A invenção do método: diplomacia como ética de pesquisa The invention of the method: diplomacy as research ethics La invención del método: la diplomacia como ética de la investigación
Carlos Baum Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Carolina dos Reis Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Lucas Goulart Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Luciana Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
Resumo Esse artigo parte da pergunta “Como inventar um método?” não em direção à resposta a essa questão, mas antes a uma discussão sobre a postura do pesquisador no exercício de construção de metodologias de pesquisa. Para tanto, buscamos pôr em questão aqueles modos de fazer pesquisa que são marcados pela hierarquização entre o pesquisador e seu objeto de estudo. Como alternativa trazemos a postura ética assumida pelo personagem do diplomata construído por Vinciane Despret para o desdobrarmos em duas ferramentas que, acreditamos, podem contribuir para colocar em análise as relações assimétricas entre os atores da pesquisa. Quais sejam: a irredutibilidade das diferenças entre os atores presentes no campo da pesquisa e o reconhecimento da multiplicidade das verdades e dos modos de existência. Palavras-chave: Metodologia de Pesquisa; Ética; Neutralidade; Mediação; Relações de Poder. Abstract This article is launched by the question “How to invent a method?”, not toward the answer to this question, but rather to a discussion of the posture of the researcher in the exercise of building research methodologies. To this end, we aim to question those ways of doing research that are marked by a hierarchy between the researcher and the research object. As an alternative we bring
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ the ethical stance taken by the character of the Diplomat, built by Vinciane Despret, to unfold in two tools which we belive can help to question the asymmetrical relations between the actors of the research. Namely: the irreducibility of the differences between the actors present in the field of research and recognition of the multiplicity of truths and modes of existence. Keywords: Research Methodology; Ethics; Neutrality; Diplomacy; Power Relations.
Resumen Este artículo parte de la pregunta “¿Cómo inventar un método?”, no hacia la respuesta a esta pregunta, sino más a una discusión sobre la postura del investigador en el ejercicio de la construcción de metodologías de investigación. Con este fin, se busca cuestionar esas formas de hacer la investigación que están marcados por una jerarquía entre el investigador y el objeto de la investigación. Como alternativa traemos la postura ética adoptado por el Diplomat, personaje construido por Vinciane Despret, a desarrollarse en dos herramientas que se espera que puedan ayudar a poner en question las relaciones asimétricas entre los actores de la investigación. A saber: la irreductibilidad de las diferencias entre los actores presentes en el campo de la investigación y el reconocimiento de la multiplicidad de verdades y modos de existencia. Palabras clave: Metodología de Investigación; Ética; Neutralidad; Diplomacia; Relaciones de Poder.
são metodológica abarca não somente a
Sobre como inventar um método?
formulação dos procedimentos de pesquisa a A elaboração de metodologias de
partir de um alinhamento teórico, mas, mais
pesquisa é um desafio que se coloca a
do que isso, envolve o pesquisador em um
qualquer pesquisador, independente de que
modo de relação particular que se apresenta
área ou filiação epistemológica pertença. A
diante de sua própria prática investigativa.
construção
passa,
Cada recorte problemático carrega consigo
invariavelmente, pela formulação de uma
um ponto de vista, mas também acarreta,
problemática
invariavelmente, em um leque de posturas
de
a
toda
ser
pesquisa
estudada
e
pelo
estabelecimento das formas de estudá-la. Deste modo, compreendemos que a discus-
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de como enfrentá-lo. Trata-se aqui, portanto, de pautar
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ uma diferença que atravesse a própria práti-
uma teleologia da prática científica e muito
ca científica, ou seja, o modo de condução
menos reificando um modo de ordenamento
de uma investigação em seu campo específi-
hierárquico entre elas. Ao contrário, adota-
co, no caso, a psicologia social. Seja nas
mos a premissa de que todo saber cria para
chamadas Ciências modernas (com ‘C’ mai-
si seus critérios de validação, mas nenhum
úsculo) ou nas chamadas ciências na demo-
dentre eles está autorizado a sobrepor-se
cracia (com ‘c’ minúsculo) essa mesma
sobre os demais.
questão se faz presente (Latour, 2004). Se
Nesse sentido, ao colocar a pergunta
por um lado, estas ciências, que aqui deno-
inicial “como inventar um método”, não se
minamos ainda com certa imprudência de
busca atender às questões de validação
modernas ou democráticas, divergem de
circunscritas nas disciplinas epistemológicas
maneira radical, a problemática que preten-
e tampouco defender uma primazia do ponto
demos construir recoloca suas diferenças na
de vista sobre outros. Foge do escopo desse
medida em que elas podem ser aproximadas.
trabalho criar um método de pesquisa, ou
Dito de outra forma, como elas se diferenci-
seja, não se trata de sugerir procedimentos
am: toda opção epistemológica obriga uma
esquematizados que permitam responder a
escolha ética e metodológica que se distin-
problemas.
gue das demais1.
desenvolvimento desses procedimentos não
Compreendemos
que
o
Toda Ciência que se pretende mo-
ocorre desarticulado de uma concepção
derna se coloca como reprodutora da divisão
teórica a partir da qual o problema é propos-
ontológica entre sociedade e natureza (La-
to.
tour, 1994). Ou seja, ela é fruto de uma his-
Nosso foco de discussão – embora
tória a qual, apesar de adotar epistemologias
dialogue com os demais, não se reduz a eles
e nomenclaturas diversas não é capaz de
– refere-se, antes, ao ethos do pesquisador,
colocar em suspensão essa divisão.
questão que entendemos como transversal
A seu turno, colocar as ciências em
aos diferentes modos de pesquisar. É a partir
democracia implica suspender essa partição
deste eixo que nos permitimos construir
ontológica, ou antes, situá-la como produto
campos comuns de discussão entre essas
de um acontecimento (Stengers, 2002) que
diferenças sem, contudo, anulá-las.
porta consigo esses diferentes modos de
Diante disso, cabe esclarecermos que
conhecer. Ao fazer isso não se está criando
quando falamos do ethos do pesquisador,
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ estamos nos referindo a uma postura diante
É a partir dessas questões que nasce
do desenrolar da pesquisa; uma postura que
uma política do saber, dimensão que resiste
leva em consideração o que se pode e o que
a qualquer definição objetiva, pois corres-
2
se quer produzir , tanto na relação direta
ponde em si mesma à criação de definições.
com os atores envolvidos no processo de
Retomando, assim, a diferença entre Ciên-
pesquisa, quanto de forma mais ampla no
cias modernas e ciências em democracia, a
campo do conhecimento e frente àqueles
maneira com a qual cada pesquisador assu-
sobre os quais irá incidir. Quem são os agen-
me seu lugar diante do mundo o qual ele
tes? Qual seu estatuto epistemológico? Que
interroga lhe confere a possibilidade de criar
problemas a situação de pesquisa apresenta?
seu próprio método, mas lhe atribui, conse-
Quais os obstáculos? Quais os limites? Todo
quentemente, um compromisso diante de sua
o pesquisador assume uma postura frente a
prática. É nesse limiar ético que este traba-
essa gama de questões, não estando a ética
lho busca se situar.
restrita a um ou outro campo do conhecimento.
Tradicionalmente, atribui-se como função dos métodos experimentais em Psi-
Isabelle Stengers (2002) nos aponta
cologia, vinculados a uma concepção de
que cada uma dessas posições define suas
Ciência moderna, de caráter positivista, o
referências à autoridade e à legitimidade do
estabelecimento de leis e regras que sejam
conhecimento produzido. Por meio delas
as mais universais possíveis, assentadas so-
distribuem-se direitos e deveres entre os
bre o estabelecimento de relações de causa e
atores envolvidos, sejam eles humanos ou
efeito (Campos, 2008). Nesse caso a neu-
não. É por meio da ética, portanto, que
tralidade aparece como um ethos
podemos encontrar um traço comum entre
composição do método experimental. Uma
ciência e política. Essas práticas não se
das obrigações da cena experimental é a
confundem, não são comensuráveis, mas se
construção de um objeto mensurável, direta
associam diante de um problema comum:
ou
como reconhecer um representante legíti-
correlações causais. O que vincula sujeito e
mo?3 Isto é, por quais traços reconhecemos
objeto é a possibilidade de quantificação ou
aqueles que querem falar em nome de
matematização dessa ligação.
outros, ou a teoria que quer representar os fatos?
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indiretamente,
buscando
com
na
isso
Reconhecemos como legítimas as afirmações de regularidade, ou seja, aquelas
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deslocamento, conecta-se à virada cultural,
O ethos da neutralidade produz uma política
estendendo essa compreensão sobre a lin-
de generalização e predição (Guareschi;
guagem para a vida social, ou seja, todas as
Scarparo, 2008) e os critérios de validação
práticas sociais referem-se a significados.
perpassam a separação apriorística entre
Nessa perspectiva, a linguagem torna-se
sujeito e objeto: são legítimos os objetos que
uma forma de ação constituinte de sujeitos e
podem ser generalizados; faz autoridade o
realidades, validando suas afirmações por
pesquisador que é capaz interpretar a reali-
meio
dade e produzir conhecimento objetivo (leia-
culturais a partir das quais foram construídas
se verdadeiramente universal). Essa episte-
(Guareschi; Scarparo, 2008).
das
especificidades
históricas
e
mologia política da objetividade constitui
Ao centralizar o lugar do discurso na
simultânea e assimetricamente os lugares-
produção científica, os pós-estruturalistas
de-fala do pesquisador e do pesquisado4.
obscurecem o trabalho de composição, bem
Da mesma forma, as teorias pós-
como a ação do dispositivo experimental.
estruturalistas, ainda que questionem esses
Como
reduzir
a
física
de
partículas
pressupostos conceituais e metodológicos,
subatômicas a um efeito de discurso? Ou
se mantém restringidas por uma ética seme-
imaginar que o universo não passa de uma
lhante. A maneira pela qual se buscou
grande narrativa? Ao mesmo tempo, os co-
introduzir a reflexão acerca da postura do
loca sob o tom de uma ironia que não se
cientista em sua relação com o campo de
deixa enganar (Stengers, 2002), de quem
investigação, propunha uma centralidade da
escapou de sua própria história.
linguagem. A intenção era o deslocamento
Ainda que essa possa ser uma
da análise do comportamento de uma
descrição bastante simples da multiplicidade
perspectiva individualista e interiorizada
de práticas de pesquisa que podem ser
para um diálogo com as coletividades e
produzidas
práticas culturais nas quais esse fenômeno é
perspectivas,
produzido.
construídas pelos próprios pesquisadores de
a
partir essas
dessas são
diferentes caricaturas
Sendo assim, o saber científico
cada espaço epistemológico como forma de
também se constituirá sujeito às regras dos
enfrentamento em meio à guerra das ciên-
jogos de linguagem, de saber e de poder. A
cias (Stengers, 2010). Nossa intenção ao
virada linguística, como ficou conhecido tal
trazer esses retratos caricaturados não é a de
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ reafirmar essas descrições, mas antes a de
simetrias.
apontar que independente das linhas teóricas
Quando falamos de “assimetrias”,
a que nos vinculamos, não existe um lugar
falamos dos processos que, historicamente,
isento de reflexão sobre a própria prática
demarcam sujeitos em posições diferencia-
científica. Por fim, cabe ainda destacar que
das. As construções de gênero, raça, etnia,
não temos a pretensão de convencer o leitor
religião, nacionalidade, sexualidade, classe
a assumir uma determinada postura, mas
social, entre outras, mantêm posições-de-
antes, oferecemos àqueles que de alguma
sujeito plenamente reconhecidas como pas-
forma partilham preocupações comuns, al-
síveis de fala e representação, e também
guns operadores que encontramos no per-
posições-de-sujeito que denominaremos de
curso de leitura de determinados autores, em
“subalternas” (Spivak, 2000). Compreende-
especial, Bruno Latour, Isabelle Stengers,
mos como “subalternos” os sujeitos dotados
Annemarie Mol e Vinciane Despret.
de “marcas de diferença” que mais comumente constituem relações de desigualdade.
Porque colocar em questão as assimetrias
Embora compreendamos que nem sempre
do campo de pesquisa?
essas diferenças constituam relações de submissão e dominação, é inegável que dife-
Uma das problemáticas que busca-
rentes posições de sujeito tenham diferentes
mos confrontar nesse texto surge do reco-
acessos materiais e simbólicos dentro de
nhecimento de uma disparidade entre os
uma escala social que se constrói enquanto
lugares-de-fala do sujeito pesquisador e dos
normativa e hierárquica, mantendo privilé-
sujeitos pesquisados. Sendo assim, nos é
gios de alguns sujeitos sobre outros.
interessante abordar essas relações antes de
É interessante salientar que essas
dar sequência à discussão sobre a postura de
hierarquias sociais de posições-de-sujeito
pesquisa do diplomata, e como essa poderia
são mantidas e referenciadas pelas próprias
ajudar a colocar em questão as dissimetrias
ciências positivistas, posto que estas são
entre os diferentes atores no processo de
reconhecidamente campos com acesso privi-
pesquisa. Assim, cabe-nos pensar sobre os
legiado à “natureza”. Constituindo o que
estudos desenvolvidos em Psicologia Social,
seria essa “natureza” - circunscrevendo, en-
entendendo que precisamos primeiro afirmar
tão, o que seria a norma - é possível conside-
a importância da reflexão acerca dessas as-
rar as ciências positivistas como uma esfera
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ importante na constituição e manutenção de
“intelectual transparente” – aquele que, em
grande parte desses lugares-de-fala subalter-
sua negação de representar um sujeito-de-
nos. Assim, é importante nos questionarmos
-fala, acaba representando-o pela própria
a respeito não só dos modos como constitu-
posição privilegiada da ciência, recolocando
ímos as “realidades” das pesquisas, mas,
esse arranjo hierarquizante de dominação
também, qual nosso objetivo ao empreen-
sobre ele. Nesse sentido, acabamos encon-
dermos essa tarefa, visto que o pesquisador
trando discussões como a de Larissa Pelúcio
opera suas investigações já dentro de uma
(2006), por exemplo, que questiona até onde
disciplina que é histori-camente responsável
instrumentos básicos de nossa pesquisa, co-
pela manutenção de estruturas hegemônicas
mo os Termos de Consentimento Livre e
de poder (Fausto-Sterling, 2001).
Esclarecido, com sua linguagem rebuscada
Entretanto, é preciso destacar que
proveniente de formalismos acadêmicos,
não são somente as ciências positivistas que
não acabam servindo muito mais para man-
produzem e estabilizam relações hierárqui-
ter a disparidade (e a superioridade represen-
cas no campo da pesquisa. Com isso, é inte-
tacional) das posições de sujeito do(a) pes-
ressante nos voltarmos para as críticas feitas
quisador(a) sobre os pesquisados presentes
por Gayatri Spivak (2000) em relação às
em sua pesquisa.
teorias pós-estruturalistas. De acordo com a
Dessa maneira, poderíamos nos per-
autora, essas posições que consideram o
guntar: qual é, afinal, o nosso objetivo en-
sujeito como um ser multicentrado - ou seja,
quanto ciência que incide sobre os sujeitos e
não mais ancorado nas identidades moder-
eventos? Poderíamos, a despeito da posição
nas estáveis - acabam não levando em con-
privilegiada de cientistas – oferecer possibi-
sideração sua própria relação dentro dos
lidades não hegemônicas para aqueles com
esquemas de dominação das classes subal-
os quais pesquisamos sem os calar ou os
ternas.
recolocar em posições subalternas?
Mesmo
que
os
autores
pós-
estruturalistas neguem representar politica-
Para construir um método que se
mente essas classes, a representação dessas,
interessa em pensar sobre a relação com os
pela visão do pesquisador, acaba por consti-
diferentes atores presentes na construção do
tuí-las, visto a diferença hierárquica entre o
conhecimento, não poderíamos assumir nem
sujeito-pesquisador e aquele sujeito-pesqui-
o ethos da “neutralidade clássica” – a que
sado. Assim, surge o que a autora chama de
consideraria um observador neutro, nem a
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ ética do “intelectual transparente” – que
de pesquisa possam produzir mudanças no
desconsidera a posição privilegiada do pes-
pesquisador e no próprio estudo. É encarar o
quisador em prol de uma pretensa desterrito-
campo de pesquisa não somente como um
rialização, pois ambas as posturas ignoram
espaço de coleta de dados, mas como uma
(ou ao menos entendem como mero pano de
possibilidade de encontros que coloquem
fundo) aquilo que entendemos como questão
nosso pensamento em movimento.
fundamental para o exercício do pesquisar:
Quando nos referimos à construção
as dissimetrias nas relações de poder nos
de relações mais simétricas no processo de
campos de estudos. Entendemos que ao co-
pesquisa, reforçamos que as relações de po-
locar em questão essas relações, abre-se a
der sempre serão assimétricas, portanto, não
possibilidade de construir modos de pesqui-
queremos cair em uma visão ingênua ou
sar que não busquem anular ou calar as dife-
mesmo romântica de uma simetria possível,
renças e a multiplicidade de atores envolvi-
mas falamos de um lugar a ser assumido
dos, mas que tomem essas como elementos
pelo pesquisador de respeito àquilo que é
centrais para a construção e desenvolvimen-
dito pelos sujeitos ou pelos objetos com os
to da pesquisa.
quais pesquisamos. É sair do lugar daquele
Com essa proposta estabelecemos
que produz uma análise sobre o seu objeto
um contraponto às formas de pesquisar que
de estudo e ir para o lugar daquele que pensa
reduzem as diferenças recorrendo a uma
a partir do encontro com o campo de pesqui-
verdade transcendente, seja através da inter-
sa. Os sujeitos e objetos com os quais pes-
pretação, seja através da desconstrução.
quisamos são colocados ao lado dos grandes
Muito mais do que a descrição de meto-
autores estudados, sendo ambos motores
dologias, fala-se aqui em uma postura frente
para o pensamento.
a essas que se constitui como uma abertura
O que buscamos aqui é compor um
para o encontro com o campo de pesquisa,
ethos de pesquisa que esteja atento às dissi-
um deixar-se afetar pelos eventos presentes
metrias envolvidas no processo de pesquisa,
no campo de modo que nos deixemos deslo-
mas que reconheça a mobilidade e a diversi-
car do lugar de saber e poder. Que possamos
dade nas relações entre os atores envolvidos.
permitir que os mal-entendidos, os equívo-
Sugerimos esse ethos a partir do personagem
cos, os entraves, os fatos inusitados, os ques-
do diplomata construído por Despret (2004)
tionamentos que nos atravessam no processo
em “Our Emotional Make up”. O objetivo
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ desse trabalho é desdobrar esse personagem
aos outros aquilo que lhes é de interesse?
através de duas ferramentas que podem au-
Como descrever a singularidade do conhe-
xiliar na construção dessa postura de pesqui-
cimento do outro e ao mesmo tempo torna-la
sa. A primeira delas refere-se à “Irredutibili-
compartilhável pelo pesquisador? A autora
dade”, por meio dela defendemos a impor-
sugere que procuremos um equilíbrio entre
tância de sustentar a multiplicidade de atores
aquilo que é comum e o que parece inco-
agentes no mundo, sejam eles humanos ou
mensurável, entre a universalidade que borra
não-humanos. A “Irredutibilidade” permite,
as diferenças e a multiplicidade que encerra
ainda, que nos afastemos da interpretação e
as culturas em um território de estranheza e
da desconstrução em direção à manutenção
exotismo.
das diferenças. Já a segunda, a “Multiplici-
Diferente do ato da interpretação,
dade”, nos aponta para a diversidade dos
onde o pesquisador traduz sozinho os ele-
modos de existência no mundo, removendo
mentos e fatos que se produzem no fazer da
do cientista a possibilidade do acesso a uma
pesquisa – frequentemente dentro de seu
verdade superior às demais.
próprio quadro conceitual –, a tradução do diplomata só se torna possível na relação, no
O Diplomata
processo de encontro com os atores envolvidos na pesquisa. A tradução é sempre uma
Nossa proposta filia-se à postura a-
ação que precisa ser negociada. Cabe notar
dotada pelo personagem do diplomata, da
que tradução aqui não se refere à passagem
qual nos fala Vinciane Despret (2004) em
de um vocabulário a outro, de uma língua à
seu trabalho sobre a etnopsicologia das e-
outra, como do inglês ao português, supondo
moções. Para a autora, as relações estabele-
que ambas existem independentemente.
cidas entre os atores de pesquisas não devem
Lançamos mão do sentido latouriano de tra-
estar pautadas em práticas de interpretação,
dução (Latour, 2001) indicando uma media-
mas sim de tradução. O diplomata, assim
ção, a invenção de um vínculo que não exis-
como o pesquisador, encontra-se deslocado
tia e que, em certa medida, modifica os ele-
de seu lugar de origem. O problema que se
mentos envolvidos. A tradução, desta forma,
coloca a ambos é "como traduzir” as pergun-
não é simplesmente uma mudança de lin-
tas que fazem, mas também como traduzir as
guagem, mas a criação de uma nova versão
respostas que lhes são dadas. Como traduzir
daquilo que é narrado. Ao construir uma
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ versão a tradução busca manter presente os
cada uma delas nos permite pensar e fazer.
efeitos daquilo que é narrado. Logo, não se
A tradução não se confunde com a
trata somente de descrever os acontecimen-
interpretação, quando esta nos remete a ver-
tos do campo de pesquisa em uma lingua-
dades transcendentes, universalizadas e ge-
gem acadêmica. Trata-se de construir uma
neralistas, a explicações vindas de algum
narrativa que tenha legitimidade e inserção
lugar fora da relação entre os atores da pes-
no campo científico e simultaneamente car-
quisa. Em contraponto, o uso da tradução
regue consigo os afetos e vivências compar-
como ferramenta do pesquisar não é algo
tilhadas no campo de pesquisa.
que “puxamos” de algum lugar para que se
Nesse sentido, Despret coloca a tra-
torne possível estabelecer uma interlocução
dução como um problema a ser construído e
com o sujeito, mas sim uma ferramenta que
não uma solução para nosso modo de produ-
implica o cultivo da arte de negociação. A
zir conhecimento. Uma postura que nos co-
tradução necessita ser criada e negociada, a
loca frente a um modo diferente de nos rela-
partir da relação entre os atores da pesquisa,
cionarmos com os atores da pesquisa e, por-
na qual construímos ferramentas para nego-
tanto, outro modo de questionarmos e pro-
ciação (Despret, 2004), nos termos da auto-
duzirmos conhecimento (Despret, 2002) que
ra.
abra a possibilidade de que os atores envol-
Diferente da interpretação, a tradu-
vidos se reconheçam nas versões que cons-
ção permite uma composição (Latour,
truímos.
2001), as respostas dos atores, nos autori-
Tal como sugere Bruno Latour
zam, nos capacitam, a fazer novas pergun-
(1994), a posição de negociador é daquele
tas. Bem como nossas perguntas habilitam
que regula os instrumentos de medida, redi-
diferentes respostas. A tradução permite a
ge dicionários de correspondência, monta e
associação dos atores envolvidos de modo a
negocia os valorímetros, institui cadeias
reconfigurar suas possibilidades de ação. É o
metrológicas. Não se trata de representar a
abandono da referência a uma verdade
realidade de um modo verdadeiro ou falso,
transcendente que prepara as condições que
científico ou não científico; se trata de trazer
nos permitirão levar as diferenças a sério. E
à existência um modo possível de compre-
é sob essas condições que os papéis (às ve-
ender melhor qual agenciamento tornou essa
zes provisórios) podem ser atribuídos aos
ou aquela versão da verdade possível, o que
atores de modo que eles possam “permutar
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ competências, oferecendo um ao outro, no-
Para apresentarmos nossa primeira
vas possibilidades, novos objetivos, novas
ferramenta nos aproximamos de Isabelle
funções” (p. 210).
Stengers (2002) e Bruno Latour (2005) ao
O papel do diplomata, portanto, é
assumir um posicionamento que considera a
negociar mundos que possam ser comparti-
multiplicidade das entidades que agem no
lhados, inventar novos modos de nos rela-
mundo, e que, longe de quererem afirmar
cionarmos com os demais atores da pesqui-
uma verdade sobre outra, propõem a possi-
sa, de questioná-los e conhecê-los. A nego-
bilidade de olhar e dialogar a partir das dife-
ciação permite nos apropriarmos de um co-
renças. Como nos diz Isabelle Stengers
nhecimento que é tanto do outro, através das
(2002),
questões que colocamos, como do conhecimento de nós mesmos, ao solicitarmos res-
[...] não tenho vontade de ser mobilizada em
postas, e ao fazer desse conhecimento, pro-
uma corte denunciadora antes de ter apren-
duzido com estrangeiros, um ingrediente do
dido a rir, antes de ter aprendido como não me deixar redefinir como membro de um
processo de conhecermos a nós mesmos. A
grupo com vocação majoritária que busca,
obrigação na qual a tradução nos coloca é a
ele também, impor seus “valores”, seus im-
da construção dos problemas, não como uma
perativos, sua “visão de mundo”. (p.28)
solução, transformada em objeto que pretendemos conhecer, mas como um ingrediente
Essa ferramenta nos força a conside-
ativo que regula seu método: a negociação
rar seriamente os termos e entidades ofere-
de mundos compartilhados. Esse modo de
cidos por todos os atores da pesquisa, sejam
fazer pesquisa não se impõe pelo direito de
eles pesquisadores ou pesquisados, humanos
usufruir do lugar de uma verdade transcen-
ou não humanos. Ao recorrer ao termo ator,
dente a qual todos os demais devem se sub-
para nos referirmos a todos os envolvidos no
meter, mas evidencia as práticas que buscam
ato de pesquisar, pretendemos reduzir a as-
interessar os interlocutores, em um movi-
simetria entre eles. É preciso aprender a evi-
mento em que há lugar para a multiplicidade
tar substituir a multiplicidade dos elementos
(Stengers, 2002).
que os atores nos fornecem por um conjunto de expressões menor e melhor conhecido,
Irredutibilidade
impostos pelo pesquisador. Tal como sugere Bruno Latour (2005), quando um criminoso
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ diz “não é minha culpa, tive pais ruins”, não
(Stengers, 2002, p.27). A irredução nos leva
devemos sugerir que a sociedade o tornou
a desconfiar do conjunto de palavras que
um criminoso, tão pouco que ele tenta redu-
conduz, quase automaticamente, a explica-
zir sua culpa diluindo-a no anonimato da
ções reducionistas ou estabelecer uma dife-
sociedade. Precisamos nos ater àquilo que
rença que reduz dois termos a uma oposição
nos foi oferecido. Ele simplesmente nos
irredutível. Trata-se de utilizar palavras que
disse “eu tive pais ruins”. O criminoso tam-
não possuem a pretensão de revelar (a ver-
bém não está se referindo a uma mãe castra-
dade atrás das aparências), nem denunciar
dora, é preciso resistir à ideia de que existe,
(as aparências que escondem a verdade).
em algum lugar, um dicionário onde a varie-
É importante afirmar que, assim co-
dade dos elementos expostos pode ser redu-
mo refutamos a redução e afirmamos a irre-
zida a poucas palavras. Não há nada oculto
dutibilidade, da mesma forma, queremos nos
por trás daquilo que nos é dito.
afastar da desconstrução, pois entendemos
Nosso desafio é conseguir articular
que esta, por sua vez, também gera uma re-
diferentes atores, ou seja, pesquisadores,
dução nas formas de compreender e explorar
instrumentos, pesquisados, colegas, teorias,
como se cultiva a existência das coisas no
etc., sem ferir os “sentimentos estabeleci-
mundo (Despret, 2004). Quando interpela-
dos” (Stengers, 2002), aqueles que acarre-
mos os sujeitos no campo da pesquisa e es-
tam na indignação ou na rigidez do pânico.
tes nos colocam explicitamente no lugar de
O que essa restrição nos impõe é a necessi-
saber, por exemplo, não basta dizermos que
dade de respeitar as condições de legitimi-
não há uma hierarquia entre os saberes, que
dade a partir das quais os diversos atores
temos apenas saberes diferentes, é preciso
constituem seus lugares de fala. Isso não
respeitar a questão trazida por esse sujeito
implica a imposição de um consenso, mas
sobre a forma como ele percebe o lugar do
recusar a passagem do “isso é aquilo”, ou
pesquisador em relação a ele, não devemos
seja, negar a possibilidade da redução do
simplesmente desconstruir aquilo que é co-
outro em nome de uma transcendência. Não
locado pelo outro, é preciso levar a sério as
podemos ocupar uma posição de juiz que é
questões que nos são colocadas. A mera
capaz de julgar tudo o que é dito, pois “o
desconstrução dos fatos e das verdades não
princípio da irredução prescreve um recuo
nos possibilita respeitar os “sentimentos
frente a esta pretensão de saber e de julgar”
estabelecidos”, nem ir além de uma postura
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ sarcástica e irônica. O pesquisador irônico é
quem se dirige, mas que pode ser comparti-
aquele “que não se deixa enganar”, que pos-
lhado por eles.
sui um poder de julgar mais lúcido, mais universal, que garante sua diferença em relação àqueles de quem fala. A ironia apenas
Its irony cannot take us beyond this deconstruction. In any case, it cannot allow us to understand that contrasts are constructed,
contrapõe o poder ao poder, criando disputas
nor help us to explore - by taking it seriously
onde o que está em jogo é saber quem detém
- the way in which we cultivate emotions.
a verdade.
(Despret, 2004, p. 10)5
O humor, por outro lado, se produz como “a possibilidade de uma perplexidade
Portanto, nossa primeira ferramenta
compartilhada, que estabelece efetivamente
fundamenta-se em um modo de fazer pes-
uma igualdade entre aqueles que consegue
quisa que não anula, mas mantém as dife-
reunir” (Stengers, 2002, p.85). O humor nos
renças entre os atores da pesquisa e lança
impede de avaliar as diferenças em nome de
mão delas como potência.
uma transcendência, ou seja, a necessidade de recorrer a algo que se encontra sempre
Multiplicidade
oculto daquele que interrogamos. Portanto, ao evocar uma verdade transcendente a iro-
A partir disso, para que possamos
nia age como instrumento de redução, ao
sustentar um modo de fazer pesquisa que
passo que o humor permite que nos reco-
não anule a diversidade dos atores envolvi-
nheçamos como produto da mesma história
dos na problemática estudada, é preciso reti-
que acompanhamos.
rar de todos esses atores a possibilidade de
O que nos ajuda a compreender esse
acesso a uma verdade “mais verdadeira” que
ponto é o que Isabelle Stengers (2002) cha-
os demais, permitindo uma maior mobilida-
ma de qualidade do riso, a distinção entre o
de nas dissimetrias presentes no campo da
riso irônico e o riso de humor. Enquanto o
pesquisa. Nesse sentido, nossa segunda fer-
primeiro é o riso da troça ou do desprezo,
ramenta, a multiplicidade, refere-se a um
que identifica sempre o mesmo para além
modo de fazer pesquisa que não busca su-
das diferenças; o segundo é capaz de apreci-
plantar uma verdade com outra maior. O
ar o diálogo sem esperar a salvação, um riso
entendimento de que as verdades são múlti-
que não se abre às expensas daqueles a
plas e não há uma que se sobreponha de
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ forma mais legítima às demais, é o que re-
ti, 2013). A verdade deixa de ser algo pro-
força a impossibilidade de redução dos ele-
duzido por um exercício do pensamento que
mentos trazidos pelos atores da pesquisa a
leva à produção de conceitos com validade
expressões ou explicações já possuídas pelo
universal e insere-se em outra perspectiva, a
pesquisador.
de que as verdades são múltiplas e interes-
Para tanto, partimos da compreensão
sadas.
de que a verdade não é algo universal, ins-
No entanto é preciso deixar claro que
crito em um registro de neutralidade e de
quando afirmamos a verdade como multipli-
que precisamos, no processo de pesquisa,
cidade, não estamos caindo em um completo
situar as condições de possibilidade de pro-
relativismo em que tudo é valido. Como
dução de determinado valor de verdade.
colocamos anteriormente, entendemos que a
Compreendemos que essas condições de
aquisição de um valor de verdade está sujei-
possibilidade estão sempre sujeitas a jogos
to a uma série de regras. Com isso, também
de força e obedecem a um conjunto de re-
não estamos nos colocando no lugar de
gras compartilhadas em um momento histó-
quem pode dizer quais regras devem ou não
rico e contexto social específico (Foucault,
ser aceitas, mas afirmamos a importância de,
1969/2009).
na produção das ciências, dar visibilidade às
Nesse sentido, assumir esse entendi-
regras que estão conformadas em cada área
mento, significa romper com a noção de
do conhecimento e em quais jogos de inte-
neutralidade, como algo que permitiria o
resses políticos, econômicos e culturais os
acesso a uma verdade desinteressada. Seria
atores estão inseridos.
romper com a perspectiva de que o que pen-
Da mesma forma, é preciso deixar
sam cientistas, psicólogos ou filósofos fosse
claro que quando afirmamos que as verdades
algo capaz de apreender as essências do
não são a descoberta de uma realidade que
mundo, sem nenhum outro interesse, senão o
está dada a priori, não estamos, de maneira
compromisso com a descoberta dessa “ver-
nenhuma, negando a existência de uma rea-
dade verdadeira” e com a ideia de que o
lidade concreta das coisas. Ninguém duvida,
interesse em nome do qual esses sujeitos
por exemplo, que prédios sejam construídos,
operam é um suposto interesse geral, coleti-
nem duvida que eles sejam reais. Eles exis-
vo, universal. Interesse esse que os “desco-
tem, justamente, porque em algum momento
bridores” se autorizam a representar (Passet-
foram construídos (Latour, 2005).
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ Bruno Latour (1994), em Jamais
para a diversidade. Sem uma verdade única,
Fomos Modernos, parte de uma recusa à
oposta ao falso, torna-se possível a aceitação
crença em um modelo epistemológico de
e a convivência das múltiplas versões de um
ciência, no qual esta caminharia em direção
mesmo objeto.
à verdade por meio de uma revelação, ascese ou iluminação e afirma o entendimento de
Considerações finais
que a produção do verdadeiro se dá através de um jogo de forças de natureza política
É preciso considerar que o dispara-
(Ferreira, 2006/2007). Ao evidenciar que a
dor para a produção desse artigo foi a pro-
verdade não se encontra em uma natureza
vocação “Como inventar um método?” e, na
independente dos modos de fabricação des-
tentativa de responder a essa questão sem
ta, o autor não busca somente afirmar a pos-
produzir um modelo ou manual a ser segui-
sibilidade de superar determinada verdade
do, nos voltamos para a reflexão sobre a
ou desestabilizar seu valor de verdade, mas
postura do pesquisador. Colocando a ética
demonstrar que os fatos se tornam mais ver-
como anterior aos procedimentos de pesqui-
dadeiros quanto mais articulados e fabrica-
sa, nossa intenção foi problematizar as rela-
dos forem (Latour, 1994; 2005).
ções tradicionalmente estabelecidas entre os
Ao tecer esses questionamentos, Bruno
diferentes atores, em direção a práticas que
Latour (1994) não busca negar a existência
permitam colocar em questão as assimetrias
de uma realidade. O que o autor questiona é
presentes nas relações entre os atores da
a existência desta como algo purificado.
pesquisa.
Também não fala em um desconstrutivismo;
Para tanto, entendemos que o perso-
ao contrário, afirma que, quanto mais for
nagem do diplomata oferece a possibilidade
construído, mais real um objeto será (Latour,
de questionarmos essas assimetrias. Nossa
2001). A proposta do autor é de que bus-
proposta desloca do centro tanto o pesquisa-
quemos caminhar em direção a uma pers-
dor, como aquele que elege o problema a ser
pectiva mais simétrica de pesquisa, sem a-
investigado e o vocabulário adequado para
cessos privilegiados da ciência a naturezas e
respondê-lo, quanto o pesquisado, como
essências, sejam elas de humanos ou não-
“simplesmente” representado por um pes-
humanos. Nossa segunda ferramenta oferece
quisador invisível nos artigos científicos.
ao diplomata uma possibilidade de abertura
Nosso pesquisador não possui uma verdade
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ de maior valor, nem a encontramos de forma
de passagem a fim de aportar maior clareza
pura na fala de nossos pesquisados. O que
à preocupação que nos acompanha.
apontamos é que as realidades comuns pre-
2
cisam ser localmente negociadas pelos ato-
que Bourdieu dentre outros cientistas sociais
res envolvidos. A existência de qualquer
chamou de senso prático (Bourdieu et al,
solução possível não antecede a negociação
2002), ou seja, um modo de ação determina-
dos problemas a serem colocados.
do por um habitus social alicerçado na divi-
O convite que deixamos aqui aos
Não se trata aqui, por outro lado, daquilo
são entre opinião e conhecimento.
pesquisadores é o de se deslocar do lugar
3
hierarquizado que a posse de um saber teóri-
co que assombra filósofos e teóricos desde
co comumente convoca. Que o processo de
Platão. Ver, Deleuze, 2006, p. 98-109.
pesquisa possa ser interrogado e recolocado
4
por diferentes atores.
referimos ao que tradicionalmente chama-
Vale lembrar que esse é o problema políti-
Ao utilizar a expressão “pesquisado” nos
mos de participantes, objetos ou sujeitos de Notas
pesquisa. Nossa proposta é se substituição dessas terminologias que estabilizam posi-
1
Chamamos a atenção aqui a uma questão
ções hierarquizadas pela noção de “atores”,
que fez sua intrusão a partir das discussões
sugerindo uma participação ativa de todos os
geradas em sala de aula na ocasião em que
envolvidos no processo de pesquisar, sejam
uma primeira versão deste texto foi apresen-
eles humanos ou não-humanos.
tada. O problema da ética na pesquisa foi
5
A ironia não nos leva além da desconstru-
correlacionado como algo que somente po-
ção. De qualquer forma, ela não nos permite
deria ser pensado dentro de algumas pers-
compreender que os contrastes são construí-
pectivas epistemológicas, dentre elas a pós-
dos, nem nos ajuda a explorar - ao levar a
estruturalista, visto que em outras aborda-
sério - os modos como cultivamos as emo-
gens, tais como a das ciências modernas,
ções [tradução livre].
principalmente, dentro do paradigma positivista, teriam como dada a neutralidade do
Referências
pesquisador como postura metodológica. A partir disso, tentamos incorporar a questão
Bourdieu, P.; Chamboredon, J.; Passeron, J.
que nos foi endereçada como mais um ponto
(2002) O ofício do sociólogo: preli-
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Baum, C.; Reis, C.; Goulart, L.; Rodrigues, L. __________________________________________________________________________ Carlos Baum: Psicólogo, Mestre em Psico-
mestre e doutoranda em Psicologia Social e
logia Social e Institucional pela Universida-
Institucional pela Universidade Federal do
de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Rio Grande do Sul. Integrante do Núcleo E-
Doutorndo em Psicologia Social e Institu-
politcs da Universidade Federal do Rio
cional pela UFRGS. Membro do Núcleo de
Grande do Sul.
Ecologias e Políticas Cognitivas - NU-
E-mail:
[email protected]
COGS. Professor do Instituto Evangélico Novo Hamburgo. E-mail:
[email protected]
Enviado em: 16/09/2014 – Aceito em: 07/11/2014
Carolina dos Reis: É doutoranda em Psicologia Social e Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Integrante do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação, Núcleo EPolitcs. Docente do Curso de Psicologia pela UNISC. E-mail:
[email protected]
Lucas Goulart: Psicólogo formado pela Unisinos, mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS e doutorando em psicologia pela mesma universidade. Interessado nos temas de gênero e sexualidade, teoria queer, feminismo e novas tecnologias. Integrante do NUPSEX – UFRGS. E-mail:
[email protected] Luciana Rodrigues: Psicóloga, graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul,
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