A Invenção da Vadiagem: Termos de Bem Viver e a Sociedade Disciplinar no Império do Brasil

June 29, 2017 | Autor: Cristiane Gomes | Categoria: History, Historia Social
Share Embed


Descrição do Produto

A Invenção da Vadiagem: Termos de Bem Viver e a Sociedade Disciplinar no Império do Brasil.
¹Gomes, Cristiane da Silva Ramos.


RESUMO: Este trabalho discute sobre os Termos de Bem Viver utilizado como mecanismo de poder para manter a ordem em sociedade brasileira no século XIX, bem como o desenvolvimento da disciplinarização do indivíduo. Trata-se de levantar questionamentos sobre o surgimento da vadiagem sobre a ótica dos grupos marginalizados socialmente.

Palavras-chave: Vadiagem. Termos de Bem Viver. Pobreza. Disciplina social.

O processo de urbanização das cidades no século XIX desencadeou uma problemática social devido às transformações políticas, sociais e econômicas, decorrentes do fim do escravismo e o ápice da elite burguesa. Assim surge a necessidade de se organizar um novo padrão de convívio social na qual o regime político vigente no país instituiu meios para manter a ordem social, mesmo porque os recém-regressos da escravidão bem como os imigrantes, analfabetos, migrantes internos e expropriados rurais, instalavam-se nas cidades em condições desumanas, sem trabalho ou moradia, emporcalhando a sociedade burguesa.
Neste contexto a elite agrária, por intermédio da força jurídico-policial apropria-se dos termos de bem viver para eliminar essa classe desprovida de recursos financeiros e intelectuais, para que fossem disciplinados e encarcerados nas casas de correção para o reestabelecimento intelectual e corporal, para que pudesse ser realocado no meio social urbano.
Os termos de bem viver fora instituído pelo Estado para regular a vida dos indivíduos considerados pobres vadios, que causavam desordens no âmbito social a fim de que fossem reinseridos ao modelo tradicional de Nação. O poder estatal visa o controle do indivíduo por meio da vigilância e repressão da vadiagem, até que os mesmos se rendam e aceitem as normas impostas pelo sistema estatal burguês. Tudo aquilo que não seguia as normas e leis estabelecidas pelo Estado eram passiveis de punição, pois eram consideradas contravenções. A partir daí surgem às mudanças na prática de punição penal, partindo do suplício para à prisão, ou seja, à privação da liberdade.
Partindo dessa linha de pensamento vigorava no período colonial o Código Filipino, na qual os crimes de lesa-majestade eram punidos com rigor para servir de exemplo para a sociedade. Esta lei penal da época era caracterizada por um sistema sangrento e selvagem na qual o corpo do criminoso era acometido de suplícios.
Com a instalação da família real portuguesa no Brasil, um novo contexto social é inserido no país, haja vista que seus modelos culturais, políticos, sociais e penais seriam incorporados na vida cotidiana da sociedade, sendo assim o Código Filipino vigoraria com efeito no Brasil Colônia. No entanto em 1832 entra em vigor o Código do Processo Criminal no período colonial, o que não interfere totalmente na prática da pena de morte no país. Esta forma de punição perdurou até a instituição do Código Penal da República em 1890.
A cidade de São Paulo, por exemplo, era formada por viajantes e comerciantes no ano de 1830, assim foi se estabelecendo a cidade, mas a maioria de seus habitantes era pobre, contudo pediam-se recursos financeiros para a Câmara dos vereadores a fim de construir uma Casa de Correção e a reforma da cadeia pública. Neste contexto o autor nos remete a pessoa do vadio que vivia em condições precárias nas cadeias e também eram tachados de beberrões e loucos, que cumpriam pena sem ao menos serem julgados. Muitos desses presos pagavam sua pena trabalhando nas obras públicas da cidade, mas trabalhavam acorrentados e vigiados pela polícia.
Segundo Foucault essa prática de vigilância teve inicio no final do século XVIII e início do século XIX, na qual disserta que:
A arte de punir deve, portanto repousar sobre uma tecnologia de representação [...] sendo este uma espécie de sinal-obstáculo. Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural, mas interessante; é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem. Que também cessem as penas ostensivas, mas inúteis. Que também cessem as penas secretas; mas que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime que lesou a todos, como pena "continuamente apresentada aos olhos dos cidadãos" e "evidenciem a utilidade pública dos movimentos comuns e particulares".
O estado por sua vez utilizava sim da mão de obra dos encarcerados para construir e melhorar a cidade, trabalho esse passível de vigilância policial e como pena por seus delitos. Por ocasião do aumento populacional e a instalação dos negros na cidade de São Paulo, aumentava-se os casos de desordem e até mesmo de assassinato, tanto que um quadro marcante da época foi o assassinato de Giovanni Battista Líbero Badaró, que mobilizou os governantes no ano de 1846 e 1847, que providenciou a estruturação dos destacamentos policiais que interviam no meio social para manter a ordem e o progresso da cidade de São Paulo.
Neste viés desenvolvia-se por intermédio da força policial a disciplinarização do indivíduo, que tinha que se adequar as normas sociais para não ser punidos por desobediência e desordem social. Notamos que nesse período a cidade de São Paulo que antes era uma província desenvolveu-se consideravelmente, tanto que o Estado iniciou a cobrança de tributos para a manutenção da cidade, sendo os comerciantes obrigados a repassarem os tributos, pois trabalhavam em constante vigilância policial, vigilância esta centrada em torno dos indivíduos pobres, pois se disseminava a ideia de que esses indivíduos poderiam incitar a desordem pública bem como colocar em risco a sociedade.
Assim a elite mantinha sob seu controle a população excluída da sociedade, instituindo novas organizações de controle social, tanto que em 1858 fora instituído uma guarda urbana que se torna atuante por um longo período. Neste contexto de desenvolvimento acelerado aumentava-se também a pobreza que era amparada pela igreja e consequentemente em 1830 os termos de bem viver instrumentalizariam e normalizariam a vivência do cotidiano dos citadinos.
Assim se deu a formação e instituição do poder do Estado no Brasil antes mesmo de sua colonização e formação de sua identidade nacional. Os habitantes desta terra foram influenciados pelos costumes e normas europeias que mesmo não sendo aceita de bom grado, foram impostas aos citadinos do país até então colônia por intermédio do suplício do corpo e pela força policial ministrada pelo Estado.
Neste contexto social, institui-se o código criminal de 1832 impondo novas formas de controle social na qual o poder central vigorará por meio de leis punitivas modernas.
Com o advento do código criminal novos órgão institucionais são criados como, o Supremo Tribunal de Justiça organizado pelos magistrados nomeados pelo Imperador com plenos poderes para legislarem em prol da ordem social, os juízes e os tribunais que concretizavam a efetivação do código em vigor. Contudo surge a pessoa do juiz de paz que detinha o poder sobre a guarda municipal para executar as normas vigentes no âmbito social, dentre essa normatização entra em vigor os termos de bem viver, como modelo civilizador do cotidiano social.
A partir daí os inspetores de quarteirão registravam cotidianamente os casos de desordem identificando os infratores com relação a sua nacionalidade e nível escolar, desta forma era feito o controle de vigilância da sociedade. Todas as infrações cometidas pelos indivíduos corruptores da ordem eram registradas e encaminhadas ao chefe de polícia nomeado pelo Imperador que mantinha o poder estatal.
Assim os infratores eram levados para as audiências na qual o legislador definiria sua punição de forma mais severa ou se pagaria uma multa para ressarcir os danos causados pelo delito cometido. A partir destas regras eis que entram em ação os termos de bem viver, para a normatização da sociedade, obrigando os indivíduos a mudarem sua conduta perante a sociedade por intermédio da lei vigente política do país, esses por sua vez eram assinados pelo juiz de paz que deliberava o grau do delito e da culpa do infrator assegurando assim a segurança da sociedade.
Ao juiz de paz era incumbida a função de resolver todos os tipos de problemas sociais inclusive os de irregularidade de conduta, processo que era narrado por qualquer pessoa ofendida que registrava o termo de bem viver perante o juiz de paz, que tinha por função decidir e interpretar a denúncia como um crime ou apenas uma picuinha entre populares que não se toleravam.
Diante da situação social, o juiz de paz encontrava-se a mercê da elite agrária que os perseguiam depois que deixavam o cargo, e para que isso não ocorresse havia um processo de cordialidade entre os juízes e os representantes da elite, que usufruíam da influência política que tinham para não serem punidos caso cometessem algum delito, sendo assim as denúncias registradas por meio dos termos de bem viver eram destinadas as camadas sociais da linha da pobreza.
Segundo consta no código do processo criminal em primeira instância de 1832, cap.II, art.2º, "O Código do Processo Criminal de 1832 estabelecia que os juízes de paz tivessem atribuição do obrigar a assinatura de termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas que perturbem o sossego público, aos turbulentos, que por palavras ou ações ofendam os bons costumes, a tranquilidade e a paz das famílias". Esta realidade nos mostra que as normas criminais vigentes no país eram voltadas a classe urbana desprovida de recursos financeiros.
Neste viés percebemos a rede coercitiva e corruptiva de poder que pairava na sociedade brasileira, na qual os desprovidos de renda eram punidos injustamente e muitas vezes privados de viver em sociedade por determinação dos juízes de paz. Este episódio de arbitrariedade judicial mostra-nos que a superioridade estatal da elite agrária era uma realidade no ano de 1832, na qual figurava uma sociedade dominada, regulada e vigiada pelo estamento da classe elitizada do poder jurídico.
O código criminal por sua vez configurou a base da formação da corporação da polícia no período imperial e durou por 60 anos, esta corporação policial tinha por função manter a ordem do sistema social e impor a sociedade excludente que se adequassem as normas vigentes no período colonial e formasse um modelo Nacional de civilização.
No período regencial a prioridade dos governantes no período de 1831 a 1840 era reestabelecer a ordem do país bem como a reorganização das instituições de poder policial, com o estabelecimento em primeira instância do código do processo penal os pobres seriam vigiados e controlados pelo poder militar. No entanto foi necessário construir prisões adequadas que acompanhassem a modernidade em processo da cidade de São Paulo.
Com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira no século XIX, a elite preocupava-se com a formação do Estado por meio da disciplina e da ordem aos indivíduos de vida urbana desqualificada por meio dos termos de bem viver, esse era o desafio central do Estado reestabelecer esses indivíduos ao processo de civilidade.
Neste contexto histórico o termo de bem viver será o instrumento de punição dos homens de vida fácil, tornando-se uma cadeia na qual o poder hierárquico torna-se o modelo regulador do indivíduo. Com o termo de bem viver, o individuo que fosse denunciado e relatado no termo tinha que se comprometer a mudar sua conduta, caso não cumprisse o que determinava a lei responderia criminalmente por desobediência e descumprimento do termo assinado perante os representantes jurídicos.
A forma de punição no século XIX não tem caráter punitivo por meio de torturas, pena de morte como no Código Filipino, a punição vigente com o termo de bem viver, restringe-se a prisão do indivíduo delinquente como forma disciplinar do mesmo com o objetivo de reintegrá-lo a sociedade, além da prisão o indivíduo também era punido por meio de trabalho obrigatório nas obras públicas da cidade como forma de punição alternativa.
A investidura social do termo de bem viver, era um instrumento de coerção imposta pela elite agrária para maquiar outros problemas sociais inseridos no cotidiano da sociedade em processo de modernização e aumento populacional. Este documento forçava o indivíduo a aceitar regras que não lhe convinham, mas por obrigatoriedade deveria ser aceita por todos, caso contrário os seus opositores seriam punidos. Assim se manifestava o domínio da elite que tinha interesse significativo nas transformações do direito penal brasileiro no século XIX.
No ano de 1871 mudanças ocorreram no âmbito da justiça penal, na qual o poder de policia é separado do poder legislativo. A força policial por sua vez restringe-se ao controle coercitivo de vigilância e ao poder judicial ficando a encargo dos juízes de direito e juízes municipais que efetivariam a interpretação do termo de bem viver, essas mudanças ocorreram com o advento do Decreto nº4824 de 1871.
As assinaturas obrigatórias dos termos de bem viver, tinham por objetivo manter a paz e o sossego público, além de mudar o comportamento dos infratores o que muitas vezes não resolvia, o indivíduo era preso e depois que saia da prisão cometia o mesmo delito. Esta atitude do infrator mostra sua indignação e revolta com relação à abordagem policial e até mesmo com as leis penais estabelecidas pelo governo, que os enquadravam como vadios.
A punição dos indivíduos considerados vadios por meio do termo de bem viver, que os destinavam a cumprir pena nas casas de correção, embora tenha a princípio a ideia de exclusão social desses indivíduos, seu principal objetivo era incluir esses sujeitos ao meio social a fim de que mudassem seu modo de vida e passassem a viver de modo honesto tornando-se parte do Estado Nação.
O século XIX se baseia no quesito de manter a ordem e readequar o indivíduo ao processo de formação nacional, e devido a toda transformação social o poder policial e jurídico dá mais atenção à vigilância urbana e não mais a vigilância privada. O contexto social, político, cultural e econômico da sociedade paulistana no século XIX era esta, voltada a disciplinarização do indivíduo por meio do termo de bem viver que por interpretação da autoridade judicial, determinava como pena a prisão ou o trabalho nas construções públicas tendo sempre como protagonistas dos crimes os indivíduos denominados vadios, que não possuíam emprego fixo ou mesmo moradia e que em detrimento da situação social e humana em que se encontravam, passaram a cometer crimes mais sérios como os roubos, por exemplo, fazendo com que a força policial trabalhasse voltada ao contexto urbano a fim de manter a ordem e a paz social, registrando os praticantes da vadiagem nos termos de bem viver. Assim a alteridade social brasileira é formada pelo poder coercitivo político e policial, criando desta forma uma identidade marginal dos vadios enquadrados e relatados nos termos de bem viver.
Finalmente a política jurídico-policial de certa forma iniciou um processo de civilidade dos indivíduos delinquentes que insistiam em voltar-se contra o poder estatal do século XIX, mas por estratégia da elite da época a coerção jurídico-policial era uma forma de inserir esta classe menos privilegiada ao modelo de cidadania brasileira e formação do Estado Nação.

REFERÊNCIAS

MARTINS, Eduardo. A invenção da Vadiagem: os termos de bem viver e a sociedade disciplinar no Império do Brasil. 1. Ed. Curitiba, PR: CRV, 2011.
FOUCAULT, Michel . A verdade e as formas jurídicas; tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes... et. al. J. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.












¹Graduada em História da Universidade Federal de Nova Andradina – CPNA – MS.


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.