A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

May 23, 2017 | Autor: W. Accioli Filho | Categoria: Responsabilidade Civil, Responsabilidade Civil do Estado, Concessão de Serviço Público
Share Embed


Descrição do Produto

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista Wilson Accioli de Barros Filho Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP. Especialista em Direito Administrativo. Advogado em São Paulo.

Palavras-chave: Invasão de animais em rodovias. Omissão do concessionário de serviço público. Responsabilidade civil por omissão da Administração Pública. Sumário: 1 Introdução – 2 Responsabilidade civil por omissão da Administração Pública: pessoas jurídicas de direito público e privado – 3 Nexo de causalidade: condição material de agir a vincular o dano à omissão do concessionário de serviço público – 4 Excludentes da responsabilidade por omissão do concessionário por invasão de animal na pista – 5 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ: moto perpétuo – 6 Conclusão – Referências

1 Introdução A questão relativa à definição de quem deve ser responsabilizado civilmente por danos causados em virtude da existência de animais vagando nas pistas de rodovias sempre foi complexa, polêmica e tormentosa. Com base nisso, o presente artigo tem como objetivo analisar, do ponto de vista da atual jurisprudência brasileira, os aspectos jurídicos da responsabilidade civil por omissão do concessionário prestador de serviço público ao permitir a entrada de animais na pista.1 Tem sido cada vez mais comum no âmbito dos tribunais de justiça a condenação de concessionários nesses tipos de acidente. Maioria unânime dos juízes, desembargadores e ministros afirma que é dever do prestador privado de serviço público impedir que animais acessem a pista de tráfego, evitando colisões. Fundamento basilar desse entendimento é o dever de prestar serviço público adequado, eficiente e condizente com a natureza da atividade especializada do concessionário, que é, em linhas gerais, manter irretocável a via de rolagem (sinalização, asfalto em boas condições, controle de velocidade, remoção de automóveis e vítimas, etc.). Ao condenarem agentes privados a indenizar os danos decorrentes de acidente envolvendo animal na pista, os tribunais afirmam categoricamente tratar-se de responsabilidade civil por omissão do 1

O pressuposto fático deste trabalho será a responsabilidade civil do concessionário quando animais invadem a pista de rolamento e causam acidente de trânsito, e não quando o acidente objeto da responsabilização tem como causa animal morte mantido na pista. Afora as exceções, entende-se responsável objetivamente o concessionário que se omite de seu dever de manter a via de tráfego livre de barreiras e apta a permitir o tráfego seguro pelo motorista.

66

ARTIGOS

dever de agir com diligência para impedir o dano. Justificando o fundamento jurídico da condenação, ora os tribunais tipificam a conduta do concessionário como sendo responsabilidade civil objetiva, portanto reconhecendo o nexo de causalidade da suposta omissão, ora afirmando ser a omissão passível de responsabilidade civil subjetiva por negligência do agente privado em impedir que animais invadam a via de tráfego concessionada. Não há um consenso sobre o deslinde jurídico e doutrinário da questão. Convencionou-se o axioma de que, independentemente da possibilidade de agir em função da natureza pública da atividade prestada pelo concessionário, este assume o risco de indenizar. Fazendo as vezes do Estado, portanto, o agente privado veste-se de segurador universal da rodovia pedagiada. Nesse sentido, sob um viés crítico, este artigo analisará a responsabilização desmedida do concessionário de serviço público desconexa com as reais condições de sua atuação, alocando a reserva do possível como excludente do nexo de causalidade. Buscar-se-á responder a seguinte indagação: como pode o agente concessionário omitir-se de uma obrigação que não o vincula legal e juridicamente? Em outras palavras, havendo posição firme de que somente pode se admitir responsabilidade civil por omissão caso se entenda descumprida determinada obrigação proporcional contida em lei, quais seriam então as justificativas jurisprudenciais para condenar o agente privado a reparar um dano que ele não deu causa? Ao que parece, há certa regressão dos tribunais em aplicar a teoria do risco integral sob a forma de teoria do risco administrativo. Como ficará evidenciado, pouco importa a espécie da responsabilidade civil adotada pela jurisprudência (se objetiva ou subjetiva), fato é que, em se tratando de acidente causado por animal que invade a pista, haverá sempre o dever de indenizar do agente privado. Há, conforme se verificará, uma fuga do caso concreto pelo abstracionismo de mandamentos genéricos, tais como: eficiência, adequação e prestação ótima do serviço público. Dessa forma, de modo a viabilizar a construção lógica deste estudo, muito brevemente serão abordadas as características gerais da responsabilidade

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

civil por omissão da Administração Pública, inclusive a natureza da responsabilização por omissão do concessionário de serviço público (se subjetiva ou objetiva). Após, considerando o fundo fático do trabalho, serão apresentados possíveis excludentes do dever de indenizar, bem como críticas à impossibilidade material e jurídica de agir do agente delegado para evitar o dano. Por fim, o artigo cotejará decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ para justificar a contradição do julgamento da questão pelo Poder Judiciário.

2 Responsabilidade civil por omissão da Administração Pública: pessoas jurídicas de direito público e privado De início, importante discorrer brevemente sobre as principais características da responsabilidade civil por omissão da Administração Pública disciplinada, em linhas gerais, no §6º do art. 37 da Constituição Federal. Segundo aquele parágrafo, a Administração Pública, ou quem lhe faça as vezes (v.g. pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos) responderá pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. A base da responsabilidade civil da Admini­ stração está contida na teoria do risco, dividida em integral e administrativa. Através dela, convencionou-se que a finalidade precípua da atividade estatal, qual seja, efetivar garantias e direitos constitucionais de interesse público, por si só, gera risco de dano ao cidadão e, por isso, eventual prejuízo causado no decurso desta atuação legítima deverá ser reparado pela Administração.2 Pela teoria do risco administrativo, admite-se falar em excludente ou atenuação do dever de indenizar. Nas palavras de Romeu Felipe Bacellar Filho: A orientação da CF/88 acerca da responsabilidade estatal repousou no risco administrativo, pela qual se leva em conta a potencialidade de ações danosas do Estado, sejam normais ou anormais, ilícitas, aliada ao fator de possível anormalidade de conduta

2

Com base nas lições de Romeu Felipe Bacellar Filho, “tais assertivas conduzem a uma justiça distributiva, com a partilha dos ônus e encargos sociais entre toda a sociedade, na mais perfeita coadunação com um dos princípios cânones do Estado Democrático de Direito - o princípio da igualdade de todos perante a lei. (...). Para compensar a desigualdade individual entre Administração e cidadão, todos os componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano. A ideia é a de que os benefícios advindos da atuação estatal repartem-se por todos, assim como os prejuízos sofridos por alguns. O equilíbrio de encargos sociais deve ser mantido entre todos os particulares, sem distinções” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 215-216).

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

da vítima e eventos exteriores na determinação do dono injusto.3

Por outro lado, através da aplicação da teoria do risco integral, afastam-se o nexo causal e a eventual participação da vítima, de terceiro ou força maior, impondo ao Estado ou seu agente delegado o dever de indenizar o cidadão apenas pela existência do dano e do nexo de causalidade.4 O dever de indenizar da Administração Pública, segundo a Constituição Federal, é objetivo e está respaldado na teoria do risco administrativo, uma vez que independe da demonstração do elemento subjetivo culpa (negligência, imprudência ou imperícia), sendo necessário que o cidadão lesado demonstre tão somente o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Todavia, como dito, diferentemente do que ocorre na teoria do risco integral, no risco administrativo pode a Administração valer-se de excludentes do nexo causal para afastar sua responsabilidade civil. Aqui, desde logo, afirma-se afinidade com a doutrina que entende ser objetiva a responsabilidade civil da Administração em casos de omissão de um dever jurídico de agir.5 É que, como muito BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade Civil Extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 02, n. 9. Curitiba: Juruá, 2002, p. 46. Ainda segundo o autor: “O traço distintivo entre as teorias se concentra no fato de que para a teoria do risco integral, circunstâncias como força maior, caso fortuito e a participação da vítima para o dano não possuem qualquer importância haja vista que o Estado estaria sempre obrigado à assunção do risco integral” (Idem). 4 São hipóteses em que a responsabilidade civil do Estado incide independentemente da ocorrência das circunstâncias que normalmente seriam consideradas excludentes de responsabilidade (de maneira integral, portanto): danos causados por acidentes nucleares (art. 21, XXIII, d, da Constituição Federal) e danos decorrentes de atos terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras, conforme previsto nas Leis nº 10.309/01 e 10.744/03. 5 Daniel Wunder Hachem assim diverge: “Tamanha é a conexão entre a teoria da faute du service e a ideia de ineficiência do Estado passível de provocar danos ao cidadão, que significativa parcela da mais abalizada doutrina brasileira, considerando-a como modalidade de responsabilidade subjetiva, aponta a sua aplicabilidade ainda nos dias atuais, nos casos de omissão estatal. (...). Parece, todavia, haver outra interpretação possível, que se apresenta mais apropriada. Pede-se vênia para manifestar discordância em relação ao entendimento antes mencionado. As considerações tecidas têm por escopo demonstrar que a adoção da responsabilidade subjetiva no direito brasileiro, nos casos de responsabilidade civil do Estado por descumprimento do dever de eficiência nas situações omissivas (serviço não funcionou ou funcionou atrasado), não procede por pelo menos quatro motivos: (a) a teoria da faute du servisse não remonta, necessariamente, à responsabilidade subjetiva; (b) o critério para distinguir a responsabilidade pour faute (por falta) da responsabilidade sans faute (sem falta) no direito francês não é a natureza omissiva da conduta; (c) na França admite-se a hipótese de responsabilidade objetiva do Estado por omissão; (d) os contornos da responsabilidade estatal dependem do regime jurídico administrativo de cada ordenamento, e a Constituição Federal de 1988 impõe um sistema de responsabilização objetiva” (HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade Civil do Estado por Omissão: uma proposta de releitura da teoria da faute du service. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo e outros 3

ARTIGOS

67

Wilson Accioli de Barros Filho

bem afirmado por Daniel Wunder Hachem, faute du service, de origem francesa, não se confunde com culpa do serviço. Tudo pela razão lógica de que “a Administração não tem vontade ou consciência, quem a tem é o agente. E se a faute du service independe da individualização do agente, não se pode perquirir ‘culpa’ da máquina estatal, mas sim o cometimento de uma conduta contrária ao juridicamente exigido”.6 Seguindo a corrente que pondera pela responsabilidade civil objetiva em caso de omissão da Administração, conclui Rodrigo Valgas do Santos: Com efeito, apesar das respeitáveis vozes dissonantes no sentido de admitir-se, em casos de omissão, responsabilização subjetiva e não objetiva do Estado, pensamos que mesmo na hipótese omissiva, a responsabilidade sempre será objetiva, seja por que a Constituição da República não faz qualquer distinção no art. 37, §6º, na categoria dano, seja porque a interpretação mais adequada é a que prestigie a máxima efetividade da Constituição e o respeito ao princípio da dignidade humana.7

Contudo, pensa-se ser importante, também, relevar o grau da causalidade para fins de responsabilização da Administração Pública. Quer-se dizer com isso que, muito embora se admita a responsabilidade civil objetiva do ente estatal em caso de omissão, entende-se, por outro lado, que o nexo causal entre a omissão e o dano precisa respeitar linhas de proporcionalidade do dever de agir do ente público ou do agente privado prestador de serviço público. Embora aplicada com certa atecnicidade pela jurisprudência, a teoria da faute du service, ligada diretamente ao serviço,8 tem sido a base teórica da (Org.). Direito e Administração Pública. Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 1.139). Também, no mesmo sentido, Romeu Felipe Bacellar Filho: “Se a Constituição Federal, em sua sobranceira, adota a responsabilização objetiva, não há como desconsiderar o mandamento constitucional mesmo na hipótese de omissão” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil do Estado por omissão. Revista Argentina del Régimen de La Administración Pública, Buenos Aires: RAP, v. 326, 2006, p. 52). E, por fim, Juarez Freitas: “Com o devido respeito, no entanto, perante a omissão do Poder Público, o correto é reputar irrelevante a consideração sobre culpa ou dolo. A argumentação baseada em ‘culpa anônima’ oculta a superação indecisa dos parâmetros subjetivistas” (FREITAS, Juarez. Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de inoperância. In: FREITAS, Juarez (Org). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 185). Em sentido contrário, ver: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito Administrativo. Ver. Atualizada e ampliada. 29 ed. Malheiros: São Paulo. 2012. p. 1.029; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 716. 6 Ibidem, p. 1.141. 7 SANTOS, Rodrigo Valgas. Nexo causal e excludentes da responsabilidade extracontratual do estado. Revista de Doutrina Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 12, n. 59, jan./fev. 2010, p. 165-166. 8 Nas lições de Daniel Wunder Hachem: “Destarte, seria possível traduzir a palavra para português como ‘falta’, não no sentido de ‘ausência’, mas na acepção de ‘infração’, como se emprega

68

ARTIGOS

responsabilidade civil por omissão. É adotada para casos em que a prestação pública não se materializou quando deveria, o serviço foi prestado com atraso ou foi mal executado. Nas duas primeiras, tem-se a omissão danosa.9 Nesse sentido, então, tomando como premissa básica que omissão é a não prestação de um expresso dever jurídico e legal de agir, quatro são as características que permitem ao cidadão pleitear indenização pecuniária perante a Administração: (i) descumprimento de um dever concreto de agir por parte da Administração Pública ou quem lhe faça as vezes; (ii) existência de dano; (iii) nexo de causalidade entre o comportamento estatal e o prejuízo sofrido; e (iv) possibilidade de agir para evitar o dano.10 Por se tratar de tema amplamente debatido na doutrina e de conhecimento mínimo de todo aquele que se debruça a estudar o direito administrativo, a análise do dever de indenizar do concessionário de serviço público pela invasão de animal na pista tomará como cerne as duas últimas características da responsabilidade por omissão, quais sejam, o necessário nexo de causalidade entre a omissão e o dano e a possibilidade de agir para evitar o prejuízo. Isto será feito num tópico apartado. Por ora, ainda neste item, cumpre analisar a responsabilidade civil sob o prisma do agente privado concessionário de serviço público. Sobre a condição de prestador privado de serviço público do agente concessionário, importante asseverar inexistir distinção legal para efeitos de responsabilização civil por danos causados ao cidadão. Pacífico na doutrina e na jurisprudência que, enquanto prestador de serviço público em nome da Administração por delegação, o concessionário responde diretamente pelos prejuízos causados aos usuários. É o que está expressamente contido no §6º do art. 37 da Constituição Federal: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Assim, “a lógica de tal imputação deve-se à circunstância de que a atividade é estatal e apenas foi transferida por delegação ou concessão, porém conservando seu caráter originário. Até porque comumente no Direito do Trabalho ao se faltar em ‘falta grave’ do trabalhador. Essa tradução de faute du service entendida como ‘falta cometida no exercício do serviço’ é a mais adequada, uma vez que a compreensão da expressão como ‘culpa’ não resiste a uma análise mais aprofundada” (Op. cit., p. 1.140). 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 715. 10 FREITAS, Juarez. Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de inoperância. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 170.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

não constituiria medida de justiça que a simples delegação de serviço por si só, eliminasse a responsabilidade objetiva do Estado”.11 Para Romeu Felipe Bacellar Filho, “se tal se sucedesse, estar-se-ia diante de verdadeira fraude à Constituição, pois a transferência do serviço público para a pessoa jurídica privada bastaria para que o poder público se esquivasse do cumprimento do comando constitucional”.12 Desta forma, o dano causado em função do serviço público delegado deve ser reparado com o mesmo rigor, como se fosse prestado diretamente pelo Estado, isto é, de maneira objetiva. Assim, falar em responsabilidade civil da Administração Pública ou do agente privado indefere do ponto de vista legislativo e doutrinário. Isto é, as características e os requisitos do dever de indenizar permanecem os mesmos.13 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Curitiba: Juruá, ano 02, n. 9, 2002, p. 55. No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho: “Numa apertada síntese conclusiva, entendemos que concessionários e permissionários são sujeitos à responsabilidade objetiva por danos causados por seus agentes tanto a usuários como a terceiros, apesar da interpretação restritiva do Supremo Tribunal Federal, que a exclui quando o dano é causado a estes últimos” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Responsabilidade Civil das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 157). Ver também: BEZNOS, Clóvis. Responsabilidade extracontratual das pessoas privadas prestadoras de serviços públicos. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade Civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: QuartirLatin, 2010, p. 619. 12 Idem. No mesmo sentido, leciona Hely Lopes Meirelles: “Todavia, evoluímos no sentido de que também estas [pessoas jurídicas de direito privado] respondem objetivamente pelos danos que seus empregados, nessa qualidade, causarem a terceiros, pois, como dissemos precedentemente, não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originariamente público a particular descaracterize sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente, criando maiores ônus de prova ao lesado” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 653). 13 Por não ser unânime, há quem defenda que a responsabilidade civil do agente concessionário precisa ater-se às obrigações contidas no escopo do contrato de concessão. Diz-se, com isso, que somente se pode pretender responsabilizar o concessionário por dever omitido ou mal-atendido que estiver expressamente disciplinado em contrato. Foge-se, de certa forma, da principal característica da responsabilidade civil que é a extracontratualidade para vincular o dever de indenizar aos ditames do contrato de concessão. Tenta-se argumentar as obrigações de um contrato de prestação de serviço público assinado com um terceiro (Estado) para excluir ou atenuar o dever de indenizar. Sendo o concessionário prestador de serviço público, soa contrário à natureza do instituto dizer que, por um acordo assinado com um terceiro, o usuário não poderá ser indenizado em função da má prestação ou mesmo não prestação de uma comodidade material de caráter universal, módico, eficiente e contínuo. Nesse sentido, são as lições de Guilherme Fredherico Dias Reisdorfer: “Já a premissa que se adota no presente estudo é a de que, de acordo com o §6º do art. 37 da Constituição Federal, a responsabilidade civil dos delegatários privados de serviços públicos aproxima-se, mas não se identifica integralmente com a responsabilidade civil por serviços públicos prestados diretamente pelo Estado. Isso 11

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

Logo, adentrando de vez no tema proposto, para se analisar a discrepância jurisprudencial havida na responsabilização do concessionário de serviço público em caso de colisão do usuário com animal que invade a pista de rolagem, fundamental ponderar a respeito do nexo de causalidade.

3 Nexo de causalidade: condição material de agir a vincular o dano à omissão do concessionário de serviço público Neste artigo, defende-se a inexistência de nexo de causalidade entre acidente envolvendo usuário de serviço público e animal que invade a pista de rolagem. Discorda-se, por isso, do posicionamento desmedido da jurisprudência que condena pessoas jurídicas de direito público ou privados prestadores de serviço público por omissão do dever de guardar a via pedagiada livre de qualquer invasão por animais.14 Tal entendimento não considera as peculiaridades do caso concreto, apenas punindo, deturpando a teoria objetiva da responsabilidade, para dizer que ao concessionário recaem todos os riscos do negócio, inclusive aqueles impossíveis de serem evitados, como é o impedimento da entrada de animais nos milhares de quilômetros concessionados. Oportunas, neste ponto, as lições de Marçal Justen Filho: Afirmar que o concessionário presta o serviço por sua própria conta reflete uma concepção política e jurídica não mais vigente. Afinal, a concessão não é – senão numa acepção vulgar – uma privatização. Se o serviço permanece sendo público, como seria possível afirmar que passaria ele a ser prestado “por conta” do concessionário? É evidente que o serviço delegado é prestado por conta do poder concedente. O concessionário atua em nome próprio e assume inúmeros direitos e deveres, mas é incorreto atribuir ao interesse privado do delegatário relevância central na avença.15

Como se sabe, de modo geral, nexo de causalidade é a relação direta e imediata entre a ação ou omissão e o dano.16 No caso de ato omissivo porque o concessionário tem a medida das suas obrigações previstas em contrato” (REISDOFER, Guilherme Fredherico Dias. Apontamentos sobre a responsabilidade civil dos concessionários de serviços públicos. Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 68, jul./ago. 2011, p. 146). 14 Justamente pelo fato de ser o caso concreto indispensável à boa inteligibilidade da ocorrência ou não do nexo causal é que a jurisprudência pátria se mostra tão rica e ao mesmo tempo tão contraditória em matéria de responsabilidade do Estado (SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Op. cit., p. 163). 15 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 77. 16 Segundo Rodrigo Valgas dos Santos, o nexo causal é “a indispensável relação de causa e efeito para que o dano possa ser juridicamente relevante” (SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Op. cit., p. 164).

ARTIGOS

69

Wilson Accioli de Barros Filho

da Administração Pública, “só é causal a omissão quando haja o dever de impedir o resultado”.17 Para João Batista Gomes Moreira, “esse dever de impedir o evento danoso tem origem: a) em um mandamento expresso ou tácito de ordem pública (...); b) na submissão particular do agente a essa espécie de obrigação (contrato ou posição de garante); e c) em comportamento anterior que crie o risco de ocorrência do resultado”.18 No caso de animal que invade a pista de rolagem, inexiste nexo causal entre o acidente envolvendo o usuário de serviço público e a atividade de gestão executada pelo concessionário, pelas seguintes razões: i) o agente privado não possui o dever de cercar toda a via pedagiada, inexistindo obrigação legal ou constitucional neste sentido; ii) o concessionário não possui poder de polícia para limitar o direito de propriedade dos cidadãos que habitam as encostas das rodovias, não tendo, por isso, condições jurídicas de evitar o dano; iii) não só inexiste dever extracontratual, como sequer os contratos de concessão de um modo geral ponderam a respeito da obrigação de construir muros em toda a extensão da estrada pedagiada, não havendo também obrigação contratual do concessionário. Não é possível tratar como reprovável uma omissão quando não existe regra expressa predeterminando a atuação da Administração, ou seja, quando não está autorizada a presunção de uma causalidade reprovável.19 As circunstâncias concretas do evento devem necessariamente ser analisadas a fim de se estabelecer a obrigatoriedade ou não de um agir pelo concessionário. Só a partir desta análise torna-se possível verificar a presença de uma ilicitude. É o que bem explica Marçal Justen Filho: O grande problema são as hipóteses de ilícito omissivo impróprio, em que o sujeito não está obrigado a agir de modo determinado e específico. Nesses casos, a omissão do sujeito não gera a presunção de infração ao dever de diligência. É imperioso, então, verificar se houve concretamente ou não infração do dever de diligência especial que recai sobre os excedentes da função estatal. Se existem elementos fáti-

MOREIRA, João Batista Gomes. Nexo de Causalidade (do dano, para efeito de responsabilidade do Estado): reexame do tema. Interesse Público, Porto Alegre: Notadez, ano 8, n. 39, set./out. 2006, p. 39. 18 Idem. 19 Falando da teoria do risco administrativo e da importância das excludentes do nexo de causalidade, Romeu Felipe Bacellar Filho ressalva: “Se outro fosse o entendimento poder-se-ia supor que o Poder Público estaria fadado ao colapso total, pela profusão de ações indenizatórias fundadas em fatos que envolvessem a Administração Pública, todavia, sem guardar com este nenhuma relação causal quanto ao evento danoso. O erário público e, em sentido lato, a própria coletividade teriam de responder por um ônus praticamente impossível de ser suportado” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 221).

cos indicativos do risco de consumação de um dano, se a adoção de providências necessárias e suficientes para impedir esse dano era de competência do agente, se o atendimento ao dever de diligência teria conduzido ao impedimento da adoção das condutas aptas a gerar o dano – então, estão presentes os pressupostos da responsabilização civil.20

De toda forma, tudo se resume na afirmação de que nem a Administração Pública, nem seus agentes devem ser conduzidos às raias do papel de seguradores universais. Ou seja, para efeitos de cotejo do nexo causal, há de se aplicar critério de proporcionalidade entre a omissão e o dever jurídico e material de agir. É o que ensina Juarez Freitas: Em contraste, a tendência européia de tecer críticas à teoria da responsabilidade objetiva da Administração Pública repousa na ideia de que o Estado não deve ser conduzido às raias do papel de segurador ilimitado. Trata-se de preocupação mais do que salutar. No entanto, a responsabilidade do Estado bem pode ser objetiva, sem que, para isso, tenha-se de acolher a indenização de qualquer dano que não se enquadre como antijurídico e desproporcional. Por essa via, afasta-se, por inteiro, a conversão absurda e bizarra do Estado em segurador universal. Mais: aplica-se vantajosamente o nexo de causalidade proporcional, que impele o Poder Público a cumprir as suas indeclináveis tarefas positivas e negativas, hoje negligenciadas. Tudo no intuito de proteger a intersubjetiva dignidade humana, além de fazer respeitar a intangibilidade nuclear dos direitos fundamentais.21

Com isso, quer-se dizer que “não se trata de aceitar a responsabilidade estatal em toda e qualquer hipótese, pois justamente a análise do nexo causal, ou ainda das suas excludentes, é que de modo razoável e proporcional possibilita a plena aplicação de tal sistema de responsabilização, sem o receio de que o Estado seja espécie de segurador universal”.22 Todavia, infelizmente, para a imensa maioria dos tribunais, a omissão dos agentes concessionários em permitir a entrada de animal na pista contraria obrigação jurídica e pode ser evitada.23 No

17

70

ARTIGOS

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 800. 21 FREITAS, Juarez. Op. cit., p. 171. 22 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Op. cit., p. 165. 23 Veja-se: RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS DECORRENTES DE ACIDENTE EM VIA TERRESTRE. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ANIMAL NA PISTA. RODOVIA PEDAGIADA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA CONCESSIONÁRIA. ART. 37, §6º, CF, ART.22, PARÁGRAFO ÚNICO, CDC - ENUNCIADOS Nº 5.1 E 8.4 DA TRU/PR. SERVIÇO INEFICIENTE POR NEGLIGÊNCIA. TEORIA DO RISCO DO NEGÓCIO. DEVER DE REPARAR. DANOS MATERIAIS DEVIDAMENTE COMPROVADOS. DANO MORAIS. DEVIDOS. QUANTUM FIXADO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. Recurso conhecido e provido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recurso Inominado n. 20

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

entanto, o que soa contraditório, nenhuma das decisões explica como e em quais condições o concessionário poderia ter agido no sentido de evitar o dano. Convencionou-se, assim, o axioma da responsabilidade civil independente das nuances do caso concreto. Ademais, e o que agrava ainda mais a situação, tem-se ignorado o argumento da excludente de responsabilidade por ato de terceiro. Conforme se denota da jurisprudência, a figura do proprietário do animal que invadiu a pista acaba sendo indiferente para fins de responsabilização. A obrigação de indenizar recai inteiramente sobre o concessionário de serviço público.24 Daí a importância em se discutir a intensidade e o grau de relevância do nexo de causalidade para fins de se permitir responsabilizar o ente público por ação ou omissão, sem que isso importe na transferência da questão para o campo do subjetivismo. É que nem mesmo a objetividade da responsabilidade civil disposta na Constituição Federal de 1988 traz consigo este peso de certeza quanto à relação de causa e efeito na conduta comissiva ou omissiva da 0000660-94.2015.8.16.0018/0. Relatora Juíza Fernanda de Quadros Jorgensen Geronasso. Julgado em: 02.10.2015); EMBARGOS INFRINGENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. AÇÃO ORDINÁRIA. ANIMAL SOBRE A PISTA. RODOVIA PEDAGIADA. A ECOSUL responde objetivamente pela reparação dos prejuízos sofridos pelos usuários da rodovia por ela administrada (CF, art. 37, §5º; CDC, art. 14). 2. Restou demonstrada a efetiva presença de animal (capivara) sobre a pista de rolamento, contra o qual colidiu o veículo segurado, ensejando a condenação da requerida ao ressarcimento dos prejuízos materiais suportados pela autora. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Embargos Infringentes n. 70063624241. Relator Des. Mário Crespo Brum. Julgado em: 26.06.2015); APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. PRELIMINAR AFASTADA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. ACIDENTE OCASIONADO POR ANIMAIS NA PISTA. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE PROVA DA PROPRIEDADE DO ANIMAL CAUSADOR DO DANO. AFASTAMENTO DA RESPONSABILIDADE DO SUPOSTO DONO DO SEMOVENTE. (...) A existência de animais sobre a pista acarreta a responsabilidade da ré, que não adotou as cautelas devidas, quando se está diante de rodovia concedida à exploração. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10515100021986001. Relator Des. Valdez Leite Machado. Julgado em: 14.08.2015). 24 Veja-se: REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE CAUSADO POR INVASÃO DE ANIMAL DE GRANDE PORTE (BÚFALO) NA PISTA DA RODOVIA PEDAGIADA, APÓS SER ACOSSADO POR TERCEIROS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA CONCESSIONÁRIA. AFASTADA A RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO DO ANIMAL, CODEMANDANDO, DADA AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. É farta a prova produzida no sentido de que o requerido Henrique tomou todas as precauções possíveis, junto ao poder público, inclusive do próprio Judiciário, de modo a impedir invasões em suas terras, tentativas estas todas frustradas, tanto que no dia do acidente, a conduta irregular de invasores acabou resultando na fuga do animal que assustado pulou a cerca e invadiu pista, causando o lamentável sinistro. Entendo que esta situação, ou seja, a frustração de todas as tentativas de modo a evitar invasão em sua propriedade acaba por gerar uma força maior que afastaria, nos termos do art. 936, o dever do proprietário do animal de reparar pelo prejuízo causado. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Recurso Inominado n. 71003766433. Relator Juiz Carlos Eduardo Richinitti. Julgado em: 13.12.2012).

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

Administração Pública. Tanto é que, como visto, se diferenciaram no âmbito da doutrina duas espécies de teoria do risco: a integral (sem excludentes) e a administrativa (com excludentes). A teoria do risco administrativo permite discutir níveis de proporcionalidade do nexo causal entre a omissão e o dano. São as chamadas excludentes da responsabilidade civil, as quais, em linhas, gerais, compreendem: força maior, culpa exclusiva da vítima, culpa de terceiro e impossibilidade motivada do cumprimento de dever (reserva do possível).25

4 Excludentes da responsabilidade por omissão do concessionário por invasão de animal na pista No presente estudo, importa, para fins de afastar a causalidade da suposta omissão do concessionário ao permitir a entrada de animais na pista, a análise da reserva do possível e da culpa de terceiro.

4.1 A reserva do possível: possibilidade material de agir Como visto, em se tratando de responsabilidade civil por omissão, há que se demonstrar o não atendimento a) de um agir expressamente contido em lei; b) da previsibilidade do evento danoso; c) da possibilidade de se adotar providências para evitar tal evento; e d) da ausência da adoção das medidas cabíveis. Fosse este artigo escrito durante a vigência do Código Civil de 1916, o dever legal expresso de agir estaria presente. O §5º do art. 588 disciplinava expressamente a obrigação da Administração Pública de implantar cercas nas vias marginais para impedir a invasão de animais na via de rolagem. Dizia o parágrafo revogado: “Serão feitas e conservadas as cercas marginais das vias públicas pela administração, a quem estas incumbirem, ou pelas pessoas, ou empresas, que as explorarem”. Todavia, o atual Código não reproduziu a referida norma, revogando-a tacitamente e não mais determinando à Administração ou às empresas privadas

25

A doutrina da responsabilidade extracontratual do Estado precisa ser reequacionada para, a um só tempo, incentivar o cumprimento dos deveres prestacionais e reparar os danos injustos gerados pela crônica omissão das autoridades públicas. Trata-se de duplo movimento, que pressupõe assimilar a proporcionalidade como proibição simultânea de excessos e de inoperância. É em sintonia com esse princípio, e para além das disputas semânticas, que o Estado deve ser objetivamente responsabilizado, admitidas tão-só as excludentes do nexo causal, a saber, a culpa exclusiva da vítima, a culpa concorrente (excludente parcial), o ato ou fato exclusivo de terceiro (excludente, no geral das vezes), a força maior (irresistível), o caso fortuito (não atribuível a razões internas) e a impossibilidade motivada do cumprimento de dever (reserva do possível, defendida no presente estudo). (FREITAS, Juarez. Op. cit., p. 170).

ARTIGOS

71

Wilson Accioli de Barros Filho

a construção e a conservação de cercas marginais nas vias públicas. Mesmo que assim não fosse, isto é, ainda que remanescesse o dever do concessionário de, em nome da Administração Pública, cercar as vias por ele administradas, eventual omissão causadora de dano ao usuário seria objeto de questionamento. Fala-se da indelegabilidade do poder de polícia e da reserva do possível. Sabe-se que a limitação ao direito de propriedade dos moradores residentes próximos às rodovias é de competência única da Administração e remonta a uma necessidade pública plenamente justificada. Caso houvesse obrigação legal de promover o cercamento das encostas de todas as estradas brasileiras, ao concessionário recairia apenas a execução do mandamento limitador, já imposto e consumado pelo poder concedente. Em outras palavras, o concessionário de serviço público não pode, por si, determinar a construção de muros no entorno das estradas pedagiadas, de modo a evitar o acesso de pessoas e animais. A uma porque, via de regra, o poder concedente não o obriga neste sentido. A duas porque tal conduta está limitada pela competência estatal indelegável do poder de polícia: o agente privado pode apenas executar atos materiais de limitação à propriedade impostos pela Administração.26 Como exemplo, pelo regime jurídico de direito administrativo, o concessionário somente poderia construir muros nas rodovias caso o poder concedente tivesse anteriormente desapropriado toda a extensão da encosta. Por isso se afirma, sem medo de errar, inexistir condição jurídica para o concessionário atuar no sentido de impedir acidentes por animais na pista. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por mais que haja um mandamento legal determinando 26

Deveras, a restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros. Ocorre, todavia, que se estiverem em pauta meramente atos materiais instrumentais preparatórios, não haverá nisto atribuição alguma de poder que os invista em qualquer supremacia engendradora de desequilíbrio entre os administrados. (...). Em suma: deixando de lado algumas hipóteses excepcionais e clássicas de exercício de atividade de polícia por particular (“exempli gratia”, atos desta espécie exercíveis por capitães de navio) é certo que particulares podem ser contratados para a prática de certos atos que se encartam no bojo da atividade de polícia, pelo menos nas seguintes hipóteses: (a) para atividade sucessiva a ato jurídico de polícia expedido pelo Poder Público, consistente em sua mera execução material, se não houver nisto interferência alguma com a liberdade dos administrados, mas, tão só, com a propriedade destes (...) (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço Público e Poder de Polícia: concessão e delegação. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 7, jul./ set. 2006, p. 9-10).

72

ARTIGOS

o caminho a ser perseguido pela Administração, para existir a responsabilidade decorrente de omissão tem que haver também a possibilidade de agir para evitar o dano.27 Exige-se uma conduta que seja exigível da Administração e possível de ser cumprida. Para a autora, “essa possibilidade só pode ser examinada diante de cada caso concreto. Tem aplicação, no caso, o princípio da reserva do possível, que constitui aplicação do princípio da razoabilidade: o que seria razoável exigir do Estado para impedir o dano”.28 Hoje, afora os mandamentos abstratos de eficiência e adequação do serviço público, inexiste no sistema normativo brasileiro norma expressa coibindo o concessionário a cercar a rodovia para impedir colisões entre animais e motoristas. Mesmo quando existia expressa obrigação legal, na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina já resistia bravamente a este mandamento. Virgílio de Sá Pereira assinalava: Impor à Administração o dever de vedar com tapumes e cercas as vias públicas desse imenso país, coisa que nem mesmo os romanos, mestres incomparáveis nessa matéria, pensaram em fazer nas suas estupendas estradas? Proibir o proprietário de fazê-lo? Mas então eu não posso cercar o meu terreno?29

Washington de Barros Monteiro afirmava: “Trata-se de preceito ocioso, dado a impossibilidade do Poder Público em levantar cercas marginais para todas as suas estradas”.30 No âmbito dos tribunais de justiça brasileiros, há quem entenda o mesmo defendido neste artigo: por não poder figurar como segurador universal, tampouco a ele ser aplicada a teoria do risco integral, o nexo causal entre a omissão do concessionário e o dano sofrido pelo usuário precisa ser materialmente possível de se implementar. Ou seja, somente pode-se punir a Administração Pública por omissão quando se verificar que era possível agir e que existia respaldo jurídico e legal para tanto. Dois acórdãos paradigmas fundamentam esta posição. O primeiro, uma apelação cível julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 20 de agosto de 2008, de relatoria do Desembargador José Carlos Varanda, através do qual se reconheceu ausente a responsabilidade do concessionário por acidente envolvendo animal na pista. No corpo

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 716. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 716. 29 PEREIRA, Virgílio de Sá. Manual do Código Civil brasileiro. v. 8. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1924, p. 317, n. 124. 30 BARROS, Washigton Monteiro de. Curso de direito civil: direito das coisas. 18. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 166. 27 28

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

da decisão, o desembargador questionou até que ponto a Administração “deu causa” para o ingresso ou a permanência do animal na pista de rolamento. Segundo o magistrado, não bastaria apenas ao lesado provar que a rodovia era administrada por concessionário e, em virtude disso, sobre ele recairiam todos e quaisquer riscos da atividade. Para o relator, a aquiescência do Judiciário importaria na consagração da teoria do risco integral. Valendo-se da reserva do possível, o acórdão observou: “Por mais que seja intensificada a fiscalização de uma rodovia, não se pode impedir ou evitar que, de uma hora para outra, animais ingressem na pista, principalmente em locais onde não existam vestígios de criações à margem da rodovia”.31 Disse o relator, ainda, que “é comum, inclusive, o ingresso na pista de animais pouco antes da ocorrência de acidentes, sem que tivesse a Administração tempo hábil para conhecer o fato e adotar as providências necessárias para a sua remoção”.32 O arremate, extremamente coerente, veio assim exarado: Portanto, não é possível exigir que a Administração seja onisciente ou que tenha o dom da ubiquidade, pela onipresença. Isto representaria a adoção da teo­ria do risco integral, com absoluta afronta ao texto constitucional. (...). Pergunta-se: como poderia a apelante [concessionária] tomar os devidos cuidados, para evitar que animais, inopinadamente, atravessarem a pista, de um lado para o outro? Estaria a apelante [concessionária], por força de lei ou de contrato, obrigada a dispor a cada 100 mts de estrada, de um eficiente esquema de vigilância de animais fugidos? Em resumo, qual teria sido o dever de cuidado violado pela apelante, o que representaria a sua culpa? Nenhum!33

No mesmo sentido, o segundo acórdão paradigma adotou a excludente do caso fortuito para dizer ser imprevisível a invasão de animal na pista, reconhecendo inexistente o dever de indenizar do DNIT. Trata-se também de Apelação Cível, desta vez julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região, em 20 de março de 2009, pela ex-Desembargadora Maria Lúcia Luz Leiria. O caso objeto da decisão é o mesmo: acidente de trânsito ocasionado por animal na pista. Para a relatora, “a existência de um animal na pista não era previsível ou evitável por qualquer um dos condutores dos veículos e menos ainda pelo DNIT, de modo que não se pode dizer que haveria culpa (negligência, imprudência ou imperícia) dos

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 2008.001.22374. Relator Des. José Carlos Varanda dos Santos. Julgado em: 20.08.2008. 32 Idem. 33 Idem. 31

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

réus”.34 A então desembargadora reconheceu, com isso, que a presença repentina de um animal na rodovia reflete um caso fortuito, imprevisível e na prática absolutamente inevitável. Ainda que não expressamente, também a reserva do possível foi adotada para afastar o nexo causal entre a omissão e o dano: Ainda, a fiscalização do tráfego e manutenção das estradas não pode ser entendida com tamanha abrangência, pois se o DNIT fosse sistematicamente responsabilizado por tais acidentes, teria que ter um fiscal a cada poucos metros dos milhares de quilômetros que margeiam as rodovias ou, ainda, teria que garantir, por mecanismos de engenharia, a inviolabilidade das rodovias por qualquer elemento estranho aos veículos que nela trafega. Nem uma, nem outras obrigações foram previstas em lei a esse respeito. Dessa forma, responsabilizá-lo em tal situação seria o mesmo que dizer que o DNIT seria um segurador universal de qualquer acidente que ocorra nas estradas públicas, eximida somente no caso de identificação de outro causador.35

Com base no exposto, seja porque inexiste obrigação legal expressa, os agentes privados não são titulares do poder de polícia ou não possuem tal obrigação limitada no escopo do contrato de concessão, não podendo, portanto, atuar de ofício, denota-se não ser o autor deste trabalho voz solitária a afirmar que o agir imposto pela imensa maioria da jurisprudência aos concessionários de serviço público, quando verificado acidente de trânsito por animal na pista, é desproporcional e impossível de ser prevenido.

4.2 Ato de terceiro: o proprietário do animal Outra excludente que afasta o nexo causal entre a omissão do concessionário e o acidente BRASIL. Tribunal Regional Federal da 04ª Região. Apelação Cível n. 2006.70.00.017975-2. Relatora Des. Maria Lúcia Luz Leiria. Julgado em: 12.03.2009. 35 Idem. No mesmo sentido: “A mera invasão de animais em rodovia federal comum, cuja culpa in vigilando é exclusiva do dono do animal, não caracteriza falha no serviço público oferecido pelo DNER suficiente a impor-lhe o dever de indenizar os Agravados pelo falecimento de seu pai/esposo em decorrência do acidente” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 04ª Região. Apelação Cível n. 2001.04.01.026165-9. Relator Des. Francisco Donizete Gomes. Julgado em: 05.02.2003). “Fácil perceber que, se a responsabilidade objetiva do Estado, a que se pretende equiparar a concessionária da rodovia, tivesse o alcance buscado e acolhido em julgamento invocado pelo apelante, estaria ele transformado no segurador universal. Todo e qualquer dano físico ou patrimonial ao cidadão decorrerá de falha do serviço público, descumprimento da obrigação de manter a ordem e a segurança. Não parece ser este o espírito do dispositivo constitucional. A responsabilidade é objetiva para os danos causados diretamente pelos agentes do poder público ou concessionários de serviço público. No caso de dano provocado por terceiro, há que demonstrar a culpa, o que não ocorre no presente feito. Pelo exposto, nego provimento ao apelo” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70002372662. Relator Des. Bayard Ney de Freitas Barcellos. Julgado em: 15.05.2002). 34

ARTIGOS

73

Wilson Accioli de Barros Filho

envolvendo usuário de serviço público é a relacionada ao proprietário do animal. Disciplina o art. 936 do Código Civil que “o dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”. Notório, portanto, que o dono do animal deixado à beira da rodovia, seja por dolo ou culpa, deve responder pelo dano. Segundo Rodrigo Valgas dos Santos, ato de terceiro ocorre quando o prejuízo foi dado causa “por pessoa diversa da vítima e do aparente causador do dano, mas que efetivamente foi o responsável pela conduta danosa. Do mesmo modo no fato da vítima, aqui para rompimento absoluto do nexo causal, o fato deve ser exclusivamente ser atribuído a terceiros, sob pena de responsabilização, ainda que parcial, do Estado”.36 Ora, a quem mais pode ser atribuída a responsabilidade por animal na pista se não ao proprietário que o permitiu cruzar as cercas de sua propriedade e se dirigir até a rodovia? Como dito acima, ao concessionário não é dado o direito de se imiscuir na propriedade dos moradores residentes próximo à via por ele administrada e obrigar-lhes, por exemplo, a reforçar suas cercas ou portões. Por isso, nesses casos, não há como se falar em omissão. Logo, considerando que o dever de indenizar nasce de uma conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, não havendo participação estatal para a consumação do dano, mas ato de terceiro (proprietário do animal), inadmite-se falar em responsabilidade civil do concessionário por omissão.37 Exclui-se o nexo causal da suposta conduta omissiva. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, neste sentido, por meio de Apelação Cível julgada em 30 de setembro de 2003, já decidiu: Não há obrigação legal ou contratual de a concessionária impedir o acesso de animais à pista de rolamento. (...) Disposição do Código Civil que impõe ao dono do animal a responsabilidade dos danos poderia causados. Inexistência de nexo causal. Ato atribuível a terceiro e não a preposto da concessionária. Inexistência de responsabilidade objetiva, visto que o risco assumido pela concessionária decorre dos termos do contrato. Fato consistente na colisão do veículo com cavalo morto na pista, em local de reta, que está a demonstrar ausência de cautela por parte do motorista.38

O Tribunal de Justiça do Paraná também já exarou entendimento sobre o tema. Foi na Apelação SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Op. cit., p. 178. GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello. Hipóteses de não incidência de responsabilidade civil do Estado. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 307. 38 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 2003.001.09246. Relatora Des. Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo. Julgado em: 30.09.2003.

Cível nº 0396159-5, julgada em 26 de junho de 2007, de relatoria do Desembargador Leonel Cunha. A controvérsia girava em torno da responsabilização do Departamento Estradas de Rodagem do Paraná – DER/PR por conta de um acidente envolvendo animal bovino que transitava em rodovia estadual. Na oportunidade, o relator entendeu ausente o nexo causal. Segundo o acórdão: “A responsabilidade pelos danos, até porque se trata de animal particular, é de responsabilidade de seu proprietário, em conformidade com o que prevê o art. 936 do Código Civil, segundo o qual os danos causados por animais são de responsabilidade de seus donos ou detentores”.39 Valendo-se da teoria da reserva do possível, o magistrado ressaltou não ser razoável exigir do DER/PR presença em todos os trechos de todas as rodovias paranaenses, não podendo, portanto, ser responsabilizado por atos culposos de terceiros que não possuem qualquer vínculo com a autarquia estadual.40 Embora muito importante, a figura do proprietário do animal é repetidamente esquecida ou afastada pela jurisprudência brasileira. Por na maioria dos casos não se saber quem é o dono do animal, prega-se o caminho mais fácil da responsabilização, punindo o concessionário em detrimento da aplicação justa e juridicamente correta do instituto da responsabilidade civil da Administração.

5 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ: moto perpétuo Neste último ponto, serão confirmados os apontamentos acima mencionados, demonstrando, sob o prisma da jurisprudência do STJ, que, independentemente da espécie de responsabilidade civil aplicada, se objetiva ou subjetiva, a condenação do concessionário é certa. Ora se diz que o agente privado foi omisso em relação a um dever de agir (responsabilidade objetiva), ora se afirma ter sido o concessionário negligente ao permitir o acesso de animais na rodovia (responsabilidade subjetiva). Em nenhum momento o STJ pondera razoavelmente a respeito da possibilidade material de evitar o dano ou mesmo discute a responsabilidade do proprietário do animal. A Administração Pública é tida como seguradora universal. Daí se falar em responsabilização moto perpétuo (condenação com movimento contínuo/perpétuo).

36 37

74

ARTIGOS

BRASIL. Tribunal de Cível n. 0396159-5. 26.06.2007. 40 BRASIL. Tribunal de Cível n. 0396159-5. 26.06.2007. 39

Justiça do Estado do Paraná. Apelação Relator Des. Leonel Cunha. Julgado em: Justiça do Estado do Paraná. Apelação Relator Des. Leonel Cunha. Julgado em:

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

Recentemente, em decisão monocrática exarada no Agravo em Recurso Especial nº 729.665, julgado no dia 1º de julho de 2015, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, o STJ afirmou que o concessionário de rodovias está obrigado a fiscalizar a estrada da maneira mais eficiente possível a fim de zelar pela segurança do usuário, evitando, inclusive, a travessia ou ingresso de animais na pista. Questão interessante do acórdão é o afastamento completo da teoria da reserva do possível e da culpa de terceiro. É praticamente um axioma no âmbito do STJ a responsabilidade civil do concessionário por acidente envolvendo animal na pista. Absolutamente nenhuma excludente é considerada quando o usuário comprova que se acidentou em virtude de animal ter invadido a rodovia. No entendimento do Ministro Marco Buzzi, o ingresso de animais na estrada é previsível e evitável. O argumento para tanto é o dever do concessionário zelar pela segurança dos usuários. Veja-se: Evidentemente, cumpria à ré impedir o ingresso de animais na rodovia fato previsível e evitável, porque é seu o dever de zelar pela segurança dos usuários do serviço (artigo 6º, caput e §1º, da Lei nº 8.987/95) e porque o fato de realizar inspeções periódicas não lhe isenta de responsabilidade, não havendo, em absoluto, prova de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, nem de tal se cogitaria, porque a causa eficiente do acidente foi a presença de animais na pista, que a ré deveria ter impedido. Ora, se a ré não tem como manter funcionários em todos os quilômetros da rodovia, vinte e quatro horas por dia, nem como obrigar os donos de propriedades limítrofes a implantar cercas adequadas em seus terrenos, deve adotar mecanismos mais eficientes de controle e prevenção de acidentes, instalando ou aprimorando sistemas de monitoramento que lhe permitam identificar e resolver problemas semelhantes de maneira rápida.41

Salomão, julgado em 25 de maio de 2010, consolidou-se entendimento de que acidente por animal na pista em rodovia possui ligação direta com a “má prestação do serviço”. É que, para o STJ, “a concessão é, exatamente, para que seja a concessionária responsável pela manutenção da rodovia, bem como mantenha a pista sem a presença de animais, zelando, portanto, para que os usuários trafeguem em tranquilidade e segurança”.42 Ao fim, em breve análise, o relator anota que a responsabilidade do concessionário independe da culpa atribuída ao dono do animal. De outro vértice, no REsp nº 1.198.534, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, aplicou-se a responsabilidade civil subjetiva para condenar o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER por omitir-se do dever de fiscalização e vigilância da via pública, permitindo, assim, acidente entre cidadão e animal. Em síntese, os argumentos da condenação foram os seguintes: o ente público tinha ciência da entrada frequente de animais na rodovia; conforme a Constituição Federal, os serviços públicos devem ser prestados com adequação e eficiência; era dever da Administração Pública promover vigilância ostensiva e adequada a fim de evitar acidentes; assim, ao não proporcionar a maior segurança possível às pessoas que trafegam pela rodovia, a Administração Pública agiu com negligência. Note-se: Contudo, não se pode esquecer que, conforme assentado pelo acórdão recorrido, o contexto fático juntado aos autos afasta a culpa da vítima ou de terceiros, haja vista que: na BR 116, onde ocorreu o acidente, era comum o ingresso de animais na pista; as fazendas que ladeavam a rodovia eram cercadas; não havia como afirmar que o veículo trafegava em alta velocidade. Conforme assentado nas instâncias ordinárias, a Constituição Federal, no art. 37, estabelece que os serviços públicos devem ser prestados de forma adequada e em observância do princípio da eficiência. Se já existia um histórico de ingresso de animais na pista, era dever do Estado promover vigilância ostensiva e adequada, a fim de evitar acidentes, que são muito comuns nessas situações. Em não cumprindo com seu mister de proporcionar a maior segurança possível às pessoas que trafegam pela rodovia, há conduta omissiva e culposa do Estado, caracterizada pela negligência, apta a responsabilizar os recorrentes, nos termos do que preceitua a teoria da responsabilidade subjetiva por omissão.43

Como se vê, o STJ afirma que, ainda que não haja possibilidade factível do concessionário proteger toda a extensão da rodovia sob concessão, o que de fato é impossível, este tem o dever de evitar acidentes criando mecanismos aptos a preveni-los. Em outros termos, aplica-se a responsabilidade objetiva, aduzindo que o policiamento periódico do concessionário não afasta seu dever de indenizar, sequer levando em consideração eventual inexistência de nexo causal ou culpa exclusiva de terceiro. No mesmo sentido, no acórdão de Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 1.067.391, de Relatoria do Ministro Luis Felipe

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.067.391. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 25.05.2010. 43 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1198534 RS. Relatora Ministra Eliana Calmon. Julgamento em: 10.08.2010. 42

41

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 729.665 – SP. Rel. Ministro Marco Buzzi. Julgado em: 01.07.2015.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

ARTIGOS

75

Wilson Accioli de Barros Filho

Vê-se, portanto, que, muito embora possam os ministros divergir a respeito da natureza da responsabilidade civil, se objetiva ou subjetiva, a condenação da Administração Pública ou do concessionário prestador de serviço público é certa, sempre sob o manto de conceitos genéricos e abstratos, como “adequação” e “eficiência”, jamais sob o aspecto das condições reais de prestação do serviço prestado. Desta forma, além de segurador universal pela aplicação do risco integral, retorna-se ao regime de Estado protecionista para afirmar que o ente público tem o dever de prestar diretamente toda a comodidade material ao cidadão, sob pena de, fazendo-o mal ou não o fazendo, incorrer no dever incontroverso de indenizar. Ignora-se, com isso, que é a própria Admini­ stração Pública, respaldada na Constituição Federal, quem decide o que é serviço público adequado e eficiente.44 Isso tudo de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Na situação do concessionário, serviço público adequado seria manter o asfalto em perfeitas condições, as vias muito bem sinalizadas e os usuários seguros em relação aos atendimentos de primeiros-socorros. Todas, pois, obrigações possíveis de serem cumpridas e plenamente puníveis, em caso de omissão, pela certeza do nexo de casualidade. Repise-se, mais uma vez: ao condenar a Administração Pública, o Poder Judiciário tão somente diz que a omissão é injustificável. No entanto, não apresenta nenhuma resposta concreta ao ideal do que seria ótimo, adequado e eficiente para o caso concreto. Não há cabimento, com o devido respeito, dizer ter havido omissão sem se apresentar como seria o dever correto de agir. Se nem a lei, tampouco a Constituição Federal, disciplina a respeito da obrigação de cercar rodovias – por absoluta impossibilidade material de fazer – como pode o Poder Judiciário condenar o Executivo sob o prisma de conceitos abstratos? E mais, dizendo ser a Administração omissa? À exaustão, reforça-se: “Só é causal a omissão quando haja o dever de impedir o resultado”.45 Não havendo o dever legal, conforme Lembre-se que os serviços públicos constituem atividades econômicas essenciais, baseadas em recursos escassos. Se não há dúvidas de que os usuários têm direito a um serviço satisfatório, cumpre ao Estado promover a definição do que deve ser reputado como serviço adequado, tendo em vista os limites estabelecidos pela reserva do possível. Tal ponderação é estranha ao regime do direito do consumidor, mas fundamental para a viabilização da prestação dos serviços públicos. (...) os direitos dos usuários não serão necessariamente idênticos e exercidos sempre da mesma forma diante de cada contexto econômico, social e regional. (...). Não é possível determinar a extensão do direito dos usuários sem a concomitante verificação das condições de prestação do serviço e dos correspondentes deveres do seu prestador (REISDOFER, Guilherme Fredherico Dias. Apontamentos sobre a responsabilidade civil dos concessionários de serviços públicos. Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 68, jul./ago. 2011, p. 162). 45 MOREIRA, João Batista Gomes. A responsabilidade civil do Estado para com o usuário de serviço público. Fórum Administrativo 44

76

ARTIGOS

aqui se defendeu, não há nexo de causalidade e, por isso, omissão justificadora do dever de indenizar por parte do concessionário de serviço público.46

6 Conclusão Nos casos de acidentes com animais na pista, parece factível asseverar que a jurisprudência considera os concessionários de rodovias garantes universais, aplicando-lhes a teoria do risco integral e atribuindo-lhes a responsabilidade civil por toda e qualquer situação, mesmo as mais improváveis e imprevisíveis, como o acesso inesperado de um animal ou pessoa na rodovia, não se atentando para as excludentes de responsabilidade ou para a proporcionalidade do nexo de causalidade. Apesar do posicionamento dos tribunais, entende-se que o concessionário não possui o dever de cercar toda a extensão do asfalto pedagiado. Isso por três razões lógicas: a) não há dever legal expresso neste sentido, logo, não há omissão; b) o poder de polícia é indelegável; e c) inexiste, via de regra, obrigação contratual a coibi-lo proteger toda a extensão da via. Desta feita, é desmedido presumir causalidade e, na via reflexa, o dever de indenizar do concessionário por acidente envolvendo usuário e animal, quando não subsistem razões fáticas e jurídicas classificando o ato como omissão. Não parece adequado ao julgador afastar a evidência do caso concreto adotando mera imputação de responsabilidade, estritamente decorrente da alegada “omissão”. Fala-se da imprescindível incidência da reserva do possível (possibilidade material e jurídica de agir).

Referências BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007. ______. Responsabilidade civil do Estado por omissão. Revista Argentina del Régimen de La Administración Pública, Buenos Aires: RAP, v. 326, 2006.

– Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 7, n. 82, p. 1-137, dez. 2007, p. 22. 46 Há quem diga, ainda, que, em se tratando de responsabilidade civil por omissão, sequer haveria que se falar em nexo causal. Para Ricardo Marcondes Martins, “não há que se falar em nexo causal na responsabilidade omissiva, há apenas imputação: primeiro, do dever de evitar o dano; depois, conexo ao primeiro, do dever de reparar o dano” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Responsabilidade civil do Estado, nexo causal e imputação objetiva. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 369). Em que pese o entendimento do autor, discorda-se de tal afirmação. É que, adotando a imputação para dizer inexistente a causalidade da omissão, estará se admitindo a responsabilização indiscriminada da Administração Pública, sem levar em consideração suas excludentes. Isto, certamente, ofenderá os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, previstos no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista

______. Responsabilidade Civil Extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Revista de Direito Administrativo e constitucional, Curitiba: Juruá, ano 02, n. 9, 2002.

REISDOFER, Guilherme Fredherico Dias. Apontamentos sobre a responsabilidade civil dos concessionários de serviços públicos. Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 13, n. 68, jul./ ago. 2011.

BARROS, Washigton Monteiro de. Curso de direito civil: direito das coisas. 18. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1979.

SANTOS, Rodrigo Valgas. Nexo causal e excludentes da responsabilidade extracontratual do Estado. Revista de Doutrina Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 12, n. 59, jan./ fev. 2010.

BEZNOS, Clóvis. Responsabilidade extracontratual das pessoas privadas prestadoras de serviços públicos. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade Civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Responsabilidade Civil das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. FREITAS, Juarez. Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de inoperância. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello. Hipóteses de não incidência de responsabilidade civil do Estado. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade Civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. HACHEM, Daniel Wunder. Responsabilidade Civil do Estado por Omissão: uma proposta de releitura da teoria da fauteduservice. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo et al. (Orgs). Direito e Administração Pública. Estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Editora Atlas, 2013. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. ______. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. MARTINS, Ricardo Marcondes. Responsabilidade civil do Estado, nexo causal e imputação objetiva. In: GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (Orgs.). Responsabilidade Civil do Estado: desafios contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2010. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ver. Atualizada e ampliada. 29. ed. Malheiros: São Paulo, 2012. ______. Serviço Público e Poder de Polícia: concessão e delegação. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 7, jul./set. 2006. MOREIRA, João Batista Gomes. Nexo de Causalidade (do dano, para efeito de responsabilidade do Estado): reexame do tema. Interesse Público, Porto Alegre: Notadez, ano 8, n. 39, set./out. 2006. ______. A responsabilidade civil do Estado para com o usuário de serviço público. Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 7, n. 82, dez. 2007, p. 1-137. PEREIRA, Virgílio de Sá. Manual do Código Civil brasileiro. v. 8, n. 124. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1924.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017

Decisões judiciais BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 729.665 – SP. Rel. Ministro Marco Buzzi. Julgado em: 01.07.2015. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 1.067.391. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 25.05.2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1198534 RS. Relatora Ministra Eliana Calmon. Julgado em: 10.08.2010. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recurso Inominado n. 0000660-94.2015.8.16.0018/0. Relatora Juíza Fernanda de Quadros Jorgensen Geronasso. Julgado em: 02.10.2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cível n. 0396159-5. Relator Des. Leonel Cunha. Julgado em: 26.06.2007. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Embargos Infringentes n. 70063624241. Relator Des. Mário Crespo Brum. Julgado em: 26.06.2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Recurso Inominado n. 71003766433. Relator Juiz Carlos Eduardo Richinitti. Julgado em: 13.12.2012. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70002372662. Relator Des. Bayard Ney de Freitas Barcellos. Julgado em: 15.05.2002. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n. 10515100021986001. Relator Des. Valdez Leite Machado. Julgado em: 14.08.2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 2008.001.22374. Relator Des. José Carlos Varanda dos Santos. Julgado em: 20.08.2008. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 2003.001.09246. Relatora Des. Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo. Julgado em: 30.09.2003. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 04ª Região. Apelação Cível n. 2006.70.00.017975-2. Relatora Des. Maria Lúcia Luz Leiria. Julgado em: 12.03.2009. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 04ª Região. Apelação Cível n. 2001.04.01.026165-9. Relator Des. Francisco Donizete Gomes. Julgado em: 05.02.2003.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): BARROS FILHO Wilson Accioli de. A (ir)responsabilidade civil do concessionário de serviço público por animal na pista. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 191, p. 66-77, jan. 2017.

ARTIGOS

77

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.