A INVESTIGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE DEMONSTRAÇÃO DA ALMA NO LIVRO I DO DE ANIMA (versão 1) Adriel Fonteles de Moura

June 3, 2017 | Autor: Adriel Moura | Categoria: Metaphysics
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A INVESTIGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE DEMONSTRAÇÃO DA ALMA NO LIVRO I DO DE ANIMA (versão 1) Adriel Fonteles de Moura

A obra aristotélica De Anima abre uma série de questionamentos a respeito do conceito de Alma (psyche). Há uma questão primordial da qual, derivada desta, outras problematizações são feitas em torno desta temática tão obscura e explorada na história da filosofia. Essencialmente, a questão é esta: é possível um saber que define a alma? Neste escopo de pergunta, ainda surge a indagação que visa saber qual a natureza (physis)1 da alma. Pode-se reformular a pergunta de uma outra maneira, preservando as condições necessárias para a constituição de saber acerca de um objeto. Afinal, qual o princípio e a causa do movimento e repouso da alma. Localizando este princípio, a investigação já possui um alvo certeiro que irá determinar todo o seu rumo. Aristóteles propõe um princípio axiomático que servirá de fundamento da investigação da alma: “a alma é, em efeito, como o princípio dos animais”2. Tendo em vista este princípio, o problema se diverge em três outras perguntas pontuais. Se a alma é o princípio dos animais, qual é a natureza deste princípio? Não basta apenas saber a sua natureza, mas também a sua entidade e as propriedades que definem esta entidade. Para cada objeto que se tem a pretensão de conhecer, existe um método demonstrativo a ser utilizado. No caso da alma, este método permanece desconhecido. O estagirita dispõe-se em avaliar a problemática com o intuito de depurar o campo epistêmico que propõe a busca deste método. Uma propriedade da alma – embora não exclusiva dela – é as afecções (pathos). Entretanto, esta ressalva da não-exclusividade das afecções à alma já implanta um primeiro obstáculo a este problema. Este obstáculo pode ser definido como a inseparabilidade da alma em relação ao corpo. As afecções dependem do corpo para que elas se manifestem. Não há medo, valor, cólera, alegria ou qualquer outro tipo de 1

O emprego do termo natureza parte do sentido original atribuído ao grego psýche, a saber, “princípio (arché) e a causa (aitía) do movimento e do repouso para as coisas que em que está imediatamente presente” (PETERS, 1974, p.189) 2

ARISTÓTELES, 2003, p. 131.

afecção sem que haja um corpo capaz de recebê-la. Portanto, a ação e o padecimento da alma dependem do seu conluio com o corpo. Não obstante, o objetivo primeiro da referida obra é buscar possibilidades de conhecer a alma sui generis, sem trazer à tona a relação indissociável com o corpo. A ação e o padecimento são gêneros de afecções dependentes do corpo, pois para cada afecção, há um órgão no corpo animal capaz de captar os seus dados sensíveis. No entanto, há ainda um gênero de afecções especialmente difícil de classificar e categorizar, a saber, o intelecto (noesis). A definição deste conceito não é feita à primeira vista, mas pensar a alma separadamente do corpo tem como condição necessária levar em conta a propriedade intelectiva da alma. Entrementes, como se chegou a esta conjectura? Se as demais afecções dependem de um órgão que receba uma ação externa, aparentemente, não há nenhum órgão específico no corpo que tenha a propriedade de inteligir acerca de um objeto que se apresenta na realidade. Será, então, uma diferença específica que delimitará o conceito de alma? Em primeiro lugar, a intelecção é a propriedade que fará a ponte entre uma afecção e o conhecimento. Em termos metafísicos, a faculdade intelectiva é o princípio motor que possibilita a passagem da potência ao ato. A potência é matéria e o ato, atribui uma forma à matéria. Analisar-se-á cada um destes conceitos a seguir. A matéria (hyle) é uma coisa prescindida de todas as categorias3. Ela estaria no plano da sensibilidade e não no plano da definição. O contato imediato com o objeto é o contato imediato com a matéria, de modo que não é cabível definir a matéria por meio deste contato. A afecção sensitiva4, em suma, é a faculdade que permite este contato imediato. Sentir raiva acerca de algo não é, de maneira alguma, conhecer a coisa pela sua forma específica. As afecções sensitivas se apresentam de muitos modos acerca de

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A definição mais apropriada de matéria poderia ser comparada com o conceito aristotélico de entidade (ousía) primeira: “entidade, a assim chamada com mais propriedade, mais primariamente e em mais alto grau, é aquela que não se diz de um sujeito e nem está em um sujeito, v.g.: o homem individual ou o cavalo individual. (ARISTÓTELES, 2003, p.34). A comparação é válida, pois a matéria não depende de uma forma específica para existir, assim como a ousía primeira. Ainda assim, não caberá agora fazer esta comparação de maneira mais analítica entre os conceitos de ousía primeira e matéria (hyle). 4

Ou seja, são o gênero de afecções que, quando ocorrentes, são captadas pelos órgãos sensíveis. Para não cair em ambiguidade, farar-se-ia esta diferenciação entre afecção sensitiva e uma possível afecção intelectiva, quer dizer, afecção própria e exclusiva da alma.

uma coisa mesma. Tendo esclarecido este ponto, a matéria é uma potência (dynamis) pois ela é subjacente a toda e qualquer definição. A forma (eidos), ao contrário, é a atualização da matéria subjacente. É a partir da forma que se cria uma definição a respeito de uma coisa. Esta definição é um modo de conhecimento da própria coisa, que envolve algum tipo de classificação ou categorização. No entanto, a forma de alguma provém anteriormente da experiência empírica do sujeito em relação ao objeto sensível. Segundo Aristóteles, a definição “é a forma específica de cada coisa e sua existência implica que deve dar-se em algum tipo de matéria” (ARISTÓTELES, 2003, p.135). Portanto, para se criar uma definição, a experiência empírica da matéria é o antecedente necessário para tal conhecimento. A forma é ato, pois ela é um aspecto da potencialidade da matéria. Um objeto, ao ser conhecido, é formalizado e atualizado sob a maneira de definições. Um objeto pode conter várias definições, a título de exemplo, uma mesma afecção pode ser explicada a partir de diversas perspectivas. O objeto inteligível, percebido pelo intelecto, independe das afecções sensitivas para ser conhecido. Mas sobre o intelecto ser uma afecção exclusiva da alma, há lacunas a serem preenchidas, conforme diz o filósofo: Na maioria dos casos pode-se observar como a alma não age e nem padece sem o corpo, por exemplo, encolerizar-se, encorajar-se, querer e sentir em geral. Não obstante, o inteligir parece algo particularmente exclusivo dela; mas nem isto sequer poderá ter lugar sem o corpo se é que se trata de um certo tipo de imaginação ou de algo que não se dá sem a imaginação. Portanto, se há algum ato ou afecção da alma que seja exclusivo dela, ela poderia por sua vez existir separada; mas se nenhuma [afecção] pertence [à alma] com exclusividade, tampouco [aquela] poderá estar separada (...) 5.

Se a alma é necessariamente ligada ao corpo, não poderia haver nenhuma afecção que seja propriedade exclusiva da alma. O intelecto será o ônus problemático para o filósofo, já que não há nenhum órgão do qual esteja exclusivamente localizado esta faculdade. Então Aristóteles parte para outra via de desenvolvimento deste problema, partindo da imaginação (phantasia).

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Tradução livre de ARISTÓTELES, 2003, p. 134.

A concepção aristotélica da imaginação se arremata no processo de cognição acerca de um objeto. A leitura de Peters acerca do conceito aristotélico de imaginação é revelada da seguinte maneira: Para Aristóteles a imaginação (phantasia) é um intermediário entre o perceber (aisthesis) e o pensar (noesis) (...). É um movimento da alma causado pela sensação, um processo que apresenta uma imagem que pode persistir mesmo depois de desaparecer o processo da percepção.6

Se a imaginação constitui este intermédio entre percepção e intelecção, a imaginação é causa da intelecção? Se sim, a imaginação é uma propriedade da alma, já que não depende de um objeto, mas de sua imagem. Desta forma, seria uma tentativa de conhecer este objeto de ciência, no caso a alma, pelo método indutivo, ou seja, o conhecimento das propriedades do objeto implica no conhecimento de sua entidade. No entanto, Aristóteles se ocupa em analisar os métodos cabíveis ao conhecimento da alma antes de fazer um aprofundamento acerca das supostas propriedades da alma. A responsabilidade de se responder à pergunta fundamental, relativa sobre a eventualidade de a alma ser objeto de saber epistêmico ou não, depende da necessidade de mapear algumas possibilidades metódicas que possibilitarão este intento. Aristóteles organiza e aprofunda esta problemática: Resulta, sem dúvida, necessário estabelecer em primeiro lugar a que gênero pertence e o que é alma – quero dizer se se trata de uma realidade individual, de uma entidade ou se, ao contrário, é qualidade, quantidade ou incluso qualquer outra das categorias que temos distinguido – e, em segundo lugar, se se encontra entre os seres em potência ou se constituem uma certa enteléquia.7

O saber é construído de acordo com a categorização de seu objeto, isto é, toda entidade deve preceder de sua definição. A definição – “forma específica de cada coisa” – é suficiente quando ela consegue demonstrar as propriedades de uma coisa, como também demonstrar as suas causas. No argumento acerca da alma, responder se a alma é ou não é passível de ser um objeto de saber epistêmico8 não é suficiente. Neste caso, conhecer

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PETERS, 2003, p.187. ARISTÓTELES, 2003, p.132 (Tradução Livre) 8 Aristóteles discorre acerca do saber epistêmico nomeadamente na obra Segundos Analíticos. A primeira frase é a tópica principal do desenvolvimento deste tipo de saber: “Todo conhecimento 7

o gênero da alma e a sua essência é fundamental. Por exemplo, o gênero “animal” abarca abaixo as espécies com a propriedade de ter alma, já que a alma é o princípio dos animais. Apesar disso, há os aspectos individuais de cada espécie de alma, pois a alma do homem e a alma do cavalo são almas distintas; por conseguinte, a alma de cada homem é distinta de outra alma humana. Entra-se então, em outra querela, a alma é divisível ou indivisível? Caso seja divisível, qual diferença proporciona esta divisão, se não, qual definição especifica o conceito aristotélico de alma? Se a alma faz parte de uma realidade plenamente individual, ela permaneceria no estatuto indefinível e impassível de ser predicado de ousia primeira9. Aristóteles parece propor um caminho investigativo a respeito da alma, começando pela diferenciação de suas partes. A alma é dotada de duas potencialidades: intelecto (noesis) e faculdade sensitiva (aisthesis). A atualização destas potencialidades se revela diante dos diferentes modos de sensação e intelecção acerca dos objetos sensíveis e inteligíveis, respectivamente. Portanto, esta primeira tentativa de demonstração da alma a partir destas duas potencialidades se faz insuficiente, pois ainda não foi desvelada a sua essência, onde reside o princípio de toda a demonstração (apodeixis). Se este princípio de demonstração ainda se revela módico como recurso para o conhecimento da alma, qual outro recurso poder-se-ia utilizar para o princípio de demonstração? Aristóteles lançaria mão da dialética (dialektiké) como possibilidade de dar gênese à investigação10. Conquanto, este recurso ainda se apresenta um tanto deficiente. A dialética não deixa de ser uma operação do espírito que culmina na demonstração (apodeixis). O filósofo, entretanto, descarta este modo de conhecer, já que a dialética é tratada na presente obra como uma disputa de opiniões (doxa) vazias, ou seja, as definições advindas desta disputa são vazias. A dialética discorre apenas acerca da matéria (hyle), mas não se discute uma tentativa de demonstrar

racional, seja ensinado, seja adquirido, se deriva (apodeixis) sempre de noções anteriores” (ARISTÓTELES, 1993, p.155). Se a alma é objeto deste saber, é compreensível conjecturar quais são as “noções anteriores” à própria alma. 9

Opta-se neste trabalho utilizar a transliteração do termo grego ousia, para denotar o conceito de substância ou entidade. 10

ARISTÓTELES, 2003, p. 134

convenientemente a forma específica acerca do que se discorre. Portanto, conhecer a alma pela dialética não produziria mais do que definições pobres de forma e conteúdo. Por fim, Aristóteles parece possuir uma preferência em utilizar o método indutivo no conhecimento do princípio da alma. Cabe-se dizer que o conhecimento das propriedades da alma conduz ao conhecimento do seu princípio. No entanto, já foi discutido anteriormente sobre a dificuldade de encontrar uma propriedade que seja exclusiva da alma. As afecções, mesmo as intelectivas, em primeira instância, parece serem produzidas em ligação com o corpo. Mas mesmo assim, o conhecimento das afecções deixa mais claro o conhecimento da alma como objeto de estudo. Para Aristóteles, encontrar uma forma específica das afecções pertence ao físico, já que este ocupa-se em estudar o corpo inseparáveis do movimento; neste caso específico, das afecções11. Portanto, este é um primeiro passo para buscar um conhecimento das propriedades exclusivas da alma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Acerca del Alma. 1 ed. Madrid: Editorial Gredos, 2003 ARISTÓTELES. Categorias in: El Órganon. 1 ed. Madrid: Editorial Gredos, 2003 ARISTÓTELES. Segundos Analíticos in: Tratados de Lógica (El Organon). México D.F: Editorial Porrúa, 1993 PETERS, F.E. Termos Filosóficos Gregos. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974.

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É, pois, o físico quem estuda as formas ou afecções inseparáveis de um tipo determinado de matéria e o faz atendendo a aquelas [formas] e estas [matérias] (apud ARISTÓTELES, 2003, p. 136, tradução livre).

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