A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JUDICIAL EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: critérios para uma inexorável distinção

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (UNISINOS) CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO – 2016/1 TEORIA CONSTITUCIONAL

GUILHERME RODRIGUES CARVALHO BARCELOS

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JUDICIAL EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: critérios para uma inexorável distinção

Linha de Pesquisa: Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos

São Leopoldo 2016

GUILHERME RODRIGUES CARVALHO BARCELOS

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JUDICIAL EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: Critérios para uma inexorável distinção

Artigo apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina de Teoria Constitucional do curso de mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Linha de Pesquisa: Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos. Orientador: Prof. Dr. Miguel Tedesco Wedy

São Leopoldo 2016

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JUDICIAL EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: critérios para uma inexorável distinção

Guilherme Rodrigues Carvalho Barcelos*

RESUMO Uma das principais características do constitucionalismo contemporâneo (considerado aquele oriundo do pós-segunda Guerra) é o deslocamento do polo de tensão dos demais Poderes (Legislativo e Executivo) em direção à Jurisdição Constitucional. Nesse sentido, fenômenos como judicialização da política e ativismo judicial se encontram na pauta do dia. No Brasil, em especial, a discussão acerca do ativismo judicial encontra raízes no processo de redemocratização que rompeu com o período ditatorial no país, oportunidade na qual é promulgada a Constituição Federal (1988). Assim, o presente artigo pretende fazer uma relação (de desconstrução) entre o movimento consagrado como constitucionalismo contemporâneo e o assentamento de posturas ativistas por parte do Poder Judiciário, de modo a demonstrar que judicialização da política (da vida e/ou do social) e ativismo judicial são fenômenos distintos, e que a ausência de uma robusta distinção acerca destes fenômenos conduz a um estado d’arte no qual impera o protagonismo judicial, algo que é nocivo para a democracia. Noutras palavras, a judicialização da política não pode ser utilizada como álibi a prática de ativismos. Logo, o objetivo do texto é tecer uma crítica ao ativismo judicial, sob a premissa da necessidade de se compreender as balizas do constitucionalismo contemporâneo e da inexorabilidade de um controle hermenêutico das decisões judiciais (na esteira da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck). Palavras-chave: Poder Judiciário. Constitucionalismo Contemporâneo. Controle de Constitucionalidade. Judicialização da Política. Ativismo Judicial.

_______________________ * Advogado. Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Email: [email protected]

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1 CONSIDERAÇÕES INAUGURAIS A questão-chave deste artigo é: qual o papel do Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito? Afinal, “[...] como compreender a atuação do Poder Judiciário a partir de uma concepção de constitucionalismo que tem como elemento base um aprofundamento democrático cada vez maior?”1. Com esta pergunta, por óbvio, na esteira do escólio de Tassinari:

[...] não se busca resgatar a contradição (ou a oposição) há algum tempo colocada e incitada entre democracia e Judiciário, mas provocar a reflexão sobre como entender a já reconhecida e legítima intervenção judiciária no interior de uma democracia substancial sem que haja prejuízos – em outras palavras, significa discutir limites à intervenção do Judiciário.2

Com efeito, vez mais o Poder Judiciário tem sido chamado a se manifestar sobre temas diversos. Diante desse cenário, de onde exsurge a marcante judicialização da política hodierna, cumpre (re)discutir o papel da Justiça brasileira, dando enfoque primordial à questão envolta ao conteúdo das respectivas decisões, de modo a compatibilizá-las ao (novo) modelo advindo do Estado Democrático de Direito, a partir do qual ocorreu “[...] certo deslocamento do centro das decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional”3. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo passam a poder – em determinadas circunstâncias – ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição Federal (CF) que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.4 Isso, enfim, a toda evidência, na dicção de Streck:

[...] exigirá um rigoroso controle das decisões judiciais e dos julgadores. Afinal, se é inexorável que alguém tenha que decidir e se é inexorável o crescimento das demandas por direitos (fundamentais-sociais, principalmente) e com isso aumente o poder da justiça constitucional, parece evidente que isso não pode vir a comprometer um dos pilares sustentadores do paradigma Constitucionalista: a democracia.5

1

TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 32. 2 Ibid., p. 32. 3 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 64. 4 Ibid. 5 Ibid., p. 65.

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Nos últimos anos o debate acerca do papel desempenhado pelos tribunais – notadamente no exercício daquilo que se convencionou a chamar jurisdição constitucional – na concretização dos direitos fundamentais foi, acentuadamente, acirrado. Um fato interessante pode ilustrar essa afirmação. No dia 25.04.2011 o jornal Folha de S. Paulo, no caderno “Poder”, divulgou a seguinte nota: “STF julga a quem pertence vaga de suplente”. Trata-se, no caso, da resolução de imbróglio jurídico para o preenchimento de 24 vagas de suplentes para a Câmara dos Deputados. Segundo a notícia, a resolução do problema dependerá de decisão do STF na qual se discutirá se as vagas pertencem às coligações ou aos partidos. Frise-se: algo que depende do cumprimento regular das eleições e do escrutínio popular para ter sua composição configurada (no caso, as vagas da Câmara dos Deputados) acaba por ser discutida no âmbito da nossa Corte Constitucional numa discussão que envolve a interpretação adequada do sistema político-eleitoral previsto pela Constituição, bem como o cumprimento dos direitos políticos daqueles que foram eleitos, em condições de normalidade, no pleito democrático6. Não é preciso muito esforço para perceber que, num caso como esse, a discussão – por sua íntima natureza, política – acabou por ser juridicializada. E não é apenas em casos envolvendo o processo político que acontece a judicialização de matérias classicamente tidas como exteriores à esfera de atuação do Poder Judiciário. No julgamento da citada ADI n. 3510, por exemplo, o tribunal foi chamado a atuar num campo no interior do qual se discutiam as “verdades da ciência” sobre a vida e a pesquisa biológica. Discutia-se a constitucionalidade do dispositivo da Lei n. 11.105/2005 que permitia, em seu art. 5º, a possibilidade, para fins terapêuticos e de pesquisa, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas através de fertilização in vitro. A afronta à Constituição estava balizada no potencial desrespeito à garantia constitucional do direito à vida (art. 5º, Caput) e, nos diversos votos, os ministros da Corte discutiram o conceito de vida; quando ela se inicia; qual o estatuto jurídico do embrião (se deve ou não ser protegido pelo direito, etc.), entre outras coisas. De forma solene, por ocasião do julgamento desta mesma ação, o Min. Carlos Aires Britto afirmou que o STF havia se tornado uma “casa de fazer destinos”. Neste caso, o debate acerca das “verdades da ciência” (houve, inclusive, quem ressuscitasse o debate medieval ciência v.s. religião) e das (in)certezas a respeito das pesquisas científicas, judicializou-se7. 6

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 7 Ibid.

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Os casos acima denotam a judicialização de temas que antes ficavam adstritos ao parlamento ou à relação entre povo e parlamento. E em questões diametralmente opostas, representação nas casas parlamentares e bioética. Os exemplos não param por aí, contudo: fetos anencéfalos, uniões homoafetivas, transexuais, demarcação de terras indígenas, anistia, fidelidade partidária, cláusulas de barreira, moralidade eleitoral, impeachment, afastamento de parlamentares no exercício pleno do mandato eletivo (!) etc. Nessa medida, tal e qual fazem Oliveira et. al., cabe perguntar: “[...] de onde vem esse fenômeno que se insere, cada vez mais, em nosso espaço público de discussões? Em que ele está enraizado? É algo recente? Se não, porque demoramos tanto para sentir os seus efeitos?”8. Ou, noutras palavras, de acordo com Tassinari: Qual o papel do Judiciário?9 Ora: como deve agir o Judiciário de acordo com os preceitos relativos ao Estado Democrático de Direito? O que é jurisdição constitucional? Como exercê-la? Quais as diretrizes? Em que medida? E os respectivos limites? Judicialização ou ativismo? Com efeito, a função jurisdicional e a sua limitação (especialmente em relação ao exercício do controle de constitucionalidade – judicial review) “[...] já vêm sendo problematizadas ao longo dos anos, tanto na experiência continental, como na anglo-saxã, antes mesmo de no Brasil”10,11. Isso ocorreu, evidentemente, por razões históricas, tendo em vista que a existência de um efetivo controle de constitucionalidade no direito brasileiro somente se consolidou depois do período ditatorial, com a redemocratização (na década de 1980), quando Europa, e especialmente os Estados Unidos, apresentava certa maturidade democrática e constitucional, que impulsionava intensos debates entre Parlamento e Judiciário. Apesar desta ser uma discussão problematizada há algum tempo, tal abordagem tem se renovado mesmo nesses locais e, portanto, se revelado cada vez mais pertinente, não apenas porque as diferentes tradições têm procurado analisar a onda crescente de judicialização que afeta seu próprio sistema jurídico, mas também porque a América Latina 8

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 269. 9 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 32. 10 Ibid., p. 32-33. 11 Veja-se que, por exemplo, a tradição norte-americana produziu literatura sobre o tema anos antes do que o Brasil, basta que se observem os anos de publicação das obras de John Hart Ely (Democracy and distrust, 1980), de Charles Beard (The Supreme Court and the Constitution, 1912, na versão sem a introdução de Alan Westin, edição de 1962), de Alexander Bickel (The Last Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics, 1962), de Raoul Berger (Government by Judiciary, 1977) e de Laurence Tribe (Constitutional Choices, 1986), para mencionar apenas alguns. Ainda, a própria obra Direito e Democracia, de Jürgen Habermas, criticando a jurisprudência dos valores, é datada de 1992 (TASSINARI, op. cit., p. 32).

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(que faz parte das assim chamadas “novas democracias”, junto com a África, o Canadá e a Nova Zelândia, para referenciar os mais mencionados) tem sido objeto de estudo de autores nos Estados Unidos e no Canadá especialmente no que diz respeito ao modo de articular a relação democracia e Judiciário.12,13 De fato, “[...] o direito constitucional brasileiro contemporâneo traz como uma das suas principais características a relevância atribuída ao Poder Judiciário”14. Cada vez mais, questões que anteriormente eram demandas políticas transformaram-se em contendas judiciais, consolidando o fenômeno que ficou conhecido como judicialização da política. Na medida em que aumenta a interferência judicial, maior também deveria ser o comprometimento de juízes e tribunais em respeitar a tradição jurídica (legislação, Constituições e entendimentos jurisprudenciais anteriores) que, ao longo dos anos, possibilitou conquistas importantes.15 Por isso, uma teoria da decisão é importante para nos assegurar dos limites desse espaço não alcançado pelo Judiciário; um espaço democraticamente garantido, para que nossa democracia não se transforme em uma juristocracia.16 Logo, o cerne da problemática é: a despeito do fenômeno da judicialização da política, a democracia brasileira não pode(ria) restar a mercê de posturas apegadas a uma espécie de aposta (acrítica) no ativismo ou no protagonismo judicial. Necessário, portanto, preservar a Constituição e a democracia. Vivemos, pois bem, sob o pálio de um Estado Democrático de Direito (1988) e não em um Estado Juristocrático de Direito (ou, para lembrar Ran Hirschl, em uma juristocracy).17 12

TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. 13 Nesse mesmo sentido: TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995; SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On law, politics & judicialization. New York: Oxford University Press, 2002; HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Há também textos traduzidos para o português e publicados recentemente na Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas: HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, p. 139-175, maio/ago. 2009; numa outra perspectiva, mas apontando também para a incisividade do poder judiciário na condução da vida política Cf. DAHL, Robert A. Tomada de Decisões em uma democracia: a Suprema Corte como uma entidade formuladora de políticas nacionais. Revista de Direito Administrativo, n. 252, p. 25-43, set./dez. 2009 apud OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 269. 14 TASSINARI, op. cit., p. 33. 15 Ibid. 16 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 17 HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

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Assim, conforme advertência de Lenio Streck:

[...] é importante lembrar que é nesse contexto de afirmação das Constituições e do papel da jurisdição constitucional que teóricos dos mais variados campos das ciências sociais – principalmente dos setores ligados à sociologia, à ciência política e ao direito – começaram a tratar de fenômenos como a judicialização da política e o ativismo judicial. Ambos os temas passam pelo enfrentamento do problema da interpretação do direito e do tipo de argumento que pode, legitimamente, compor uma decisão judicial. (grifo do autor)18

É evidente que o constitucionalismo pós-segunda guerra fez modificar a atuação do Poder Judiciário. Noutras palavras, o direito se transformou. Conforme Tassinari:

Por muito tempo, havia, no âmbito das funções jurisdicionais, uma resistência à aplicação da Constituição, tornando a decisão judicial uma atividade mecânica, de pretensa reprodução legislativa. Esse imaginário se transformou no Brasil a partir da Constituição de 1988, que potencializou o papel do Judiciário, ao reforçar o compromisso do Direito com o cumprimento do que estava previsto no texto constitucional. Ou seja, é sabido que uma das marcas da passagem da concepção de Estado Social para a de Estado Democrático de Direito justamente se caracteriza pelo deslocamento do polo de tensão do Executivo para o Judiciário.19

Porém, ocorre que este maior chamamento do Poder Judiciário resultou confundido com uma atividade sem limites. Um poder superior. Em outras palavras, “[...] se a partir do Constitucionalismo Contemporâneo duas principais expressões passaram a estar diretamente vinculadas à atividade jurisdicional (judicialização da política e ativismo judicial), um dos problemas que surge é a inexistência de uma diferenciação.”20 Desse modo, em um ambiente cuja judicialização tem sido marca recorrente, “[...] a distinção entre ativismo e judicialização da política apresenta-se como indispensável, evitando que o Direito seja resumido tão somente a um produto das decisões judiciais, o que afeta as bases democráticas que fundam o Estado brasileiro.”21 Segundo Oliveira et al. “[...] é notório que durante muito tempo o pensamento jurídico-social brasileiro acabou por não dar tratamento crítico a essa questão.”22 Isso acarretou, nalguns casos, que se confundisse ativismo com judicialização e vice-versa. Muitos 18

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 5. 19 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 39. 20 Ibid., p. 39. 21 Ibid., p. 39. 22 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. Acesso em: 13 set. 2015. p. 270.

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autores chegaram a associar, por exemplo, a defesa de uma postura substancial dos tribunais na interpretação dos direitos fundamentais como uma profissão de fé no ativismo judicial (substancialismo, nessa perspectiva, passou a ser tratado como sinônimo de ativismo). Esse fator é extremamente intrigante na medida em que, autores que historicamente defendem essa postura substancial, como é o caso de Dworkin e Ferrajoli, formulam inúmeras restrições a atuações ativistas por parte do Poder Judiciário.23 Talvez o grande problema esteja na (falta de uma sólida) distinção entre judicialização e ativismo. De outro modo, o Judiciário não pode utilizar a judicialização como álibi à prática de ativismos. E o cerne da questão, por sua vez, perpassa, necessariamente, pela interpretação-aplicação do direito. Desse modo, a presente pesquisa pretende assentar a diferenciação entre judicialização da política e ativismo judicial, como fenômenos diametralmente opostos que são, de tal forma a demonstrar que a ausência de robustos critérios distintivos entre esses fenômenos conduz, sobremaneira, à formação de um imaginário calcado numa visão de supremacia judicial, que irá, conseguintemente, acarretar um estado de coisas onde a aposta no ativismo/protagonismo do Judiciário ou, de outro modo, na discricionariedade e no decisionismo, será a ordem do dia.

2 COLOCANDO O PROBLEMA: CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL – A REVOLUÇÃO COPERNICANA DO DIREITO CONSTITUCIONAL NA E DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: A RELAÇÃO ENTRE O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO E A ASCENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO O constitucionalismo moderno24, iniciado no final do século XVIII, passou por duas fases marcantes, a fase liberal, com o surgimento das primeiras constituições escritas, - a americana (1787) e a francesa (1791) – formais, rígidas, dotadas de supremacia e controle de constitucionalidade, fase assim caracterizada porque positivou direitos de liberdade e por 23

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OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. Acesso em: 13 set. 2015. Sobre a história do constitucionalismo, sugerimos a leitura das seguintes obras: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: il Mulino, 1999; MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad. Historia del constitucionalismo moderno. Traducción Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998.

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buscar conter a atuação de um Estado absolutista, vertical e impeditivo do exercício dos direitos do indivíduo; e a fase social, iniciada no século XX para atender às demandas sociais e as desigualdades agravadas com o fim da primeira guerra e com a crise do liberalismo, é marcada pelo Estado Social de Direito, sob as premissas da limitação da propriedade privada, da exaltação de direitos trabalhistas e um forte intervencionismo estatal na economia, sendo representado pelas constituições mexicana (1917) e de Weimar (Alemanha, 1919)25. Nestes estágios, é importante frisar, sempre imperou uma espécie de apego ao paradigma da legalidade (legalismo) ou, noutras palavras, uma tradição fortemente arraigada aos textos legais. Dito de outra forma, até então, a tradição jurídica sempre se pautou pela crença no sistema de regras, não conhecendo (ou concebendo), pois, uma Constituição dirigente ou compromissória, tampouco com força normativa para além da suficiência das regras. Contudo, como frisam Serraglio e Zambam, [...] a crença numa razão instrumental e nas promessas da modernidade não deram conta da realidade vivenciada pelas comunidades políticas dos Estados Europeus naquele período histórico, acarretando no fim do constitucionalismo moderno e no advento de um novo modelo de constitucionalismo com o segundo pós-guerra.26

Logo, a partir de então, vive-se uma nova era na história do constitucionalismo, em que as Constituições ou os respectivos conteúdos acabam, definitivamente, por invadir a legalidade. Daí que, a tal fenômeno, cuja pedra angular reside no segundo pós-guerra e no advento

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do

chamado

Estado

Democrático

de Direito,

se atribui

o

nome de

SERRAGLIO, Priscila Zilli; ZAMBAM, Neuro José. Hermenêutica e constitucionalismo contemporâneo. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 10, n. 2, p. 1025-1052, jan./abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2016. p. 5-6. 26 Ibid., p. 5.

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“neoconstitucionalismo” (como todos os problemas que tal termo tem acarretado)27, ou, conforme preferimos, Constitucionalismo Contemporâneo28. A noção de Estado de Direito está intimamente vinculada ao advento da Modernidade, como o resultado dos levantes iluministas havidos na transição do século XVIII para o século XIX, em especial na França (1789) e nos Estados Unidos da América (1776). O Estado de Direito é, assim, uma invenção, uma construção, um resultado histórico, uma conquista lenta e gradual, forjada por movimentos e indivíduos, setores sociais, que, diante de poderes despóticos locais ou estrangeiros, buscavam segurança para suas pessoas, seus bens e propriedades e que, por sua vez, ampliando tal espectro, exigiam garantias e proteção efetiva para outras manifestações da sua liberdade29. Noutras palavras, o Estado de Direito emerge umbilicalmente como uma manifestação jurídica da democracia liberal. Assim, na esteira das lições de Elías Díaz30, as principais características deste macro-modelo de Estado restariam plasmadas em quatro circunstâncias muito bem delineadas: a) império da lei (hoje, das Constituições, na esteira de uma legalidade constitucional); b) divisão de poderes entre legislativo, executivo e judiciário; c) fiscalização/controle da administração pública ou do 27

Vejamos a oportuna crítica de Clarissa Tassinari (2012, p. 38-39): “[...]. A identificação do neoconstitucionalismo com esses elementos acabou conduzindo a uma concepção de constitucionalismo que, especialmente no Brasil, gerou a defesa do ativismo judicial. Ou seja, a transformação do perfil da jurisdição, como responsável também pela concretização de direitos constitucionalmente assegurados, acabou sendo levada a extremos, a ponto de conceder espaço para uma atuação jurisdicional para além dos limites definidos pela Constituição e pela legislação democraticamente produzida. É por esse motivo que Lenio Streck passou a nomear o constitucionalismo do segundo pós-guerra de modo diferenciado: ‘Constitucionalismo Contemporâneo’. A utilização dessa expressão pelo autor objetiva realizar dois enfrentamentos: por um lado, refutar o(s) neoconstitucionalismo(s) (especialmente surgidos no âmbito do constitucionalismo espanhol); e, por outro, buscar a superação do positivismo jurídico. Trata-se, portanto, de uma nomenclatura que passou a ser utilizada a partir da quarta edição da obra ‘Verdade e Consenso’ (em 2011), em substituição à terminologia anteriormente empregada para tratar do constitucionalismo insurgente do segundo pós-guerra (neoconstitucionalismo), constituindo, portanto, um modo específico de abordagem, que, em linhas gerais, se opõe ao estabelecimento de uma relação de causalidade existente no trinômio moral-princípiosdiscricionariedade, própria das posturas neoconstitucionalistas, porque favorecem o ativismo judicial [...]”. 28 O termo “constitucionalismo contemporâneo” é extraído das obras de Lenio Streck como um contraponto aos chamados “neoconstitucionalismos”, movimentos que, apesar de se afigurarem como pós-positivistas, mantém-se, no entanto, arraigados ao paradigma epistemológico da subjetividade. Para melhor explicar o enredo, citemos, então, o próprio Streck, para quem “o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação – no plano teórico-interpretativo – do paleojuspositivismo (Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da Escola do Direito Livre, da Jurisprudência dos Interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta ultima, ou seja, da Jurisprudência dos Valores. Portanto, é possível dizer que, nos termos em que o neoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara contradição, isto é, se ele expressa um movimento teórico para lidar com um direito ‘novo’ (poder-se-ia dizer, um direito ‘pós-Auschwitz’ ou ‘pós-bélico’, como quer Mario Losano), fica sem sentido depositar todas as esperanças de realização desse direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalência, no campo jurídico, do paradigma epistemológico da filosofia da consciência)”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 36). 29 Sobre o tema e sobre as afirmativas acima, ver: DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 30 DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016.

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poder constituído; d) proteção dos direitos e liberdades fundamentais, requisito que constitui a verdadeira razão de ser do Estado de Direito. Logo, citando Streck e Morais,

Este Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, mais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para ele, assumir-se a apresentar-se sob uma roupagem institucional normativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de Direito representa e referenda um algo mais que irá se explicitar em seu conteúdo. Ou seja: não é apenas a forma jurídica que caracteriza o Estado, mas, e sobretudo, a ela agregam-se conteúdos.31

E mais, ainda na esteira dos mesmos autores, conclua-se:

O século XX irá demonstrar claramente esta assertiva. A dimensão de conteúdo do Estado de Direito aproxima os modelos alemão e francês de seu vizinho insular, o modelo britânico do rule of Law. Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob uma forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não está limitado apenas a uma concepção de ordem jurídica, mas, também, a um conjunto de direitos fundamentais próprios de uma determinada tradição. [...]. Ou, ainda, o Estado de Direito não é mais considerado somente como um dispositivo técnico de limitação de poder, resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas; é também uma concepção que funda liberdades públicas, de democracia, e o Estado de Direito não é mais considerado apenas como um dispositivo técnico de limitação de poder resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas. O Estado de Direito é, também, uma concepção de fundo das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica.32

Assim, nesse prisma, é que se pode(rá) dizer das três evoluções ou dos três grandes paradigmas que forjaram o curso da nossa história: o Estado Liberal, o Estado Social (Welfare State) e, por fim, o Estado Democrático de Direito. Noutras palavras, “[...] o Estado de Direito irá se apresentar ora como liberal em sentido estrito, ora como social e, por fim, como democrático”33, sendo que, cada um deles, “molda o Direito com seu conteúdo”. Considerando, pois, que a digressão amiúde acerca de cada um destes paradigmas não é o objeto deste artigo, tratemos, por oportuno, apenas deste último (o qual, de fato, mais nos interessa), ou seja, do paradigma do Estado Democrático de Direito34. Segundo o magistério de Streck e Morais, o Estado Democrático de Direito:

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STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 87. 32 Ibid., p. 88. 33 Ibid., p. 89. 34 Acerca da história do constitucionalismo antigo e moderno, ver: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: il Mulino, 1999; MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad. Historia del constitucionalismo moderno. Traducción Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998.

11 [...] desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como uma aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo. (grifo do autor)35

A configuração do Estado democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leve em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supere na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1° da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando36. O conteúdo da legalidade – princípio ao qual permanece vinculado – assume a forma de busca efetiva da concretização da igualdade, não pela generalidade do comando normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade37. O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os PRINCÍPIOS da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica38. E mais, a ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência39. Assim, segundo Streck “[...] o Estado Democrático de Direito supera as noções anteriores de Estado Liberal e Estado Social de Direito”40. E essa questão, ao final e ao cabo, é bem definida por Elías Díaz: o Estado Liberal de Direito é a institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes privilegiadas do Antigo Regime, em que se produz 35

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 92. 36 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. 37 STRECK; MORAIS, op. cit. 38 Cfe. SILVA, op. cit. apud STRECK; BOLZAN, op. cit., p. 93. (Com modificação: modificamos a palavra “valores” por “princípios”). 39 Ibid. 40 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 53.

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uma clara distinção entre o político e o econômico, com um Estado formalmente abstencionista, que deixa livres as forças econômicas, adotando uma posição de (mero) policial da sociedade civil que se considera mais beneficiada para o desenvolvimento do capitalismo em sua fase de acumulação inicial e que aproximadamente até o final da primeira grande guerra; já o Estado Social de Direito pode ser caracterizado como a institucionalização do capitalismo maduro, no qual o Estado abandona a sua postura abstencionista tomada inicialmente para proteger os interesses da vitoriosa classe burguesa, passando não somente a intervir nas relações econômicas da sociedade civil, como também se converte em fator decisivo nas fases de produção e distribuição de bens; finalmente, o Estado Democrático de Direito é o novo modelo que remete a um tipo de Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modo de produção capitalista e sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade no qual se possam implantar superiores níveis reais de igualdade e liberdades41. Assim, para Díaz, o qualificativo “democrático” vai muito além de uma simples reduplicação das exigências e valores do Estado Social de Direito e permite uma práxis política e uma atuação dos Poderes Públicos que, mantendo as exigências garantísticas e os direitos e liberdades fundamentais, sirva para uma modificação em profundidade da estrutura econômica e social e uma mudança no atual sistema de produção e distribuição dos bens42. Agora, então, na assertiva de Streck, o Estado Democrático de Direito é transformador da realidade. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o polo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se transformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia. Em suma, a noção de Estado Democrático de Direito está, pois,

[...] indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissociável que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tal como igualdade, justiça social e garantia dos direitos humanos fundamentais.43

41

DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: .apud STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 42 Ibid., p. 53-54. 43 Ibid., p. 54.

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A essa noção de Estado se acopla o conteúdo das Constituições, através do ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade44. Assim, a Constituição de um Estado democrático tem por missão:

[...] veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais. Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política.45

Por isso, conseguintemente, no Estado Democrático de Direito, “[...] a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigenteprincipiológico”46. E, desse modo, “[...] a noção de Estado Democrático de Direito – normatizada no art. 1º da Constituição do Brasil – demanda a existência de um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias assentadas no binômio democracia e direitos humanos fundamentais-sociais”47. Esse núcleo derivado do Estado Democrático de Direito faz parte, hoje, de um núcleo básico geral-universal que comporta elementos que poderiam confortar uma teoria (geral) da Constituição e do constitucionalismo do Ocidente. Já os demais substratos constitucionais aptos a confortar uma compreensão adequada do conceito derivam das especificidades regionais e da identidade nacional de cada Estado48. Dito de outro modo, afora o núcleo mínimo universal, que pode ser considerado comum a todos os países que adotaram formas democrático-constitucionais de governo, há um núcleo específico de cada Constituição, que, inexoravelmente, será diferenciado de Estado para Estado. É o que se pode denominar núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade. É nesse contexto que deve ser compreendido o plus normativo representado pelo Estado Democrático de Direito49. Daí, ao final e ao cabo, que a compreensão acerca do significado do constitucionalismo contemporâneo, entendido como o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, a toda evidência, “[...] implica a necessária compreensão da relação 44

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 45 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 90. 46 STRECK, op., cit., p. 54. 47 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. p. 236-237. 48 Ibid. 49 Ibid.

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existente entre Constituição e jurisdição constitucional.”50 Isto significa afirmar que, enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito51. É possível sustentar, dessa maneira, que no Estado Democrático de Direito, em face do caráter compromissório dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, “[...] ocorre, por vezes, um deslocamento do polo de tensão dos demais poderes de Estado em direção da justiça constitucional”52. Com efeito, se no Estado Liberal a tensão se focava na vontade geral (Legislativo) e no Estado Social no Executivo, pela necessidade de resolver problemas sociais a partir de políticas públicas, no Estado Democrático de Direito engendra-se uma nova formulação nessa relação, na medida em que aumentam sensivelmente as demandas pela ação do Poder Judiciário, a ponto de, no limite, por vezes, admitir-se que inércias do Poder Executivo e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser “supridas” pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Essa questão, entretanto, pode acender – como já dito – a luz amarela da democracia53. Porém, o alerta é necessário (e é aqui que queremos chegar): o Direito, neste estágio, deve sim ser visto como “[...] um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas.”54 Porém, no afã de realizar pretensas reivindicações, não se pode colocar em xeque a própria autonomia do direito e a democracia. Há que se ter, então, um paradigma hermenêutico condizente com o Estado Democrático de Direito ou com o constitucionalismo emergente deste paradigma, até mesmo para possibilitar, no âmbito de um Estado assim designado, uma interpretação que permita ao texto constitucional (e legal, desde que condizente com a CF) acontecer de maneira “fidedigna” ou, para outros, “autêntica”, valendo, enfim, dizer: sem discricionariedades e decisionismos. No modelo advindo do Estado Democrático de Direito, ocorreu “[...] certo deslocamento do centro das decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional”55. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, 50

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 37. 51 Ibid. 52 Ibid., p. 44. 53 Ibid. 54 Id. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 48. 55 Ibid., p. 64.

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no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo passam a poder – em determinadas circunstâncias – ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.56 Isso, enfim, a toda evidência, na dicção de Streck:

[...] exigirá um rigoroso controle das decisões judiciais e dos julgadores. Afinal, se é inexorável que alguém tenha que decidir e se é inexorável o crescimento das demandas por direitos (fundamentais-sociais, principalmente) e com isso aumente o poder da justiça constitucional, parece evidente que isso não pode vir a comprometer um dos pilares sustentadores do paradigma Constitucionalista: a democracia.57

Cada vez mais se torna necessário discutir as condições de possibilidade da validade do direito em um contexto em que os discursos predatórios dessa validade, advindos do campo da política, da economia e da moral, buscam fragilizá-la.58 Nesse sentido, penso que o direito deve ser preservado naquilo que é a sua principal conquista a partir do segundo pósguerra: o seu elevado grau de autonomia.59 Com efeito, o direito constitucional brasileiro contemporâneo traz como um das suas principais características a relevância atribuída ao Poder Judiciário. Cada vez mais, questões que anteriormente eram demandas políticas transformam-se em contendas judiciais, consolidando o fenômeno que ficou conhecido como judicialização da política. Na medida em que aumenta a interferência judicial, maior também deveria ser o comprometimento de juízes e tribunais em respeitar a tradição jurídica (legislação, Constituições e entendimentos jurisprudenciais anteriores) que, ao longo dos anos, possibilitou conquistas importantes.60 Dito de outro modo, o “deslocamento” – digamos assim, tectônico – da esfera de tensão deve ser visto com muita cautela, mormente porque não se pode esperar que a justiça constitucional (ou o Poder Judiciário) seja a solução (mágica) dos problemas sociais61. Assim, em definitivo, conforme advertência de Lenio Streck,

56

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 57 Ibid., p. 65. 58 Id. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 59 Ibid. 60 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. 61 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c.

16 [...] é importante lembrar que é nesse contexto de afirmação das Constituições e do papel da jurisdição constitucional que teóricos dos mais variados campos das ciências sociais – principalmente dos setores ligados à sociologia, à ciência política e ao direito – começaram a tratar de fenômenos como a judicialização da política e o ativismo judicial. Ambos os temas passam pelo enfrentamento do problema da interpretação do direito e do tipo de argumento que pode, legitimamente, compor uma decisão judicial. (grifo do autor)62

3 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL: CRITÉRIOS PARA UMA NECESSÁRIA (INEXORÁVEL) DISTINÇÃO 3.1 O fenômeno da judicialização da política63 como decorrente de fatores de natureza contingencial

De acordo com o escólio de Tassinari, é evidente que “[...] o novo modo de pensar o constitucionalismo a partir do século XX modificou a atuação do Poder Judiciário”64. Por muito tempo, havia, no âmbito das funções jurisdicionais, uma resistência à aplicação da Constituição, tornando a decisão judicial uma atividade mecânica, de pretensa reprodução legislativa. Esse imaginário se transformou no Brasil a partir da Constituição de 1988, que potencializou o papel do Judiciário, ao reforçar o compromisso do Direito com o cumprimento do que estava previsto no texto constitucional. Ou seja, é sabido que uma das marcas da passagem da concepção de Estado Social para a de Estado Democrático de Direito justamente se caracteriza pelo deslocamento do polo de tensão do Executivo para o Judiciário65. Essa realidade gera, por sua vez, um contexto no qual mais e mais matérias acabam por ser judicializadas, ou, noutras palavras, cresce a busca pela solução de conflitos ou insuficiências em face do Poder Judiciário. Com efeito, para Oliveira et. al., essa tendência judicializante que se verifica nas sociedades atuais (e não é diferente quanto ao contexto brasileiro) “[...] é típica das democracias de massa e tem seu paroxismo apresentado no contexto atual. Sua manifestação não obedece, diretamente, aos desejos do órgão judicante. Pelo contrário, ela se apresenta 62

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 5. 63 Como o intuito deste artigo não recai sobre o esgotamento do tema “judicialização das relações sociais”, remetemos o leitor à obra de: VIANNA , Luis Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan,1999; e/ou VIANNA, Luis Werneck et. al. Dezessete anos de judicialização da política. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n2/a02v19n2. Ainda: VIANNA, Luis Werneck. Não há limites para a judicialização da política. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-03/luiz-werneck-vianna-nao-limites-judicializacao-politica. 64 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 39. 65 Ibid.

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como fruto de contingências político-sociais”66. No âmbito político, fenômenos como o dirigismo constitucional e a inflação legislativa contribuem para aumentar o espaço de interferência (possível) do judiciário no âmbito de regulamentação projetado pelo texto da Constituição e do manancial legislativo, lato senso (Leis, Medidas Provisórias, Regulamentos, Portarias, etc.). Vale dizer, com Lenio Streck, há um aumento da dimensão hermenêutica do direito: quanto mais direitos são constitucionalizados ou mais leis são editadas para regulamentar toda uma plêiade de matérias, maior será o espaço – possível – de concreção dessa normatividade, atividade que se realiza no âmbito da jurisdição, no enfrentamento das questões concretas e das demandas apresentadas pela sociedade67. Por outro lado, as razões sociais para a aglutinação cada vez maior de matérias judicializadas, deve-se ao aumento da litigiosidade e de uma peculiaridade que pode ser observada, em maior ou menor medida, na maioria dos países (pelo menos no que tange aos países ocidentais). Esta particularidade diz respeito a um imaginário difuso que tende a enxergar no judiciário o lugar legítimo para se discutir questões que, antes, eram debatidas no âmbito político (legislativo e executivo). Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes públicos (que cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de corrupção), passando pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos fundamentais e desaguando no fato de que, de forma cada vez mais evidente, “[...] o juiz (melhor seria dizer: o judiciário – acrescentamos) passa a ser uma referência da ação política”68. Para que fique mais claro, devemos recorrer à obra de Lenio Streck: é por demais evidente, diz o autor, “[...] que se pode caracterizar a Constituição brasileira de 1988 como uma ‘Constituição social, dirigente e compromissória’, alinhando-se com as Constituições europeias do segundo pós-guerra”69. De qualquer maneira, a indagação seguinte é necessária: isso é suficiente? A Constituição é algo em si? E se basta? Ou deve ser efetivada dia após dia? Noutras palavras: os textos constitucionais não são “plenipotenciários, ‘produzindo’ eficacialidades”70. Parece que esse é o espaço que deve ser ocupado pelo Estado (e consequentemente pela Teoria do Estado, que deve estar lado a lado com a Teoria da

66

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 272. 67 Ibid. 68 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 41 apud Oliveira, op. cit., p. 273. 69 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 39. 70 Ibid., p. 39.

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Constituição). Não há Constituição sem Estado. Do mesmo modo, não há Teoria da Constituição sem Teoria do Estado71. Dito de outro modo, a eficácia das normas (princípios e regras) constitucionais:

[...] exige um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário (em especial da justiça constitucional) nesse complexo jogo de forças, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que, reiteradamente, (só) nega a aplicação de tais direitos, mormente no plano dos direitos prestacionais e dos direitos de liberdade.72

Sendo a Constituição brasileira, pois, uma Constituição social, dirigente e compromissória – conforme o conceito que a tradição (autêntica) nos legou -, é absolutamente possível afirmar que o seu conteúdo está voltado/dirigido para o resgate das promessas (incumpridas) da modernidade (“promessas” entendidas como “direitos insculpidos em textos jurídicos produzidos democraticamente”)73. Daí que o direito, enquanto legado da modernidade – até porque temos (formalmente) uma Constituição democrática -, deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas (igualdade, justiça social, respeito aos direitos fundamentais etc.)74. Parece-nos claro, de tudo, que temos uma Constituição dirigente e compromissória, uma Carta com plena densidade normativa e que, assim sendo, acaba por constituir-a-açãodo-Estado. Uma Lei Maior com um extenso rol de direitos e garantias individuais, direitos sociais e coletivos como é a nossa acaba, de igual maneira, por expandir a dimensão hermenêutica do Direito (Streck). Assim, parece-nos clarividente, pois bem, que uma Constituição rica em direitos fundamentais como a brasileira requer(erá), inexoravelmente, mecanismos que garantam a sua plena eficácia. Eis, logo, a relevância do Poder Judiciário ou da Jurisdição Constitucional nesta quadra da história. Vale dizer: se a Constituição é o fundamento (superior) de validade do jurídico e do político, a jurisdição constitucional é a sua condição de possibilidade. Porém, essa maior participação do judiciário no espectro social não deve ser confundida com uma supremacia judicial. Reside aí, portanto, o busílis da questão. Ocorre, de acordo com Tassinari, que:

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STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 72 Ibid., p. 39. 73 Ibid. 74 Ibid.

19 [...] essa maior participação do Judiciário resultou confundida com uma atividade ilimitada. Em outras palavras, se a partir do Constitucionalismo Contemporâneo duas principais expressões passaram a estar diretamente vinculadas à atividade jurisdicional (judicialização política e ativismo judicial), um dos problemas que surge é a inexistência de uma diferenciação. Em um contexto em que frequentemente o Judiciário é acionado para resolver conflitos, a distinção entre ativismo e judicialização da política apresenta-se como indispensável, evitando que o Direito seja resumido tão somente a um produto das decisões judiciais, o que afeta as bases democráticas que fundam o Estado brasileiro.75

Com efeito, o fenômeno da judicialização da política (da vida e/ou do social) decorre situações diversas, consubstanciando-se num fenômeno que independe dos desígnios dos membros do Poder Judiciário. Trata-se, pois, de um fenômeno que encontra em sua gênese fatores de natureza contingencial. Como fatores contingenciais deste fenômeno da judicialização da política, no sentido de uma maior interferência do Poder Judiciário na cena sócio-política, citamos: a) o constitucionalismo dirigente (constituição dirigente, compromissória e normativa, com extenso catálogo de direitos fundamentais individuais e sociais)76,77; b) a inflação legislativa; c) as crises políticas e insuficiências da política no sentido da implementação dos direitos sociais e coletivos; d) a crise da democracia, que tende a produzir um número cada vez maior e complexo de regulações; e) o maior acesso à justiça; f) a expansão da sociedade, que cada vez mais se torna marcada por uma profunda complexidade78. Trata-se, então, a judicialização da política (e do social), de um movimento que denota uma faceta do protagonismo judicial nosso de cada dia79, consubstanciando-se em um fenômeno “[...] migratório do poder decisório próprio do Legislativo para o Judiciário”80, cuja gênese encontra assento em fatores de natureza contingencial, como dito. Dentre eles, os acima. Aprofundando a temática, Tassinari sustenta que a judicialização da política deveria ser compreendida também como um fenômeno circunstancial, porquanto decorrente de um contexto de fortalecimento da jurisdição no pós-Segunda Guerra Mundial, e, ao mesmo tempo, contingencial, “[...] no sentido de que o Judiciário é chamado a intervir pela inércia de

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 39. 76 “Ontem os Códigos, hoje as Constituições!”, rememorando as célebres palavras de Paulo Bonavides. 77 Vide capítulo 2. 78 Para tanto, ver: OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 79 Lenio Streck considera o protagonismo judicial como gênero, enquanto a judicialização da política e o ativismo judicial são as respectivas espécies. 80 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 47.

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algum dos outros Poderes do Estado, apresentando-se, portanto, muito mais como fruto de uma conjuntura político-social”81. Nesse sentido, Valle82 acertadamente afirma que a constitucionalização do direito após a Segunda Guerra Mundial, a legitimação dos direitos humanos e as influências dos sistemas norte-americano e europeu são fatores que contribuíram fortemente para a concretização do fenômeno da judicialização do sistema político,

inclusive

o

brasileiro.

Tais

acontecimentos

provocaram

uma

maior

participação/interferência do Estado na sociedade, o que, em face da inércia dos demais Poderes, abriu espaço para a jurisdição, que veio a suprimir as lacunas deixadas pelos demais braços do Estado. Desse modo, o Judiciário passou a exercer um papel determinante na definição de certos padrões a serem respeitados. É praticável, portanto, como dizemos, identificar o fenômeno da judicialização da política como fruto do caráter dirigente e compromissório das Constituições, do surgimento e da consolidação dos Tribunais Constitucionais (na Europa e no Brasil), do aumento da litigiosidade e da inflação legislativa, do maior acesso à justiça e, ao fim e ao cabo, da crise da democracia. Desse modo, torna-se perfeitamente possível (e correto) identificar o fenômeno da judicialização como decorrente de situações diversas, como o caráter compromissório e dirigente das Constituições, o aumento da litigiosidade e do acesso à justiça, a inflação legislativa em determinadas matérias, a crise da democracia com um “sem-número” de regulações das mais diversas etc. Sem contar, ademais, neste percurso, certo descontentamento com a classe política, que acaba, por meio de um perigoso imaginário desencadeado pela opinião pública, por conferir ao Judiciário um papel protetor (ou pai) da sociedade contra as mazelas da política e dos políticos. Por tudo, sobremodo, resta evidenciado que a judicialização da política, como espécie do gênero protagonismo judicial, é um fenômeno que independe dos desígnios dos membros do Poder Judiciário. A judicialização, definitivamente, é um fenômeno que exsurge da relação entre os Poderes do Estado, representando um fenômeno político-jurídico gerado pelas democracias hodiernas. A judicialização de questões políticas e sociais não depende de um ato volitivo do poder judiciário, mas, sim,

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 41. 82 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 32.

21 [...] decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da própria crise da democracia, que tende a produzir um número gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc.) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões cujo deslinde envolve um ato de jurisdição constitucional.83

A judicialização da política, conseguintemente, não é um mal em si, mas algo de natureza contingencial e circunstancial, fruto de fatores múltiplos, e em especial no contexto das democracias modernas. De qualquer forma, não há como ignorar o alerta firmado por Anderson V. Teixeira, para quem o fenômeno da judicialização da política (e o do ativismo judicial) deve ser enfrentado, em última instância, sempre como a “[...] deslegitimação da Política em relação à sua tarefa essencial de buscar a realização dos valores determinados pela sociedade no cotidiano dessa mesma sociedade”84. De qualquer maneira, apesar dos pesares, o Judiciário não pode(ria) se substituir aos demais Poderes (!), sob pena de, paradoxalmente, ir de encontro àquilo que o constitui, a Constituição Federal, Lei das Leis da República brasileira.

3.2 O problema do ativismo judicial

Segundo Oliveira et al., embora sem mencionar expressamente, Antoine Garapon, no seu O Guardador de Promessas, “[...] intui de forma correta o elemento que marca a linha divisória que separa a judicialização do ativismo”85. Com efeito, depois de uma análise minuciosa do modo como a sociedade contemporânea encara temas como a política e a democracia, demonstrando como a democracia contemporânea acabou por produzir esse espaço de judicialização86, Garapon assevera o seguinte: “O ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”87. Já de acordo com o jusfilósofo gaúcho Lenio Luiz Streck, para quem a questão do ativismo no Brasil é extremamente mal compreendida, um juiz ou tribunal pratica ativismo:

83

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 302. 84 TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 38. 85 OLIVEIRA, op. cit., p. 283. 86 Ibid. 87 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 54 apud OLIVEIRA, op. cit., p. 283.

22 [...] quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados; já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do polo de tensão dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça constitucional) [...].88

Eis aí, desde logo, a principal diferenciação entre judicialização e ativismo, ou seja: enquanto a judicialização é um problema das democracias contemporâneas, e tem por gênese uma pecha contingencial/circunstancial, o ativismo judicial é um fenômeno marcado por fatores de caráter comportamental, dependendo de um ato volitivo (ou de vontade) do órgão judicante. Noutras palavras, o ativismo ocorre quando o juiz ou o Tribunal decide por argumentos de moral ou de política e afins, de onde exsurge que o Direito (ou a sua autonomia) acaba sendo substituído pelas convicções pessoais do julgador. Não é distinto, por oportuno, o escólio de Oliveira et al., segundo o qual “[...] a judicialização é um fenômeno político gerado pelas democracias contemporâneas; ao passo que o ativismo é um problema interpretativo, um capítulo da teoria do direito (e da Constituição).” 89 Portanto, judicialização e ativismo são espécies do gênero protagonismo judicial. Porém, enquanto aquela é notabilizada por fatores de natureza contingencial/circunstancial, este se caracteriza por um problema derivado de fatores de caráter comportamental.

3.2.1 A gênese do ativismo judicial nos Estados Unidos da América: a experiência norteamericana

A gênese do ativismo judicial, pode-se dizer, encontra raízes na experiência norteamericana. Com efeito, encontraremos nos Estados Unidos, certamente, “[...] a origem do ativismo judicial”90. Nesse caminho, impende referir que a discussão sobre o ativismo tribunalício

na

experiência

estadunidense

atravessa

os

séculos,

remetendo-nos,

especificamente, ao início do século XIX, em especial ao ano de 1803 e ao famoso caso

88

89

90

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 589. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2011. Anais... Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2015. p. 271. TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 38.

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Marbury vs. Madison91. Nesta oportunidade, acabou consagrada, pelo juiz John Marshall, a doutrina norte-americana da judicial review (controle de constitucionalidade – difuso ou in concreto, no caso)92. Dá-se início, assim, às discussões acerca do judicial activism naqueles recantos93,94. Entrementes95, um século se passa (!). 1905. Estados Unidos da América. Volta à tona – e com força - a questão do ativismo judicial em solo norte-americano96. Mais precisamente, “[...] na decisão Lochner v. New York a Suprema Corte daquele país entendeu que o princípio de liberdade contratual estava implícito na noção de devido processo legal (due process of law) consagrada pela seção 1 da 14ª Emenda à Constituição dos EUA”97. No caso em tela, a Corte declarou inconstitucional uma lei do Estado de Nova York que estabelecia 60 horas 91

“[...] 1803. Estados Unidos da América. Na discussão sobre o empossamento de William Marbury como juiz de paz, de acordo com a designação feita pelo então presidente John Adams às vésperas de deixar seu cargo, a Suprema Corte, por decisão do Chief Justice Marshall, afirma que, embora a nomeação de Marbury fosse irrevogável, o caso não poderia ser julgado pela Corte. É declarada inconstitucional, portanto, a seção 13 do Judiciary Act – que atribuía competência originária à Suprema Corte para tanto -, sob o fundamento de que tal disposição legislativa ampliava sua atuação para além do que havia sido previsto constitucionalmente, no Article III. Com isso, por uma decisão judicial no julgamento de um caso, surgiu o controle de constitucionalidade (judicial review) norte-americano. Refira-se: a Constituição não conferia expressamente este poder de revisão dos tribunais sobre a legislação do Congresso. Dá-se início, assim, às discussões sobre ativismo judicial em solo norte-americano”. (TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 23). 92 É o mesmo juiz Marshall que institui, no caso McCulock v.s. Maryland, a tradição judicial do self restraint (“autocomedimento”). 93 Embora tenhamos assentado este fato histórico como a gênese das discussões sobre o ativismo judicial em solo norte-americano, não podemos ignorar que criação judicial do direito e controle de constitucionalidade não se confundem. O exercício do judicial review não é, necessariamente, sinônimo de ativismo. A questão será: como ele será exercido? Com argumentos de princípio? Ou com base na vontade dos juízes e Tribunais? Eis a questão-chave. Qual a razão, então, de este caso ter dado azo ao início destas discussões nos EUA? Exerceu-se pela vez primeira, com inspiração na doutrina sufragada em solo britânico por Sir. Eduard Coke no século XVII, o controle (difuso) de constitucionalidade das leis e atos administrativos em solo estadunidense. Ocorre, no entanto, que o controle de constitucionalidade – revisão judicial de leis do Congresso e atos administrativos -, não encontrava previsão expressa na Constituição de 1787. 94 “[...]. De modo que, percebe-se o ativismo judicial estadunidense está imbricado desde o início do controle de constitucionalidade, porquanto, concernente aos estudos, e não ao assentimento dos norte-americanos, não é incontroversa a legitimidade da Suprema Corte, neste caso, de exercer uma função não atribuída expressamente a ela pelo poder constituinte originário que, aliás, continua até a atualidade regulamentada por lei ordinária nos EUA. De qualquer forma, graças ao Chief of Justice John Marshall, melhor representante da Era Tradicional de revisão judicial norte-americana, a Suprema Corte galgou a importância que John Jay dissera impossível. [...]”. (OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2011. Anais... Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2015. p. 286). 95 O controle de constitucionalidade, no âmbito da Suprema Corte dos EUA, é uma discussão que atravessa os séculos. Tanto é assim, que o segundo case marcado pela judicial review (McCulock v.s. Maryland) só despontaria novamente 50 anos após o caso Marbury vs. Madison. 96 Procuramos, aqui, apenas trazer os fatos mais relevantes à consolidação do judicial activism nos EUA. Para uma análise e leitura completa sobre a realidade norte-americana, indicamos: TASSINARI, op. cit., p. 65102; OLIVEIRA, op., cit., p. 285-293. 97 TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 38.

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como limite para a jornada de trabalho semanal dos padeiros, alegando ser “irrazoável”, “desnecessária e arbitrária” tal limitação à liberdade individual de contratar. Além de representar aquilo que veio a ser chamado de “Era Lochner” (1897–1937), na qual as intervenções estatais no domínio econômico foram continuamente invalidadas pela Suprema Corte dos EUA, pode ser considerado também um dos primeiros casos de flagrante ativismo judicial exercido por aquela Corte98. O caso Lochner v. New York é considerado um marco na história da Suprema Corte e uma de suas mais notáveis atuações. A decisão da Corte norteamericana apresenta uma dupla face: interfere na política legislativa do Estado de Nova Iorque, ao impedir que ele legisle para estabelecer limites às horas laborais, mas o faz pela via de uma postura conservadora, de não intervenção na esfera privada dos indivíduos99,100. Não obstante o acima exposto, é apenas em 1947 que a expressão “ativismo judicial” (judicial activism) é finalmente cunhada pela vez primeira. Com efeito, “[...] foi com o historiador Arthur Schlesinger Jr., em uma matéria da revista Fortune intitulada The Supreme Court: 1947, que o termo judicial activism entrou no léxico não apenas jurídico, mas sobretudo político e popular[...]” (grifo do autor)101. Referindo à capacidade de desempenhar um papel afirmativo na promoção do bem-estar social, Schlesinger chamou de “ativistas judiciais” (judicial activists) os juízes Hugo Black, Willian O. Douglas, Frank Murphy e Wiley Rutledge. Já os juízes Felix Frankfurter, Harold Burton e Robert H. Jackson foram rotulados de “campeões do autocomedimento” (champions of self-restraint), por entenderem que o Judiciário não deve ir além do seu espaço limitado dentro do sistema estadunidense. Em uma posição intermediária, o presidente da Suprema Corte naquele ano, Frederick M.Vinson,

98

TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. 99 TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. 100 Por relevante, também nesse contexto, poderíamos citar casos subsequentes: em Muller v. Oregon, 208 U.S. 412 (1908), no qual se discutiu um estatuto que proibia o contrato de mulheres em lavanderias com jornada laboral superior a dez horas por dia. Em Bunting v. Oregon, 243, U.S. 426 (1917) impôs-se jornada de trabalho igual para ambos os sexos. No caso German Alliance Insurance Co. v. Lewis, 233 U.S. 389 (1914), tratou-se da regulação de preços quanto aos seguros contra incêndios. Em Block v. Hirsh, 256 U.S. 135 (1921) do preço dos aluguéis. Já em Nebbia v. New York, 291 U.S. 502 (1934) a Supreme Court trouxe parâmetros para que agências reguladoras pudessem controlar o preço de alguns produtos, em especial o leite, em decorrência da difícil situação econômica de fazendeiros no pós-primeira guerra; etc. No interregno, de igual maneira, sem prejuízos de outros casos relevantes, não há como ignorar as diversas negativas da Suprema Corte norte-americana, por claras tendências liberais e, logo, de não interferência no domínio econômico, em chancelar as medidas tomadas pelo Presidente Roosevelt naquilo que ficou conhecido como New Deal (297 U.S. 1 (1936); 298 U.S. 238 (1936); 298 U.S. 513 (1936); 298 U.S. 587 (1936).). Em 1937 o governo do presidente Frank D. Roosevelt obtém vitória. 101 TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 39.

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e o juiz Stanley F. Reed não seriam plenamente caracterizáveis como desse ou daquele lado102. Uma marca nesta Era Moderna103 foi a Corte de Warren (1953 a 1969). A Corte se envolveu em vários casos famosos, os quais abarcam assuntos como, por exemplo, segregação racial, reordenação de distritos federais, liberdade de expressão e casos criminais. A Corte de Warren tinha tendências liberais, prova disso é o caso Brown contra Board of Education, de 1954, no qual foi declarada inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas do sul; e no caso Gideon contra Wainright, de 1963104, que acabou por impor ao Estado o custeio da defesa judicial daqueles cidadãos sem condições para com ela arcar. Portanto, tal Corte de Warren é um exemplo de ativismo judicial norte-americano, que por influência de seu Chefe de Justiça, estimulou positivas mudanças sociais, sendo chamada de revolução judicial. Essa postura liberal pela Corte Warren não agradou ao Presidente Nixon, que foi um ferrenho crítico desse poder exacerbado de que dispunha a Suprema Corte. Por isso, depois da aposentadoria do Chief of Justice Warren, o presidente Nixon nomeou Warren Burger, que tinha uma postura mais conservadora, na expectativa de frear a intervenção da Suprema Corte. Contudo, Burger não teve força suficiente para mudar a orientação da Suprema Corte. Então, Corte Burger (1969 a 1986) trilhou um ativismo judicial parecido com o da Corte anterior. Por exemplo, um de seus casos mais conhecidos foi Roe contra Wade, em 1973, tendo reconhecido que a interrupção da gravidez não poderia ser indistintamente criminalizada, fundamentando sua decisão no direito de privacidade. Após 1986, com o término da Corte de Burger, não houve mudança significativa, sendo, portanto, o modo de interpretação prevalente ainda é o da Era Moderna105. Nota-se, portanto, tal e qual a assertiva de Teixeira, que:

102

Ibid. A história da Suprema Corte dos EUA é dividida em algumas Eras, consideradas aqui como paradigmas de interpretação, senão vejamos: a) Era Tradicional (1787-1890); b) Era de Transição (1890-1937); e c) Era Moderna (1937 em diante). Sobre o tema, ver: WOLFE, Christopher: The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. 104 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 292. 105 Ibid. 103

26 [...] durante a década de 1950 a jurisdição ordinária passou a desempenhar papel significativo na defesa dos direitos civis para as minorias sociais, sobretudo minorias raciais. O expressivo crescimento de programas federais, durante o período do New Deal, demandava uma atenção específica para o impacto das suas ações nos contextos concretos das realidades locais, tornando o Judiciário espaço derradeiro no processo de garantia dos direitos das minorias. Surgiram então as ações afirmativas como instrumento político de combate à desigualdade social decorrente de fatores como sexo, raça, etnia, religião ou qualquer outra forma de discriminação.106

Já no governo do presidente Lyndon B. Johnson, não podemos ignorar

[...] o Civil Rights Act, de 1964, representou o primeiro passo de um programa social que naquele ano e no ano seguinte faria entrar em vigor uma série de leis cujos dois objetivos principais eram: auxiliar pessoas de baixa renda por meio de programas de incentivo à educação e de proteção à saúde, e estimular a economia para que novas vagas fossem abertas a pessoas que historicamente se encontravam excluídas, ou marginalizadas, dentro do sistema educacional e do mercado de trabalho. (grifo do autor)107

Foi nesse contexto que o ativismo judicial ganhou fôlego em solo estadunidense e passou a representar a defesa em juízo de ações que politicamente não se mostravam suficientes108. Qual o cerne da questão, pois bem? Todas ou maior parte das decisões exemplificativamente citadas, desde os primórdios, pode-se dizer, e no curso das diversas “eras” (tradicional, de transição e moderna) inatas a Supreme Court, ficaram a cargo das vontades, seja da lei ou do legislador (o intérprete, diga-se, nesses casos seria o encarregado de “desvelar” essas “vontades”), seja do intérprete-aplicador, e dos interesses ou convicções políticas do próprio. E assim o é até hoje, bastando atentar para a verdadeira batalha que há entre Democratas e Republicanos quando das nomeações de juízes à Suprema Corte local. O debate entre “conservadores” e “progressistas”, logo, acompanha a tradição estadunidense mesmo neste século XXI. E bem assim a questão do ativismo judicial. Logo, com Oliveira et al., pode-se concluir que:

[...] as mudanças ocorridas nos modos de controle de constitucionalidade norteamericano ocorreram de forma gradativa e não linear, o que não poderia ser diferente, pois de algum modo o crescimento da judicial review e o desenvolvimento de suas técnicas interpretativas se confunde em muitos aspectos com a própria história do direito constitucional estadunidense.109 106

TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 40. 107 TEIXEIRA, Anderson Vischinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre a racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 37-58, jan./jun. 2012. p. 40. 108 Ibid. 109 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 292.

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Contudo, e isto é demasiado importante, o que fica com tal escorço histórico ao falarmos deste tema/problema, “[...] é a impossibilidade de se tratar do fenômeno do ativismo judicial – diretamente ligado ao problema da interpretação - de um modo monolítico, desconsiderando as vicissitudes históricas que giram em torno do exercício constante da judicial review” (grifo do autor)110. No caso dos EUA, assim sendo, não podemos ignorar a incorporação da tradição britânica da common law111, os respectivos fatores contingenciais e, sobretudo, aquela escola do pensamento jurídico que ficou conhecida como realismo jurídico112,113 norte-americano.

3.2.2 O ativismo judicial e a experiência alemã: o Bundesverfassungsgericht e a jurisprudência dos valores

Segundo Trindade e Morais, Bernhard Schlink, no romance O Leitor,

[...] retratou, primorosamente, as profundas cicatrizes que a Segunda Guerra Mundial deixou na Alemanha, cujos efeitos produzidos – entre eles a inauguração da crise do positivismo jurídico – resultaram na transformação do modo de compreender, interpretar e aplicar o direito.114

Com efeito, 110

Ibid., p. 292-293. HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. Boston: Little Brown, and Co., 1881; OLIVEIRA, Ana Carolina Borges de. Diferenças e semelhas entre os sistemas da Civil Law e da Common Law. Constituição, Economia e Desenvolvimento: revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, v. 6, n. 10, p. 43-68, jan./jun. 2014. 112 Em suma, rememorando as célebres (e críticas) palavras do Prof. Lenio Streck, “o direito é aquilo que os tribunais dizem que é”. Tanto é assim, que o próprio autor costuma chamar o realismo jurídico estadunidense de “positivismo fático”. Veja a crítica em: STRECK, Lenio Luiz. O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional”. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: . 113 Tal “escola” é objeto de crítica por parte de vários autores, a saber: TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995; SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On law, politics & judicialization. New York: Oxford University Press, 2002; HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, p. 139-175, maio/ago. 2009; TRIBE, Laurence H. The invisible constitution. New York: Oxford University Press, 2008; WOLFE, Christopher: The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994; ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 2002; DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002; DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003; DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 114 TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016. p. 144. 111

28 [...] o problema se inicia, logo após o final da guerra, em 1946, quando Gustav Radbruch reformula seu pensamento, em razão da experiência sem precedentes proporcionada pelo regime nazista, e publica um polêmico artigo – intitulado Arbitrariedad legal y derecho supralegal (RADBRUCH, 1962) –, através do qual busca a superação do positivismo, sob o argumento de que tal matriz teórica é incapaz de tratar da questão da validade por causa da separação que estabelece entre direito e moral. Este pequeno artigo – ainda pouco trabalhado em terrae brasilis, mas estudado em todo o mundo em face do grande impacto que provoca na teoria do direito contemporâneo –, no qual Radbruch reitera que o direito deve ser entendido como uma ordem ou instituição cujo sentido é servir à justiça, pode ser dividido em duas partes: na primeira, o autor comenta as consequências da legalidade do regime nazista, descrevendo casos que exemplificam esta problemática; na segunda, o autor concentra-se na superação do positivismo jurídico – que não consegue explicar a validade das leis –, apresentando sua conhecida fórmula injustiça extrema não é direito – segundo a qual a maior parte do direito produzido pelo regime nazista não mereceria sequer a qualidade de direito –, aplicada pelos tribunais alemães do segundo pós-guerra e adotada, mais recentemente, por Robert Alexy. (grifo do autor).115,116

Tais mudanças implicam o surgimento de novas propostas jusfilosóficas dispostas a reconhecer o fracasso do direito – o que se verificara, lamentavelmente, durante os regimes totalitários – e, então, repensar o seu sentido e vínculos com o agir humano, levando em conta a necessidade de se afirmar sua autonomia, sobretudo em relação à política, para além dos procedimentos lógico-formais que tentavam garantir as especificidades do direito117. Com efeito, o regime nazista acabou por demonstrar que o direito poderia se transmudar em mera racionalidade instrumental, quedando-se aos mandos e desmandos da política, e servindo, assim, aos desideratos do regime, por piores que fossem os objetivos perquiridos. O direito havia fracassado, pois. Com o término da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha se deparou com a outorga de uma nova Constituição (a Constituição de Bonn – 1949), que foi, porém, outorgada pelos aliados, sem a participação e oitiva do povo alemão. Nos anos que sucederam a consagração da novel Lei Fundamental, o povo alemão se viu imerso em um sistema de legalidade extremamente fechada. E o pior, erguida não por ele, mas pelos aliados nos momentos posteriores à vitória na Segunda Guerra. Dessa maneira, houve um grande labor desempenhado para legitimar uma Lei que não havia sido construída a 115

RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad legal y derecho supralegal. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962. p. 144145 apud TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norteamericana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016. 116 Sobre a teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy, ver: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001; ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993; ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. In: ______. Derecho e razón práctica. Tradução Manuel Atienza. México, D.F.: Fontamara, 1993; ALEXY, Robert. Justicia como corrección. In: ______. Robert Alexy y la Filosofía del Derecho. Tradução Ana Inés Haquín. México. Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. 117 TRINDADE; MORAIS, op. cit..

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partir do povo alemão. Por sua vez, nesse cenário, partindo-se da premissa de um direito distinto da lei, eis que surgiu a referência a valores, os quais acabaram representando simplesmente um mecanismo de abertura de uma legalidade demasiadamente restrita. Surge a jurisprudência dos valores alemã. Nesse caso, a Jurisprudência dos Valores serviu, então, como diz Streck,

[...] para equalizar a tensão produzida depois da outorga da Grundgesetz pelos aliados, em 1949. Com efeito, nos anos que sucederam à consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma Carta que não tinha sido constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da lex, ou seja, a invocação de argumentos fora da estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de ‘abertura’ de uma legalidade extremamente fechada. (grifo do autor).118

Noutras palavras, conseguintemente,

[...] a jurisprudência dos valores é o movimento impulsionado a partir da atividade exercida pelo tribunal constitucional que retoma o protagonismo judicial no cenário alemão, cujo objetivo era romper com o modelo jurídico vigente a época do nazismo e, paralelamente, legitimar as decisões tomadas com base na Constituição outorgada, em 1949, pelos aliados.119

Neste ínterim a Jurisprudência dos Valores propõe uma nova metodologia para o direito, em que a Lei Fundamental alemã aparece como o instituto que deve permear todas as relações jurídicas, sendo que o caso concreto, momento de efetivação do direito, deve ser decidido levando-a em consideração. Para tanto o juiz deve se pautar pelos valores estruturados na constituição, posto que estes são a expressão da vontade política da sociedade, o que permite uma decisão que não mais se justifica subjetivamente, mas intersubjetivamente, por ter seus limites previamente estabelecidos de maneira não autoritária120. Ocorre, tal e qual a advertência Trindade e Morais, que:

118

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 517. 119 TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016. p. 145. 120 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016.

30 [...] ao fundamentar suas decisões, o tribunal constitucional alemão passou a construir argumentos fundados em princípios axiológicos (valores materiais), buscando estabelecer um direito que ultrapassava os limites da lei. Para isto, entretanto, foi preciso criar mecanismos – como, por exemplo, as cláusulas gerais e os enunciados abertos, além de inúmeros princípios – que permitissem justificar, concretamente, suas decisões.121

Logo, a crítica de Oliveira et al. se afigura como oportuna, segundo a qual o modo como a Jurisprudência dos Valores aborda a questão não se mostra eficiente para evitar o ativismo judicial122. Muito pelo contrário. Ao buscar fundamentos para a decisão em valores tidos como absolutos, os quais constituiriam os princípios norteadores da aplicação do direito, é inevitável uma apropriação subjetiva destes valores por parte do intérprete. Tais valores serão condicionados, em sua explicitação, pela historicidade do juiz, uma vez que este os interpreta para compreendê-los. A simples suposição de que tais valores existem e servem de ponto de partida para a construção da ordem jurídica, sem que haja a devida institucionalização destes no direito, quando evocados para legitimar uma decisão, esta será sempre calcada em argumentos de valores, os quais assumem maior importância que os argumentos de direito, como se estes valores, que no final serão a expressão arbitrária do julgador, estivessem acima da política que institui o direito. Desta maneira, as decisões não serão propriamente jurídicas, mas políticas em sentido estrito123. O direito, ou a sua autonomia, enfim, dá lugar a decisões pautadas em argumentos de moral e de política, calcados, sobremaneira, no arbítrio do intérprete. No entanto, para a plena compreensão da jurisprudência dos valores, também chamada e conhecida como jurisprudência dos tribunais, é inexorável que atentemos para os dois momentos característicos que notabilizaram tal construção. Daí que, segundo Trindade,

121

TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016. p. 146. 122 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 123 Ibid..

31 [...] no primeiro, há uma espécie de restauração do jusnaturalismo – fundada em uma ontologia de valores, nos termos propostos por Max Scheler e Nicolai Hartmann, ou em uma filosofia transcendental dos valores, conforme sustentava Gustav Radbruch, adotando a linha neokantista da Escola de Baden –, que afirmava a existência de conteúdo axiológico ou ético-material de natureza suprapositiva como fundamento constitutivo do direito (LARENZ, 1997, pp. 163-182; KAUFAMNN e HASSEMER, 2002, pp. 124-126; CASTANHEIRA NEVES, 2003, pp. 37-42). (grifo nosso)124

Quanto ao segundo, por sua vez,

[...] ocorre a construção de mecanismos e procedimentos – e, aqui, surge a ponderação de princípios (Abwägung), mais tarde aperfeiçoada por Alexy – capazes de justificar racionalmente as decisões e, assim, afastar a crítica do relativismo, tendo em vista que sua finalidade é, precisamente, minimizar a discricionariedade da atividade jurisdicional (TOMAZ DE OLIVEIRA, 2008, pp. 60-62). (grifo do autor).125

A crítica não tarda a chegar, contudo. E pela pena de autores de diversos matizes. Para Habermas126, por exemplo, apenas direitos podem ser invocados em um jogo argumentativo. Segundo o jurista alemão: “Um julgamento orientado por princípios precisa decidir qual pretensão e qual ação em um dado conflito é correta - e não como ponderar interesses ou relacionar valores”

127

. Não menos robusta é a crítica de Friedrich Muller128,

considerado como o pai do pós-positivismo, segundo a qual os direitos humanos não são valores, são normas, e, quando a Constituição os positiva, se tornam direitos vigentes. E, neste ponto em específico, de mais a mais, também há que se dar razão a Carl Schmitt. Em texto intitulado La tirania de los valores, Schmitt acaba por fazer a seguinte e oportuna indagação: “Los valores no son, sino valen. ¿En qué se basa su validez? Se puede

124

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução José Lamego. 3. ed. Lisboa: Gulbenkian, 1997; KAUFAMNN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do Direito e à teoria do Direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002; CASTANHEIRA NEVES, António. A crise actual da filosofia do direito no contexto global da crise da filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2003 apud TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016.p. 147. 125 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008 apud TRINDADE, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Ativismo judicial: as experiências norte-americana, alemã e brasileira. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 53, p. 137-164, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2016. p. 147. 126 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. I. p. 259-261. 127 Ibid., p. 259-261. 128 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. Tradução Peter Naumann. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. Tradução Dimitri Dimoulis et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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basear – exclusivamente - en ponencias, y tenemos que preguntar: ¿Quién es el que estabelece los valores?”129. Consequentemente, a assertiva é de Schmitt,

Si algo tiene valor y cuánto, si algo es valor y en qué grado se puede determinar solamente desde un supuesto punto de vista o criterio particular. La filosofía de valores es una filosofía de puntos? la ética de valores, una ética de puntes. No es casualidad que palabras como punto de vista, punto de partida, punto visual y punto de mira aparezcan continuamente en su vocabulario. No son ni ideas ni categorías, ni tampoco principios o premisas. Son simplemente puntos. [...] Puntos de vista, puntos de partida y puntos visuales no tienen consistencia por sí mismos. Su función y su sentido, por el contrario, implican que se cambien según cambia la situación.130

Como efeito, a partir dessa perspectiva, é que, dizendo da tirania dos valores, o alemão acaba por afirmar, enfim, que quem diz valor quer fazer valer e impor.

As virtudes se exercem, as normas se aplicam, as ordens se cumprem; mas os valores se estabelecem e se impõem. Quem afirma sua validez tem de fazê-los valer. Quem diz que valem, sem que ninguém os faça valer, quer enganar. Se algo tem valor, e quanto, se algo é valor, e em que grau, apenas se pode determinar isoladamente, desde um ponto de vista pressuposto ou de um critério particular.131

Eis, aí, pois, o caminho para a discricionariedade. Discricionariedade, por sua vez, nada mais é do que arbitrariedade. E esta, ou seja, a arbitrariedade, enfim, não se coaduna, definitivamente, com o ideário democrático. Logo, é importante ter em mente, desde já, que princípios não são valores. E não o são, pois valores são contingenciais, isto é, cada um tem os seus (!). Em seguida, por oportuno, Schmitt cita Hartmann, tudo para observar que os valores sempre valem para alguém, aparecendo, desgraçadamente, o “reverso fatal” (Schmitt): também valem sempre contra alguém. Mais grave é que, além de não se ter logrado superar a teoria subjetiva dos valores, segundo a lógica do valor prevalece a seguinte norma: o preço supremo não é demasiado para o valor supremo e cumpre que seja pago, justificando a submissão do valor maior ou do sem valor. Aí se manifesta a “tirania dos valores”, a respeito da qual diz Hartmann: “Cada valor, se se apoderou de uma pessoa, tende a erigir-se em tirano único de todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que não lhe sejam diametralmente opostos.”132 A apreensão do significado da expressão tirania dos valores dános - a observação é de Carl Schmitt - “[...] a chave para compreendermos que toda teoria dos

129

SCHMITT, Carl. La tiranía de los valores. Buenos Aires: Hydra. Introducción de Dotti, 2009. p. 69. Ibid., p. 71. 131 Ibid., p. 71. 132 Ibid., p. 74. 130

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valores nada mais faz senão atiçar e intensificar a luta antiga e eterna entre convicções e interesses”133,134. Quanto ao Brasil, não é diferente, onde a crítica também encontra assento. Assim, por exemplo, Guedes alerta para o fato de que “[...] as constituições democráticas tendem a não consentir com qualquer ordem ou hierarquia de valores entre bens que veiculam e protegem como direitos fundamentais, sobre o que devemos acentuada atenção” 135. Para Guedes136, a aceitação de uma hierarquia de valores obscurece a distinção juridicamente essencial entre criação e aplicação de normas jurídicas — no caso, constitucionais — e corrompe qualquer relevância que, histórica e politicamente, se vem retirando da distinção entre poder constituinte e poderes constituídos. Assim, é inadmissível a uma ordem constitucional de perfil democrático, que se quer realizar como governo racional de normas predispostas, e não como uma consolidação arbitrária de desígnios da vontade de poderosos, consentir com a presença de alguém — pessoa ou instituição — que tenha poderes para coercitivamente estabelecer tal ordem hierárquica, com o que se aceitaria a presença de um indivíduo ou instituição que se sobreporia à própria Constituição, pois, do ponto de vista lógico, aquele que pudesse dizer, de forma absoluta e abstrata, o que, dentro da Constituição, tem mais ou menos valor normativo estaria sendo posto ou se pondo acima da própria Constituição137. Oliveira, por seu turno, afirma que:

Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade gradual, numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. Tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é definir o que pode ser discutido e expresso como digno de valores, pois só haveria democracia, nesse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham, ou tenham de compartilhar, de modo comunitarista, os mesmos supostos axiológicos, uma mesma concepção de vida e de mundo.138

Já Eros Roberto Grau é cirúrgico ao dizer que os juízes, especialmente os chamados juízes constitucionais, lançando mão intensamente deste argumento de que princípios são

133

SCHMITT, Carl. La tiranía de los valores. Buenos Aires: Hydra. Introducción de Dotti, 2009. p. 73-74. A esse respeito, ver também voto-vista de Eros Grau, proferido nos autos da ADPF 101. Disponível em: . 135 GUEDES, Néviton. A Constituição contra a tirania dos valores. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 2 maio 2013. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-mai-02/constituicao-poder-constituicao-tiraniavalores>. Acesso em: 17 jun. 2016. online. 136 Ibid. 137 Ibid. 138 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, política e filosofia: contribuição para uma teoria discursiva da constituição no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2007. p. 119. 134

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valores, acabam por alçar-se em verdadeiro “voo cego”, de onde as decisões, ao final e ao cabo, seriam tomadas com lastro nas escolhas dos mesmos juízes. E essas escolhas, diz Grau139, são sempre perigosas (justamente por serem escolhas!). Segundo o autor, no mais, o que há em tudo de mais grave, pois, é que, no entanto, a certeza jurídica se torna sempre relativa,

[...] dado que a interpretação do direito é uma prudência, uma única interpretação correta sendo inviável, a norma sendo produzida pelo intérprete. Mas a vinculação do intérprete ao texto --- o que excluiria a discricionariedade judicial --- instala no sistema um horizonte de relativa certeza jurídica que nitidamente se esvai quando as opções do juiz entre princípios são praticadas à margem do sistema. Então a previsibilidade e calculabilidade dos comportamentos sociais tornam-se inviáveis e a racionalidade jurídica desaparece.140

Conclui, definitivamente, Eros Grau, não podendo ter sido mais claro, verbis: “A submissão de todos nós a essa tirania é tanto mais grave quanto se perceba que os juristas --em especial os juízes -- - quando operam a ponderação entre princípios fazem-no, repito, para impor os seus valores, no exercício de pura discricionariedade”141. Por oportuno, no mais, conforme percuciente análise de Lenio Streck, é equivocado pensar que os princípios constitucionais representam a positivação dos valores142. Se os princípios vieram para robustecer o Direito, sua transformação em “valores” provoca, exatamente, o enfraquecimento dessa autonomia, diz Streck143. Já quanto à ponderação de valores alexyana, devemos recorrer novamente à crítica de Eros Grau, segundo a qual a ponderação de princípios é operada discricionariamente, à margem da interpretação-aplicação do direito, e conduz, sobremaneira, à incerteza jurídica144. E conclui, o mesmo autor, tudo ao dizer que princípios de direito não podem, enquanto princípios, ser ponderados entre si. Dizendo-o de outro modo, “[...] a ponderação entre eles esteriliza o caráter jurídico-normativo que os definia como norma jurídica. Curiosamente, os princípios são normas, mas, quando em conflito uns com os outros, deixam de sê-lo, funcionando então como valores”145.

139

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 140 Ibid., p. 285 et seq. 141 Ibid., p. 285 et seq. 142 STRECK, Lenio Luiz. Direito não pode ser corrigido por valores morais. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 02 abr. 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 143 Ibid. 144 GRAU, op. cit. 145 Ibid., p. 283-290.

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Sobre a teoria de Alexy e a sua ponderação de valores, calcada que é no conhecido critério (sic) da proporcionalidade, Lenio Streck não é menos cirúrgico, ao contrário. Segundo Streck, originalmente Alexy desenvolve uma teoria jurídica orientada ao reconhecimento de elementos axiológicos no texto constitucional alemão, “[...] uma vez que assume a tese professada no Tribunal Constitucional alemão de que a Constituição seria uma ordem concreta de valores”146. Alexy não diz que a ponderação que o Tribunal Alemão faz seria irracional, mas que ela seria passível de racionalidade pela teoria que ele propôs. Assim, pode-se dizer que Alexy é um defensor da possibilidade de fundamentação racional argumentativa das decisões que ponderam (embora ele não critique as decisões do Tribunal). Para tanto, elabora o seu conceito e validade do Direito a partir da conjugação dos elementos da legalidade conforme o ordenamento jurídico, da eficácia social e, ao final, de uma correção material que chamará de pretensão de correção147. Assim, o ponto central sobre a relação entre Direito e Moral em Alexy se dá a partir da incorporação de direitos fundamentais ao sistema jurídico, uma vez que se trata de enunciados com uma vagueza semântica maior que a das meras regras jurídicas. Desenvolve, assim, uma teoria dos direitos fundamentais que tem como uma de suas características centrais a noção de que nos casos em que o litígio jurídico pode ser resolvido pela mera previsão de uma regra, aplica-se a técnica da subsunção (casos fáceis); no entanto, devido à abertura semântica das normas de direitos fundamentais, o autor acrescentará a noção de que estes se tratam de princípios com natureza de mandamentos de otimização, tendo em vista que podem entrar em colisão e, para resolver o conflito, deve o intérprete recorrer a uma ponderação (nos casos difíceis)148. O sopesamento (ponderação), através do que Alexy chamará de máxima da proporcionalidade, será o modo que o autor encontrará para resolver os conflitos jurídicos em que há colisão de princípios [atenção, juristas de Pindorama: é colisão de princípios e não, genericamente, de NORMAS] sendo um procedimento composto por três etapas: a adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito [atenção juristas pindoramenses: há um PROCEDIMENTO composto por três etapas]. Enquanto as duas primeiras se encarregam de esclarecer as possibilidades fáticas, a última será responsável pela solução das possibilidades jurídicas do conflito, recebendo do autor o nome de lei do sopesamento (ou da ponderação) que tem a seguinte redação: “[...]

146

STRECK, Lenio Luiz. Ponderação de normas no novo CPC? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 8 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. online. 147 Ibid. 148 Ibid.

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quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”149. Em suma, é a teoria. O problema? A solução da “ponderação” partiria da discricionariedade do intérprete. E é aí que Streck150, ao fim, vai denunciar o descompasso paradigmático no apelo à discricionariedade ou ao subjetivismo dessa ponderação de valores (em uma mescla da jurisprudência dos valores e da teoria da argumentação jurídica), no sentido de que ela simplesmente denuncia o apego ao paradigma epistemológico da filosofia da consciência. Mas não só, dirá Streck:

Os sinais de presença da filosofia da consciência no procedimentalismo de Alexy são muitos. O mais evidente é, sem dúvida, a insistência em um modelo lógicosubsuntivo para casos fáceis e a utilização de versão renovada dos cânones de interpretação. O modelo subsuntivo pressupõe um sentido previamente dado da premissa maior e uma visão meramente descritiva da premissa menor, sob pena de inviabilizar o silogismo. A alternativa para fugir desse modelo é uma alternativa hermenêutica, quando se supera a dicotomia questões de fato/questões de direito, ainda adotada por Alexy, e se parte para um novo modelo que coloca o texto como um evento, e a norma como o resultado da compreensão do texto e do evento a partir da diferença ontológica. A manutenção da subsunção, por pressupor um dado previamente dado, é, portanto, metafísica. Em outras palavras, manter a subsunção, mesmo que para ‘resolver’ casos fáceis, é incorrer no esquema sujeito-objeto. E nisso reside a raiz do problema.151

Daí a pergunta (e resposta – não há respostas antes das perguntas, pois) derradeira de Lenio Streck152: qual é a diferença desses critérios (ou fórmulas) dos velhos métodos de interpretação, cujo calcanhar de aquiles – na feliz expressão de Eros Grau e Friedrich Muller – é(ra) exatamente não ter um critério para difundir qual o melhor critério, que, em outras palavras, comparei, em textos anteriores, com a “ausência/impossibilidade” de um Grundmethode? Portanto, nesse ponto há que se dar razão a Habermas e nos adeptos de sua teoria, sobre as suas críticas ao “uso discricionário da ponderação” e à “ponderação discricionária” (aliás, a própria ponderação passa a ser, por si só, instrumento para o “livre exercício” da relação sujeito-objeto). A ponderação sempre leva a uma abstração em face do caso, circunstância que “reabre” para o juiz a perspectiva de argumentação sobre “o caráter fundamental ou não do direito”, já reconhecido desde o início como fundamental, e assim

149

STRECK, Lenio Luiz. Ponderação de normas no novo CPC? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 8 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. online. 150 NO extado sentido, ver: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. 151 Id. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 238. 152 Ibid.

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acaba tratando esses direitos como se fossem “valores negociáveis”, com o que se perde a força normativa da Constituição, que é substituída pelo “discurso adjudicador” da teoria da argumentação jurídica153. De tudo, pois, que foi exposto, nota-se que a mera suposição de que tais valores existem e servem de ponto de partida para a construção da ordem jurídica (Rafael Tomaz de Oliveira)154, e que os mesmos valores poderiam ser “ponderados entre si”, onde a decisão, inexoravelmente, seria proveniente de uma verdadeira “escolha” – eivada de subjetivismo - do intérprete-aplicador, denuncia o ativismo da jurisprudência dos valores alemã (sem contar o descompasso paradigmático existente, como magistralmente denuncia Lenio Streck)155. E o ativismo da jurisprudência dos valores, segundo Oliveira et al., é justamente o:

[...] resultado de um processo interpretativo que se estrutura de um modo que não consegue romper com a metafísica transcendental, na medida em que a busca de efetivação da constituição, ao pressupor para esta um fundamento último, possibilita decisões que extrapolam o próprio sentido da constituição.156

Logo, pode-se que concluir que, enquanto o ativismo estadunidense “[...] mostra-se atrelado ao problema de como aplicar a constituição, que acaba por se colmatar à tradição do ‘common law’ em que os juízes buscam, no caso concreto, dar a melhor interpretação para a Constituição”157, no caso alemão, “[...] a melhor interpretação para a constituição é designada antes mesmo de sua aplicação, num processo metódico”158,159. Ambos são exemplos de ativismo judicial, no entanto, e denotam descompassos paradigmáticos clarividentes. Quanto à realidade brasileira, contudo, há especificidades. Vejamos a seguir, para encerrar.

153

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. 154 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 155 STRECK, op cit. 156 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 296. 157 Ibid., p. 296. 158 Ibid. 159 Sobre o sistema judiciário norte-americano e alemão (brasileiro e italiano, igualmente), sugerimos a leitura da obra de TEIXEIRA, Anderson V. et al. Jurisdição Constitucional Comparada (em coautoria com Stefano Maria Cicconetti). Florianópolis: Conceito, 2010.

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3.2.3 A crítica ao ativismo judicial à brasileira: e de como o constitucionalismo emergente do segundo pós-guerra não pode ser enfrentado como sinônimo de supremacia judicial

Uma Constituição nova exige novos modos de análise; no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma e uma nova teoria hermenêutica160. Em 1988 o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: de que modo poderíamos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição jurídica estava assentada num modelo liberal-individualista (que opera com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões161. Do mesmo modo,

[...] não havia uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico. Essas carências jogaram os juristas brasileiros nos braços das teorias alienígenas. Consequentemente, as recepções dessas teorias foram realizadas, no mais das vezes, de modo acrítico, sendo a aposta no protagonismo dos juízes o ponto comum da maior parte das teorias.162

Logo, para Streck,

[...] as recepções das teorias voluntaristas – em especial as que colocam a Constituição como ‘ordem concreta de valores’ (portanto, com filiação na jurisprudência dos valores e com tendências à incorporação das teses do realismo jurídico), ultrapassaram esse ‘modelo de aplicação do Direito’.163

Na verdade ocorreu uma troca: do modelo que apostava na estrutura do Direito (objetivismo), passou-se a adotar uma postura de perfil subjetivista, que deu - e dá - azo não somente ao decisionismo stricto sensu, mas também ao instrumentalismo (processo civil) e ao inquisitivismo (processo penal)164. Enfrentar, então, esse “novo” protagonismo, na dicção de Streck, “será o papel de uma hermenêutica preocupada com a democracia” (grifo nosso)165.

160

No mesmo sentido: STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011. 161 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 162 Ibid., p. 83-84. 163 Ibid., p. 83-84. 164 Ibid. 165 Ibid, p. 84.

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Daí, por oportuno, que as raízes do ativismo judicial à brasileira encontram o ponto de estofo em uma verdadeira mixagem teórica166, representando, pois, uma espécie de “institucionalização – desinstitucionalizada - da discricionariedade” a partir da recepção equivocada de teorias estrangeiras, as quais foram erguidas em tempo e contexto distintos, à luz das respectivas realidades locais. Ante a falta, teorias alienígenas acabaram importadas no pós-Constituição de 1988, e assim o foram de maneira errônea, como sói ocorrer na tradição jurídica brasileira, diga-se de passagem. A respectiva recepção, por seu turno, relegou-nos, ao fim e ao cabo, uma verdadeira ode ao protagonismo judicial. Logo, destas teorias, citamos, com Lenio Streck, as seguintes: jurisprudência dos valores alemã, teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy (a ponderação alexyana) e realismo jurídico norte-americano (ativismo estadunidense). Vejamos, então, cada uma dessas recepções equivocadas; “[...] pelo modo como são trabalhadas no Brasil, a Jurisprudência dos Valores e a teoria da argumentação de Robert Alexy serão analisadas em conjunto”167. Comecemos por estas. Com efeito, no direito alemão, a Jurisprudência dos Valores serviu para “[...] equalizar a tensão produzida depois da outorga da Grundgesetz pelos aliados, em 1949[...]” (grifo do autor)168. Ou seja:

[...] nos anos que sucederam à consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma Carta que não tinha sido constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da lex, ou seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de ‘abertura’ de uma legalidade extremamente fechada. (grifo do autor)169

Nesse sentido, Lenio Streck170 alerta para fato de que a tese da Jurisprudência dos Valores é, até hoje, de certo modo, preponderante naquele Tribunal, circunstância que tem provocado historicamente fortes críticas no plano da teoria constitucional ao modus interventivo do tribunal alemão. Além disso, diz Streck, não há como descurar que “[...] a referida tensão efetivamente teve, a partir do segundo pós-guerra, papel fundamental na formatação da teoria constitucional contemporânea, por exemplo, em Portugal, na Espanha e no Brasil”171. 166

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. 167 Ibid, p. 47. 168 Ibid., p. 48. 169 Ibid. 170 Ibid. 171 Ibid., p. 48.

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Entretanto, este é o ponto, “[...] os juristas brasileiros não atentaram para as distintas realidades (Brasil e Alemanha)”172. No caso específico do Brasil, onde, historicamente, até mesmo a legalidade burguesa tem sido difícil de “emplacar”, a grande luta tem sido de estabelecer condições para o fortalecimento de um espaço democrático de edificação da legalidade, plasmado no texto constitucional173. Da Jurisprudência dos Valores os teóricos brasileiros tomaram emprestada a tese fundante – a de que a Constituição é uma ordem concreta de valores, sendo papel dos intérpretes o de encontrar e relevar esses interesses ou valores. O modo mais específico de implementação dessa recepção foi a teoria da argumentação de Robert Alexy (segunda recepção equivocada), que, entretanto, recebeu uma leitura superficial por parcela considerável da doutrina e dos tribunais174,175. Daí que, da jurisprudência dos valores,

[...] os teóricos brasileiros (por todos, lembremos Luis Roberto Barroso [...], Ana Paula de Barcellos [...] e Daniel Sarmento [...] tomaram emprestado a tese principal, repetida ad nauseam, de que ‘a Constituição é uma ordem concreta de valores’, sendo o papel dos intérpretes o de encontrar e revelar esses interesses ou valores (por vezes, ocorre uma mixagem dessa postura com as teses da Interessenjurisprudenz, de Philipp Heck, que, aliás, foi quem cunhou a expressão Abwägung – sopesamento). (grifo do autor)176

Como dito, a forma mais específica dessa implantação “[...] foi a teoria da argumentação de Robert Alexy, que, entretanto, recebeu uma leitura superficial por parcela considerável da doutrina e dos Tribunais de terrae brasilis”177. O Direito Constitucional brasileiro, nessa medida,

[...] foi tomado pelas teorias da argumentação jurídica, sendo raro encontrar constitucionalistas que não se rendam à distinção (semântico) estrutural regraprincípio e à ponderação (Alexy). A partir desse equívoco, são desenvolvidas/seguidas diversas teorias/teses por vezes incompatíveis entre si.178 172

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 48. 173 Ibid. 174 Ibid. 175 Isso fica claro na obra daquele que talvez seja o maior expoente do neoconstitucionalismo à brasileira, e entusiasta, portanto, da jurisprudência dos valores e da teoria da argumentação de matiz alexyana, ou seja, Luis Roberto Barroso, senão vejamos: “[...] a colisão entre princípios constitucionais decorre, como assinalado acima, do pluralismo, da diversidade de valores e de interesses que se abrigam no documento dialético e compromissório que é a Constituição. Como estudado, não existe hierarquia em abstrato entre tais princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto”. (Cf. BARROSO, Luis Roberto. Novos Paradigmas e Categorias da Interpretação Constitucional apud STRECK, op. cit., p. 48-49). 176 Id. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 10. 177 Ibid., p. 10. 178 Ibid., p. 10.

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Na maior parte das vezes, os adeptos da ponderação não levam em conta a relevante circunstância de que é impossível – sim, insista-se, é realmente impossível – fazer uma ponderação que resolva diretamente o caso. A ponderação – nos termos propalados por seu criador, Robert Alexy – não é (insista-se, efetivamente não é) uma operação em que se colocam os dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que “pesa mais” (sic), algo do tipo “[...] entre dois princípios que colidem, o intérprete escolhe um” (sic). Nesse sentido é preciso fazer justiça a Alexy: sua tese sobre a ponderação não envolve essa “escolha direta”179. Veja-se, logo: as teorias matrizes têm, em si, descompassos evidentes, em especial, o fato de se considerarem pós-positivistas, quando, em verdade, não são (a aposta na discricionariedade ratio final denuncia o apego ao juspositivismo de cariz semântica, de onde exsurge apenas e tão somente a superação do positivismo primitivo, e nada mais; mesmo assim, de qualquer maneira, parcela considerável da doutrina e dos tribunais brasileiros conseguiu ainda operar a respectiva recepção de maneira equivocada, tudo ao desconsiderar, primeiramente, o contexto no qual as teorias foram erguidas e, de mais a mais, os seus meandros; daí, por exemplo, que, se a teoria da argumentação de Robert Alexy foi desenvolvida para “racionalizar” a jurisprudência dos valores do Tribunal Constitucional alemão, aqui no Brasil ela foi recepcionada de maneira evidentemente errônea (superficial e acrítica), relegando-nos, pois, uma o oposto, ou seja, uma clara “irracionalidade” (sic), tudo a partir do momento em que se acredita que a ponderação poderia se dar de maneira direta e representar uma verdadeira escolha do intérprete). Nesse contexto, Lenio Streck vai dizer também, à luz deste conjunto de incongruências, que, no Brasil, no uso (absolutamente) descriterioso da teoria alexyana, transformaram a ponderação em um “princípio”. Com efeito, diz Streck, se, na formatação proposta por Alexy,

[...] a ponderação conduz à formação de uma regra – que será aplicada ao caso por subsunção –, os tribunais brasileiros utilizam esse conceito como se fosse um enunciado performativo, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos. Esse tratamento equivocado – que enxerga a ponderação como um princípio – fica evidente a partir de uma simples pesquisa nos tribunais brasileiros.180

De se consignar, por fim, que esse uso da ponderação como um “verdadeiro” princípio decorre de um fenômeno muito peculiar à realidade brasileira, o panprincipiologismo. Em 179

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 10. 180 Ibid., p. 12.

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linhas gerais, o panprincipiologismo é um subproduto do “neoconstitucionalismo” à brasileira, que acaba por fragilizar as efetivas conquistas que formaram o caldo de cultura que possibilitou a consagração da Constituição brasileira de 1988. Esse panprincipiologismo faz com que – a pretexto de se estar aplicando princípios constitucionais – haja uma proliferação incontrolada de enunciados (standards) para resolver determinados problemas concretos, muitas vezes ao alvedrio da própria legalidade constitucional181. Um exemplo ilustrativo desse tipo de mixagem teórica (Teoria da Argumentação e Jurisprudência dos Valores) pode ser encontrado no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424, em 17/09/2003, que ficou conhecido como caso Ellwanger. Parte do Tribunal entendeu que se estava diante de uma colisão de princípios constitucionais. Princípios estes que, por sua vez, assentavam-se em “valores” conflitantes entre si. Nesse sentido, o Min. Carlos Ayres Britto, após ver no caso uma “contradição entre princípios jurídicos”, com “modelos normativoprincipiológicos em estado de fricção e que chegam a descambar para uma recíproca excludência”, entendeu, por juízo de “proporcionalidade”, que os fatos atribuídos a Ellwanger eram penalmente atípicos, frente à liberdade de expressão. O Min. Marco Aurélio de Mello igualmente colocou a liberdade de expressão e a vedação ao racismo na balança, e, ao fazer a ponderação dos valores em jogo (inclusive com citação expressa de Alexy e referência ao caso Lüth, julgado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha em 1958 e tido como pioneiro na ponderação de princípios), concluiu pela primazia da liberdade. De todo modo, é preciso anotar que, muito embora tenha sido objeto de inúmeros debates e tenha rendido uma longa discussão na Suprema Corte (o acórdão tem não menos que 488 laudas!), a solução da controvérsia era, na verdade, constrangedoramente simples. Não havia nada a ponderar, por uma simples razão: a liberdade de manifestação de pensamento simplesmente não abarca a liberdade de manifestar um pensamento racista. Simples, pois. E racismo é crime. Imprescritível. Nesse sentido, o voto do Min. Celso de Mello. Em linha similar, o Min. Gilmar Mendes lembrou que as sociedades democráticas não conferem direitos de expressão aos discursos de ódio (hate speeches), pela singela razão de que tais discursos comprometem a própria democracia. Como já foi adiantado, o HC acabou negado. Contudo, os votos vencidos, embasados ou em argumentos de política ou em juízos de ponderação, bem demonstram os perigos que se corre com a teoria da argumentação alexyana à brasileira (que desconsidera os procedimentos formais estabelecidos por Alexy e termina por mesclar a ponderação alexyana com o modelo interpretativo próprio da chamada jurisprudência dos 181

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 12-13.

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valores)182. Dito de outro modo: o recurso ao “relativismo ponderativo” obscurece o valor da tradição como guia da interpretação, isto é, a ponderação acaba sendo uma porta aberta à discricionariedade183. Também, por oportuno, dentre tantos outros exemplos, não há como ignorar decisão do Supremo Tribunal Federal lavrada nos autos da ADPF n°. 144, na qual fica por demais evidente o problema dessa “ponderação de valores” ao estilo tupiniquim. Com efeito, a pretensão da ADPF proposta pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) era de que fossem levados em conta os antecedentes para a aferição dos critérios de (in)elegibilidade dos candidatos às próximas eleições municipais (2008). Isto é, candidatos com condenações, mesmo que não transitadas em julgado, ou com processos por improbidade em curso, por terem “ficha suja”, não poderiam receber o “sinal verde” da justiça eleitoral184. O mote da pretensão deduzida na ação constitucional recaiu, pois, sobre o princípio da moralidade eleitoral, considerada a vida pregressa do candidato, previsto no mencionado §9° do art. 14 da Lei Maior da República. Quando do julgamento, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, assentou que o §9° do art. 14 da CF seria um dispositivo constitucional de “eficácia limitada”, não “autoaplicável”, portanto, julgando improcedente a ADPF em comento. Tal entendimento acabou sufragado em razão do texto inerente ao preceito constitucional em questão, cuja previsão, desde a emenda de revisão (EC 04/94), sempre foi clara ao assentar que: “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação [...]”185. Mas o STF, na ocasião, ainda foi além. Na mesma assentada “[...] o STF decidiu que o princípio da presunção de inocência não dava azo à outra interpretação que não a de que o critério final era, efetivamente, o trânsito em julgado de sentença condenatória”186. Note-se, assim, conforme bem anotou Lenio Streck, que:

[...] não obstante os argumentos de política (e de moral) utilizados pela Associação dos Magistrados Brasileiros, com apoio na expressiva maioria da imprensa, o STF esgrimiu decisão contrária, exatamente com fundamento em argumentos de princípio (presunção de inocência).187

Na verdade - a assertiva é de Streck:

182

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 183 Ibid. 184 Id. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. 185 Ibid., p. 592. 186 Ibid., p. 592. 187 Ibid., p. 592.

44 [...] a tese da AMB faria com que a sociedade ficasse a reboque de argumentações de caráter arbitrário ou casuístico, de índole subjetivista do Poder Judiciário, que, assim, propiciariam uma multiplicidade de respostas (multiplicidade aleatória em sede de equiparação indiferente de respostas, a título de indisfarçada e repudiável legitimidade ‘autêntica’ da autoridade que as proferiu, alheia, portanto, ao conteúdo da decisão, de adequabilidade decidenda ao caso aferível em termos de razoabilidade interpretativa, suscetível, pois, de obtenção e verificação da respectiva resposta correta), gerando a inexorável quebra não só da garantia principiológica da presunção da inocência, como também da garantia da igualdade.188

Não obstante a resposta correta (constitucionalmente adequada) atribuída à problemática, o decisório não foi pacífico. Ao votar divergindo do relator, o Min. Ayres Britto argumentou que o princípio da presunção de inocência não seria absoluto (?), e que os direitos políticos decorrem da soberania popular e do Estado Democrático de Direito (quais direitos não?), não se prestando, segundo o ministro, a servir exclusivamente aos seus titulares, mas sim ao "bem comum" (o que é isto, o bem comum?). Nessa linha de argumentação, concluiu o voto divergente que aqueles que pretendem concorrer ao cargo eletivo devem ter considerada a sua “vida pregressa” e o respeito à “noção de moralidade” e que, nesse ínterim, caberia ao Poder Judiciário, por ocasião do registro de candidatura, realizar este crivo de moralidade (sic). E a decisão, por sua vez, assim restou assentada a partir de uma “ponderação de valores” entre presunção de inocência e moralidade eleitoral. O resultado da ponderação, por seu turno, claramente sobreveio de uma verdadeira escolha do intérprete, e nada mais. De maneira discricionária, portanto. Compondo, por sua vez, a divergência representada por dois votos, o Min. Joaquim Barbosa, ao julgar parcialmente procedente a ADPF, afirmou que eventual sentença condenatória confirmada por uma segunda instância seria suficiente a atrair a pecha da inelegibilidade (mesmo que a lei de então subordinasse a situação ao trânsito em julgado de uma sentença condenatória), concluindo que o exercício político por pessoas ímprobas repercute de maneira negativa no próprio sistema representativo como um todo. No entanto, a quaestio juris é(ra) a seguinte: quem seriam as tais pessoas ímprobas? Ou que fatores que poderiam vir a taxar alguém de ímprobo? Frente ao quê? Em quais circunstâncias? Isso, entretanto, não se disse. Sabemos bem, no entanto, de onde viria tudo isso: ao seguirmos essa tese, mais uma vez, o exercício de um direito fundamental de primeira grandeza, ou seja, o direito de elegibilidade, estaria subordinado às compreensões de bem ou de bom do intérprete que, substituindo-se ao ordenamento jurídico, decidiria a sorte de determinadas candidaturas, seguindo, para tanto, a sua plenipotenciária consciência. Com isso, ao largo da legislação democrática e constitucionalmente construída, estaria o judiciário eleitoral, em ataques 188

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 593.

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frontais ao pacto democrático, “apto” ou “legitimado” a retirar da corrida eleitoral candidatos que não viessem a carregar “vida pregressa|” compatível com o “princípio” (?) da moralidade. Tudo, evidentemente, segundo a arbitrária visão do órgão judicante. Isso, por seu turno, o STF bem soube obstar. Se assim fosse, com lastro em argumentos de matriz metajurídica (valorativo-axiológicos), estariam os juízes e Tribunais eleitorais procedendo de modo apartado da legalidade (constitucional e legal propriamente dita), relegando, ademais, o eleitorado brasileiro a patamar secundário, de mero coadjuvante ou até mesmo de espectador. Ao invés de um Estado democrático, um Estado Juristocrático seria efetivado e, portanto, a afronta direta ao princípio democrático seria irremediável. Com o pretenso desiderato de proteger o regime democrático,

flagrantemente o

estariam

diminuindo. E isto,

definitivamente, conforme o alerta de Lenio Streck, deveria ser especialmente claro em um país como o Brasil, “em que há não muito tempo um Estado ditatorial cassava direitos políticos de cidadãos com base em um ‘ato institucional’”189. Acertou, portanto, o STF, em maioria, tudo ao fazer valer a Constituição Federal, e o direito em si, contra investidas apoiadas na ideia de subjetivos critérios de moralidade que, ao fim e ao cabo, relegariam à discricionariedade do intérprete (ao arbítrio, por certo) a sorte do exercício de direitos fundamentais, tais e quais o pleno exercício dos direitos políticos, manifestado passivamente pelo democrático direito de elegibilidade. Quanto aos votos vencidos, contudo, a “saída” para as respectivas conclusões foi a dita “ponderação”, cuja solução para o caso, levada a efeito fosse, representaria a queda da principiologia constitucional em prol da arbitrariedade alheia. Resta claro, portanto, que a “ponderação”, proveniente que é de um mix teorético entre jurisprudência dos valores e teoria da argumentação, acaba sendo um perigoso portal para a prática de discricionariedades. Assim, com apoio na doutrina de Streck190, não há como ignorar que toda essa discussão repousa raízes no debate/enfrentamento do Constitucionalismo (Contemporâneo) – considerado como tal o constitucionalismo originado do pós-segunda guerra - com o (velho) positivismo (que possui várias facetas). Com efeito, diz o autor que:

189

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 594. 190 Id. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b.

46 [...] o positivismo se ergueu a partir da crença de que o mundo poderia ser abarcado pela linguagem e que a regra, no plano do direito, ‘abarcaria essa ‘suficiência de mundo’. Ou seja, a ideia seria de que a regra suportaria, à exaustão, a descrição da realidade. A partir disso, começam os problemas do positivismo primitivo. A razão (objetivismo) começa a dar lugar à vontade do intérprete (subjetivismo).191

Veja-se o longo caminho percorrido desde o positivismo primitivo até as correntes que surgiram após a segunda guerra mundial. Nesse sentido, é razoável apontar para a jurisprudência dos valores e o positivismo normativista kelseniano como as matrizes que colocaram na vontade o locus do fundamentum. Na insuficiência daquela parte da linguagem para fornecer as respostas, chama-se à colação a subjetividade do intérprete, que, de forma solipsista, levanta o véu que “encobre” a resposta que a regra não pôde dar. Os problemas decorrentes da equivocada interpretação do dualismo kelseniano todos conhecemos, culminando com o errôneo entendimento de que a interpretação como ato de vontade - a ser feito pelo juiz - representaria uma “faceta crítica” da Teoria do Direito. Já os “efeitos colaterais” do voluntarismo da jurisprudência dos valores podem ser vistos nas teses conhecidas como “neoconstitucionalistas”, onde a ponderação de valores se transformou no canal de legitimação/institucionalização de uma ampla discricionariedade. Em caminho similar, temos a utilização tabula rasa do termo ativismo judicial na doutrina e jurisprudência brasileiras, com inspiração central no realismo jurídico norteamericano – e esta é a terceira recepção equivocada de que fala Streck192. Note-se: nos Estados Unidos – e esta é/foi a terceira recepção equivocada –, a discussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Não se pode esquecer, por outro lado, que ativismo judicial nos Estados Unidos foi feito às avessas num primeiro momento (de modo que não se pode considerar que o ativismo seja sempre algo positivo). O típico caso de um ativismo às avessas foi a postura da Suprema Corte estadunidense com relação ao new deal, que, aferrada aos postulados de um liberalismo econômico do tipo laissez faire, barrava, por inconstitucionalidade, as medidas intervencionistas estabelecidas pelo governo Roosevelt193. As atitudes intervencionistas a favor dos direitos humanos fundamentais ocorrem em um contexto que dependia muito mais da ação individual de uma maioria estabelecida do que pelo resultado de um imaginário propriamente ativista. O caso da Corte Warren, por exemplo, foi resultante da concepção 191

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 169-170. 192 Id. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 193 WOLFE, Christopher: The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994.

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pessoal de certo número de juízes e não o resultado de um sentimento constitucional acerca desta problemática194. Já no Brasil, como diz Streck195, “[...] esse tema toma ares dramáticos [...]”. Basta lembrar, nesse sentido,

[...] que ativismo judicial aparece como um princípio no anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo (art. 2º, letra i). Por certo, tal projeto de lei não foi ainda analisado pelo Poder Legislativo, mas a simples menção ao ativismo judicial como um ‘princípio norteador’ (sic) do processo coletivo brasileiro já dá conta do estado de profundo impasse teórico que impera na doutrina.196

Um bom exemplo do tipo corriqueiro de ativismo judicial que permeia o imaginário dos juristas brasileiros pode ser extraído da questão levada a julgamento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 178. Com efeito, tal medida foi interposta em 2009 pelo Ministério Público Federal, objetivando o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo e a garantia dos mesmos direitos reconhecidos às uniões entre heterossexuais. A ação pretendia, inicialmente, que fosse reconhecida e colmatada a pretensa omissão do Poder Legislativo em regulamentar os direitos dos casais homossexuais, muito embora a própria Constituição, no seu art. 226, §3º, aponte para outra direção, ao afirmar que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Indeferida

liminarmente,

a

petição

foi

reapresentada,

agora

buscando

uma

verfassungskonforme Auslegung do art. 1.723 do Código Civil, no sentido de oferecer proteção integral às uniões homoafetivas. A perplexidade que surge deve-se à seguinte questão: de que modo poderia haver a referida omissão se a própria Constituição determina que é dever do Estado proteger a união entre o homem e a mulher? Onde estaria a omissão, já que é um comando constitucional que determina que a ação do Estado seja no sentido de proteger a união entre homem e mulher? Note-se: não podemos falar em hierarquia entre normas constitucionais, caso contrário, estaríamos aceitando a tese de Otto Bachof a respeito da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais. O mais incrível é que a referida ADPF também pretende anular as várias decisões que cumpriram literalmente o referido comando constitucional. Trata-se, pois, de um hiper-ativismo. De plano, salta aos olhos a seguinte questão: a efetivação de uma medida desse jaez importa(ria) transformar o 194

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 195 Ibid., p. 14. 196 Ibid., p. 14.

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Tribunal em um com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de Verfassungswandlung, que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de Verfassungsänderung, reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional. O risco que surge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciário no seio da sociedade produz graves efeitos colaterais. Quer dizer: há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador (não esqueçamos, aqui, a diferença entre ativismo e judicialização: o primeiro, fragilizador da autonomia do direito; o segundo, contingencial)197. Desnecessário referir as inúmeras decisões judiciais que obrigam os governos a custearem tratamentos médicos experimentais (até mesmo fora do Brasil), fornecimento de remédios para ereção masculina e tratamento da calvície...!198 E o que dizer, então, do recente julgamento do HC n°. 126992 no âmbito do STF, no qual, por maioria de sete votos a quatro, ficou decidido que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência. Para o relator do caso, ministro Teori Zavascki, a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena. Ocorre, no entanto, que o artigo 5°, inciso LVII, da CF, é categórico ao dizer ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (!). No caso, o STF reescreveu a Constituição, tornando-se, basicamente, um “terceiro-turno” constituinte. Trata-se, assim, de um caso descarado (mega)ativismo, afinal, por argumentos de moral e de política, reescreveu-se diretamente o texto constitucional199. É a veia do judicial activism estadunidense pulsando forte! Ao lado dessas três posturas – que se tornaram dominantes no plano da doutrina e da aplicação do direito no Brasil –, podem ainda ser referidas manifestações calcadas em pragmatismos dos mais variados, na maioria das vezes construídos a partir de mixagens teóricas. É muito difícil definir as diversas teses e posturas que se espraiam no plano da doutrina e da jurisprudência, pelo simples fato de que grande parte da doutrina não age a partir de pressupostos teóricos e, sim, de forma pragmaticista. Ademais, parcela considerável 197

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 14-15. 198 Ibid, p. 15. 199 Ver artigo de Aury Lopes Jr. sobre o tema. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/limitepenal-fim-presuncao-inocencia-stf-nosso-juridico.

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da doutrina está convicta de que, para alcançar o patamar paradigmático do Estado Democrático de Direito, basta superar (ou sepultar) o “juiz boca da lei”, esquecendo-se, entretanto, que, ao colocarem em seu lugar um “juiz protagonista” (que, aliás, não é coisa nova, pois já estava presente em Oskar von Büllow no século XIX), tornam o direito refém do decisionismo (já presente em Kelsen). Na mesma linha, em muitos casos, o novo constitucionalismo é confundido com uma mera continuidade do positivismo normativista, além de os princípios gerais do direito serem confundidos com princípios constitucionais, isto é, como se os velhos axiomas do positivismo exegético do século XIX ainda pudessem “competir” com as regras e os princípios presentes no Constitucionalismo Contemporâneo200. Pode-se afirmar, ainda, que, por vezes, os pragmatismos tomam emprestados pressupostos originários das teorias argumentativas, em especial a de Alexy, mormente quando as decisões judiciais aplicam a proporcionalidade e a razoabilidade201. Como se pode perceber, conseguintemente,

[...] a assim denominada ‘era dos princípios’, que propiciou o surgimento de textos constitucionais com características sociais-diretivas, encontrou – mormente em países como o Brasil – um imaginário jurídico ainda fortemente dependente da metodologia tradicional e de suas variações, a partir de um amplo espectro que abrangia desde formalistas até adeptos do direito alternativo (realistas ao estilo dos Critical Legal Studies). (grifo do autor)202

Com efeito, de um lado, doutrina e jurisprudência, ainda ligadas à dogmática jurídica tradicional, continuaram a sustentar práticas normativistas, com enormes dificuldades para compreender minimamente o advento de uma nova teoria das fontes; já de outro, setores que, embora engajados na concretização da Constituição, passaram a apostar no Poder Judiciário como condutor desse processo, mas sem a correspondente reflexão acerca das condições de possibilidade desse protagonismo. Ou seja, a falta de teorias adequadas às demandas de uma Constituição como a brasileira permitiu a formação de um forte protagonismo judicial. O espantoso é que, mesmo diante de um texto constitucional riquíssimo em direitos fundamentais-sociais – experiência única no mundo – os intérpretes brasileiros ainda assim vêm buscando descobrir “valores escondidos” embaixo dessa densa tessitura legal203.

200

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 201 Ibid. 202 Ibid., p. 19. 203 Ibid.

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De tudo, é que o direito brasileiro, em verdade, se encontra imerso em uma indiscreta “crise de paradigmas de dupla face” (grifo nosso)204, para citar Streck. Com efeito, se o “Lado A” dá conta de um direito preparado para lidar apenas com casos interindividuais, o “Lado B” desta crise traz em si um paradoxo, isto é: de um lado, não são poucos os casos em que se nega a Constituição como fonte, negando-se, dessa maneira, a sua força normativa ou o seu caráter substancial (uma espécie de ativismo judicial restritivo). Com isso, continuamos a manter a crença de que a “lei” é a única fonte do direito e, dessa maneira, seguimos acreditando “[...] no mundo ficcional das regras, ignorando que a (velha) teoria da norma necessita recepcionar a era dos princípios, que, fundamentalmente, introduzem no Direito a realidade escamoteada historicamente pelo mundo das regras do positivismo” (grifo nosso)205. No mesmo cenário, por sua vez, como antítese deste acrítico “método” exegéticopositivista (de índole objetivista206), imensa gama de posições sustentam, ainda hoje, posturas calcadas no subjetivismo (não menos positivista, mas apenas com outra carapuça). Por este raciocínio - que, insisto, também é positivista - o intérprete acaba por se sobrepor ao direito posto, tornando-se uma espécie de proprietário dos sentidos da lei (ou do texto legal), restando encarregado, pois bem, de desvelar os “valores” (sic), “fins” (sic) ou “interesses” (sic) escondidos debaixo do mesmo texto. O resultado deste “fenômeno”, por sua feita, nada mais é do que a promoção de arbitrariedades interpretativas, tudo a partir do matiz voluntarista/axiológico que envolve tais raciocínios. Assim, portanto, é que, de um lado, parcela relevante do Direito (ainda) se vê a sustentar posturas objetivistas/exegetistas, como se a lei fosse à única fonte do direito e como se o objeto ou, melhor, a objetividade do texto sobrepusesse-se, ratio final, ao intérprete; e, de outro, vislumbramos uma gama de construções pretorianas e doutrinárias apoiadas no subjetivismo, de onde provêm que o intérprete acabaria por se sobrepor ao texto legal/constitucional. Ou seja: nesta vertente, o sujeito assujeita(ria) o objeto. Com isso, evidentemente, há uma resistência ao constitucionalismo contemporâneo que, conforme o Lenio Streck, “[...] exige uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma e um novo modo de compreender o Direito” (grifo nosso)207. Isto, definitivamente, 204

205

206

207

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. Id. Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 5 jan. 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2015. online. Isto é, em que a objetividade do texto sobrepõe-se ao intérprete, ou seja, a lei “vale tudo”, parafraseando Lenio Streck. Id. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 299.

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ainda não aconteceu. E, ainda hoje, permanecemos caudatários de teorias ultrapassadas ou, de outra forma, especificamente, do positivismo jurídico, em suas várias vertentes. Logo, em um prisma, de maneira geral, o objeto (texto legal) segue assenhorando-se do sujeito (intérprete), algo que dá conta de um legalismo rasteiro, que ignora a existência da (força normativa da) Constituição e dos princípios constitucionais. E, noutro, o sujeito (intérprete) assujeita-se do objeto (texto legal/constitucional), dando margem justamente ao axiologismo/voluntarismo característico e familiar à parcela da práxis jurídica brasileira. Neste sentido, finalmente, note-se, com Streck, que: (a) continuamos a pensar que a lei é a única fonte, bastando, v.g., ver o que fizemos com o mandado de injunção, “exigindo” uma “lei regulamentadora”, ignorando que a própria Constituição é a nova fonte; (b) continuamos a acreditar no mundo ficcional das regras, ignorando que a (velha) teoria da norma necessita recepcionar a era dos princípios, que, fundamentalmente, introduzem no Direito a realidade escamoteada historicamente pelo mundo das regras do positivismo; (c) não nos damos conta de que o esquema sujeito-objeto, sustentador do modo dedutivo-subsuntivo de interpretar, sucumbiu em face do giro linguístico-ontológico (em especial, a hermenêutica, sem olvidar a importância das teorias discursivas); (d) porque atrelados ao esquema sujeitoobjeto, não conseguimos compreender a relação entre texto e norma, isto é, do objetivismo simplificador partimos em direção aos diversos axiologismos. Como conseqüência, estabeleceu-se interpretativa

208

um

“ceticismo

hermenêutico”,

cujo

resultado

é

a

arbitrariedade

.

Ocorre, definitivamente, que o constitucionalismo emergente do paradigma do Estado Democrático de Direito induz que vençamos tais dogmatismos. Se, de um lado, não podemos mais sufragar um pensamento exegetista, como se a lei fosse à única fonte do direito, texto e norma se confundissem e, sem assimilar a era dos princípios, como se a Constituição ora vigente representasse um mero adereço ornamental e não a fonte mor do Direito e do Estado, de outro, impende que vençamos a discricionariedade e o decisionismo, pois que o fruto deste fenômeno nada mais é do que um estado de arte no qual impera o arbítrio interpretativoargumentativo (que é algo antidemocrático por excelência, registre-se). Destarte, nenhum desses movimentos, ambos de cariz positivista e apegados ainda hoje ao modelo sintáticosemântico de interpretação, se afiguram como condizentes para com o constitucionalismo contemporâneo. Isto é, nem o legalismo rasteiro do primeiro, nem o ativismo-protagonismo-

208

STRECK, Lenio Luiz. Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 5 jan. 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2015.

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decisionismo-solipsismo do segundo, nos serve nos dias de hoje. Assim, impreterivelmente, “[...] há que se levar em conta que o constitucionalismo surgido do segundo pós-guerra é, fundamentalmente, pós-positivista; os textos constitucionais – agora principiológicos – albergam essa nova perspectiva do direito”209. Assim, citando Streck, e rogando por um controle hermenêutico das decisões judiciais (e o ativismo judicial, como dito, é problema da interpretação-aplicação do Direito e, logo, da Teoria do Direito), na medida em que estamos de acordo que a Constituição possui características especiais oriundas de um “profundo câmbio paradigmático”,

[...] o papel da hermenêutica passa a ser, fundamentalmente – longe de qualquer perspectiva formalista-exegético-originalista –, o de preservar a força normativa da Constituição e o grau de autonomia do direito diante das tentativas usurpadoras provenientes do processo político (compreendido lato sensu).210

Desse modo, é que, de modo a assegurar a autonomia do Direito e a força normativa da Constituição neste estágio do Estado Democrático de Direito, bem assim a estrutura da legalidade (entendida hoje como uma legalidade constitucional, para além da legalidade típica do positivismo exegético), e com inspiração na filosofia hermenêutica de Heidegger, na hermenêutica filosófica de Gadamer e nas teses de Ronald Dworkin (moralidade pública, responsabilidade política dos juízes, coerência e integridade do Direito), a crítica hermenêutica de Lenio Streck vem propor um conjunto mínimo de princípios hermenêuticos, todos a serem seguidos pelo intérprete. Tais princípios, sustentados na historicidade da compreensão e na sedimentação dessa principiologia, somente se manifestam quando colocados em um âmbito de reflexão que é radicalmente prático-concreto, pois representam um contexto de significações históricas compartilhadas por uma determinada comunidade política. A interpretação do direito somente tem sentido se implicar um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne desse novo paradigma: a democracia. E sobre isso parece não haver desacordo.211 Os princípios são os seguintes:

a) Princípio Um: a preservação da autonomia do direito: a Constituição é norma e vincula. Trata-se, também, de uma garantia contra o poder majoritário, no sentido de que sustentar uma legalidade na jurisdição e a partir dela. Assim, a partir daí, 209

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 20. 210 Ibid., p. 27. 211 Ibid., p. 27-28.

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nesse novo paradigma, o direito deve ser compreendido no contexto de uma crescente autonomização, alcançada diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. Logo, a Constituição, dessa maneira, é a manifestação deste (acentuado) grau de autonomia do direito,

[...] devendo este ser entendido na sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral (e aqui há que se ter especial atenção, uma vez que a moral tem sido utilizada como a ‘porta de entrada’ dos discursos adjudicadores com pretensões corretivas do direito, trazendo consigo a política e a análise econômica do direito)212;

b) Princípio Dois: o controle hermenêutico da interpretação constitucional, a superação da discricionariedade (tipicamente positivista) e o papel de “constrangimento

epistemológico”

destinado

à

doutrina:

A

partir

do

“encurtamento” do espaço de manobra e conformação do legislador e do consequente aumento da proteção contra maiorias (eventuais ou não) – cerne do contramajoritarismo –, parece evidente que, para a preservação do nível de autonomia conquistado pelo direito, é absolutamente necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do polo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais. Em outras palavras, a autonomia

do

direito

e

a

sua

umbilical

ligação

com

a

dicotomia

“democracia/constitucionalismo” exigem da teoria constitucional uma reflexão de cunho hermenêutico213. Importa referir, ademais, que a defesa de um efetivo controle hermenêutico das decisões judiciais, a partir do dever fundamental de justificação e do respeito à autonomia do direito, não quer dizer que, por vezes, não seja aconselhável e necessário uma atuação propositiva do Poder Judiciário (justiça constitucional), mormente se pensarmos no indispensável controle de constitucionalidade que deve ser feito até mesmo, no limite, nas políticas públicas. Entretanto, a defesa de posturas substancialistas e concretistas acerca da utilização da jurisdição constitucional – que implica inexorável avanço em relação às tradicionais posturas self restraining – não pode ser confundida com decisionismos e atitudes pragmati(ci)stas, em que o Judiciário se substitui ao legislador, com o aumento desmesurado de protagonismos judiciais, problemática bem presente e facilmente detectável no direito de terrae brasilis. Deve-se evitar 212

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 28-29 213 Ibid.

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aquilo que se denomina de “ativismo”. Ou seja, deve-se ter bem clara a distinção entre judicialização, que é contingencial e produto de (in)competências na relação entre os Poderes, e ativismo, que é sempre decorrente de um problema solipsistacomportamental214. Por fim, quanto ao “constrangimento epistemológico destinado à doutrina”, tal pressuposto resume-se ao seguinte verbete: “a doutrina deve voltar a doutrinar” (Streck). Ou seja: o papel da doutrina de hoje é basicamente de mero espectador do protagonismo judicial, Daí que Streck irá clamar por uma “accontability hermenêutica”, no sentido de que, para ser efetivamente doutrina, “[...] esta deve constranger epistemologicamente a operacionalidade do direito. Trata-se de ‘hermeneutizar’ a doutrina do direito, fazendo com que a teoria do direito seja alçada à condição de possibilidade de qualquer interpretação-aplicação”215; c) Princípio Três: o respeito à integridade e à coerência do direito: o respeito à integridade e à coerência engloba princípios (que, por vezes, se confundem com “métodos” de interpretação) construídos ao longo dos anos pela teoria constitucional, tais como o princípio da unidade da Constituição, o princípio da concordância prática entre as normas ou da harmonização, o princípio da eficácia integradora ou do efeito integrador, e até mesmo o princípio da proporcionalidade (embora seu uso descriterioso o tenha desgastado entre nós), entendido como fairness (equanimidade), além da exigência do tratamento igualitário (equal concern and respect), como diria Dworkin. Seja o nome que a eles se dê, trata-se de padrões interpretativos relevantes para a consolidação da força normativa da Constituição. A integridade está umbilicalmente ligada à democracia, exigindo que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito216. Trata-se, pois, de “consistência articulada”. Com isso, afasta-se, de pronto, tanto o ponto de vista objetivista, pelo qual “o texto carrega consigo a sua própria norma” (lei é lei em si), como o ponto de vista subjetivista-pragmatista, para o qual a norma pode fazer soçobrar o texto. Ou seja, esse respeito à tradição, ínsito à integridade e à coerência (que é consistência “em princípio”, ou seja, a decisão deve expressar uma expressão unitária – e não ad hoc – de justiça), é substancialmente antirrelativista e deve servir de blindagem contra subjetivismos 214

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 30. 215 Ibid., p. 31. 216 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 176.

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e objetivismos217. Em suma: haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade hermenêutica. Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin218: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma coerente ao conjunto do direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Dito de outro modo, enquanto a coerência significa dizer que, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonomia dos princípios subjacentes nesta cadeia, a integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma a manifestar um direito íntegro, e não algo fragmentado, como um aglomerado de decisões que refletem apenas perspectivas individuais. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade é uma forma de virtude política que significa rechaçar a tentação da arbitrariedade219,220; d) Princípio Quatro: o dever fundamental de justificar as decisões (a fundamentação da fundamentação): Se nos colocamos de acordo que a hermenêutica a ser praticada no Estado Democrático de Direito não pode deslegitimar o texto jurídico-constitucional produzido democraticamente, parece evidente que há uma forte responsabilidade política dos juízes e tribunais, circunstância que foi albergada no texto da Constituição, na especificidade do art. 93, IX, que 217

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 218 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 78 apud STRECK, Lenio Luiz. A Crítica Hermenêutica do Direito e o Novo Código de Processo Civil: apontamentos sobre a coerência e a integridade. In: CONSTITUIÇÃO, sistemas sociais e hermenêutica jurídica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a. n. 11. p. 157-168. 219 Ibid. 220 O NCPC/2015, em seu artigo 926, contemplou, a partir daquilo que se convencionou chamar de emenda dworkiniana/streckiana, a integridade e a coerência do direito, tudo ao professar o seguinte: Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

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determina, embora com outras palavras, que o juiz explicite as condições pelas quais compreendeu. Isso é o que se pode chamar de “o espaço epistemológico da decisão”221. O dever de fundamentar as decisões (e não somente a decisão final, mas todas as do iter) está assentado em um novo patamar de participação das partes no processo decisório. A fundamentação está ligada ao controle das decisões, e o controle depende dessa alteração paradigmática no papel das partes da relação jurídico-processual. Por isso, o protagonismo judicial-processual deve soçobrar diante de uma adequada garantia ao contraditório e dos princípios já delineados. Decisões de caráter “cognitivista”, de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real” se pretendem “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com o paradigma do Estado Democrático222,223; e) Princípio Cinco: o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada: Há, pois, um direito fundamental ao cumprimento da Constituição. Mais do que isso, trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Antes de qualquer outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso. Mais ainda, há de se indagar em que sentido aponta a pré-compreensão (Vorverständnis), condição para a compreensão do fenômeno. Para interpretar, é necessário compreender (verstehen) o que se quer interpretar. Este “estar diante” de algo (verstehen) é condição de possibilidade do

221

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 32. 222 Ibid. 223 O §1° do artigo 489 do NCPC contemplou, pode-se dizer, esse dever de accontability da decisões judiciais, tudo ao disciplinar o seguinte: Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

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agir dos juristas: a Constituição224. O direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, mais do que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime, respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico, porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeito-objeto predominante nas duas metafísicas (clássica e moderna)225.

Por fim, considerando o advento e a plenitude do Estado Democrático de Direito, e todas as suas (indissociáveis) características, deve-se louvar a legislação democraticamente construída, de modo que a (in)aplicação do arcabouço normativo infraconstitucional restará sempre condicionado ao exercício da jurisdição constitucional. Logo, à luz da crítica hermenêutica do Direito de Lenio Streck, seriam apenas seis as hipóteses pelas quais o juiz ou o tribunal não estaria obrigado a aplicar determinada lei ou dispositivo legal, hipóteses estas, reitere-se, inexoravelmente vinculadas ao chamamento da jurisdição constitucional. Senão vejamos: a) o ato normativo é inconstitucional, assim declarado via controle difuso ou controle concentrado de constitucionalidade; b) aplicação dos critérios de resolução de antinomias (Lex posteiori derogat legi priori; Lex specialis derogat legi generalis; Lex superior derogat legi inferior); c) interpretação conforme à Constituição; d) nulidade parcial sem redução de texto; e) nulidade parcial com redução de texto; f) a regra jurídica viola um princípio constitucional226.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O escopo central deste trabalho de pesquisa foi o de buscar uma robusta diferenciação entre os fenômenos da judicialização da política (da vida ou do social) e do ativismo judicial. Nesse ínterim, pode ficar demonstrado que, enquanto a judicialização da política é um fenômeno característico das democracias modernas, materializado por fatores de natureza contingencial (e circunstancial, por que não), o ativismo judicial está estritamente vinculado a fatores de natureza comportamental, associado a um ato de vontade do juiz ou tribunal. Nesse espaço, a força motriz desta aposta no ativismo ou no protagonismo judicial reside, sobremodo, em um elemento primordial: a discricionariedade. No Estado Democrático de 224

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 225 Ibid. 226 Id. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c.

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Direito, no entanto, não se pode admitir que decisões judiciais sejam discricionárias, por isso é necessário buscar meios para impedi-las. E o limite da discricionariedade está na fundamentação (pela principiologia constitucional), pois o juiz, na tomada da decisão deverá optar pela resposta correta, ou seja, conforme a Constituição.227 Assim, o ativismo judicial exsurge no momento em que o magistrado não decide dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, agindo de forma discricionária, questão perpassada, portanto, pelo problema hermenêutico da interpretação da Constituição.228 Logo, insistiu-se, dessa maneira, na ideia de que o intérprete-aplicador não poderia, jamais, se utilizar do fenômeno da judicialização como álibi à prática de ativismos. E demonstrou-se, no entanto, que a realidade brasileira não tem percorrido estes caminhos, ao contrário. De igual maneira, partindo-se da premissa de que a questão acerca do ativismo judicial é compreendida de maneira equivocada no Brasil, partimos a desvelar a gênese do fenômeno do judicial activism, percorrendo o caminho dos Estados Unidos e da Alemanha, até voltar ao Brasil e demonstrar que essa tendência ativista do Judiciário brasileiro, em muito sustentada (de forma descriteriosa) pela doutrina pátria, tem como gênese a recepção acrítica (e equivocada) de teorias estrangeiras, em especial, a jurisprudência dos valores alemã, a teoria da argumentação de Robert Alexy e, no mais, o realismo jurídico norte-americano. Assim, ao final e ao cabo, objetivamos alinhar uma solução para o problema do ativismo judicial à brasileira, a partir da crítica hermenêutica do direito de Lenio Streck, de onde exsurgiram cinco princípios hermenêuticos tendentes a resguardar a autonomia do direito nesta quadra do constitucionalismo emergente do Estado Democrático de Direito: a preservação da autonomia do direito; o controle hermenêutico da interpretação constitucional, a superação da discricionariedade (tipicamente positivista) e o papel de “constrangimento epistemológico” destinado à doutrina; o respeito à integridade e à coerência do direito; o dever fundamental de justificar as decisões; o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. Também, por oportuno, considerando o advento e a plenitude do Estado Democrático de Direito, e todas as suas (indissociáveis), conclui-se no sentido de que se deve louvar a legislação democraticamente construída, de modo que a (in)aplicação do arcabouço normativo infraconstitucional restará sempre condicionado ao exercício da jurisdição constitucional. Assim, teríamos apenas seis hipóteses pelas quais o juiz ou o tribunal não estaria obrigado a aplicar determinada lei ou dispositivo legal, quais sejam: a) o

227

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 228 Ibid.

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ato normativo é inconstitucional, assim declarado via controle difuso ou controle concentrado de constitucionalidade; b) aplicação dos critérios de resolução de antinomias (Lex posteiori derogat legi priori; Lex specialis derogat legi generalis; Lex superior derogat legi inferior); c) interpretação conforme à Constituição; d) nulidade parcial sem redução de texto; e) nulidade parcial com redução de texto; f) a regra jurídica viola um princípio constitucional229. De tudo, pois, que foi exposto, pode-se finalmente concluir que, enquanto a judicialização da política independe dos desígnios do Poder Judiciário, o ativismo judicial é um fenômeno que deriva de elemento volitivo do intérprete-aplicador, a partir do qual o direito ou a sua autonomia estaria (e assim o é!) a ser substituído pela vontade do próprio, materializada, ao final e ao cabo, por argumentos de moral e de política (e/ou de economia, não raro) em detrimento dos argumentos de princípio. A judicialização da política (da vida ou do social), assim sendo, não seria um mal em si. O ativismo, por outro lado, é sempre nocivo, representado, sobremaneira, o soçobrar do Direito em prol das convicções pessoais do intérprete, e dos seus consectários. Trata-se, portanto, o judicial activism, de um problema estritamente vinculado à interpretação-aplicação do direito, a ser enfrentado, logica e necessariamente, pela Teoria Constitucional, considerando, sobretudo, o constitucionalismo emergente do Estado Democrático de Direito, o qual requer, mais e mais, que o sistema jurídico esteja albergado por um profundo grau de autonomia, devendo-se, dessa maneira, zelar pela principiologia constitucional, em detrimento dos seus predadores exógenos clássicos (Streck), dentre eles a política, a moral (subjetiva, por óbvio) e a economia.

The judicialization of politics and judicial activism in times of contemporary constitutionalism: criteria for an inexorable distinction

ABSTRACT One of the main features of contemporary constitutionalism (considered originated after the Second World War) is the displacement of tension pole of other Powers (legislative and executive) towards the Constitutional Jurisdiction. In this sense, phenomena such as Judicialization of politics and judicial activism are on the agenda of the day. In Brazil, in particular the discussion of judicial activism is rooted in the democratization process that broke with the dictatorial period in the country, opportunity in which it is promulgated the Constitution (1988). Thus, this article aims to relate (relation of deconstruction) between the contemporary constitutionalism movement and the establishment of the activists positions by the judiciary, in order to demonstrate that the Judicialization of politics (of life and / or social) and the judicial activism are distinct phenomena, and that the absence of a robust distinction about these phenomena leads to a state d'art in which reigns the judicial role, something that is 229

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c.

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harmful to democracy. In other words, the Judicialization of politics cannot be used as an alibi to practice activism. Therefore, the aim of the paper is to criticize the judicial activism, under the premise to understand the goals of contemporary constitutionalism and the inexorability of a hermeneutic control of judicial decisions (in the wake of Hermeneutics Critical of Law developed by Lenio Streck). Keywords: Judiciary. Contemporary constitutionalism. Judicial Review. Judicialization of politics. Judicial activism. REFERÊNCIAS

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