançados: as violações aos Direitos Humanos não tiveram fim. Ao contrário, algumas delas foram intensificadas por ocasião da intervenção. A infraestrutura da Líbia foi destruída pelas bombas lançadas pelos aliados ocidentais. Muitas pessoas morreram no conflito, e muitas outras feriram-se de forma irreparável. A guerra também gerou o aumento da insegurança internacional, fazendo com que alguns países do mundo desenvolvam e fabriquem mais armas, ampliando seus arsenais. Os Estados Unidos, afinal, negociaram o fim do programa militar nuclear da Líbia, para depois decretar a guerra a um inimigo que não teria capacidade de defender-se. O professor Mahmood Mamdani, da Universidade Makerere de Kampala, cita a reação de dois países ao conflito: a Coréia do Norte11, por meio de sua agência oficial de comunicação, afirmou que “a crise na Líbia está ensinando à comunidade internacional uma grave lição” (apud MAMDANI, 2011). Pyongyang, nos últimos anos, tem intensificado suas atividades nucleares, ocasionando uma crise entre os países da região no primeiro semestre de 2013. 11

República Democrática Popular da Coreia.

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O depoimento de Yoweri Museveni, presidente de Uganda, um dos aliados dos Estados Unidos no continente africano, delinea uma visão similar sobre a intervenção internacional na Líbia e suas consequências: "I am quite sure that many countries that are able will scale up their military research and in a few decades we may have a more armed world”12 (apud MAMDANI, 2011). O fato é que uma intervenção humanitária, quando conduzida para outros propósitos, pode causar consequências devastadoras para a ordem política-jurídica internacional e para os Direitos Humanos, uma vez que pode dar origem a novos conflitos e ao aumento da produção e desenvolvimento de material bélico. Ross Douthat, do The New York Times, destaca a influência regional da guerra da Líbia (DOUTHAT, 2012): […] Northeastern Mali is part of the same Saharan region that encompasses southern Libya, which means weapons and fighters from the Libyan war have moved easily across Algeria into Mali since Colonel Qaddafi’s fall, transforming a long-simmering insurgency into a multifront civil war. Mali’s insurgents are mostly Tuaregs, a Berber people whose homeland cuts across several national borders. This spring, their uprising won them effective control of the northern half of Mali, which they renamed Azawad. The central government’s weak response, meanwhile, led to a coup in Mali’s capital, Bamako, which replaced the civilian president with a junta that 13 promised to take the fight to the rebels more effectively.

Pode-se perceber, claramente, que as consequências da guerra na Líbia foram catastróficas para a proteção internacional dos Direitos Humanos, por ter contribuído para o surgimento de outra guerra, no Mali. O conflito atingiu grandes proporções e muitas pessoas morreram, ocasionando, em janeiro de 2013, uma intervenção da França no país africano. É estimulante observar o que explica Kofi Annan (1999), em um texto publicado no jornal inglês The Economist. Na altura, ocorriam duas intervenções humanitárias de importante destaque, uma em Kosovo e a outra no Timor Leste. Ambas foram problemáticas, e despetaram críticas ao direito de ingerência e à atividade do Conselho de Segurança da ONU: 12

“Posso ter a certeza de que muitos países, que tiverem capacidade para tal, irão aumentar seu desenvolvimento militar e, em breve, teremos um mundo mais armado.” (tradução livre) 13 “O norte do Mali faz parte da mesma região do Sahaara que compreende o sul da Líbia, o que significa que as armas e os soldados da guerra líbia se deslocaram, facilmente, pela Algéria até o Mali desde a queda do Coronel Khadafi, transformando uma antiga insurgência em uma guerra civil multilateral. Os rebeldes do Mali são, majoritariamente, tuaregues, um povo bérbere cuja terra natal compreende diversas fronteiras nacionais. Nessa primavera, conseguiram o controle do norte do país, metade de seu território, que eles renomearam Azawad. A fraca resposta do governo central, enquanto isso, levou a um golpe na capital do Mali, Bamako, que substituiu o presidente civil por uma junta militar que prometeu combater os rebeldes de forma mais eficaz.” (tradução livre)

20 […] when fighting stops, the international commitment to peace must be just as strong as was the commitment to war. In this situation, too, consistency is essential. Just as our commitment to humanitarian action must be universal if it is to be legitimate, so our commitment to peace cannot end as soon as there is a ceasefire. The aftermath of war requires no less skill, no less sacrifice, no fewer resources than the war itself, if lasting peace is to be 14 secured.

Um sistema de ingerência humanitária coerente deveria compreender, afim de ser verdadeiramete legítimo, mecanismos para proteger os Direitos Humanos e, para tanto, a paz. A invasão da Líbia apenas leva ao aumento de tensões das tensões domésticas, ao desestabilizar a segurança jurídica-institucional da sociedade líbia; as consequências estendem-se, sem embargo, para além de das fronteiras do país, seja em âmbito regional (como a crise no Mali, em 2012 e 2013), seja a nível global, ao estimular o discurso bélico de países como a Coréia do Norte e o Irã15. Não é coerente afirmar, portanto, que a guerra da Líbia foi legítima. As consequências trágicas para os Direitos Humanos e para a manutenção da paz falam por si só. A paz é condição essencial para que os Direitos Humanos possam ser constituídos e protegidos. Uma ordem internacional que viola os mesmos direitos que se compromissou a defender é, conforme estudado, incongruente. O direito de ingerência é claramente necessário, quando o motivo for justo, e os meios, úteis e suficientes; é preciso apenas operar tal Direito de forma a buscar os objetivos que inspiraram sua constituição, e não os desígnios unilaterais de manutenção do poder.

CONCLUSÃO

O presente artigo científico partiu do análise da legitimidade dos instrumentos de intervenção militar internacional em face da soberania dos Estados, sob o estudo da Guerra da Líbia, ocorrida em 2011. Pretendeu-se, com o presente, demonstrar que o direito de ingerência humanitária é, de fato, utilizado como instrumento de expansão política e econômica, 14

“Quando o combate acaba, o compromisso internacional para a paz deve ser tão forte quando o foi para a guerra. Nessa situação, também, consistência é essencial. Assim como a nossa responsabilidade para ação humanitária deve ser universal para ser legítima, o nosso compromisso com a paz não pode acabar assim que se é assinado um cessar-fogo. O cenário após a guerra requere não menos habilidade, não menos sacrifício, não menos recursos do que a guerra em si, se a paz duradoura deve ser protegida”. (tradução livre) 15 República Islâmica do Irã.

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sustentando objetivos diversos daqueles que foram propostos in jure, que são, nomeadamente, a proteção dos Direitos Humanos e a manutenção da paz e segurança internacionais. Partiu-se, inicialmente, do estudo da doutrina que ampara a ordem jurídica internacional, no que diz respeito à dinâmica das relações entre os sujeitos de direito internacional público. Examinou-se, para tal fim, a obra “O Direito dos Povos”, de John Rawls. Na obra, Rawls descreve uma ordem internacional em que os povos – e não Estados – são os destinatários e operadores do Direito no âmbito internacional. Tal Direito seria uma espécie de contrato entre os povos, um padrão para regular sua conduta. A ordem seria, para tal fim, baseada na razoabilidade e na decência dos sistemas democráticos. Destacou-se um relevante aspecto da doutrina da Rawls: a supremacia dos povos em relação aos Estados. Isso abre espaço para um Direito que atravessa fronteiras, que não se restringe aos territórios nacionais. Ampara a construção do direito internacional criado em 1945 – uma ordem em que os Direitos Humanos são universais, independentemente da nacionalidade. No sistema idealizado por Rawls, portanto, os povos que chamados de “decentes” possuem a prerrogativa de proteger os direitos humanos em todo o mundo. Porém, o autor cria uma ressalva: não podem fazê-lo em nome de seus próprios interesses nacionais; os povos agem em defesa do interesse coletivo. No mundo atual, alguns Estados atribuem para si o dever de agir em nome da segurança coletiva, intervindo nos Estados violadores dos Direitos Humanos e agressores. Observou-se que os Direitos Humanos possuem um papel fundamental na construção do sistema jurídico e político internacional, pois a proteção de tais direitos justifica o uso da guerra. Pode-se perceber, entretanto, que as intervenções humanitárias estão, em sua maioria, repletas de objetivos menos ilustres, nomeadamente a expansão econômica e política. Pretendeu-se, no presente trabalho, averiguar se tal fenômeno ocorreu na invasão da Líbia, afim de determinar sua legitimidade e colher indícios suficientes que demonstrem a incoerência do uso do direito de ingerência humanitária.

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Fez-se necessário, assim, estudar as circunstâncias que cercam a guerra da Líbia, bem como o contexto político e econômico dos atores envolvidos, suas motivações e, finalmente, consequências. A pesquisa mostrou que a Líbia possui, em seu território, o maior potencial petrolífero do continente africano. Tal recurso foi nacionalizado durante a década de 1970, e, na ocasião, grandes empresas multinacionais deixaram de lucrar no país. Verificou-se, também, que a Líbia foi seguidamente acusada de financiar a atividade terrorista internacional, até se reaproximar dos Estados Unidos da América, a partir de 2001. Na altura, a Líbia assumiu vários compromissos. Dentre eles, o de combater o terrorismo internacional – que ganhou força após a tragédia de 11 de setembro de 2001 – e renunciar ao desenvolvimento de seu programa nuclear. O país passou, portanto, por um processo de desarmamento. Verificou-se que, em 2011, o governo central iniciou um combate aos manifestantes que, em vários pontos do país, reclamavam por direitos que seu Estado não proporcionava. Uma guerra civil teve início, e muitas violações aos Direitos Humanos começaram a ser constatadas. A OTAN, com permissão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, invadiu a Líbia, a fim de destruir o governo. A guerra destruiu o país, matando e ferindo muitas pessoas, tanto civis quanto militares. Ficou demonstrado que a guerra líbia gerou uma série de incoveniências, tanto de caráter humanitário, quanto político. Muitas violações aos Direitos Humanos foram observadas, e, quando o governo da Líbia foi derrubado, as forças da OTAN se retiraram, sem prestar a assistência necessária. A invasão deu força ao discurso armamentista de outros Estados, como a Coreia do Norte e o Irã, uma vez que a Líbia, após desistir de seu arsenal nuclear, foi oportunisticamente atacada. Viu-se também que muitos soldados e armas atravessaram as fronteiras do país, penetrando em outras regiões instáveis; a entrada de tais recursos bélicos deu força a grupos armados no Mali, por exemplo, gerando outra guerra, conforme demonstrado. Colheu-se indícios suficientes para questionar a forma como a intervenção internacional na Líbia ocorreu. Demonstrou-se que é necessário, assim, refletir a respeito do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos, no que

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diz respeito ao direito de ingerência humanitária em face da soberania dos Estados. Fez-se mister pensar, também, sobre o equilíbrio nas relações entre os Estados, e o papel do Direito Internacional nesse sentido, a fim de que seja possível, ainda no século XXI, dar cabo às terríveis violações aos Direitos Humanos ocorridas no século passado, bem como pôr fim a qualquer forma de abuso e exploração de um povo sobre outro. Finalmente, constata-se a necessidade de que o ordenamento jurídico internacional, sustentado pelo sistema das Nações Unidas, se mantenha fiel aos objetivos que inspiraram sua criação: a manutenção da paz e a proteção aos Direitos Humanos. Que a dignidade humana esteja acima de qualquer interesse econômico ou político de qualquer nação.

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REFERÊNCIAS

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MAMDANI, Mahmood. Libya after the NATO invasion. Al Jazeera, 09 de Abril de 2011. Disponível em: Acesso em: 16 set. 2013.

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RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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