A judicialização da saúde e o seu impacto no orçamento: em busca da tutela adequada a partir do caso de Minas Gerais

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UNIVERSIDADE DE ITAÚNA Programa de Pós-Graduação em Direito

Lucélia de Sena Alves

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SEU IMPACTO NO ORÇAMENTO: em busca de uma tutela adequada a partir do caso do estado de Minas Gerais.

Itaúna 2014

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Lucélia de Sena Alves

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SEU IMPACTO NO ORÇAMENTO: em busca de uma tutela adequada a partir do caso do estado de Minas Gerais.

Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Itaúna como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais. Orientadora: Professora Dra. Ada Pellegrini Grinover.

Itaúna 2014

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AGRADECIMENTOS Impossível seria agradecer a todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para a conclusão deste trabalho. As páginas não seriam suficientes, pois, quando de sua confecção, várias lembranças de minha vida vieram à minha mente e me impulsionaram a continuar e nem sequer pensar em desistir. Citarei, por este motivo, as pessoas que contribuíram de forma mais direta, pedindo escusas, desde já, por quem, eventualmente, não me venha à memória. Primeiramente, a Deus, por ter me concedido saúde e perseverança durante o desenvolvimento da pesquisa. Quero agradecer à querida Professora Ada Pellegrini Grinover. As palavras são insuficientes para expressar toda a minha gratidão. Desde a pronta aceitação em me orientar, até o término deste trabalho. Nesses dois anos de convivência, pude conhecer mais de perto a incomparável jurista, de quem sou fã há muito, tendo a oportunidade de conhecer a pessoa intensa, forte, humilde e carinhosa que é, fazendo com que crescesse ainda mais a minha admiração. A todos os meus professores de Mestrado que contribuíram, cada um à sua forma, para esta pesquisa principalmente aos Professores Cíntia Garabini Lages, Gregório Assagra de Almeida, Luiz Manoel Gomes Júnior, Renata Mantovani de Lima, Jamile B. Mata Diz, Miracy Barbosa de Sousa Gustin, Carlos Alberto Simões de Tomaz, Susana Camargo Vieira e Milton Vasques Thibau de Almeida. Ao Professor Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, pelos valiosos esclarecimentos acerca da teoria de Robert Alexy. Ao Professor Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves, pelo fornecimento de exemplares de suas decisões na Justiça Federal. Ao Cláudio Márcio Bernardes pela revisão ortográfica. A meus colegas de mestrado que compartilharam os momentos de alegrias e de aflições que o curso me proporcionou, pela amizade. À Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, responsável pelo Sistema de Pesquisa em Direito Sanitário (SPDiSa) e ao Ministério Público de Minas Gerais, do setor responsável pelo Sistema de Registro Único do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por terem permitido e auxiliado na obtenção de dados desses sistemas.

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Ao Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e ao Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, especialmente aos pesquisadores que me auxiliaram no Projeto Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde, os professores Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Maria Tereza Sadek, José Reinaldo de Lima Lopes, Ligia Paula Pires Pinto Sica, Luciana de Oliveira Ramos, Natalia Langenegger, Vivian Maria Pereira Ferreira, Marcelo José Magalhães Bonício e Heitor Vitor Mendonça Sica. À Marília Gabriela de Silva e Lima, por me auxiliar na realização do eixo Minas Gerais. Aos colegas e aos alunos da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato, pelo apoio. A minha mãe, Ana Alice; a meus avós, Antônio e Doralice; a minhas tias, Ângela e Jussara; a meus irmãos; pelo carinho e apoio de sempre.

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O triunfo da morte, de Pieter Bruegel (1592).

Fonte: reprodução de Wikimedia Commons (Museu do Prado)

“O tecnicismo exacerbado, aprendemos à custa de muitos erros, esteriliza o Direito; o desprezo da técnica o reduz a uma caricatura barata. Tolerar que o Direito seja tratado atecnicamente é abrir a porta ao diletantismo frívolo, quando não ao mais desbragado charlatanismo.” MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. Discurso em agradecimento pelo recebimento da medalha Teixeira de Freitas no Instituto dos Advogados Brasileiros. In Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros. São Paulo, nº 75,76,77 e 78, p. 93-9, 1990.

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RESUMO A evolução do papel do juiz de simples boca da lei a protagonista das políticas públicas permite atualmente que o Poder Judiciário interfira, quando provocado, nas políticas de implementação dos direitos sociais. Essa nova postura garante que a população, individual ou coletivamente, busque, através do exercício do direito de ação, a proteção jurisdicional para as lesões ou ameaças a direito. A Constituição de 1988 consagrou, pela primeira vez na história brasileira, o direito à saúde como um direito fundamental social, prescrevendo ser esse direito de todos e dever do Estado. A judicialização da saúde é um fenômeno relativamente recente na história do ordenamento jurídico brasileiro. Após 25 anos de promulgação, as normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais de 1988 ainda geram controvérsias e a possibilidade do controle jurisdicional das políticas implementadoras desses direitos encontra-se no centro das discussões. O constante aumento do número de ações que visam à tutela do direito à saúde, bem como a disparidade de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, intensificou o debate jurídico acerca do tema. O presente estudo pretende, portanto, apresentar criticamente os diversos aspectos que envolvem a judicialização e o controle jurisdicional de políticas públicas do direito social à saúde, tomando como paradigma a política da saúde no Estado de Minas Gerais, apresentando os principais argumentos doutrinários e jurídicos, a fim de verificar a sua legitimidade constitucional e apontar propostas para a sua otimização. As técnicas processuais utilizadas nessa judicialização serão também objeto da pesquisa desenvolvida neste trabalho, com o intuito de analisar a sua adequabilidade no atual contexto constitucional. O raciocínio da pesquisa será o hipotético-dedutivo. Os tipos de investigação são: o jurídico-exploratório, o jurídico-prospectivo e o jurídicopropositivo. A pesquisa deverá valer-se de análises pertencentes a diversos campos do saber humano, tais como Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Direito Processual Civil, Direito Administrativo e Direito Financeiro. Palavras-chave: judicialização – saúde – orçamento – políticas públicas.

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ABSTRACT The change of the role of the judge as protagonist of the public policy currently allows the judiciary to interfere, when triggered, the policy implementation of social rights. This new approach ensures that people, individually or collectively, seek through the exercise of the right of action, the judicial protection for injuries or threats to law. The Constitution of 1988 enshrined, for the first time in Brazilian history, the right to health as a fundamental social right, be prescribing this right and duty of the State. The legalization of health is a relatively recent phenomenon in the history of Brazilian law. After 25 years of enactment, the guarantors of fundamental rights 1988 constitutional provisions still generate controversy and the possibility of judicial control of implementing policies of these rights is at the center of discussions. The steady increase in the number of actions aimed at protection of the right to health, and the disparity of doctrinal and jurisprudential understandings, intensified the legal debate on the subject. This study therefore aims to critically present the various aspects involving justiciability and jurisdictional control of public policies to the social right to health, taking as paradigm health policy in the state of Minas Gerais, presenting the main doctrinal and legal arguments, in order to verify its legitimacy and constitutional point proposed for its optimization. Procedural techniques that legalization will also object of research developed in this work, in order to examine its suitability in the current constitutional context. The reasoning of the research will be the hypotheticaldeductive. The types of research are: the legal-exploratory and prospective legallegal-propositional. The research will draw on analyzes from diverse fields of human knowledge, such as philosophy of law, Constitutional Law, Civil Procedure Law, Administrative Law and Financial Law. Keywords : judicialization - health - Quote - public policy .

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LISTA DE ABREVIATURAS ANATEL -

Agência Nacional de Telecomunicações

ANVISA -

Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CIT -

Comissão Intergestores Tripartite

CIB -

Comissão Intergestores Bipartite

CNJ -

Conselho Nacional de Justiça

CONASEMS- Conselho Nacional de Secretários Municipais CONASS -

Conselho Nacional de Secretários de Saúde

COSEMS - Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde DJe -

Diário Judiciário Eletrônico

OMS -

Organização Mundial de Saúde

ONU -

Organização das Nações Unidas

PIB -

Produto Interno Bruto

SES -

Secretaria Estadual de Saúde

STF -

Supremo Tribunal Federal

STJ -

Superior Tribunal de Justiça

SUS -

Sistema Único de Saúde

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SUMÁRIO 1)

INTRODUÇÃO

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2)

O DIREITO À SAÚDE

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2.1) Um direito social fundamental: breve contextualização no constitucionalismo;

16

2.2)

A efetivação dos direitos sociais;

23

2.3)

O conceito e as dimensões do direito à saúde;

26

2.4)

O financiamento das políticas públicas da saúde;

30

2.5)

O sistema único de saúde e os seus princípios;

32

2.6)

O financiamento do SUS;

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3) A JUDICIALIZAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA

DA

POLÍTICA

NA

ORDEM

42

3.1) A teoria da separação dos poderes como princípio constitucional;

42

3.2) O controle de constitucionalidade;

45

3.3) A efetivação dos objetivos fundamentais da república à luz do neoconstitucionalismo;

48

3.4) A evolução da judicialização da política no Brasil e a judicialização da saúde;

50

4) A ANÁLISE ECONÔMICA DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ESTADO DE MINAS GERAIS

62

4.1)

62

A análise econômica do Direito;

4.2) O perfil da judicialização da saúde no estado de Minas Gerais; 5) A TUTELA ADEQUADA PARA DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

ASSEGURAR

63

O 83

5.1)

A evolução do conceito de tutela jurisdicional;

83

5.2)

O direito a uma tutela jurisdicional adequada;

85

5.3)

A finalidade e a titularidade do direito social à saúde;

86

5.4)

A tutela por ações coletivas;

90

12

5.5)

A tutela por ações individuais;

93

5.6)

A tutela por ações individuais com efeitos coletivos;

95

5.7)

A tutela por ações pseudoindividuais;

97

5.8)

A tutela por ações pseudocoletivas;

98

6) O ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

104

6.1)

104

Considerações preliminares

6.2) Superior Tribunal de Justiça: o caso do recurso ordinário em mandado de segurança nº 24.197/PR;

104

6.3) Supremo Tribunal Federal: o caso do agravo regimental da tutela antecipada nº 175/CE;

107

7) A APLICAÇÃO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

111

7.1) A proporcionalidade como critério de verificação da necessidade da tutela processual na judicialização do direito fundamental à saúde;

111

7.2) A coletivização de direitos individuais através da aplicação da proporcionalidade;

119

8)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

129

APÊNDICE

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1)

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 consagra o Brasil como um Estado Democrático de Direito. Como resultado das conquistas jurídicas sociopolíticas do país, os direitos e garantias fundamentais de sua população foram assegurados pelo constituinte, o que significa dizer que não basta a previsão formal de um vasto rol de direitos e garantias, mas sim a sua efetivação. A realização dos direitos reconhecidos pelo Estado é, originariamente, reservada aos poderes Legislativo e Executivo. Ao legislador é atribuída a tarefa de regulamentar, através das leis, a atuação do Poder Público e, ao administrador, a concretização de políticas públicas. Entretanto, a análise do cotidiano sugere, muitas vezes, a incongruência entre as ações desses poderes em relação aos reais anseios dos seus destinatários. Consoante o texto constitucional, aquele que for lesado ou sofrer ameaça de lesão a algum direito pode buscar, por intermédio do Poder Judiciário, coletiva ou individualmente, a sua tutela. Em se tratando de direitos realizáveis por políticas públicas, os juízes passam a participar como verdadeiros atores políticos, no sentido de tentar evitar que a ineficiência do Poder Executivo e do Poder Legislativo acarrete graves (e até irreparáveis) consequências à população. Esse papel interventivo exercido pelo Poder Judiciário é chamado judicialização da política. A judicialização da política vem gerando enormes controvérsias na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Uns consideram-na como adequação das ações do Poder Público a fim de atingir os objetivos fundamentais do Estado. Outros, em contrapartida, entendem que essa interferência é constitucionalmente inadequada e que pode ser mais maléfica que benéfica, aumentando as desigualdades sociais já existentes. Quando a judicialização atinge as políticas sanitárias, a controvérsia se intensifica ainda mais. Por estar diretamente ligado aos bens jurídicos mais caros aos seres humanos (a dignidade da pessoa humana e a vida), a não efetivação desse direito pode ocasionar graves consequências aos usuários do sistema, culminando, muitas vezes, em morte. O tema vem atraindo a atenção dos juristas, especialmente a partir de 2010, quando o Conselho Nacional de Justiça apurou que, naquele ano, havia 240.980

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demandas ligadas à saúde em trâmite no Brasil.1 A observação da prática forense aponta o cometimento de vários equívocos pelos sujeitos do processo, sugerindo a falta de conhecimento necessário para lidar com um tema tão complexo e importante. A fundamentação dos provimentos judiciais é, muitas vezes, equivocada. O tipo de tutela escolhido pelo autor das demandas frequentemente demonstra-se inadequado para a promoção da máxima realização do direito em comento. Os argumentos exarados pelo Poder Público, quando do exercício do contraditório, demonstram-se frequentemente destoados das reais condições das políticas empregadas. Por tudo isso, justifica-se a importância e a necessidade de compreensão aprofundada do tema. O presente estudo visa, portanto, a analisar a legitimidade da judicialização da saúde, a partir de dados da saúde pública no estado de Minas Gerais, verificando os principais argumentos (doutrinários e jurisprudenciais) favoráveis e contrários, à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Além disso, serão analisados os instrumentos processuais cabíveis (ações individuais, ações coletivas, ações individuais com efeitos coletivos, ações pseudoindividuais e pseudocoletivas), com o intuito de apontar o tipo mais adequado à tutela desse direito fundamental. O raciocínio da pesquisa foi o hipotético-dedutivo, já que um dos seus objetivos é propor soluções a partir de conjecturas, diante dos efeitos de decisões judiciais de casos concretos, bem como por dados levantados atinentes ao estado de Minas Gerais. No capítulo inicial, desenvolveu-se a retrospectiva histórico-política dos direitos fundamentais, com ênfase nos direitos sociais e especialmente na saúde. Foi traçada, também, a trajetória do direito à saúde no constitucionalismo brasileiro até ser considerado um direito social fundamental. Foram apresentados diversos conceitos sobre a saúde ao longo da evolução da humanidade, bem como as dimensões desse direito no contexto da Constituição de 1988. As políticas públicas de saúde, bem como a sua forma de financiamento foram descritas neste capítulo. Tratou-se, ademais, sobre o desenvolvimento do sistema único de saúde e os seus princípios constitucionais e infraconstitucionais.

1

Relatório atualizado da resolução 107 do Conselho Nacional de Justiça, disponível em:< http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/relatorio_atualizado_da_resolucao107.pdf>. Acesso em jun. 2012.

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A judicialização da política à luz da Constituição de 1988 foi o tema do terceiro capítulo do trabalho. Nesse capítulo, discutiu-se a aplicação da teoria da separação dos poderes desenvolvida por Charles de Montesquieu, em sua clássica obra Esprit des Lois, apresentando os principais entendimentos doutrinários sobre o assunto. Foi abordado o tema do controle de constitucionalidade desde o célebre caso Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Corte norte-americana, até a interpretação dos tribunais superiores brasileiros. Por derradeiro, apresentou-se a judicialização da saúde como espécie de controle jurisdicional de constitucionalidade dos atos do Poder Público. No quarto capítulo abordou-se a análise econômica da judicialização da saúde no contexto do estado de Minas Gerais. Para o desenvolvimento desse capítulo, foram utilizados dados de quatro principais fontes de pesquisa: a) o sistema SPDiSa; b) as informações contidas no sítio eletrônico da Superintendência de Planejamento e Finanças da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais; c) o Sistema de Registro Único do Ministério Público do Estado de Minas Gerais – área da saúde; e d) os dados obtidos pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas. Através dos dados obtidos por essas fontes, foram confeccionados diversos gráficos que ilustram a situação da judicialização da saúde no estado mineiro, para ao final traçar, criticamente, o seu perfil. No quinto capítulo, tratou-se dos diversos tipos de tutela do direito sanitário (ações individuais, coletivas, pseudocoletivas, pseudoindividuais e individuais com efeitos coletivos), apontando aquela que se considera mais adequada para a sua máxima efetivação. Tudo isso através da contextualização com as concepções mais atuais acerca da técnica processual adequada à luz da teoria geral do processo, levando em consideração a finalidade e a titularidade do direito à saúde. O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal foi tratado no sexto capítulo. Foram estudados dois casos em que se considerou que o pensamento predominante de cada tribunal estaria mais bem explicitado. Por fim, desenvolveu-se a importância da teoria de Robert Alexy, mais especificamente a sua teoria dos direitos fundamentais, bem como a aplicação da

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máxima da proporcionalidade no processo civil. Sustentou-se a possibilidade de coletivização de direitos individuais através da aplicação da máxima parcial da necessidade (ligada à máxima da proporcionalidade). É certo que não seria possível esgotar todas as complexidades do tema da judicialização da saúde. Entretanto, pretendeu-se apresentar uma pesquisa que possa contribuir para a sua discussão e aprimoramento.

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2)

O DIREITO À SAÚDE

2.1)

Um direito social fundamental: breve contextualização na teoria geral do constitucionalismo

Assim como todos os direitos fundamentais, os direitos sociais são fruto das conquistas evolutivas da sociedade ao longo da história em busca da garantia de sua dignidade. Como consequência lógica, o núcleo do que são considerados os elementos garantidores dessa dignidade se modifica de acordo com o contexto histórico e político em que se encontra. Dependerá, portanto, dos valores e interesses predominantes de cada época. Para entender o conceito e o alcance dos direitos sociais é fundamental que se tenha em mente o seu fundamento filosófico, político e ideológico2, o que implica fazer uma breve retrospectiva a partir do surgimento desses direitos. Os direitos sociais surgiram em resposta ao sistema capitalista liberal. 3 Nesse sistema, as liberdades concedidas à burguesia alimentavam práticas de exploração da classe trabalhadora, que, por sua vez, organizou movimentos para reivindicar seus direitos. Buscava-se, através desses movimentos, o reconhecimento de uma igualdade entre a sociedade política e a civil, a fim de deslegitimar as práticas abusivas de exploração mercantis do trabalho cometidas sob a justificativa da liberdade de contratar.4 Além disso, a ideologia antiliberal, germinada nas esferas filosófico-políticas encabeçadas por Carl Schmitt, visava à defesa das instituições através dos valores sociais de igualdade e de valoração da personalidade dos indivíduos. 5 As prestações materiais do Estado evitariam situações de miserabilidade que impediriam o exercício dos direitos de liberdade.

2

6

Não se tratava, assim, de uma preocupação

PULIDO, Carlos Bernal. Fundamento, conceito e estrutura dos direitos sociais: uma crítica a “Existem direitos sociais?” de Fernando Atria. In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 142. Esclarece-se que, para explicar esses fundamentos, o autor faz uma breve contextualização histórica do surgimento dos direitos sociais, a qual repetimos no presente trabalho. 3 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 187. 4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 187. 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p. 518-19. 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p. 518-19.

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com o outro, mas de uma autoproteção contra situações imprevisíveis de incapacidade para a promoção de sua própria dignidade através do trabalho. Para satisfazer esses novos anseios, emerge um novo modelo de Estado: o Social. Nele, o enfoque dos direitos sociais modifica-se consideravelmente, passando a ser visto como um instrumento capaz de diminuir as desigualdades sociais.7 A Constituição Mexicana de 1917 foi a primeira constituição a garantir expressamente direitos sociais, principalmente aqueles relacionados ao trabalho. Conforme ressalta Carlos Miguel Herrera, o principal objetivo da constitucionalização dos direitos sociais naquele país era o de proteção dos direitos dos trabalhadores.8 Temas como a limitação da jornada de trabalho, o desemprego, a proteção da maternidade, o trabalho prestado por menores e a responsabilidade dos empregadores por acidentes de trabalho foram previstos na referida carta política. 9 Apesar de ter sido promulgada dois anos depois da Constituição Mexicana, a Constituição de Weimar, da Alemanha, foi a que mais exerceu influência sobre o Ocidente.10 Nela, não só os direitos dos trabalhadores são assegurados como também o direito à educação, saúde, previdência social, entre outros.11 Dispondo um rol extenso de direitos civis, políticos, econômicos e sociais, a constituição alemã de 1919 representou a força política burguesa que pretendia neutralizar os movimentos sindicais e políticos da classe operária, que já começava a se organizar em partidos políticos e sindicatos.12 A instabilidade política e econômica da época contribuiu para o surgimento de movimentos revolucionários que representavam risco ao domínio da burguesia.13

7

ATRIA, Fernando. Existem direitos sociais? p. 24. Disponível em: . Acesso em 29 out. 2012. 8 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, constituição e direitos sociais. In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 8. 9 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 184-7. 10 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 199. 11 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 200. 12 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 33. 13 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 33.

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Certo é que, pela primeira vez na história, estabeleceu-se o cunho prestacional dos direitos sociais, no qual o Estado, por intermédio de políticas públicas, deveria promovê-los à população. A partir daí o status dos direitos sociais passa a ser de direito fundamental,14 conforme se extrai de vários dispositivos da carta alemã, entre os quais podem ser citados: Art. 119. [...] A higidez, saúde e o progresso social da família são tarefas do Estado e dos Municípios. As famílias de prole numerosa têm direito a exigir amparo e auxílio do Estado. [...] Art. 122. A juventude deve ser protegida contra a exploração e o abandono moral, intelectual e físico. O Estado e os Municípios devem criar as instituições necessárias para tanto. [...] Art. 161. Para a conservação da saúde e capacidade de trabalho, para proteção da maternidade e assistência contra as consequências econômicas da velhice, da invalidez e das vicissitudes da vida, o Estado Central institui um amplo sistema de seguros, com a colaboração obrigatória dos segurados.

O direito social à saúde, objeto do presente estudo, nasceu também da ideia de proteção dos operários e da classe burguesa. A partir da Revolução Industrial, intensificou-se o movimento de urbanização. A aproximação espacial e a total falta de higiene favoreceram a rápida proliferação de doenças entre operários, patrões e familiares, implicando a necessidade de políticas estatais para o melhoramento das condições sanitárias.15 O receio do surgimento de epidemias como a peste acelerou a tomada de providências.16 A não adoção de políticas públicas estatais poderia não só provocar a proliferação de doenças como também colocar em risco a existência da própria humanidade. O processo de constitucionalização desse direito deu-se após a realização de algumas conferências internacionais sobre as condições sanitárias. A primeira delas ocorrera em Paris, no ano de 1851; a segunda em 1859, na mesma cidade; a terceira, em 1866, em Constantinopla; a quarta, em 1874, em Viena; a quinta, em

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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 200-1. 15 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 79. 16 A peste negra, por exemplo, teria sido responsável pela dizimação de aproximadamente 30 milhões de pessoas na Europa. Cf. LUCENET, Monique. La peste, fléau majeur. Disponível em: . Acesso em 14 jan 2014.

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1881, em Washington; na sequência, em Roma (1885), Veneza (1892), Dresde (1897), Paris (1894) e Veneza (1897). 17 No ordenamento jurídico brasileiro, o direito à saúde foi previsto pela primeira vez na Constituição de 1934. O capítulo sobre a ordem econômica e social e o sobre a família, a educação e a cultura são representativos da democracia social instalada pela primeira vez na história do constitucionalismo brasileiro.18 Sob influência europeia do pós-guerra e dos preceitos do Welfare State, diversos direitos sociais foram previstos na segunda constituição republicana.19 No capítulo sobre a competência concorrente, no art. 10, II, estabeleceu-se que competia à União e aos Estados in verbis “cuidar da saúde e assistencia publicas”. Embora tratasse da saúde como um direito público subjetivo legal, não o considerava direito público subjetivo, já que a constituição deixou a cargo do legislador infraconstitucional o encargo, por intermédio de leis ordinárias, da criação do direito à assistência sanitária, apenas prevendo a distribuição das competências entre os entes federativos.20 Assim, caso a lei não criasse o direito subjetivo do indivíduo à saúde, tal direito não poderia ser oponível contra o Estado.21 Previa, também, no título sobre a ordem econômica e social, no art. 138, “a”, como competência da União, Estados e Municípios, verbis “assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços sociaes, cuja orientação procurarão coordenar”, além de “f”, “adoptar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de hygiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissiveis”. Segundo Pontes de Miranda, o art. 138 era meramente programático, inexistindo qualquer direito subjetivo público ao que promete.22 Por conta disso, o temor da população de que as promessas legais não 17

VENTURA, Deisy. Direito e saúde global: o caso da pandemia de gripe A(H1N1). São Paulo: Outras Expressões; Dobre Editorial, 2013, p. 61-2. 18 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 326. 19 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 325. 20 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 337. 21 Conforme lições de Caio Mário da Silva Pereira, “O direito subjetivo, traduzindo, desta sorte, um poder no seu titular, sugere de pronto a ideia de um dever a ser prestado por outra pessoa [...] suscetível de expressão na fórmula poder-dever: poder do titular do direito exigível de outrem; dever de alguém para com o titular do direito. O dever pode ser um tipo variável: dar, tolerar ou abster-se; enquanto o direito será sempre o mesmo, isto é, o poder de exigir o cumprimento do dever.” In Instituições de direito civil.Vol. I. 21ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p, 36. 22 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 375.

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passassem de meras construções jurídicas era enorme nesse período.23 O autor vislumbrava somente dois efeitos provocados por estas promessas não cumpridas: o passo atrás da desconfiança da população em relação às leis ou o passo à frente das derrocadas violentas.24 Revoltando-se contra a redação desse artigo, ainda asseverou: “Não é o que devia ser. Precisaria obrigar a União, os Estados-membros, por meio de destinação compulsória de verbas, ou de porcentagem das suas rendas, à execução do programa que no art. 138 se contém.”25 O art. 140 também dispunha: “A União organizará o serviço nacional, de combate ás grandes endemias do paiz, cabendo-lhe o custeio, a direcção technica e administrativa nas zonas onde a execução do mesmo exceder as possibilidades dos governos locaes.” Esse artigo estabelecia a competência da União, Estados-membros e Municípios para a execução do serviço de saúde pública de combate às grandes endemias, sendo de competência da União aquilo que excedesse às possibilidades locais dos Municípios e dos Estados-membros.26 A Constituição de 1937, outorgada durante a vigência do Estado Novo, foi fruto das influências da Constituição da Polônia, do fascismo e do nazismo. 27 Caracterizava-se por uma burocracia estatal com pretensões legislativas e um Poder executivo extremamente forte e centralizado no Presidente.28 Estabelecia em seu art. 16, XXVII, que competia privativamente à União legislar sobre “normas fundamentaes da defesa e protecção da saude, especialmente da saude da creança”. Conforme Pontes de Miranda, a utilização da expressão privativamente do caput desse artigo prescrevia que a lei federal somente delegaria aos Estadosmembros a faculdade de legislar sobre normas para a defesa e proteção da saúde, caso se tratasse de questão de interesse predominantemente deles.29 Mais adiante, em seu art. 18, “c”, prescrevia que os Estados, independentemente de autorização

23

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 375. 24 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 375. 25 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 375. 26 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos E.U. do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936, p. 377. 27 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 345-6. 28 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 339. 29 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo I. Rio de Janeiro: Guanabara, 1938, p. 375.

22

da União, poderiam legislar, no caso de haver lei federal sobre a matéria, a fim de suprir-lhes as deficiências ou atender às peculiaridades locais, desde que não dispensassem ou diminuíssem as exigências da lei federal, ou, em não havendo lei federal e até que esta regulasse a respeito da “assistencia publica, obras de hygiene popular, casas de saude, clinicas, estações de clima e fontes medicinaes.” Assim, à União cabia legislar sobre as normas fundamentais30 em matéria sanitária e aos Estados-membros e Municípios, por delegação dela, suprir as omissões parciais ou totais dessas, seja pelo não regramento das peculiaridades locais, seja pela completa falta de regramento pela União.31 Na verdade, apesar da expressa previsão do direito sanitário, sob o regime ditatorial de Getúlio Vargas, somente os artigos 180 e 186 dessa constituição tiveram efetividade.32 Esses dispositivos impunham, em razão do “estado de emergência”, o monopólio da função legiferante nas mãos do Presidente que se realizava por decretos-leis.33 As suas vinte e uma emendas são representativas do império das conveniências e caprichos governamentais.34 Nesse cenário, o direito à saúde não se enquadrava nas prioridades políticas da época.35 Em repúdio ao autoritarismo implementado pelo regime do Estado Novo, movimentos nacionais provocaram a sua queda, dando início ao processo de redemocratização do país.36 Foi promulgada, então, a Constituição de 1946. Embora tenha viabilizado a volta da democracia, por ter sido formada à luz dos ideais das constituições

de

1891

e

1934,

foi

considerada

um

retrocesso

do

constitucionalismo.37 Em relação ao direito sanitário somente previa a competência legislativa da União para editar normas gerais de defesa e proteção da saúde (art. 5º, XV, “b”). Essa competência, segundo Pontes de Miranda, era concorrente com a Pontes de Miranda esclarece que “Normas fundamentais são aquelas que a União considera essenciais um plano ou programa de defesa e protecção da saúde, ainda que se especialize arespeito de endemias ou de epidemias, ou a-respeito da infância, da maternidade, ou da velhice”. In Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo I. Rio de Janeiro: Guanabara, 1938, p. 479. 31 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo I. Rio de Janeiro: Guanabara, 1938, p. 480. 32 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 77. 33 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 77. 34 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 85. 35 SWARTZ, Germano; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A tutela antecipada no direito à saúde: a aplicabilidade da teoria sistêmica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p.43. 36 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 355. 37 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 87. 30

23

dos Estados-membros e Municípios, uma vez que o art. 5º, XV, “b” só atribuiu à União legislar sobre normas gerais e diretrizes e bases.38 O autor defende que, por conta disso, apesar de não previsto expressamente, se ocorressem eventuais lacunas deixadas pela União, os Estados-membros e Municípios poderiam preenchê-las por suas legislações, uma vez que essa possibilidade estava prevista na constituição antecessora (art. 18, parágrafo único) e, por interpretação lógica, esse entendimento estaria implícito na Constituição de 1946.39 Na tentativa de prover um arcabouço jurídico para o golpe militar de 1964, é promulgada em 24 de janeiro de 1967 a Constituição de 1967, na presidência do Marechal Arthur da Costa e Silva.40 A carta de 1937 foi a inspiração do novo regime autoritário, que promoveu a suspensão de direitos e o aumento dos poderes da União e do Presidente da República.41 Em seu art. 8º, XIV tratava da competência da União para “estabelecer planos nacionais de educação e de saúde.” A Constituição deixou a cargo do legislador infraconstitucional, por intermédio de lei ordinária, estabelecer os termos em que os direitos e garantias fundamentais seriam exercidos.42 As mudanças em relação à constituição antecessora não foram significativas quanto ao direito sanitário, não havendo qualquer avanço para a sua efetivação.43 O movimento para reinstaurar a democracia iniciou-se assim que se instalou o poder do Comando Militar Revolucionário em 1964. Organizações civis, entidades populares, imprensa, advogados, estudantes, professores, trabalhadores e políticos da oposição se mobilizaram para a investidura legítima dos representantes do poder.44 O movimento das Direitas-Já foi o que mais marcou a luta da população para a sucessão presidencial pelo voto direto.45 38

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição 1946. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1960, p. 12. 39 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição 1946. Tomo II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1960, p. 8-14. 40 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 88. 41 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 89. 42 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 447. 43 SWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 46 44 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 456. 45 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 6ª edição. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 456.

24

A redação da Constituição de 1988, promulgada em 5 de outubro daquele ano, diferentemente das constituições anteriores, teve ampla participação popular, pelo que lhe foi atribuída a expressão de Constituição Cidadã pelo então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães.46 Tratou-se, pela primeira vez na história brasileira, da saúde como direito fundamental. No Capítulo II, do Título II, art. 6º prevê-se que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Ademais, no Título VIII, sobre a ordem social, em seu art. 196, dispõe: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Além disso, o novo modelo de Estado Democrático de Direito previsto no art. 1º, da constituição vigente, incorpora um novo componente revolucionário de transformação do status quo, cuja tarefa fundamental é superar as desigualdades sociais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social.47 Assim, o Poder Público passa a ter o compromisso de concretizar os ditames constitucionais especialmente aqueles que se relacionam com os direitos fundamentais, no intuito de alcançar os seus objetivos fundamentais.

2.2) Ainda

A efetivação dos direitos sociais que

tardio,

foram

inúmeros

os benefícios

ocasionados pelo

reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais, representando verdadeiro avanço ideológico. Em contrapartida, promoveu-se a proliferação dos direitos e, por conta disso, apresentaram-se barreiras a ser transpostas para a sua efetivação, uma vez que, para a sua concretização e proteção, necessita-se de uma intervenção mais positiva do Estado, que gera custos vultosos.48

46

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 33ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 92. 47 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 33ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 119-22. 48 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 72.

25

Cumpre ressaltar, por oportuno, que todos os direitos, seja de que geração for, reclamam gastos do erário para a sua implementação.49 Até para o exercício dos direitos de primeira geração (de liberdade em relação ao poder estatal) é preciso que se mantenham estruturas estatais que os garantirão.50 Segundo as lições de Holmes e Sunstein, todos os direitos reclamam gastos governamentais.51 É preciso manter financeiramente os órgãos que irão monitorar, supervisionar e garantir a realização das liberdades, através do pagamento de salários das pessoas que exercerão esse encargo, dos materiais utilizados por eles, entre outros. Por conta disso, os autores defendem a tese de que até mesmo os direitos de liberdade reclamam uma atuação positiva do Estado.52 Não se pode negar, todavia, que o dispêndio de recursos governamentais na implementação de direitos sociais não é equivalente ao gasto com os direitos de liberdade. Além das despesas com a manutenção dos órgãos governamentais de monitoramento e supervisão de sua realização, a efetivação dos direitos sociais, diferentemente dos direitos de primeira geração, depende, essencialmente, de uma prestação positiva do Estado. Para promover a saúde à população, por exemplo, é preciso que o Estado mantenha toda uma estrutura de hospitais, postos de saúde, medicamentos, funcionários, ambulâncias, entre outros. E esses serviços e materiais são significativamente mais onerosos. É claro que os direitos sociais também possuem um status negativo.53 O Poder Público não poderá restringir o acesso a eles por meio de atos ou omissões arbitrárias que venham a obstaculizar o seu exercício. Afirma-se, portanto, que a diferença existente entre os direitos sociais e os direitos de primeira geração é que a despesa governamental com as políticas públicas dos primeiros é mais vultosa do que a dos segundos. A concretização dos direitos sociais encontra, nesse sentido, sério desafio a ser superado, já que a sua 49

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York: Norton, 200, p. 131. 50 SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In SOUZA NETO,Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p 591. 51 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York: Norton, 200, p. 522. 52 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York: Norton, 200, p. 575. 53 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5.

26

exigência prestacional, muitas vezes, colide com a limitação de meios e recursos do Estado.54 Por conta desse desafio, os direitos sociais passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade e a sua eficácia era considerada duvidosa. 55 Essa falta de efetividade, ainda nos dias de hoje, deve-se ao fato de que a maior parte das constituições ocidentais apresenta os direitos sociais como “objetivos”, “fins” ou “princípios” e que, por isso, não seriam exigíveis perante o Estado.56 Por muito tempo, não se concebia a uma autoridade judicial o poder de determinar qualquer atuação ao Executivo ou ao Legislativo, em função da interpretação restritiva do princípio da separação dos poderes. Essa concepção originariamente foi sistematizada na doutrina alemã, no início dos anos de 1950, e entendia que não se tratava de direitos garantidos constitucionalmente invocáveis de forma autônoma perante os tribunais.57 Esse, todavia, não é o entendimento que predomina na atualidade. Conquistada a partir do neoconstitucionalismo,58 a nova técnica de interpretação da Constituição, assim como o reconhecimento da supremacia de suas normas, impedem que se permita que os direitos nela contidos sejam lesados ou ameaçados de lesão indiscriminadamente. Caso isso fosse possível, ocorreria a falência da própria ordem jurídica e institucional do Estado, conforme prescreve o art. 5º, XXXV.59 Além disso, como se fundamentará nos próximos tópicos deste trabalho, a judiciabilidade dos direitos e o controle das políticas públicas que os implementam, nada mais são do que o controle da constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo, no exercício da harmonia entre os poderes. 54

PIOVESAN, Flávia. Direitos Sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos. Disponível em . Acesso em 14 out. 2012. 55 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 518. 56 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5. 57 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5. 58 Conforme desenvolvido no capítulo sobre a evolução da judicialização no Brasil, o precedente para essa interpretação foi o caso Marbury versus Madison, julgado pelo Chief Marshall, em 1803, na Suprema Corte Americana. 59 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor: 1991, p.32.

27

2.3)

O conceito e as dimensões do direito à saúde

Assim como os demais direitos sociais, o conceito de direito à saúde vai variar de acordo com o contexto em que se insere. Há inúmeros registros de doenças que ameaçaram a sobrevivência da humanidade ao longo de sua história. Nos tempos bíblicos, a lepra, a peste e a cólera; na Índia e na China, a varíola; na Idade Média, na Europa, a peste negra; no século XVI, a sífilis, entre outras doenças.60 Os povos primitivos, privados de recursos tecnológicos e científicos, tinham sempre uma explicação mística dos fenômenos naturais e, segundo essa concepção, acreditavam que o doente era vítima de demônios e de espíritos malignos.61 Os assírios e babilônios atribuíam a entidades malignas a causa de suas doenças, cujo tratamento consistia no exorcismo pelo uso de amuletos e rituais às divindades invocadas.62 Foram os gregos os primeiros povos a promover o total rompimento entre a saúde e o mágico/divino.63 Hipócrates (460 a.C.–377 a.C.) certamente foi o seu precursor, tendo afirmado em seu texto sobre a doença sagrada: “A doença chamada sagrada não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada que qualquer outra doença; tem uma causa natural e sua origem supostamente divina

60

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 28. 61 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 14. 62 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 12. 63 Alguns autores defendem que os primeiros traços de afastamento do mágico foram verificados no povo judeu, que, sem se desligar totalmente do sentido religioso, circuncisavam seus recémnascidos para evitar o acometimento de futuras doenças, como a herpes genital. Ver SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 29. Entretanto, a razão para a circuncisão dos recém-nascidos parece ser essencialmente religiosa, uma vez que esta recomendação se encontrava no antigo testamento, com o objetivo de aproximação de Deus e do homem, verbis: “Disse mais Deus a Abraão: Tu, porém, guardarás a minha aliança, tu, e a tua descendência depois de ti, nas suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: Que todo o homem entre vós será circuncidado. E circuncidareis a carne do vosso prepúcio; e isto será por sinal da aliança entre mim e vós. O filho de oito dias, pois, será circuncidado, todo o homem nas vossas gerações; o nascido na casa, e o comprado por dinheiro a qualquer estrangeiro, que não for da tua descendência. Com efeito será circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por teu dinheiro; e estará a minha aliança na vossa carne por aliança perpétua. E o homem incircunciso, cuja carne do prepúcio não estiver circuncidada, aquela alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha aliança.” In Livro da Gênesis, capítulo 17, versículos 9-14.

28

reflete a ignorância humana."64 O autor grego demonstrou, através de pesquisas de observação qualitativas, que o local e o tipo de vida influenciavam a saúde da população.65 Com a queda do Império Romano e a ascensão do feudalismo, no entanto, a saúde pública sofreu um grande retrocesso. Na Idade Média, como a Igreja promovia enorme influência política, o contato com os médicos árabes e judeus detentores do conhecimento médico científico foi condenado, promovendo o retorno de práticas supersticiosas.

66

Do ponto de vista dos cristãos, a doença era uma

punição pelos pecados cometidos.67 A cura para escrófula (tuberculose linfática), denominada na época Mal du Roi, estava, literalmente, nas mãos do rei.68 A imposição das mãos do monarca com a proclamação dos dizeres: “eu te toco, Deus te cura”, seria a salvação dos enfermos.69 Esse pensamento foi imortalizado pela obra de Antoine-Jean Gros que se segue:70

64

Apud SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 30. 65 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 24-5. 66 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 30. 67 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 31. 68 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p.30. 69 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 30. 70 Embora a obra não tenha sido confeccionada após a Idade Média, ela representa o pensamento exarado.

29

Bonaparte visitando os pestilentos de Jaffa em 11 de março de 1799 (1804)

Fonte: reprodução de Wikimedia Commons (Museu do Louvre)

A obra encomendada por Napoleão Bonaparte retrata a visita deste a sua tropa, que havia sido acometida pela peste bubônica. Apesar das controvérsias existentes71, no episódio, Napoleão teria tocado as feridas de um dos soldados para curá-las. Somente a partir da segunda metade do século XIX é que a saúde retornou ao seu caminho científico. A preocupação em manter a saúde do trabalhador para que o projeto capitalista não fosse prejudicado foi a maior responsável por este retorno.72 A preocupação era tamanha que, em 23 de julho de 1851, ocorreu em Paris a I Conferência Sanitária Internacional, da qual participaram doze países, ocasião em que convencionariam sobre regras mínimas de saúde pública, ligadas ao comércio e a navegação.73

71

Alguns autores sustentam que Napoleão nunca tocara efetivamente os doentes. Cf. GRIGSBY, Darcy Grimaldo. Rumor, contagion and colonization in Gros´s Plague-Stricken of Jaffa (1804), Representations n. 51, 1995, p. 7. 72 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 33. 73 VENTURA, Deisy. Direito e saúde global: o caso da pandemia de gripe A(H1N1). São Paulo: Outras Expressões; Dobre Editorial, 2013, p. 62.

30

Entretanto, o marco teórico-referencial do conceito de saúde somente viria com a criação da Organização Mundial da Saúde.74 No documento de sua constituição, conceituou a saúde como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” 75 A adoção desse conceito, entretanto, sofre algumas críticas no que concerne à amplitude da expressão estado de completo bem-estar (pois pode variar muito sua concepção de uma pessoa para outra), bem como à provável limitação orçamentária para proporcioná-lo, conforme ressalta Schwartz.76 Apesar da complexidade do tema e da diversidade de conceitos, há concordância da doutrina especializada quanto aos aspectos curativo, preventivo e promocional da saúde.77 Após um estudo aprofundado acerca do assunto, sustenta-se que o conceito de direito à saúde, para efeitos de aplicação do art. 196, da CF/88, constitui um conjunto de políticas públicas coordenadas que objetiva a prevenção e a cura de doenças para a promoção da melhoria da qualidade de vida ao indivíduo e à coletividade. A partir desse conceito é que se limitarão todos os outros aspectos que envolvem o direito à saúde e a sua tutela jurisdicional. Os termos dimensões e gerações são utilizados pela doutrina para classificar os direitos fundamentais de acordo com o seu reconhecimento histórico. Conforme adverte Ingo Wolfgang Sarlet, a adoção dessa classificação não representa o esquecimento de seu processo cumulativo e complementar.78 O surgimento de uma nova geração de direitos não representa a substituição da anterior, mas sim a sua reinterpretação.79 Tendo estas premissas em mente, a adoção dessa classificação, para fins didáticos, revela-se pertinente.

74

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: 2001, p. 35. 75Constitution of The World Health Organization. Disponível em: < http://www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf> . Acesso em 21 jun 2013. 76 SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Direito à saúde: abordagem sistêmica, risco e democracia. Revista de Direito Sanitário. Vol. 2. Nº 1, março 2001, p. 30. 77 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 81. 78 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 45. 79 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. I. Porto Alegre: Antonio Sergio Frabis Editores, 1997, p. 24-5.

31

Segundo a doutrina, os direitos podem ser classificados de primeira, de segunda e de terceira dimensões.80 Os direitos de primeira dimensão seriam aqueles ligados à liberdade dos indivíduos em relação ao Estado. Estão compreendidos, nessa dimensão, os direitos que reclamam uma postura de abstenção do estado na esfera individual.81 Os de segunda dimensão, opostamente, são aqueles em que o Estado é chamado a fornecer aos indivíduos condições de exercerem o seu bem-estar.82 Por fim, os direitos que se relacionam com a ideia de solidariedade, de titularidade transcendente ao indivíduo, pertenceriam à terceira dimensão.83 O direito à saúde pode ser enquadrado nas três dimensões apresentadas. É direito de primeira dimensão na medida em que reclama do Estado uma abstenção quanto à imposição de obstáculos ao seu exercício, seja por ações ou omissões. Ou seja, o Estado está proibido de interferir na possibilidade de o indivíduo recorrer às políticas públicas implementadas para a sua consecução. É também direito de segunda geração por estar inserido no rol dos direitos sociais, que asseguram o exercício dos direitos de liberdade e requer do Estado um facere para a promoção de seu bem-estar. Além disso, pertencem à terceira dimensão dos direitos, pois sua titularidade não se restringe ao indivíduo. Sendo o bem jurídico (saúde) indivisível e de titularidade indeterminada, pois possui natureza difusa. As políticas nacionais e internacionais de saúde não visam a assegurar a sobrevivência somente das gerações existentes mas também das gerações futuras.

2.4)

O financiamento das políticas públicas da saúde

A positivação dos direitos sociais, conforme já dito, provocou uma enorme transformação no desenvolvimento do Estado e do Direito no sentido da concretização dos direitos fundamentais. Essa concretização é promovida por intermédio de políticas públicas, as quais consistem, segundo Maria Paula Dallari 80

Esclarece-se que a doutrina utiliza as expressões dimensões e gerações como sinônimas. Embora parte da doutrina ainda aponte existir uma terceira e quarta gerações, considerar-se-á o posicionamento majoritário com a divisão tripartite. Para outras divisões, consultar BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p. 524. 81 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 517. 82 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das letras, 1991, p. 127. 83 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 48-9.

32

Bucci, “num conjunto de medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública.”84 O Estado, por sua vez, realiza as políticas públicas com os recursos das receitas obtidas como resultado de sua atividade financeira. A receita pública, que é composta pela arrecadação dos tributos – impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios, preços públicos, multas, participações nos lucros e dividendos das empresas estatais, empréstimos, etc. - é que irá subsidiar essas políticas.85 E, por fim, os gastos do Estado com a realização das políticas públicas passam a ser considerados despesas públicas, que serão previstas em seu orçamento. Surgido no Estado Moderno86, o Estado Orçamentário prevê em sua Constituição a disciplina básica do orçamento público, estabelecendo princípios e regras que tratam da receita e da despesa; fixando a receita tributária e a patrimonial; distribuindo rendas; promovendo o desenvolvimento econômico e equilibrando a economia, tudo de acordo com o planejamento por ele estabelecido. 87 Aliomar Baleeiro conceitua orçamento como o ato em que: [...] o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei.88

84

BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública. In GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: estudos e pareceres. 2ª Edição. São Paulo: DPJ, 2009, p. 14. 85 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.3. 86 Conforme leciona Ricardo Lobo Torres, o Estado Orçamentário surge na época da derrocada do feudalismo pelas grandes revoluções, quando aparece a necessidade da periódica autorização para lançar tributos e efetuar gastos, primeiro na Inglaterra, na Magna Carta de 1215, e depois na França, Espanha, Portugal e no Brasil, ainda na Constituição Imperial de 1824, em seu art. 172, que estabelecia: “O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros Ministros os orçamentos relativos ás despezas das suas Repartições, apresentará na Camara dos Deputados annualmente, logo que esta estiver reunida, um Balanço geral da receita e despeza do Thesouro Nacional do anno antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despezas publicas do anno futuro, e da importancia de todas as contribuições, e rendas publicas.” In Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.171. 87 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.171-2. 88 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 17ª edição revisada e atualizada por Hugo de Brito Machado Segundo. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 521.

33

Embora o orçamento seja uno89, o legislador constituinte estabeleceu três formas de seu planejamento. Estas formas, previstas no art. 165, da Constituição vigente, consistem no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual. A tripartição do planejamento orçamentário, segundo Ricardo Lobo Torres, constituiu-se sob a influência da Constituição da Alemanha, que prevê o eine Mehrjahrige (art. 109, 3), equivalente ao plano plurianual, Haushaltsplan (art. 110), plano orçamentário, e Haushaltsgesetz (art. 110), lei orçamentária.90 De todas as três formas de planejamento, o plano plurianual é a mais abstrata de todas, pois estabelece os programas e metas governamentais de longo prazo (quatro anos).91 As diretrizes orçamentárias tratam das orientações ou sinalizações de caráter anual para a feitura do orçamento, tendo natureza formal, assim como o plano plurianual.92 Por seu turno, a lei orçamentária compreende o orçamento fiscal, o de investimentos das empresas estatais e o da seguridade social, 93 constituindo a norma orçamentária mais concreta de todas, uma vez que estabelece a destinação específica das receitas públicas, bem como os programas a serem desenvolvidos pelo ente no espaço de um ano. A partir dessa premissa, inevitável é, portanto, reconhecer que direitos demandam recursos financeiros e que estes não podem ser protegidos ou impostos sem fundos ou suporte públicos.94 Além disso, o papel do administrador e do legislador nesse processo é que definirá o sucesso ou o fracasso das políticas públicas.

2.5)

O sistema único de saúde e os seus princípios

Somente na Constituição de 1988 é que o direito à saúde foi classificado como um direito fundamental. Essa conquista foi proporcionada, pelo “Movimento da Ricardo Lobo Torres leciona que “o princípio constitucional da unidade já não significa a existência de um único documento, mas a integração finalística e a harmonização entre os diversos orçamentos.” In Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.118. 90 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.172. 91 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.172. 92TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.174. 93 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 17ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.175. 94 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York: Norton, 200, p. 131 89

34

Reforma Sanitária”95, ao poder constituinte. Antes da promulgação da constituição vigente, as políticas de saúde eram desenvolvidas quase que exclusivamente pelo Ministério da Saúde, conforme dispunha a Lei nº 6.229/75, que regulamentava o então Sistema Nacional de Saúde. Entretanto, por alcançar uma classe específica (trabalhadores da economia formal, segurados do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS – e dependentes), o sistema não poderia ser considerado universal.96 Para aqueles que não possuíam a carteira do INPS “restavam a atenção ambulatorial provida por unidades de medicina simplificada e a atenção hospitalar prestada por entidades filantrópicas aos indigentes.”97 O art. 198, da Constituição vigente, estabelece que: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes”. O sistema único a que se refere esse dispositivo é o Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pela Lei nº 8.080/90, a chamada Lei Orgânica da Saúde e pela Lei nº 8.142/90. O SUS é dirigido pelo órgão setorial do Poder Executivo e pelo Conselho de Saúde de cada esfera de governo.98 Dois colegiados de negociação principais são responsáveis pelo processo de articulação do SUS: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e a Comissão Intergestores Bipartite (CIB). A primeira é composta por representação do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais (CONASEMS). A segunda é integrada por representação da Secretaria Estadual de Saúde (SES) e do Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS). O número de membros da CIB variará de acordo com o número de municípios e unidades sanitárias de cada estado. A criação do SUS objetivou, principalmente, a promoção da equidade sanitária da população em geral, independentemente do poder aquisitivo de seus beneficiários.99 95

BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS 20 anos. Brasília: CONASS, 2009, p. 17. Disponível em: < http://www.conass.org.br/publicacoes/sus20anosfinal.pdf>. Acesso em jun. 2013. 96 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 96. 97 BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Para entender a gestão do SUS. Brasília: CONASS, 2007, p. 30. Disponível em: < http://www.conass.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=59&Itemid=28> . Acesso em jun. 2013. 98 MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 69-70. 99 MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 68-9.

35

A prestação dos serviços sanitários do SUS é feita pelas unidades de saúde públicas ou privadas, sendo estas últimas as contratadas pelo gestor público de saúde, por intermédio de contratos e convênios, de modo a complementar o atendimento.100 O setor público será prestado por órgãos e instituições públicas de todos os entes da federação conforme estabelece o art. 4º, da Lei 8.080/90.101 As mudanças mais expressivas trazidas pela criação do SUS, na Constituição de 1988, foram a universalidade e a igualdade de assistência a toda a população e consistem, atualmente, em seus princípios constitucionais. Esses princípios garantem que os serviços de saúde serão prestados a todos os indivíduos indistintamente, sem qualquer condição de filiação ou necessidade de pagamento de contribuição prévia.102 Os princípios infraconstitucionais norteadores do SUS estão previstos no art. 7º, da Lei nº 8.080/90103, dos quais destacamos: a) universalidade (I) ao acesso aos serviços em todos os serviços de assistência; b) integralidade (II), na medida em que todos os serviços, sejam eles curativos ou preventivos, individuais ou coletivos, serão prestados a seus usuários de forma integral; c) igualdade (IV), assegurando o tratamento igualitário, sem quaisquer privilégios ou preconceitos em relação às pessoas; d) publicidade (VI), no sentido de que serão divulgados à população os 100

MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 70-1. Prescreve o art. 4º: “[...] conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público [...]”. 102 HENRIQUES, Flávia Vieira. Direito prestacional à saúde e atuação jurisdicional. In SOUZA NETO, Cláudio; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 829-30. 103 Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII - participação da comunidade; IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos.(grifos nossos) 101

36

serviços prestados pelo sistema; e) descentralização (IX), referente à organização político-administrativa, com o intuito de facilitar o acesso aos assistidos; e f) conjugação de recursos (XI), que diz respeito à responsabilidade solidária entre os entes da federação para o custeio dos serviços prestados. Além da Lei Orgânica da Saúde, existe, também, a Lei nº 8.142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade e as transferências intergovernamentais de recursos do SUS. Outros instrumentos normativos também disciplinam Normas Operacionais Básicas – NOBs – que objetivam reorientar e operacionalizar o SUS, a partir de avaliações periódicas de seu desempenho.104

2.6)

O financiamento do SUS

Para que os serviços sanitários sejam prestados à população, conforme dispõe o texto constitucional, é necessário que haja um sistema de financiamento eficaz e permanente, de forma a atendê-la satisfatoriamente. Sabe-se que a saúde compreende o conjunto integrado de ações de seguridade social e, portanto, o constituinte tratou de seu financiamento nos artigos 194 e 195. O financiamento do SUS será promovido, além de outras fontes, com os recursos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme prescreve o art. 198, §1º, da Constituição, provenientes da seguridade social, nos termos do art. 195:

A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III - sobre a receita de concursos de prognósticos. IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.

104

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para a sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 97.

37

A partir da redação desse artigo, infere-se que há, basicamente, quatro fontes de receita para o financiamento dos serviços de seguridade social: toda a sociedade; os ingressos contributivos dos empregadores; as contribuições devidas pelos próprios trabalhadores e segurados, bem como dos importadores de bens e serviços. A contribuição da sociedade pode dar-se de forma direta ou indireta. Indiretamente, participa através do pagamento de impostos que formarão os orçamentos dos entes federativos e toda vez que um apostador joga na loteria esportiva, pois parte desses recursos será destinada à seguridade social (art. 195, III). A forma de participação direta ficou a cargo do legislador infraconstitucional regulamentar.105 Os trabalhadores e demais segurados contribuem com um percentual sobre os seus salários que lhes são descontados automaticamente. 106Conforme advertem Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, a acepção da expressão salário é distinta daquela utilizada no Direito do Trabalho, abrangendo, também, o preço dos serviços do trabalho dos autônomos, avulsos, dirigentes, administradores... 107 A contribuição dos empregadores se dá por meio de pagamento de uma fração de seu faturamento, independentemente de sua atividade. Assim, qualquer empregador que aufira renda, será obrigado a contribuir com a seguridade social.108 Por fim, a contribuição do importador de bens e serviços é realizada por intermédio do pagamento dos impostos de importação fixados na legislação tributária. Ocorrida a hipótese de incidência, o importador estará obrigado a pagar o imposto de importação. O §2º, do art. 198, da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional nº 29, dispõe sobre os recursos mínimos provenientes das receitas dos entes da federação a serem gastos com a saúde. Estabelecendo, porém, em seu §3º, que o percentual mínimo seria regulamentado por lei complementar, a ser reavaliada a cada cinco anos. Por quase doze anos, por omissão do legislador infraconstitucional, 105NASCIMENTO,

Tupinambá Miguel Castro do. A ordem social e a nova constituição. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 19. 106 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. A ordem social e a nova constituição. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 21. 107 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 665. 108 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 664.

38

aplicou-se a regra prevista no art. 77, do ato das disposições constitucionais transitórias (que, pela excessiva demora injustificada, pareceu mais uma regra permanente), que dispunha: Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes: I - no caso da União: a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999, acrescido de, no mínimo, cinco por cento; b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto - PIB; II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. § 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que apliquem percentuais inferiores aos fixados nos incisos II e III deverão eleválos gradualmente, até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à razão de, pelo menos, um quinto por ano, sendo que, a partir de 2000, a aplicação será de pelo menos sete por cento § 2º Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze por cento, no mínimo, serão aplicados nos Municípios, segundo o critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma da lei.

Somente em janeiro de 2012 é que a Lei Complementar nº 141 foi editada, regulamentando o §3º, do art. 198, da Constituição, prevendo os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios nas políticas públicas de saúde. A lei também prevê os critérios de rateio dos recursos de transferência, normas de fiscalização, avaliação e controle dessas despesas nas três esferas de governo. Apresenta-se, em síntese, o sistema de financiamento do SUS109: a)

a parcela orçamentária destinada à seguridade social, nos termos do

art. 198, §1º, da Constituição Federal; b)

o montante correspondente ao valor empenhado no exercício

financeiro anterior, da União, apurado nos termos desta Lei Complementar, 109

AVELÃS NUNES, António José; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 89-90.

39

acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual, conforme estabelece o art. 5º, da Lei Complementar nº 141/12; c)

no mínimo 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos

estaduais e do Distrito Federal, a que se refere o art. 155 (ITCMD, ICMS e IPVA) e dos recursos de que tratam o art. 157 (IRRF – pago por eles, suas autarquias e fundações; e do percentual que lhe for repassado em virtude da competência residual da União), a alínea “a” do inciso I (IRRF- do que receber do fundo de participação dos Estados) e o inciso II do caput do art. 159 (IRRF – da parcela que lhe for transferida pela União a título de IPI- Exportação), todos da Constituição Federal, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios, na forma do art. 6º, da Lei Complementar nº 141/12; d)

no mínimo 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos

municipais a que se refere o art. 156 (IPTU, ITBI e ISS) e dos recursos de que tratam o art. 158 (IRRF – pago por eles, suas autarquias e fundações; da parcela que arrecadar diretamente, ou lhe for transferida pela União, relativa ao ITR; da parcela que lhe for transferida pelos Estados a título de IPVA; e da parcela que lhe for transferida pelos Estados a título de ICMS) e a alínea “b” do inciso I do caput (IRRF – do que lhe for transferido a título do fundo de participação dos Estados) e o § 3º do art. 159 (IRRF – da parcela que lhe for transferida pelos Estados a título de IPI-Exportação), todos da Constituição Federal, conforme prevê o art. 7º, da Lei Complementar nº 141/12. Apesar desse mínimo previsto, no ano de 2008,segundo dados do Ministério da Saúde, 13 dos 27 estados da federação não cumprem com o estabelecido no art. 6º, da Lei Complementar nº 141/12, investindo menos do que o percentual mínimo de 12% na saúde, entre os quais se destacam alguns dos mais populosos do país, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, conforme demonstra o quadro abaixo:

40

Porcentagem de investimentos de cada estado da federação no ano de 2008 AM

21,39

SC

11,74

RN

17,77

MT

11,26

DF

16,12

PB

11,25

AC

15,23

AL

10,77

RR

14,52

RJ

10,75

TO

13,63

ES

10,39

PE

13,54

MA

9,88

AP

13,12

PR

9,84

SP

12,44

CE

9,64

MS

12,25

GO

9,51

BA

12,23

PI

9,01

RO

12,19

MG

8,65

PA

12,12

RS

4,37

SE

12,07

Fonte: quadro de confecção própria a partir do elaborado por Maria Tereza Sadek 110

A penalidade para o desrespeito à regra que estabelece o mínimo a ser aplicado nas ações e serviços públicos de saúde prevista no art. 37, VII, “e”, da Constituição é a intervenção federal.111 Todavia essa penalidade até hoje ainda não foi aplicada em relação ao Estado de Minas Gerais, foco deste estudo. Constata-se, pois, que é a própria sociedade quem paga a conta das despesas do Brasil com a saúde e, por consequência disso, o aumento do gasto no setor, em última análise, poderá gerar a necessidade de majorar a arrecadação, onerando ainda mais os contribuintes.112 Numa comparação com outros países da América Latina, a situação do Brasil também não demonstra ser motivo de orgulho.

110

SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 27. 111 AVELÃS NUNES, António José; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 89. 112 AVELÃS NUNES, António José; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 90.

41

Segundo dados de 2011, coletados pela Organização Mundial da Saúde, o país ocupa o terceiro lugar quanto ao financiamento de suas despesas com recursos do seu produto interno bruto (47%), ficando atrás somente de Cuba e do Equador, conforme demonstra o gráfico abaixo: General government expenditure (GGE) % GDP

Fonte: Organização Mundial da Saúde

Desses 47%, dos recursos provenientes do produto interno bruto, somente 9% são destinados à saúde, ocupando o Brasil, em razão disso, a décima sétima posição, dos vinte países analisados. General gov ernment expendit ure on healt h % GGE

42

Fonte: Organização Mundial da Saúde

De todo o seu produto interno bruto, o Brasil gasta somente 4% com a saúde, ficando em posição inferior a países latino-americanos como Cuba, Costa Rica, Panamá,Uruguai, Argentina, Colômbia e Dominica. General gov ernm ent ex pendit ure on healt h %GD P

Fonte: Organização Mundial da Saúde113

Diante do cenário apresentado, constata-se que as políticas públicas sanitárias, no Brasil, estão abaixo do esperado pelo legislador constitucional e muito longe dos padrões internacionais praticados por países sul-americanos. Em consequência disso, o constante aumento da judicialização desse direito passa a ser, no mínimo, compreensível.

113

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Disponível . Acesso em 19 jun. 2013.

em:

43

3)

A

JUDICIALIZAÇÃO

DA

POLÍTICA

NA

ORDEM

JURÍDICA

BRASILEIRA

3.1) A teoria da separação dos poderes como princípio constitucional Desde o seu surgimento, a teoria da separação dos poderes tem gerado uma das maiores controvérsias doutrinárias e dogmáticas que, segundo Nuno Piçarra, vai da total rejeição à apologética, ganhando diversas acepções diferentes e, muitas vezes, divergentes, que dificultam a sua compreensão.114 Cinco dessas acepções são apontadas pelo autor português em sua clássica obra sobre o tema, quais sejam:

1º. Distinção entre os conceitos de legislativo, executivo e judicial, para designar, quer funções estaduais distintas, quer os órgãos que respectivamente as exercem. 2º. Independência ou imunidade de um órgão estadual, quanto ao(s) seu(s) titular(es) ou quanto aos seus actos, perante a acção ou interferência de outro. 3º. Limitação ou controlo do poder de um órgão estadual mediante o poder conferido a outro órgão de anular ou impedir a perfeição dos actos do primeiro, ou mediante a responsabilização de um perante o outro. 4º. Participação de dois ou mais órgãos, independentes entre si, da mesma função estadual, em ordem à prática de um acto imputável a todos. 5º. Incompatibilidade de exercício simultâneo de cargos em diferentes órgãos estaduais.115

Todas as acepções, porém, possuem um ponto de convergência, segundo o qual pretende-se impedir que qualquer dos órgãos estatais chegue a controlar, sozinho, a totalidade do poder estatal, promovendo, assim, a entrega de uma fração desse poder a órgãos distintos, situação em que cada um constituirá perante o outro, concomitantemente, o seu freio e o seu contrapeso. 116 Conforme leciona Nuno Piçarra, a análise da teoria da separação dos poderes não pode desligar-se de sua dimensão histórica.117Assim, mais importante que 114

PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 11-2. 115 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 12. 116 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 13. 117 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 15.

contributo contributo contributo contributo

44

discorrer sobre as acepções da teoria da separação dos poderes, torna-se necessário avaliar a sua contextualização histórica, uma vez que toda teoria reflete os questionamentos existentes em sua época. Embora sejam apontadas origens remotas da teoria da separação dos poderes na Grécia e Roma antigas, pelo conceito de constituição mista de Aristóteles (na Grécia) e de Políbio e Cícero (em Roma)118, é certo que a sua origem próxima é associada, quase que automaticamente, a Charles de Montesquieu, por sua clássica obra Esprit des Lois, mais precisamente contida no capítulo VI, do livro XI, intitulado De la Constitution d´Angleterre.119 Há autores que defendem que John Locke e Bolingbroke seriam os precursores da teoria desenvolvida por Montesquieu e que, portanto, a origem das ideias propostas na obra O Espírito das Leis é inglesa. 120 Para Nuno Piçarra, a doutrina da separação dos poderes surgiu, pela primeira vez, na Inglaterra, no século XVII, estreitamente ligada à ideia do rule of law (Estado de Direito). Essa ideia foi concebida durante a guerra civil inglesa (1642-1649), momento em que houve a divisão orgânico-pessoal entre a função legislativa e a função executiva e, consequentemente, a definitiva rejeição do absolutismo, em 1689, com a Declaração de Direitos de 13 de fevereiro (Bill of Rights).121 Em sua clássica obra O Espírito das Leis (Esprit des lois), Montesquieu desenvolve a divisão tripartida dos poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário.122 A ideologia que guiava esse filósofo era a da existência de prerrogativas jurídicas inerentes à natureza humana que, por essência, eram anteriores e superiores ao Estado. Por isso, seria necessário limitar a atuação deste

118

PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 31-40. 119 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 19. Segundo Piçarra, apesar de Montesquieu não ter sido o inventor da teoria da separação dos poderes, nem ter sido o primeiro a propô-la com os sentidos, alcance e objetivos que é conhecida, a associação desta ao seu nome é automática. PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 89. 120 Como Vile, M. J. C. Constitucionalism and the Separation of Powers. Indianápolis: Liberty Fund. Inc, 1998, p. 83 e Dedieu, Joseph. Montesquieu et la tradition politique anglaise en France. Disponível on line: < http://archive.org/stream/montesquieuetlat00dediuoft#page/14/mode/2up>. Acesso em 30 jun. 2013, p. 10. 121 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 44-5 e 65. 122 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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através da delimitação de sua estruturação organizacional, a fim de evitar o abuso do poder.123 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, transformou o princípio da separação de poderes em verdadeiro dogma constitucional 124, dispondo em seu art. 16: “Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos Poderes, não tem constituição.” Por muito tempo, mais precisamente até o início do século XX 125, imperou a interpretação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu como uma divisão absoluta das três principais funções do Estado, segundo a qual um órgão não poderia interferir no desempenho das funções do outro. Entretanto, há alguns anos, vários autores vêm defendendo que a estrita interpretação da teoria da separação dos poderes além de não corresponder ao real anseio de Montesquieu, não passa de um mito.126 Eisenmann demonstra que essa interpretação errônea não se sustenta nem na própria obra do filósofo francês, argumentando nesse sentido que nela há a previsão: a) da possibilidade de intervenção do rei no Legislativo através do poder de veto; b) da possibilidade de o Legislativo exigir dos ministros conta da sua administração; e c) da possibilidade de julgamento dos nobres pela Câmara dos Pares.127 Estando a Constituição condicionada à sua realidade histórica, a pretensão de sua eficácia somente pode ser verificada levando-se em conta essa realidade.128 Nessa linha é o pensamento de Nuno Piçarra, que esclarece que “o tratamento dogmático-constitucional do princípio da separação dos poderes faz-se a partir da 123

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 164.5. Cabe esclarecer, por oportuno, que o objetivo central da mudança para o modelo de democracia moderno foi o de extinguir os antigos privilégios do clero e da nobreza, tornando o governo responsável perante a classe burguesa, e não a defesa do povo pobre contra a minoria rica, ver em COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 49. 124 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional. 4ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 114. 125 ALTHUSSER, Loius. Montesquieu: la politique et l´histoire. Disponível em: http://dajialai.org/ziliao1/%CE%F7%B7%BD%D0%C2%D7%F3%C5%C9/%A1%BE%B0%A2%B6%F B%B6%BC%C8%FB%A1%BF%C3%CF%B5%C2%CB%B9%F0%AF%A3%BA%D5%FE%D6%CE% D3%EB%C0%FA%CA%B7%A3%A8%B7%A8%CE%C4%A3%A9.pdf P.100. Acesso em 13 mar. 2013. 126 EISENMANN. L´Esprit des lois et la separation des pouvoirs. Vendôme: Presses Universitaires de Fance, 1992, p. 98. 127 EISENMANN. L´Esprit des lois et la separation des pouvoirs. Vendôme: Presses Universitaires de Fance, 1992, p. 101. Esclarece-se que é verdade que o autor não menciona quando o Judiciário poderia interferir nos atos dos outros poderes. 128 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 24.

46

análise de uma constituição concreta em vigor”129, não preexistindo à sua vigência, mas construindo-se a partir dela. No atual modelo do Estado Democrático de Direito, a interpretação restritiva do princípio da separação dos poderes não só é insustentável, como também incompatível com a ordem jurídica. Os anseios da sociedade contemporânea, que passa de um Estado de legalidade formal para um Estado de direito material, residem no sentido de buscar a concretização dos direitos dos cidadãos. A separação dos poderes deve ser interpretada como um pressuposto institucional para a garantia dos direitos fundamentais e não para a sua restrição. Nuno Piçarra leciona que, somente perante tribunais independentes, é que o indivíduo poderá combater as violações a direitos por parte de outros poderes do Estado, sendo a separação dos poderes uma decisão sobre a organização do poder político-estadual.130 Atualmente, portanto, a doutrina da separação dos poderes deve ser encarada como uma técnica de arranjo da estrutura política do Estado, implicando a sua distribuição por diversos órgãos e de forma não exclusiva e harmoniosa. Essa postura não só permite o controle recíproco entre os poderes como também a manutenção das garantias individuais consagradas no decorrer da evolução da humanidade.131

3.2)

O controle de constitucionalidade

Mauro Cappelletti remonta a origem do controle de constitucionalidade, em sua clássica obra sobre o assunto, à Antiguidade, em Atenas, já que, segundo ele, já existia um sistema complexo de revisão das leis consideradas inadequadas.132 Entretanto, é certo que a redefinição desse controle se deu no caso Marbury v. Madison. A Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1803, pelo voto de seu presidente, Marshall, firmou o entendimento acerca da possibilidade de se controlar a adequação de uma lei à Constituição, sob três principais argumentos: a) a supremacia da Constituição, na medida em que se encara o referido diploma legal 129

PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 16. 130 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 191. 131 TAVARES, André Ramos. A superação da doutrina tripartite dos “poderes” do Estado. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Vol. 29, p. 66, Out 1999, p. 69. 132 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2ª edição. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 49.

47

como lei fundamental e suprema da nação; b) a nulidade da lei que contrarie a Constituição, como consequência do primeiro argumento; e c) que o Poder Judiciário é o intérprete final da Constituição.133 Após a Guerra da Secessão norte-americana (1861-1863), o perfil das cortes federais também se transformou, passando a interferir nos atos administrativos estaduais. Abram Chayes descreve essa mudança de paradigma, citando casos como: a dessegregação de escolas, discriminação de emprego das mulheres, casos envolvendo direito de prisioneiros, lei antitruste, fraude financeira, questão sindical, fraude contra o consumidor, questões eleitorais, entre outras questões.

134

Fábio

Konder Comparato explica as transformações apontadas por Chayes sobre a chamada public law litigation: Observou-se, assim, que a sua estrutura diferia do processo tradicional em vários pontos. Os autores não litigam por interesse próprio, mas agem sem mandato na defesa de interesses coletivos. O objetivo da demanda não é resolver um litígio composto de fatos já acontecidos, mas editar normas de conduta para guiar o comportamento do réu no futuro. O provimento judicial não é necessariamente imposto, mas com frequência negociado entre as partes. O juiz não decide questões de direito sobre a interpretação de normas jurídicas, mas soluciona problemas de natureza econômica ou social, com o auxílio dos mais diferentes expertos, para criar normas gerais a partir dos fatos presentes e da evolução previsível.135

A Constituição é a norma superior que vincula a forma de produção das leis e dos demais atos normativos, de modo que a contrariedade a esses mandamentos enseja o exercício de seu controle. A construção do princípio da supremacia da constituição foi a grande façanha do controle de constitucionalidade e representa um forte fundamento para a atual interpretação do princípio da separação dos poderes. O controle jurisdicional não mais se restringe à verificação da constitucionalidade das leis mas sim de todos os atos do Estado, no desempenho de todas as suas funções.

133

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3ª edição. p.08. CHAYES, Abram. The role of the judge in public Law litigation. Harvard Law Review. Vol. 89.19751976, p. 1284. 135 COMPARATO, Fábio Konder. Novas funções judiciais no Estado moderno. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. Vol. 4, mai 2011, p. 720. 134

48

Principalmente após o surgimento dos direitos sociais, o papel do juiz se transformou significativamente. Por serem esses direitos carecedores de uma intervenção primordialmente ativa do Estado, no sentido de proporcionar meios para que o indivíduo possa usufruir destes, seja através da manutenção da estrutura de um hospital ou de escolas, seja no efetivo fornecimento de medicamentos ou de materiais didáticos. Normalmente, a atividade do Estado, no âmbito administrativo e legislativo, exterioriza-se por intermédio de um conjunto de ações coordenadas que objetivam realizar os seus objetivos. Esse conjunto de ações, conforme já dito, denomina-se política pública. As políticas públicas são, originariamente, de competência dos Poderes Legislativo e Executivo, sendo o primeiro responsável pela criação de normas que irão definir quais serão as políticas públicas a serem adotadas, regulamentando os seus critérios de execução e o segundo é incumbido de executá-las, materializando aquilo que o Poder Legislativo idealizou. Não é incomum, entretanto, que o titular de algum direito, diante da inexistência ou da insuficiência de políticas públicas empregadas, venha a recorrer ao Judiciário, amparado no art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988. Com base nesse dispositivo constitucional, busca-se a tutela de seus direitos constitucionalmente assegurados. Esse fenômeno, denominado judicialização da política, possibilita que o juiz passe de mero aplicador da lei (boca da lei) a verdadeiro protagonista da arena pública.136 O controle judicial de políticas públicas (judicial review), por sua vez, como sustenta Ada Pellegrini Grinover: [...] nada mais representa do que um controle de constitucionalidade, no sentido de verificar se a política pública é adequada aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, fixados no art. 3º da Constituição, e aos direitos fundamentais prestacionais enumerados no art. 6º, implementando-a em caso de omissão ou corrigindo-a em caso de inadequação.137

Portanto, constata-se que o ativismo judicial, no sentido de promover a constitucionalidade das políticas públicas empregadas pelos Poderes Legislativo e 136

SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 31. 137 Texto ainda não publicado.

49

Executivo, não fere o princípio da separação harmônica dos poderes. Pelo contrário, é a exteriorização da sua aplicação.

3.3) A efetivação dos objetivos fundamentais da República à luz do neoconstitucionalismo A expressão neoconstitucionalismo consiste no estado do constitucionalismo contemporâneo, o qual opera segundo as seguintes premissas metodológicoformais: a) a normatividade; b) a centralidade; e c) superioridade da Constituição. 138 O texto constitucional, à sua luz, figura no centro do sistema jurídico e sua força normativa é dotada de supremacia formal e material, funcionando, assim, como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.139 É certo que a expressão neoconstitucionalismo não se traduz em mudanças radicais de pensamento acerca do constitucionalismo moderno, mas sim o redirecionamento do seu enfoque. O que é novo no atual Estado Democrático de Direito140 é que os atos das funções legislativa, administrativa e judicial devem, para ser legítimos, coadunar-se com os preceitos constitucionais, sob pena de sua invalidade ou até nulidade. O objetivo principal desse modelo de Estado é, na verdade, a transformação da realidade social. Conforme esclarece José Afonso da 138

BARCELOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e políticas públicas. Disponível em: < http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/artigo_controle_pol_ticas_p_blicas_.pdf>, p. 28. Acesso em 14 mar. 2013. 139 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: . Acesso em 14 mar. 2013. 140 Importante esclarecer acerca das diversas nomenclaturas ao mesmo assunto, conforme Ingo Wolfgang Sarlet: “Já que iniciamos pelo aspecto ´semântico´ da questão, cumpre evitar que nos enredemos na própria teia e sejamos, também nós, vítimas das armadilhas das quais nos falava o ilustre articulista, um dos mais destacados e ferrenhos representantes do pensamento liberal (no melhor estilo "neo") pátrio. Assim, até por falta absoluta de espaço para enfrentarmos o problema, haveremos de partir do consenso, em termos do que se poderia chamar de "acordo semântico", a respeito da terminologia "Estado Social de Direito", que aqui utilizaremos ao invés de outras expressões, tais como "Estado- Providência", "Estado de Bem-Estar Social", "Estado Social", "Estado Social e Democrático de Direito", "Estado de Bem-Estar" ("Welfare State"). Muito embora nem todos atribuam às expressões referidas exatamente o mesmo sentido, e respeitadas as diferenças entre os diversos modelos, cumpre reconhecer que, mesmo cada uma das terminologias utilizadas, já (mas não exclusivamente) pela sua inevitável abertura semântica, tem sido objeto das mais diversas interpretações e definições quanto ao seu conteúdo e significado. Todas, porém, apresentam, como pontos em comum, as noções de um certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais mínimas para uma existência digna.” Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. I, n. 1, 2001, p.04. Disponível em: . Acesso em 03 nov 2012.

50

Silva, o Estado Democrático de Direito apenas abre as perspectivas de realização social pela prática dos direitos sociais nela instituídos, além dos exercícios dos instrumentos de cidadania.141 Fábio Konder Comparato, dissertando sobre as novas funções judiciais do Estado, assevera que a contribuição da Revolução Industrial para a transformação do

Estado

contemporâneo

não

foi

no

sentido

da

criação

das funções

governamentais ativas, já que estas sempre existiram mas sim pelo fato de ter provocado “a mudança do eixo central das atividades estatais da legislação para a administração, da proclamação e aplicação do Direito para a elaboração e execução de programas de ação”, ressaltando que: Mais do que isso: os objetivos ou resultados a serem alcançados por essas políticas passaram a se impor, doravante, como normas obrigatórias, ao próprio governo, pois a finalidade do Estado já não é a conservação, mas a transformação da sociedade. O sistema jurídico como um todo tende, assim, a ser organizado em função desses objetivos concretos das políticas públicas. 142

Ainda segundo Comparato, a grande política pública nacional deve ser aquela que visa a superar as desigualdades sociais básicas, bem como a melhorar constantemente as condições de vida da população, devendo a Constituição se colocar num nível superior às demais leis e atos do Poder Público, sujeitando-se, portanto, ao controle de constitucionalidade pelos respectivos tribunais incumbidos “de zelar pela harmônica atuação dos Poderes constitucionais.”143 A Constituição de 1988 estabelece em seu art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

141

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 124. 142 COMPARATO, Fábio Konder. Novas funções judiciais no Estado moderno. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional .Vol. 4 , mai 2011, p. 718-9. 143 COMPARATO, Fábio Konder. Novas funções judiciais no Estado moderno. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional.Vol. 4, mai 2011, p. 722.

51

Na busca por alcançar os objetivos expostos, verifica-se que a efetivação dos direitos demonstra-se imprescindível e prioritária, sob pena da própria frustração do direito. A Constituição, por si só, não realiza nenhuma ação, mas apenas orienta a conduta de todos os órgãos estatais e indivíduos.144 Em consequência disso, são os atos desempenhados pelos agentes do Estado que irão representar a sua força normativa.

Assim, a verificação da constitucionalidade, seja por uma ação ou

omissão, é salutar para toda a ordem jurídica vigente.

3.4) A evolução da judicialização da política no Brasil e a judicialização da saúde Antes de aprofundar o tema, faz-se necessário esclarecer que a judicialização está ligada à possibilidade de um ou mais indivíduos, individual ou coletivamente, reclamarem a concretização dos direitos elencados em um texto normativo. O controle de políticas públicas está ligado à verificação da constitucionalidade e adequabilidade do desenvolvimento concreto das políticas empregadas pelo Poder Público, com um viés essencialmente coletivo, na medida em que possibilita a sua regularização em caso de descompasso. Como no controle das políticas públicas o Poder Judiciário poderá corrigir eventuais omissões ou equívocos empregados pelos demais poderes145, a análise do processo poderá ser realizada de forma muito mais ampla do que na judicialização individual. Nesta, os efeitos do provimento jurisdicional estarão limitados ao universo dos polos envolvidos no processo, que pode ser tão somente o indivíduo. No controle jurisdicional de políticas públicas, os efeitos desse provimento serão globais, atingindo os possíveis beneficiários dessas políticas. Nesse diapasão, o controle de políticas públicas somente pode ser realizado coletivamente, em seu sentido lato, abrangendo os direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos. A judicialização, em contrapartida, pode também realizar-se de forma individual, sendo, portanto, o controle de políticas públicas uma espécie do gênero judicialização. Apesar de se tratar de conceitos diferentes, tanto a judicialização quanto o controle jurisdicional de políticas públicas, como se desenvolverá no presente trabalho, possuem as mesmas causas e os mesmos efeitos diante do Poder Público.

144

HESSE, op cit., p. 19. GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011. 145

52

Em ambos os casos, o Poder Judiciário estará influenciando no desenvolvimento dessas políticas, de forma indireta ou direta. A partir desse raciocínio, pode-se constatar, inclusive, que a judicialização, quando realizada através da tutela coletiva, terá o adequado (e inevitável) efeito do controle jurisdicional das políticas públicas. Sabe-se que o Estado possui os seus escopos sociais, políticos e jurídicos, em sua maioria, previstos na Constituição. Caso esses objetivos não sejam concretizados de forma espontânea, surge para aquele que sofre lesão ou ameaça ao seu direito, a possibilidade de buscar essa efetivação através do processo, de tutela individual ou coletiva, no pleno exercício do seu direito de ação. Segundo a doutrina de Teoria Geral do Processo “o processo é [...] um instrumento a serviço da paz social”.146 O fenômeno da judicialização da política pode ser entendido, portanto, como a busca pela concretização de um direito legalmente previsto que, por ação ou omissão do Poder Público, não foi devidamente efetivado. Diversas são as causas da judicialização, podendo ser apontadas quatro principais: 1) a ampliação do rol dos direitos fundamentais; 2) a abrangência do sistema de controle de constitucionalidade; 3) a inversão do papel do juiz de “boca da lei” para “protagonista da arena pública”147; e 4) a ineficiência dos Poderes Legislativo e Executivo em implementar as políticas públicas. A amplitude do rol dos direitos fundamentais trazida pela Constituição vigente é inegável. As constituições brasileiras anteriores previam um número muito menor de direitos fundamentais. O art. 5º da Constituição de 1988, que trata dos direitos e garantias fundamentais possui 78 incisos e o art. 7º, que trata dos direitos dos trabalhadores, por sua vez, chega a ter 34 incisos.148 Além disso, adotando-se uma interpretação ampliativa do art. 5º, §2º, a esse rol ainda podem ser acrescentados os direitos e garantias fundamentais provenientes de tratados adotados pelo Brasil. Apesar de estarem em seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, os direitos fundamentais ainda sofrem com a sua falta de prestígio. Isso acarreta, paradoxalmente, a sua fraqueza, que não tem a ver, necessariamente, 146

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 47. 147 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 22. 148 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 67.

53

com a sua extensão, mas com a sua (real) fundamentalidade e possibilidade de efetivação.

149

menciona

as

No que tange à (real) fundamentalidade, Ingo Wolfgang Sarlet normas

de

caráter

organizacional

que

poderiam

ter

sido

regulamentadas pelo legislador infraconstitucional, por exemplo, contidas nos artigos 12 a 17 da Constituição. Já em relação à (im)possibilidade de efetivação, alguns doutrinadores sustentam que “a Constituição não cabe no PIB”, na medida em que variáveis estranhas ao Direito obstaculizariam a concretização, principalmente dos direitos sociais.150 No que se refere à segunda causa apresentada, a crescente judicialização é explicada pelo sistema eclético adotado pelo Brasil, que combina o sistema difuso de controle de constitucionalidade, por influência norte-americana, com o sistema concentrado (europeu), sendo, por conta disso, considerado um dos mais abrangentes do mundo.151 Quanto à mudança do papel do juiz como protagonista da arena pública, por muitos anos, a figura do juiz foi apresentada como a “boca da lei”, proveniente do pensamento predominante no Estado Liberal.152 O perfil protagonista do juiz surge somente a partir de 1803, nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte daquele país, no julgamento do caso Marbury versus Madison, através do voto do Chief justice Marshall, firmou o entendimento acerca da possibilidade de se controlar a adequação de uma lei à Constituição. 153 Importantíssimas consequências jurídicas e políticas foram provocadas pelo voto do magistrado norte-americano,

inaugurando o

controle

de

constitucionalidade

moderno, no qual impera o princípio da supremacia da Constituição, que vincula a atuação de todos os Poderes estatais e firma a competência do Judiciário como o seu intérprete final.154

149

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 68-9. 150 Apud BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública. In GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: estudos e pareceres. 2ª Edição. São Paulo: DPJ Editora, 2009, p. 04. 151 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: < http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>, p. 3. Acesso em 03 jul. 2013. 152 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011, p. 125-6. 153 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e arena pública: um olhar a partir da Ciência Política. In O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011, p. 13. 154 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 10.

54

No Brasil, o marco da mudança desse perfil foi a partir da Lei da Ação Popular, em 1965, que abriu espaço para a apreciação do mérito do ato administrativo nas hipóteses previstas em seu art. 4º, II, “b” e V, “b”.155 A Constituição de 1988, todavia, deu status constitucional à possibilidade de apreciação do mérito dos atos do Poder Público, ao estatuir em seu art. 5º, LXXIII, a legitimidade a qualquer cidadão para o ajuizamento de ação popular visando, entre outras hipóteses, a combater ato lesivo à moralidade administrativa, o qual, segundo Ada Pellegrini Grinover, “não pode ser feito sem o exame do mérito do ato guerreado.”156 Entretanto, mesmo com a possibilidade do exercício do controle de constitucionalidade da atividade administrativa, admitida desde 1988, perdurou por muito tempo uma interpretação conservadora e equivocada. Segundo essa interpretação, não cabia ao Poder Judiciário interferir nas políticas empregadas pelo Legislativo e pelo Executivo, conforme o voto do então Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Cesar Asfor Rocha, da primeira turma, quando do julgamento do recurso ordinário em Mandado de Segurança nº 1.288-0/SP: ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TARIFAS DE TAXIS. LEGALIDADE DO ATO. NÃO OCORRENDO DEFEITO POR ILEGALIDADE DO ATO, TAIS A INCOMPETENCIA DA AUTORIDADE, A INEXISTENCIA DE NORMA AUTORIZADORA E A PRETERIÇÃO DE FORMALIDADE ESSENCIAL, E INCABIVEL O MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO QUE ESTIPULA TARIFA PARA OS SERVIÇOS DE TAXI. É DEFESO AO PODER JUDICIARIO APRECIAR O MERITO DO ATO ADMINISTRATIVO CABENDO-LHE UNICAMENTE EXAMINA-LO SOB O ASPECTO DE SUA LEGALIDADE, ISTO E, SE FOI PRATICADO CONFORME OU CONTRARIAMENTE A LEI. ESTA SOLUÇÃO SE FUNDA NO PRINCIPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, DE SORTE QUE A VERIFICAÇÃO DAS RAZÕES DE CONVENIENCIA O DE OPORTUNIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ESCAPA AO CONTROLE JURISDICIONAL DO ESTADO. RECURSO IMPROVIDO. (ROMS 1.288-0/SP, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, data do julgamento 02/05/1994) (grifo nosso)

155

GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011, p. 127. 156 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011, p. 127.

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Por muito tempo, predominou o entendimento de que o controle dos atos do Poder Público estaria restrito à análise de sua legalidade, o que importava dizer que era defeso ao Poder Judiciário a verificação da adequabilidade, da conveniência e da oportunidade daqueles.157 O mérito administrativo era entendido como um procedimento que atenderia o interesse público.158 Esse posicionamento doutrinário defendia que o mérito apresentava-se como a ponderação pessoal da autoridade administrativa sobre determinados fatos e que, portanto, aspecto algum deste poderia ser revisado pelo Judiciário.159 Sob esse prisma, ao administrador cabia a escolha pela solução que entendia, segundo a sua privativa compreensão da realidade, para a realização dos fins públicos.160 Essa escolha, entretanto, não poderia sofrer nenhum tipo de controle, o que consistia num verdadeiro “cheque em branco” ao administrador, que frequentemente acarretava abusos.161 Hodiernamente, boa parte da doutrina162 e da jurisprudência163 vem admitindo a possibilidade de análise do mérito administrativo, principalmente quando se trata de políticas públicas. A última causa apresentada é atribuída à ineficiência dos poderes originariamente incumbidos de implementar políticas públicas. A título de exemplo, no que tange ao Poder Legislativo, podemos citar o caso do art. 198, §2º, da Constituição, no qual o legislador constituinte deixou a cargo da Lei Complementar a regulamentação dos percentuais mínimos do orçamento a serem gastos com a Esse ainda é o posicionamento de José dos Santos Carvalho Filho, que sustenta que: “o controle judicial sobre atos da Administração é exclusivamente de legalidade. (...) O que é vedado ao Judiciário, como corretamente têm decidido os Tribunais, é apreciar o que se denomina normalmente de mérito administrativo, vale dizer, a ele é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e oportunidade dos atos, que são privativos do administrador público.” In Manual de Direito Administrativo. 23ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 967. 158 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade administrativa: críticas e propostas. In Revista Eletrônica de Direito do Estado, p. 10. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-21JANEIRO-2010-SERGIO-GUERRA.pdf>. Acesso em 17 out. 2013. 159 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 273-4. 160 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade administrativa: críticas e propostas. In Revista Eletrônica de Direito do Estado, p. 10. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-21JANEIRO-2010-SERGIO-GUERRA.pdf>. Acesso em 17 out. 2013. 161 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 196. 162 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 969; MEDAUAR, Odete. Controle jurisdicional da Administração. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 213-4. 163 STF, AgR RE nº 410.715/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJU 3.2.2006. STF, MS nº 20.999, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 21.03.1990; STJ, REsp nº 440.502, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 24.09.2010. 157

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saúde, o que foi feito somente em 2012, pela Lei Complementar nº 141. 164 No caso do Poder Executivo, conforme demonstrou Maria Tereza Sadek com base em dados de 2008, 13 dos 27 estados da Federação descumpriam o percentual mínimo que deveria ser destinado à saúde.165 Apesar de estar entre os quinze países de maior produto interno bruto, o Brasil possui o antigo problema da desigualdade social, que faz com que a grande maioria de sua população dependa completamente da implementação de políticas públicas para o acesso, principalmente, aos direitos sociais,166que são, muitas vezes, inexistentes ou insuficientes. Para corroborar esse entendimento, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, até dezembro de 2011, 13,3 milhões de famílias foram contempladas com benefícios do Programa Bolsa Família, que é destinado à transferência direta de renda para as famílias com renda per capita de até R$ 70,00, consideradas, por esse motivo, em situação de pobreza e extrema pobreza.167 Essa situação pode fomentar, inclusive, as práticas governamentais clientelistas, ou seja, que visam a favorecer um determinado grupo de pessoas como troca de favores entre quem detém o poder e quem vota, reclamando, por isso, um maior controle dessas práticas.168 As consequências do controle jurisdicional dos atos do Poder Público, segundo Odete Medauar169, podem ser: a) a suspensão de atos ou atividades até a decisão final da ação ou por tempo determinado; b) a anulação, com ou sem modulação de efeitos; c) a imposição de uma obrigação de fazer; d) a imposição de uma obrigação de não fazer (ou de abster-se de algo); e) a imposição de pagar; f) a imposição de indenizar (a qual pode ser inserida na imposição de pagar). 164

Cumpre mencionar que o art. 77 do ato das disposições constitucionais transitórias regulamentou, de 2000 a 2012, a fim de reduzir os efeitos da omissão legislativa, tais percentuais. 165 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 27. 166 SILVA, José Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In SOUZA NETO, Cláudio; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 587. 167 Disponível em: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia. Acesso em 17 jul. 2013. 168 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 109. 169 MEDAUAR, Odete. Controle jurisdicional da Administração. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 223-4.

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As críticas ao controle jurisdicional das políticas públicas podem ser apontadas em três principais grupos: a constitucional; a filosófica e a operacional.170 O primeiro grupo de críticas, constitucional, sustenta que a “(...) invasão pelo Direito, e pela Constituição em particular, do espaço próprio do pluralismo político produziria – alega-se – um grave desequilíbrio em prejuízos da democracia.”171 Argumenta-se que faltaria aos magistrados a legitimidade democrática para interferir nos atos do Poder Público. Rebatendo o argumento dos críticos ao controle jurisdicional de políticas públicas em relação à ausência, nesse tipo de controle, de participação democrática, Ana Paula de Barcellos, utilizando-se dos dados provenientes do Programa Bolsa Família de 2006 leciona: [...] Em condições de pobreza extrema ou miserabilidade, e na ausência de níveis básicos de educação e informação, a autonomia do indivíduo para avaliar, refletir e participar conscientemente do processo democrático estará amplamente prejudicada. Nesse ambiente, o controle social de que falavam os críticos do controle jurídico apresenta graves dificuldades de funcionamento.172

Ademais, não se pode ignorar que a deliberação acerca da formação do Judiciário foi uma decisão do constituinte, resultante de um processo político democrático. Também, a indicação dos membros de sua corte superior é submetida à aprovação do Poder Legislativo.173 A crítica filosófica sustenta que seria presunçoso imaginar que os magistrados tomariam melhores decisões em relação às políticas públicas que os agentes públicos encarregados dessa função, uma vez que não são mais sábios que

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Essa classificação é adotada por Ana Paula de Barcellos In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 107-116. 171 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 108. 172 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 109. 173 Conforme estabelece o art. 101, da Constituição de 1998: “O Supremo Tribunal Federal compõese de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.”

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estes.174 Segundo os defensores dessa crítica, a opinião de todos tem o mesmo valor.175 Em relação a essa crítica, inicialmente, deve ser ressaltado que o controle jurisdicional não atribuirá para si a gestão das políticas públicas de forma originária. O magistrado exercerá o controle de legalidade e, acima de tudo, de constitucionalidade do ato, tratando-se, portanto, de uma revisão judicial, e não da prática do ato em si. Os atos continuarão a ser praticados pelo Poder Público. O que muda é a titularidade da iniciativa deles, que partiria diretamente do titular do direito por intermédio do Judiciário. Além disso, no atual sistema democrático, não é exigido dos administradores, ou pelo menos dos chefes do Poder Executivo, conhecimento prévio e notório em gestão e administração públicas para a investidura no cargo, porque os requisitos se limitam aos estabelecidos nas normas eleitorais, que proíbe somente a candidatura de pessoa analfabeta. Isso quer dizer que não há garantia de que a pessoa eleita tenha mais conhecimento sobre a Administração que o jurista revisor de seu ato. Ademais, o argumento jurídico utilizado pelos magistrados nesse tipo de controle é, sem dúvida, legítimo e necessário quando se trata de finanças estatais. Para Ana Paula de Barcellos, o controle de políticas públicas em matéria de direitos fundamentais envolve fundamentos jurídicos, morais e técnico-científicos, que os juristas estão sim aptos a revisar e, por estarem incumbidos pelo art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988, de exercerem essa função, são igualmente legítimos para tanto.176 A derradeira crítica a ser analisada é a operacional. Segundo essa crítica, os juristas não teriam noção, principalmente quando se trata de ações de cunho individual, da ação estatal de forma global.177 Além disso, sugere que os indivíduos

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BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 111. 175 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 111. 176 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 114-5. 177 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo

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beneficiados com essas demandas nem sempre são pertencentes às classes menos favorecidas, o que aumentaria a desigualdade já existente.178 A não ser que essa crítica seja apoiada em estudo qualitativo detalhado, não se pode afirmar que a judicialização favorece pessoas de classes mais abastadas. Em estudo realizado no Estado de Minas Gerais no período compreendido entre 2005 e 2006, que abarcou a análise de 827 autos de processos judiciais, concluiu-se em concordância com a crítica operacional. Essa concordância baseouse no fato de que “grande parte dos pacientes que ingressaram no Poder Judiciário e solicitaram medicamentos ao gestor estadual do SUS em Minas Gerais foi atendida no sistema privado de saúde e procurou serviços particulares de advocacia”179, que totalizaram 60% dos casos analisados. Ainda segundo a pesquisa, “os pacientes que recorrem ao Poder Judiciário podem ter melhores condições socioeconômicas, considerando que podem arcar com as despesas processuais e podem ter maior conhecimento de seus direitos.”180 Talvez essa conclusão tenha sido precipitada em razão de não ter sido proferida por operadores do direito, mas por pesquisadores da área da saúde. Na práxis forense, o advogado muitas vezes deixa de cobrar honorários iniciais de seu cliente, limitando-se a receber os honorários a que se refere o art. 20, §3º, do Código de Processo Civil,181 no pleno exercício de sua função pública.

Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 115. 178 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 115. 179 MACHADO, Marina Amaral de Ávila; ACURCIO, Francisco de Assis; BRANDÃO, Cristina Mariano Ruas; FALEIROS, Daniel Resende; GUERRA JR, Augusto Afonso; CHERCHIGLIA, Mariângela Leal; ANDRADE, Eli Iola Gurgel. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Revista de Saúde Pública. Vol. 45, nº 3. São Paulo, junho-abril, 2011. Disponível em: . Acesso em 15 set. 2013. 180 MACHADO, Marina Amaral de Ávila; ACURCIO, Francisco de Assis; BRANDÃO, Cristina Mariano Ruas; FALEIROS, Daniel Resende; GUERRA JR, Augusto Afonso; CHERCHIGLIA, Mariângela Leal; ANDRADE, Eli Iola Gurgel. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Revista de Saúde Pública. Vol. 45, nº 3. São Paulo, junho-abril, 2011. Disponível em: . Acesso em 15 set. 2013. 181 É a redação do referido artigo: “A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria. (...) § 3º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez por cento (10%) e o máximo de vinte por cento (20%) sobre o valor da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional;b) o lugar de

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Além disso, para que se pudesse afirmar que, por conta da escolha do patrocínio por escritório particular, os titulares do direito possuem condições de arcar com as despesas processuais, não pode ser considerado como inequívoco, já que os critérios para o deferimento da assistência judiciária prevista na Lei nº 1.060, de 05 de fevereiro de 1.950, em nada têm a ver com o tipo de patrocínio elegido pela parte, conforme estabelece o parágrafo único do art. 2º, da citada lei: Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Parágrafo único. - Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

Assim, não raras vezes, o benefício da justiça gratuita é deferido àqueles que estão representados por advogado particular, conforme amplamente decidido pelos tribunais pátrios.182 Ademais, conforme se apurou no estudo acima citado, mais de 57% dos autores eram aposentados e donas de casa, o que remete a uma incoerência na conclusão exarada pelos referidos pesquisadores. Tudo isso exposto, é importante ressaltar que, na atualidade, o controle jurisdicional da Administração, conforme leciona Odete Medauar, possui uma conotação mais ampla que o simples controle jurisdicional do ato administrativo, “pois abrange a apreciação jurisdicional não somente dos atos administrativos, mas também dos contratos, das atividades ou operações materiais e da omissão ou inércia da Administração.”183

prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço.” 182 Podemos citar alguns casos: Nada impede a parte de obter os benefícios da assistência judiciária e ser representada por advogado particular que indique, hipótese em que, havendo a celebração de contrato com previsão de pagamento de honorários ad exito, estes serão devidos, independentemente da sua situação econômica ser modificada pelo resultado final da ação, não se aplicando a isenção prevista no art. 3º, V, da Lei nº 1.060/50, presumindo-se que a esta renunciou.(REsp 1.153.163/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 26/6/2012, DJe 2/8/2012); Para o deferimento da gratuidade de justiça, não pode o juiz se balizar apenas na remuneração auferida, no patrimônio imobiliário, na contratação de advogado particular pelo requerente (gratuidade de justiça difere de assistência judiciária), ou seja, apenas nas suas receitas. Imprescindível fazer o cotejo das condições econômico-financeiras com as despesas correntes utilizadas para preservar o sustento próprio e o da família. (AgRg no AREsp 257029 / RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª turma, julgado em 05/02/2013, DJe 15/02/2013) 183 MEDAUAR, Odete. Controle jurisdicional da Administração. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 185-6.

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Ana Paula de Barcellos defende ser lógica a relação entre controle jurisdicional de políticas públicas e a moderna teoria constitucional, argumentando que a inexistência do controle ensejaria o esvaziamento da normatividade de boa parte dos preceitos de direitos fundamentais, cuja implementação, em sua maioria, depende de políticas públicas. 184 Consoante o texto constitucional, qualquer nacional ou estrangeiro residente no país, tem direito à saúde e, caso esse direito seja lesado ou ameaçado de lesão, esses poderão submeter a pretensão à apreciação do Poder Judiciário, individual ou coletivamente, por intermédio de uma demanda. Diferentemente da maioria dos direitos fundamentais, a Constituição de 1988 apontou de forma específica, as porcentagens mínimas do “quanto gastar” com as políticas públicas de concretização do direito à saúde, o que faz com que a sua interpretação seja menos ampla do que em relação a direitos que o constituinte assim não estabeleceu. Conforme já foi dito, o parágrafo §3º da Constituição deixou a cargo de Lei Complementar a regulamentação do mínimo orçamental das esferas estatais a serem gastos com a promoção da saúde, o que foi realizado, ainda que tardiamente, pela Lei Complementar nº 141, em 2012. Por essa razão, pelo menos em relação ao mínimo constitucional estabelecido, não há razão para se discutir a possibilidade de exercer o controle da constitucionalidade do ato administrativo que não destinou tais porcentagens às políticas sanitárias. O controle dos atos do Poder Público de 13 estados da federação 185 poderia ter evitado o descumprimento da norma constitucional, bem como instruído ações de improbidade administrativa dos responsáveis pela má-gestão. Luciano Benetti Timm critica a abordagem, em artigos científicos, do senso comum de que “dinheiro há, o problema é que ele é mal administrado”. 186 Concorda-

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BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 107. 185 Conforme demonstra o estudo de Maria Tereza Sadek, 13 dos 27 estados não destinaram, em 2008, o mínimo de 12% de seu orçamento para custear políticas sanitárias. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 27. 186 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 55.

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se com a crítica do autor. Afinal, essa alegação genérica não tem o condão de justificar eventuais falhas de investimento do gestor na área da saúde. O senso comum desse argumento em nada contribuirá para a apresentação de propostas concretas e viáveis para a resolução do problema. O estudo do orçamento público e da constitucionalidade de sua administração demonstra ser de enorme importância para a problemática do fenômeno da judicialização dos direitos, principalmente no que tange ao direito sanitário, somente quando se dá de forma pormenorizada. Isso porque esse direito social está contido no mínimo essencial sem o qual não é possível a realização de qualquer outro direito. Portanto, a tutela jurisdicional desse direito deve ser realizada de forma adequada e criteriosa. Como se demonstrará nos capítulos seguintes deste trabalho, a utilização do instrumento processual inadequado pode atentar contra o próprio direito sanitário, caso os sujeitos processuais não considerem os efeitos maléficos que uma decisão de misericórdia187 pode provocar.

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Essa expressão é utilizada para aqueles casos em que mais se consideram os argumentos subjetivos do caso concreto que os argumentos jurídicos, nos quais o julgador passa a se sentir responsável pela vida ou morte do autor da demanda, deixando de analisar as regras processuais do caso concreto.

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4) A ANÁLISE ECONÔMICA DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ESTADO DE MINAS GERAIS 4.1) A análise econômica do direito A análise econômica do Direito é um método de proposição de problemas jurídicos sob uma perspectiva econômica.188 Embora existam várias definições para esse mesmo tema, adotar-se-á aquela que considera a análise econômica dos problemas jurídicos em face dos recursos orçamentários escassos, arrecadados por meio da legislação orçamentária previamente estabelecida e, por conta disso, devem ser empregados da maneira mais eficiente e otimizada possível, de modo a atender ao maior número de necessidades.189 Luciano Benetti Timm elucida que a Economia deve se aproximar e dialogar com o Direito por três razões principais: a) a Economia descreve o comportamento humano em interação com o mercado de forma mais adequada; b) A Economia é uma ciência social aplicada que apresenta um dos melhores padrões científicos; e c) a Ciência Econômica preza pela eficiência no manejo dos recursos escassos para o alcance do maior número das necessidades humanas, que são ilimitadas.

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Ainda segundo o mesmo doutrinador, a utilização de princípios econômicos para a realização de políticas públicas sociais seria importante, pois: Não é a essencialidade da necessidade (e do direito social positivado) que deve ser o ponto de partida para o problema, ela deve sim ser o ponto de chegada. [...] E o gasto com prioridades sociais, que atendam a um maior número de beneficiários mais necessitados, evitando o desperdício, tenderá a ser a melhor solução e, portanto, a mais justa.191

O autor defende, ainda, que o próprio constituinte estabeleceu, no caput do art. 170, da Constituição, a forma capitalista de organização social, verbis: “A ordem

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BUGALLO ALVAREZ, Alejandro. Análise econômica do Direito: contribuições e desmistificações. Vol.9, nº 29, p. 49-68, jul/dez 2006. 189 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 52. 190 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 53. 191 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 54.

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econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”, acrescentando que, a partir do referido dispositivo, as decisões dos atores sociais devem levar em conta, entre outros fatores, o preço.192 É claro que a defesa desse posicionamento não será eivada de implicações negativas. Na análise do caso concreto, será inevitável a ocorrência de “escolhas trágicas”, no sentido de que nem todas as necessidades (que são infinitas) poderão ser atendidas. Nesse sentido, por exemplo, pode-se chegar à conclusão de que, mais eficiente do que combater uma doença, pode ser aplicar os recursos para a prevenção de sua causa. Em matéria de políticas públicas, além da definição genérica de em que gastar, é ainda preciso decidir como gastar.193 Esclarece Ana Paula de Barcellos que as escolhas devem ser feitas à luz dos fins estatais previstos na constituição e, portanto, não estão reservadas às deliberações exclusivamente políticas mas também às normas jurídicas de ordem constitucional, principalmente no que se refere aos direitos fundamentais.194 Por essa razão, conforme se argumentará mais adiante, a correta escolha do instrumento processual pelo autor nas demandas que visam à tutela do direito à saúde terá enorme relevância para otimização dos recursos estatais.

4.2) O perfil da judicialização da saúde no estado de Minas Gerais A fim de melhor explorar o perfil da judicialização da saúde no estado de Minas Gerais foram utilizadas quatro fontes de pesquisa principais: o sistema SPDiSa; as informações contidas no sítio eletrônico da Superintendência de Planejamento e Finanças da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais; o Sistema de Registro Único do Ministério Público do Estado de Minas Gerais – área

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TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 56. 193 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 106. 194 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 106.

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da saúde; e os dados obtidos pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

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O Sistema de Pesquisa em Direito Sanitário (SPDiSa) é um sistema criado pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, que contém dados de 4.215 acórdãos publicados no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de Minas Gerais atinentes à judicialização da saúde no âmbito do Estado de Minas Gerais, no período compreendido entre o ano de 2000 a 2008. Os dados se referem, entre outros, ao tipo de ação, comarca, autor, réu, advogado, fatos do caso, pedido, sentença, dados da primeira instância, etc.196 Já o Sistema de Registro Único do Ministério Público do Estado de Minas Gerais é uma ferramenta eletrônica advinda do sistema de tabelas unificadas, criado pela Resolução nº63/2010 do Conselho Nacional do Ministério Público, objetivando a padronização e uniformização taxonômica e terminológica de classes, assuntos e movimentação processual judicial/extrajudicial, nas unidades do Ministério Público da União e dos Estados.197 Os pesquisadores do Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde” coletaram dados constantes nos acórdãos de segunda instância dos Tribunais de Justiça estaduais e federais dos

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O relatório final da pesquisa encontra-se disponível no apêndice deste trabalho, bem como em: http://cpja.fgv.br/sites/cpja.fgv.br/files/relatorio_final_judializacao_da_saude.pdf. Acesso em 31 ago. 2014. 196 O manual do SPDiSa encontra-se disponível em: < http://spdisa.esp.mg.gov.br/publico/manual_spdisa_1.pdf>. Acesso em 27 out. 2013. 197 Ver Tabelas Unificadas do Ministério Público brasileiro em: < http://www.cnmp.mp.br/tabelasunificadas/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid= 3>. Acesso em 11 dez. 2013. Segundo o site citado, os principais objetivos do sistema são: a) facilitar o fluxo de informações entre o Ministério Público e o Poder Judiciário, utilizando as mesmas nomenclaturas e estrutura de tabelas taxonômicas e, com isso, evitar retrabalhos, como recadastramentos de informações sobre processos judiciais, e reduzir custos;b) permitir a coleta de dados uniformes, em nível nacional, das diversas formas de atuação de todo o Ministério Público; c) gerar dados estatísticos confiáveis, necessários à elaboração do planejamento estratégico nacional e de cada um dos diversos ramos do Ministério Público; d) subsidiar a implementação de projetos voltados à resolução dos problemas e questões sociais de alta relevância; e) racionalizar e uniformizar o fluxo dos procedimentos extrajudiciais, facilitando e agilizando a movimentação dos feitos; f) melhorar o controle da movimentação processual e do tempo de duração dos procedimentos, permitindo a identificação dos principais obstáculos à sua rápida conclusão, bem como a adoção de medidas que busquem a celeridade processual; g) facilitar, com a padronização, o acesso e uso das informações relativas à atuação dos membros do Ministério Público em processos judiciais e procedimentos extrajudiciais, por usuários internos e externos; h) identificar os principais temas submetidos à investigação e atuação do Ministério Público, permitindo a adoção de medidas que previnam novos conflitos e novas demandas judiciais.

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Estados de São Paulo e de Minas Gerais, no período compreendido entre 2010 e 2012, relativamente às demandas que buscavam tutelar o direito à saúde.

198

No que

diz respeito ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, foram analisados 408 acórdãos dos quais foram extraídos dados como o tipo de ação (se individual ou coletiva), os efeitos das decisões (se individuais ou coletivos), autor, réu, patrocinador da causa (se advogado particular, Defensoria Pública, Ministério Público, outros legitimados coletivos...), pedido, entre outros. O principal objetivo da pesquisa foi a avaliação da forma pela qual conflitos coletivos, individuais e pseudoindividuais são levados ao judiciário, por intermédio da análise da judicialização do direito à saúde. Como o propósito da presente pesquisa é demonstrar o impacto das decisões judiciais no estado mineiro, foram selecionadas, nos sistemas citados, somente as decisões em que o Estado de Minas Gerais figurava no polo passivo das ações de primeira instância. O primeiro gráfico a ser apresentado representa a evolução da judicialização da saúde no Estado de Minas Gerais no período compreendido entre 2000 a 2008. Foram encontrados 2.316 registros, sendo 7 correspondentes ao ano de 2000; 15, ao ano de 2001; 35, ao ano de 2002; 49, ao ano de 2003; 117, ao ano de 2004; 166, ao ano de 2005; 352, ao ano de 2006; 563, ao ano de 2007; e 1.012, ao ano de 2008.

198

Apesar de a pesquisa ainda não ter sido divulgada oficialmente, teve-se acesso aos resultados pelo fato de esta autora pertencer ao quadro de pesquisadores participantes em conjunto com os professores Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Maria Tereza Sadek, José Reinaldo de Lima Lopes, Ligia Paula Pires Pinto Sica, Luciana de Oliveira Ramos, Natalia Langenegger, Vivian Maria Pereira Ferreira, Marcelo José Magalhães Bonício e Heitor Vitor Mendonça Sica.

67

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo SPDiSa

Como se pode observar, o volume de ações que visam à tutela do direito sanitário possui uma relação sempre crescente em relação ao tempo. A média de crescimento desse tipo de demanda é de 94%, sendo que, de ano para ano, a majoração foi sempre superior a 70%. O gráfico seguinte representa o percentual de procedência e improcedência dos pedidos formulados nas demandas que o Estado de Minas Gerais figurava como réu no período compreendido entre 2000 e 2008. Esclarece-se que, neste primeiro gráfico, não foram discriminados os tipos de tutela utilizados como instrumento (se ações individuais ou coletivas). Foram encontrados 692 registros. Destes, 642 registros de recursos obtiveram a procedência total e 28 a procedência parcial. Somente em 22 as decisões foram de improcedência. Contata-se, portanto, que, em 96% dos casos, o Estado é condenado a algum tipo de prestação em primeira instância.

68

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo SPDiSa

O terceiro gráfico representa a porcentagem de decisões de tutela de urgência (tutelas antecipadas ou liminares) concedidas ou não contra o Estado mineiro no mesmo período. Foram encontrados 2.267 registros. Em 2.017 destes, as tutelas de urgência requeridas foram deferidas e em 250, indeferidas, todas em primeira instância. Esses números demonstram que a regra praticada pelos órgãos de primeira instância é a da concessão das tutelas de urgência, totalizando 89% dos casos.

69

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo SPDiSa

O próximo gráfico trata dos tipos de ações demandadas, das opções fornecidas pelo sistema: ações ordinárias, ações civis públicas, ações cautelares e mandados de segurança (que o sistema não discrimina se individual ou coletivo). Foram encontrados 2.429 registros, sendo que 1.076 foram referentes a ações ordinárias, 21, a ações cautelares; 150, a ações civis públicas; e 1.182, a mandados de segurança.

70

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo SPDiSa

Numa análise dos dados referentes aos mandados de segurança, constatouse que a sua maioria tinha cunho individual. Além disso, em vários casos em que foi utilizado o instrumento das ações coletivas, o pedido contemplava somente um indivíduo. Pode-se notar, portanto, que o número de ações tipicamente individuais (ordinárias), ou que pretendiam a tutela dessa mesma natureza, é muito superior que o das ações coletivas. Inexpressiva é, pois, a utilização dos instrumentos coletivos para a proteção do direito em comento. Foi possível extrair, do sistema SPDiSa, dados em relação ao tipo de atuação do Ministério Público, se individual ou coletiva, através do pedido formulado em suas petições. Das 168 ações demandadas, 94 gerariam efeitos individuais se deferidas, 36 coletivos e 38 mistos. Em relação aos mistos, o sistema considerou aquelas demandas que pretendiam dúplice efeito, nas quais eram requeridas tutelas para uma pessoa específica e, simultaneamente, para aqueles que se encontrassem na

71

mesma situação do paradigma. Embora seja um dos poucos legitimados coletivos, percebe-se que o órgão ministerial ainda busca a tutela do direito à saúde por intermédio de ações de cunho individual.

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo SPDiSa

No quadro a seguir, pode-se verificar o impacto que a judicialização da saúde causa no orçamento do Estado anualmente no período compreendido entre 2002 e 2012. Em 2002, o estado gastou R$164.325,00 de seu orçamento anual para cumprir as decisões judiciais que o condenava a alguma obrigação de fazer. Em 2003, R$2.007.477,00. Em 2004, R$ 2.808.252,00. Em 2005, R$8.469.378,00; Em 2006, R$18.179.467,00. Em 2007, R$22.848.689,00; Em 2008, R$42.552.696,00. Em

2009,

R$32.456.797,00.

Em

2010,

93.893.237,00. E em 2012, R$142.999.785,48.

R$53.167.094,00.

Em

2011,

R$

72

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pela Superintendência de Planejamento e Finanças da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais

Conclui-se, a partir destes dados, que os gastos do Estado de Minas Gerais com a judicialização da saúde se tornam cada vez maiores, sofrendo um aumento médio anual de mais de 137%. Destacando que o maior aumento foi de 2002 para 2003, representando 610,85% e o menor foi de 2008 para 2009, de 38,13%. Quanto ao órgão ministerial, verificou-se que, embora a atuação do Ministério Público seja tímida em demandas que visam a um efeito coletivo da decisão judicial, ela é expressiva e crescente a cada ano nas demandas sanitárias, conforme representa o quadro a seguir:

73

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados fornecidos pelo Sistema de Registro Único do Ministério Público do Estado de Minas Gerais – área da saúde

Os gráficos seguintes representam o perfil da judicialização no Estado de Minas Gerais dos anos de 2010 a 2012, coletados pela pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, no Projeto Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde. Das 408 demandas analisadas, somente três visavam a atingir diretamente a coletividade, o que representa menos de 1% do total. Embora tenham sido propostas 36 ações civis públicas, 33 delas pretendiam beneficiar apenas um indivíduo. Por essa razão foram classificadas como pseudocoletivas. Todas as demais demandas pretendiam um provimento de natureza individual.

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Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Os dados acima demonstrados corroboram aqueles obtidos pelo SPDiSa em períodos anteriores. Ao longo dos anos, a tutela do direito sanitário é realizada, primordialmente, por intermédio de ações de cunho individual. Somando-se o total de demandas individuais com o das pseudocoletivas, conclui-se que 99% das demandas protegiam direitos exclusivamente individuais. O gráfico a seguir representa o tipo processual utilizado nas demandas para a tutela do direito à saúde. Das 408 demandas ajuizadas, 256 tratavam de ações ordinárias ou de rito especial individual, 118 de mandados de segurança individuais e somente 36 de ações civis públicas. Ressalta-se que, na pesquisa em comento, havia, também, opções para outros tipos processuais, como ação popular, mandado

75

de segurança coletivo, mandado de injunção coletivo, porém esses tipos não foram encontrados nos acórdãos analisados.

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Mais uma vez, os resultados obtidos retratam o baixo índice de utilização dos instrumentos coletivos de tutela jurisdicional do direito à saúde. É importante dizer que a maioria das ações civis públicas intentadas pretendia um efeito individual do provimento judicial. Somente 3 dessas demandas visavam a proteger direitos essencialmente coletivos, conforme já demonstrado no quadro anterior. As demais (33) consistiam em ações civis públicas para tutelar direitos individuais.199

199

Como foi o caso do Reexame Necessário nº 0070807-07.2010.8.13.0471, proveniente da Comarca de Pará de Minas. A demanda foi ajuizada pelo Ministério Público em favor de menor, na qual pretendia o fornecimento de medicamento pelo Município e pelo Estado mineiro.

76

Estão demonstrados, a seguir, os dados atinentes ao polo ativo das ações demandadas. Das cinco opções fornecidas pelo questionário da pesquisa (indivíduo, litisconsórcio de dois ou mais indivíduos, Ministério Público Estadual, Associação e outros), somente três delas foram encontradas nos acórdãos analisados. Em 372 das demandas o indivíduo figurava no polo ativo; em 43, o Ministério Público e em 2, o litisconsórcio. Ressalta-se que a Defensoria Pública não foi considerada como figurante no polo ativo das demandas, uma vez que, em sua atuação, é o favorecido que ocupa esse lugar. A instituição foi considerada no tópico patronos/condutores da ação da pesquisa. O indivíduo figurava o polo ativo de 362 demandas (aqui incluídas as ações patrocinadas pela Defensoria Pública).

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

77

O indivíduo figurava o polo ativo de 362 demandas (aqui incluídas as ações patrocinadas pela Defensoria Pública). O restante (46) delas foi intentado pelo Ministério Público (44) e o litisconsórcio de um indivíduo ou mais (2). Quanto ao alcance do pedido das demandas analisadas, somente em 3 do total de 408 ações a pretensão era coletiva, sendo que em 405 delas, o alcance do pedido era individual.

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Percebe-se que os tipos processuais mais escolhidos pelos autores das demandas foram as ações ordinárias e os mandados de segurança individuais. Não foi verificado qualquer mandado de segurança coletivo ou ação civil pública. Embora tenham sido propostas 33 ações civis públicas, mais de 90% delas geraram efeitos exclusivamente individuais.

78

Na relação patronos versus tipo processual, apurou-se que a Defensoria Pública foi responsável pela propositura de 46,32% das do total de demandas que visavam à tutela do direito sanitário. O Ministério Público propôs o equivalente a 10,53% e os 43,15% restantes foram intentadas por intermédio de advogados particulares, conforme ilustra o gráfico abaixo.

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

O próximo gráfico diz respeito aos pedidos de tutela antecipada formulados pelos demandantes. Somente em 4 do total de casos analisados é que a tutela antecipada foi negada pelo julgador de primeira instância. Em 276, a tutela foi deferida e em 128, o acórdão não informava acerca desse pedido.

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Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Infere-se, portanto, que, em pelo menos 68% dos casos, a tutela do direito sanitário foi concedida em primeira instância antes do julgamento do mérito. A relação de deferimento em primeira instância está representada no gráfico a seguir. Em 86,45% dos casos as demandas foram julgadas totalmente procedentes. Somente 5,20% dos casos foram julgados improcedentes e 3,81%, parcialmente improcedentes. A informação acerca da procedência não foi encontrada em 4,51% dos casos em que houve julgamento de mérito em primeira instância.

80

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Quanto à natureza da condenação, inferiu-se que 28% dos provimentos tratavam de obrigação de fazer; 48%, de obrigações de dar; e em 22% dos casos não foi possível extrair essa informação.

81

Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Portanto, 76% do total de demandas obtiveram um provimento que determinava uma prestação diretamente positiva do Estado. Não houve qualquer caso de condenação a uma obrigação de natureza pecuniária. O pedido mais frequente, como ilustra o gráfico abaixo, é o de fornecimento de algum medicamento prescrito por médico ou algum outro insumo como fraldas, óculos de grau, leite, entre outros, o que representou 347 do total de 408 acórdãos apreciados. Em 6%, o autor pretendia a realização de alguma cirurgia. A porcentagem de internações, de exames e de tratamentos, totalizaram 3% dos casos cada.

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Fonte: gráfico de confecção própria a partir de dados coletados pelo Projeto “Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde”, realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas.

Após a análise detalhada dos dados apresentados, conclui-se que, no Estado de Minas Gerais, a judicialização do direito à saúde dá-se por intermédio da tutela individual. Mesmo o Ministério Público estadual, que é o clássico legitimado coletivo, possui uma atuação voltada para o indivíduo. Não foi encontrada qualquer atuação de associações, que possuem legitimidade para intentar ação civil pública desde a vigência da Lei 7.347, em 24 de julho de 1985. O mesmo se aplica, com exceção à Defensoria Pública, para os demais legitimados pelo artigo 5º dessa lei. Embora a atuação de advogados particulares seja expressiva, a Defensoria Pública é a responsável pela propositura da maioria das demandas que visam à tutela do direito sanitário. Isso implica constatar que os beneficiados pelos provimentos nesse tipo de demanda são aqueles enquadrados no conceito de necessitados (art. 134, CF), que é o público-alvo dessa instituição.

83

Em regra, a tutela antecipada é concedida em primeira instância e os feitos são julgados procedentes. Os tipos processuais mais comuns na judicialização da saúde são as ações ordinárias e os mandados de segurança, ambos de natureza individual. As ações civis públicas, apesar de relativamente frequentes, não contêm, em regra, pedidos de natureza coletiva, demonstrando-se, inclusive, incompatíveis com os fins a que se destinam. Embora os tribunais superiores venham frequentemente aceitando esse tipo de atuação, os efeitos da decisão normalmente não são estendidos à coletividade, limitando-se à esfera individual.200 O fornecimento de medicamentos e insumos representa a grande maioria dos pedidos requeridos pelos autores das demandas que visam a assegurar o direito sanitário. Não houve a ocorrência de ações pseudoindividuais ou de individuais com efeitos coletivos entre os acórdãos analisados, sendo que os resultados foram distribuídos entre as ações individuais, as coletivas e as pseudocoletivas. A despesa do governo de Minas Gerais com o cumprimento de determinações judiciais provenientes das demandas sanitárias é cada vez mais crescente.

200

AgRg no REsp 1297893/SE, Rel. Ministro Castro Meira, segunda turma, julgado em 25/06/2013, DJe 05/08/2013.

84

5) A TUTELA ADEQUADA FUNDAMENTAL À SAÚDE

PARA

ASSEGURAR

O

DIREITO

5.1) A evolução do conceito de tutela jurisdicional A evolução do sistema processual fez com que o conceito de tutela jurisdicional se transformasse. Até a publicação da clássica obra de Oskar Von Bülow, na Alemanha, em 1868,

intitulada

Die

Lehre

von

den

Prozesseinreden

und

die

Prozessvoraussetzungen, o escopo do processo era simplesmente a tutela jurídica dos direitos ou dos interesses privados, entendido como mero procedimento. 201 Não se fazia qualquer distinção entre o direito material e o processual, uma vez que a ação era entendida como sendo o direito subjetivo em si mesma para a reparação da lesão eventualmente sofrida.202 Essa visão nada mais era do que o reflexo do contexto

histórico-político

da

época

em

que

se

inseria,

marcada

pelo

ultraliberalismo.203 Essa fase é chamada de sincretista ou, também, privatista.204 A obra de Bülow foi uma revolução para o direito por ter argumentado, através da existência de pressupostos processuais, a autonomia do processo em relação ao direito material, razão pela qual essa fase é denominada autonomista ou conceitual. Em sua obra, Oskar Von Bülow elucida: “enquanto as relações jurídicas privadas que constituem a matéria do debate judicial apresentam-se como totalmente concluídas; a relação jurídica processual se encontre em embrião.” 205 E ainda continua: [...] somente se aperfeiçoa com a litiscontestação, o contrato de direito público, pelo qual, de um lado, o tribunal assume a obrigação concreta de decidir e realizar o direito deduzido em juízo e de outro lado, as partes ficam obrigadas, para isto, a prestar uma colaboração indispensável e a submeter-se aos resultados desta atividade comum. Essa atividade ulterior decorre também de uma série de atos separados, independentes e resultantes uns dos outros.206

201

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 65-6. 202 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 48. 203 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 66. 204 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 48. 205 BÜLOW, Oskar Von. A teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. 2ª edição. Campinas: LZN Editora, 2005, p. 6. 206 BÜLOW, Oskar Von. A teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. 2ª edição. Campinas: LZN Editora, 2005, p. 6.

85

Apesar de não ter sido o primeiro doutrinador a afirmar essa autonomia, sem sombra de dúvidas, a obra de Bülow foi responsável pela difusão da teoria da relação jurídica.207 Quase um século mais tarde, por influência dos juristas italianos Mauro Cappelletti e Vittorio Denti, surge a fase instrumentalista ou teleológica do processo. Nessa fase, o escopo primordial do processo se baseia em três principais fundamentos: a realização dos fins sociais e políticos, a promoção do acesso à justiça e a realização do direito material.208 Essa terceira fase, conforme afirmam Cintra, Grinover e Dinamarco, ainda está longe de se realizar por completo, estando condicionada à completude das três ondas renovatórias por ela propostas: a) a melhoria da assistência judiciária aos necessitados; b) a efetiva tutela dos direitos supraindividuais; e c) alcance de fins diversos como a simplificação e racionalização de procedimentos, conciliação, equidade social distributiva e justiça participativa, etc.209 Nota-se, portanto, que a tutela jurisdicional hodiernamente possui uma orientação muito mais ampla que outrora, não mais se resumindo ao mero exercício da jurisdição como um dever estatal contraposto ao direito de ação. 210 O processo precisa hoje responder à sua utilidade prática, interpretada como a efetiva satisfação do direito substancial.211 E o processo civil, nesse contexto, deve ser um processo de resultados.212 A tutela jurisdicional é uma modalidade de tutela de direitos que, para alcançar o seu objetivo, que é a efetivação destes, é necessário que siga uma técnica processual adequada. Tudo isso em conformidade com a consolidada autonomia processual.

207

Conforme ressaltado por CINTRA; GRINOVER e DINAMARCO, quando apresenta sua teoria da relação jurídica, Oskar Von Bülow cita a obra de Bethmann-Hollweg intitulada Civilprocess des gem. Rechts. Cf. BÜLOW, Oskar Von. A teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. 2ª edição. Campinas: LZN Editora, 2005, p. 5. 208 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 126-7. 209 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 49. 210 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 351. 211 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 352. 212 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 352.

86

5.2) O direito a uma técnica processual adequada A autonomia do processo impõe a observância de regras específicas que influenciarão os seus efeitos, principalmente quanto ao alcance deles.

Essa

autonomia, como adverte Mauro Cappelletti, deve servir para a abstração de alguns aspectos desse direito em face do objeto substancial do processo, com o cuidado de não o tornar excessivamente abstrato.213 Seria impensável, nesse contexto, sugerir a neutralidade do instrumento em relação ao direito material e à realidade social. 214 Na mesma linha são as lições de Marinoni, que esclarece que “o fato de o processo civil ser autônomo em relação ao direito material não significa que ele possa ser neutro ou indiferente às variadas situações de direito substancial.”215 Para que alcance o seu objetivo, o processo, que é em si uma técnica, deve adequar aos objetivos que pretende realizar, para que os seus efeitos substanciais externos sejam justos e efetivos.216 O fundamento desse entendimento decorre do direito à efetividade da tutela jurisdicional, que não só se resume ao acesso ao procedimento legalmente instituído mas também conjuntamente: a) pelo direito à técnica processual adequada (que atenda às finalidades e objetivos do direito substancial); b) pelo direito à participação por intermédio de um procedimento adequado (possibilidade de participação dos interessados através do procedimento escolhido); e c) pelo direito à resposta do juiz (verificação da adequabilidade do procedimento escolhido pelas partes pelo magistrado).217 Conforme José Carlos Barbosa Moreira, o “tecnicismo exacerbado, aprendemos à custa de muitos erros, esteriliza o Direito; o desprezo da técnica o reduz a uma caricatura barata. Tolerar que o Direito seja tratado atecnicamente é abrir a

porta ao diletantismo frívolo,

quando não ao mais desbragado

charlatanismo.”218

213

CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Vol. II. Tradução de Hermes Zaneti Junior. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p.51. 214 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 148. 215 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 43. 216 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 153-4. 217 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 143. 218 MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. Discurso em agradecimento pelo recebimento da medalha Teixeira de Freitas no Instituto dos Advogados Brasileiros. In Revista do Instituto dos

87

O conceito de acesso à justiça não deve ser entendido como o formal exercício do direito de ação. Um sistema que garanta um acesso à justiça efetivo deve levar em consideração, além da igualdade de acessibilidade a todos, a produção de resultados que sejam individual e socialmente justos.219 O direito à técnica processual adequada prescreve, portanto, que o processo somente será efetivo quando as regras processuais específicas (autonomia) respeitarem as finalidades às quais o instrumento visa a atingir. 220 A partir desse raciocínio, infere-se que essa tutela poderá ou não servir para a efetiva proteção do direito, a depender da utilização ou não da técnica processual adequada, já que somente esta será capaz de gerar um provimento favorável. 221 A tutela jurisdicional poderá ou não prestar para asseguramento de um direito, a depender

das

respostas

adequadas

ou

não

às

necessidades

que

dele

decorrerem.222 Assim como o respeito à técnica processual adequada garante a efetivação do direito substancial, o seu desrespeito pode provocar a sua falência.

5.3) A finalidade e a titularidade do direito social à saúde Antes de iniciar a discussão acerca do tipo de tutela que seria mais adequado para assegurar o direito à saúde, é necessário firmar a titularidade desse direito, uma vez que ela está diretamente ligada a uma das condições da ação: a legitimidade. O legislador do Código de Processo Civil de 1973 sofreu grande influência da doutrina italiana, mais precisamente do jurista Enrico Tullio Liebman, e estabeleceu a legitimidade ad causam como uma das condições para que o julgador possa apreciar o mérito da demanda (art. 267, VI), e está disposta no art. 6º do referido diploma legal: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio”.223 Segundo os ensinamentos de Enrico Tullio Liebman: Advogados Brasileiros. São Paulo, nº 75,76,77 e 78, p. 93-9, 1990. A íntegra do discurso está disponível em: < http://www.iabnacional.org.br/article.php3?id_article=537>. Acesso em 01 jan 2014. 219 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 8. 220 CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Vol. II. Tradução de Hermes Zaneti Junior. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p.51. 221 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 112-3. 222 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 112-114. 223 A redação do art. 6º é similar à do art. 81, do Código de Processo Civil Italiano: “fora dos casos expressamente previstos em lei, ninguém pode defender no processo, em nome próprio, um direito alheio”.

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A legitimação para agir é, pois, em resumo, a pertinência subjetiva da ação, isto é, a identidade entre quem a propôs e aquele que, relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo.224

Conforme estabelece o capítulo I do título II da Constituição de 1988, a titularidade dos direitos e garantias fundamentais se divide em individual e coletiva. Nessa nova summa divisio, o direito individual e o direito coletivo formam dois grandes blocos do sistema jurídico brasileiro, sendo que o direito coletivo é integrado por um conjunto de normas de natureza material e processual, de titularidade coletiva e o direito individual, por sua vez, possui essas mesmas normas, porém de titularidade individual.225 A titularidade dos direitos individuais é, normalmente, de fácil identificação. Pode-se dar como exemplo o caso de uma ação de execução de cheque, na qual o titular do direito de receber será aquele portador do título, que busca o seu adimplemento pelo réu (sacado), emitente. A identificação da titularidade dos direitos coletivos (lato sensu), entretanto, é mais dificultosa, uma vez que deve ser analisada no contexto do art. 81, do Código de Defesa do Consumidor, que apresenta as três espécies desses direitos, denominando-os transindividuais (os difusos, coletivos e os individuais homogêneos), verbis:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Em decorrência da natureza instrumental do processo, a determinação da titularidade do direito é imprescindível para a escolha da tutela processual adequada. Isso porque o objeto do processo possui uma relação direta com o direito

224

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 159. 225 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: superação da summa divisio Público e Direito Privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 441.

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deduzido em juízo, já que o processo é um instrumento de concretização do direito material,226 pelo qual transforma o “direito declarado” em “direito assegurado”.227 A finalidade do direito à saúde, assim como a de todos os direitos sociais, conforme já discorrido nesta pesquisa, é garantir ao indivíduo o exercício de seus direitos de liberdade, já que estes são premissas para aqueles.228 Quanto à titularidade, o art. 196 da Constituição de 1988 traz a expressão “todos” para defini-la, o que a doutrina interpreta sob cinco correntes argumentativas diferentes.229 A primeira delas é trazida por Luciano Benetti Timm, que defende que os direitos sociais, de uma forma geral, são direitos de titularidade coletiva (transindividual) e, por sua natureza, a subjetivação individual, não é permitida. Sustenta que a ação coletiva é o mecanismo adequado para atingir todas as pessoas que se encontrem em situações fáticas análogas.230 A segunda, advogada por Luís Roberto Barroso, não questiona a titularidade propriamente dita, mas atenta para o fato de que a concessão individualizada de prestações por conta de processos individuais ou até mesmo por uma coletividade determinada acarreta um impacto negativo sobre o sistema público de saúde global, comprometendo a própria continuidade das políticas sanitárias.231 A terceira, defendida por Cláudio Pereira de Souza Neto, sustenta que a judicialização dos direitos sociais por intermédio de ações individuais beneficia a classe média em detrimento das classes mais pobres, violando o princípio da

226

CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Vol. II. Tradução de Hermes Zaneti Junior. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p.36. 227 BURGOA, Ignacio. El juicio de amparo. Apud GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Revista de Processo. Vol. 14. Revista de Processo | vol. 14 | p. 25 | Abr / 1979 228 CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Vol. II. Tradução de Hermes Zaneti Junior. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p.62. 229 SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da. O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 118-9. 230 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 61. 231 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em:. Acesso em 21 out. 2013.

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isonomia, uma vez que tal sistemática acabaria beneficiando apenas uma parcela da população.232 A quarta, de Gustavo Amaral, alega a violação potencial do direito à saúde daqueles que, em função da alocação de recursos provocada pelas demandas judiciais individuais acabariam sendo prejudicados pela falta de recursos suficientes para o atendimento de suas necessidades, implicando verdadeiras decisões trágicas.233 Além de que a atuação do Poder Judiciário nas ações coletivas seria muito mais abrangente que nas individuais, que deveriam ser apreciadas de forma circunstancial.234 Em nome da quinta linha, José Reinaldo de Lima Lopes defende que a judicialização fomentaria a frequência de free riders. Estes, como não há nenhum mecanismo eficiente de controle de quem possui acesso ao Judiciário, se aproveitariam da oportunidade para usufruir de um direito que lhes seria negado se tivessem buscado a via administrativa por terem condições de arcar financeiramente com elas.235 A quarta linha parece ser a mais adequada no que diz respeito à judicialização da saúde e também dos direitos sociais como um todo. Como o Poder Público exerce as atividades de realização desses direitos por intermédio de políticas públicas e, por sua vez, essas são pensadas de forma coletiva à população, não é possível dissociar a sua natureza transindividual, mesmo que em ações individuais. Quando o indivíduo busca, através de uma ação individual, a tutela da saúde, este já está acometido de alguma enfermidade e necessita de uma ação repressiva para tratar a doença. Entretanto, em muitos casos, o desenvolvimento da doença pode ser evitado ou amenizado por ações preventivas, que, caso observadas pelo julgador com antecedência, reduziria a

necessidade da

judicialização. O entendimento atual do Supremo Tribunal Federal comunga com o posicionamento da primeira linha argumentativa. A corte entende que os direitos

232

SOUZA NETO, Cláudio Pereira. A justiciabilidade dos direitos sociais: críticas e parâmetros. In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 533-4. 233 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 187-8. 234 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128. 235 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006, 229.

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sociais possuem dupla dimensão (individual e coletiva) e a tutela individual não poderia ser afastada.236 A segunda linha não ataca a questão da titularidade, mas tão somente descreve alguns dos efeitos gerados pela judicialização indiscriminada, para a qual serão propostas algumas soluções nos capítulos seguintes. A terceira e a última linhas sustentam, basicamente, o mesmo argumento: a violação do princípio da isonomia. Mais especificamente sobre a terceira, já se criticou anteriormente no sentido de que o fato de a parte ser assistida por um advogado particular não quer dizer, necessariamente, que ela dispõe de condições financeiras para tutelar o seu direito à saúde sem o auxílio do Estado. Seja porque os honorários podem ser convencionados para o pagamento através da sucumbência, seja por estar o procurador exercendo a sua função social de forma graciosa, seja pela amplitude do conceito de necessitados. No que tange à quinta linha, ao menos que se realize uma pesquisa largamente qualitativa, seria negligente afirmar que a maioria dos beneficiados pela judicialização é oportunista, ou que essa prática prejudica os demais beneficiários. Como o objeto do presente trabalho visa a apontar o tipo de tutela mais adequada para a efetivação do direito fundamental à saúde, serão apresentados de forma crítica nos próximos tópicos os diversos tipos de técnicas processuais que são frequentemente utilizadas na prática forense a partir do perfil da judicialização desse direito no Estado de Minas Gerais.

5.4) A tutela por ações coletivas A partir da promulgação da Lei de Ação Popular, em 1965, qualquer cidadão passou a ter legitimidade para a anulação de ato lesivo ao patrimônio público, beneficiando não só esse titular como também todos que daquele viessem a usufruir, atribuindo a esse direito uma natureza transindividual. Nascia, no direito brasileiro, o primeiro instrumento para a tutela coletiva dos direitos ao alcance dos cidadãos. Apesar de sua vigência desde o ano de 1965, esse instrumento coletivo, bem como os demais, somente passaram a fazer parte da prática forense a partir dos anos 70, quando o seu estudo se intensificou. 236

SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da. O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 137.

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A introdução de instrumentos de tutela coletiva dos direitos não se deu, no Brasil, em decorrência de um movimento social, mas sim de uma revolução proposta, a partir dos anos 70, dos juristas Ada Pellegrini Grinover, José Carlos Barbosa Moreira e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior237, sob influência da doutrina italiana dos juristas Vittorio Denti, Mauro Cappelletti, Andrea Proto Pisani e Vincenzo Vigoriti, bem como dos efeitos que as class actions norte-americanas provocaram na Europa.238 O estudo sobre os interesses coletivos e difusos tomou a atenção dos juristas brasileiros para transformar o processo em verdadeiro instrumento de justiça social.239 Por inspiração nas class actions norte-americanas, o legislador brasileiro cria a principal ação de classe que rege o sistema coletivo de tutela, por intermédio da Lei nº 7.347 (Lei da Ação Civil Pública), em 1985.240 As class actions foram criadas no direito norte-americano quando as courts of chancery quiseram solucionar o inconveniente da necessidade de litisconsórcio necessário de todos os interessados que o bill of peace exigia para que uma ação de classe fosse julgada.241 Através desse instrumento, somente um membro do grupo seria bastante para representar os demais em juízo, bem como aqueles que se encontrassem em situação idênticas a ele e a decisão do caso se aplicaria a todos os membros do grupo, ausentes ou presentes.242 A class action pode ser utilizada tanto para dar amparo aos indivíduos quanto para os direitos coletivos de uma classe. 243

237

Ver os textos publicados na época em ordem de publicação: MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos (1977); OLIVEIRA JÚNIOR, Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos (1978); GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos (1979). 238 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 184-5. 239 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 39. 240 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 766. 241 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 41-2. 242 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 42. 243 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 73.

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Segundo Gregório Assagra de Almeida, o direito processual brasileiro passou por três grandes momentos histórico-políticos.244 O primeiro seria com o advento da Lei da Ação Civil Pública, em 1985, que foi a primeira a estabelecer regras processuais sobre o processo coletivo, principalmente no que se refere a sua legitimidade ativa pluralista e concorrente. O segundo ocorreu com a promulgação da Constituição vigente, em 1988, por ter sido o sistema coletivo reconhecido expressamente pelo legislador constituinte como novo sistema jurídico (tanto processual como material), a partir do Título II, do Capítulo I, desta. E, por último, em 1990, com o Código de Defesa do Consumidor, por ter promovido a integração com a Lei de Ação Civil Pública e, consequentemente, criado o microssistema de tutela jurisdicional coletiva. O atual microssistema coletivo245 estabelece diversos aspectos, como o conceito e a classificação dos direitos transindividuais246, a legitimidade para atuar na defesa destes, entre outros. Segundo Ada Pellegrini Grinover, “por meio desses instrumentos normativos, o Brasil colocou-se em uma posição de vanguarda, ao menos entre os países de Civil Law.”247 Além disso, a análise econômica do Direito aponta as ações coletivas como o meio processual mais adequado para a garantia dos direitos sociais via atuação

244

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 18-21. 245 Esclarece Diego Santiago y Caldo, que “Além da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Processo Civil, o processo coletivo também é regido por disposições presentes na Lei da Ação Popular (Lei 4.717/1965), Lei de Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência (Lei 7.853/1989), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), Lei de Defesa da Ordem Econômica e da Livre Concorrência (Lei 8.884/1994), a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei 8.625/1993), além das disposições constitucionais e infraconstitucionais relativas ao Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX, da CF e Lei 1.533/1951)” in Revista de Processo. Vol. 205, p. 231-247. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. Vale ressaltar que, diante da inserção da Defensoria Pública no rol de legitimados para a propositura de Ação Civil Pública, a Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar 80/1994) também integra esse sistema coletivo. 246 O parágrafo único do artigo 81, do Código de Defesa do Consumidor conceitua e classifica as três espécies de direitos transindividuais, dispondo: “A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.” 247 In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 33.

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excepcional do Judiciário, visando à correção do processo democrático. 248 Luciano Benetti Timm vai mais além, afirmando que “(...) a demanda individual é o pior e mais injusto caminho para implementação de um direito social.”249 Por intermédio de ações coletivas, é possível que se realize o controle das políticas públicas numa perspectiva que o próprio Poder Público se utiliza, uma vez que a questão será enfrentada sob as diretrizes da universalidade e igualdade. 5.5) A tutela por ações individuais A partir do perfil da judicialização da saúde no estado de Minas Gerais, sabese que 56% das ações propostas pelo Ministério Público no exercício de suas atribuições tiveram efeito exclusivamente individual.250 Apesar de os dados não abrangerem o universo de todas as ações relativas ao direito sanitário propostas em todo o estado, aliados àqueles contidos no quadro que aponta o tipo de ação proposta251, verifica-se que a grande maioria das ações propostas é de cunho individual. Sem embargo de não se poder negar ao indivíduo o acesso a uma tutela específica ao seu caso, é necessário que esse tipo de tutela seja utilizado de forma subsidiária e não como regra. Essa discussão abrange um problema muito mais amplo que atinge a justiciabilidade dos direitos sociais, conforme adverte Virgílio Afonso da Silva: [...] o enfoque que os juristas dão em geral à justiciabilidade dos direitos sociais, é que, em primeiro lugar, os juízes, ao tratarem os problemas dos direitos sociais como se fossem problemas iguais ou semelhantes àqueles relacionados a direitos individuais, ignoram o caráter coletivo dos primeiros.252

248

TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 61. 249 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2013, p. 61. 250 Ver quadro “efeitos dos pedidos formulados pelo Ministério Público em sua atuação” . 251 Ver quadro “tipo de ação proposta” . 252 SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In SOUZA NETO, Cláudio; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 597.

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Uma das principais críticas à judicialização dos direitos sociais e do controle de políticas públicas, principalmente na área da saúde, pelo Poder Judiciário, reside no fato de que a tomada de decisões alocativas de recursos públicos fundado no argumento de um direito à saúde incontrastável fere o caráter coletivo dos recursos públicos escassos.253 Essa crítica sustenta o argumento de alguns no sentido de que “se o Judiciário não é capaz de pensar em saúde, educação, moradia etc., de forma coletiva e global, talvez ele devesse deixar essa tarefa para o processo político.” 254 Essa realidade pode ser explicada pelo fato de que as histórias de sucesso individual são mais numerosas que as de sucesso coletivo.255 Não se pode negar que as ações individuais, desde a fase de conhecimento até a fase de execução, sejam menos complexas que as coletivas. Os efeitos que as decisões judiciais nas ações individuais terão em relação às coletivas, em regra 256, necessitarão de um volume muito menor de prestações do Poder Público do que as coletivas. Quando o magistrado decide uma ação de cunho coletivo, não passa pelo seu conhecimento, na maior parte das vezes, quais as pessoas envolvidas no caso de forma especificada, mas sim de maneira genérica. Isso não acontece nas ações individuais. Nestas, o magistrado passa a conhecer a pessoa envolvida pessoalmente, através das audiências que fazem parte do procedimento, o que certamente pesará como um dos elementos que formarão, mais tarde, o seu convencimento. Além disso, o sistema processual coletivo é relativamente novo na história do ordenamento jurídico brasileiro e ainda não é dominado pelos juízes que ainda não têm consciência da importância de se levar em conta o impacto de sua decisão em termos sociais, econômicos e políticos.257 Muitos deles ainda acreditam que não 253

HAMACHER, Flávio Jordão. A judicialização do direito à saúde na assistência farmacêutica. In Saúde. ALMEIDA, Gregório Assagra de; SOARES JÚNIOR, Jarbas; ASSIS, Gilmar. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p.33. (Coleção Ministério Público e direitos fundamentais) 254 SILVA, Virgílio Afonso da. O judiciário e as políticas públicas. In In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 597-8. 255 SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In SOUZA NETO, Cláudio; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 597. 256 Não se pode olvidar das demandas de alto custo, como a do caso do STA no AgR nº 175, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, que visava ao fornecimento de medicamento que custava R$52.000,00. 257 SADEK, Maria Tereza. Judiciário e a arena pública: um olhar a partir da ciência política. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 22.

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podem causar interferências nas políticas públicas. Essa realidade, segundo preleciona Ada Pellegrini Grinover, não mais se sustenta: Não há mais espaço, no processo moderno, para o chamado ‘juiz neutro’ – expressão com que frequentemente se mascarava a figura do juiz não comprometido com as instâncias sócias -, motivo pelo qual todas as leis processuais têm investido o julgador de maiores poderes de impulso.258

Apesar de todas as espécies de ações serem aptas para provocar o controle e eventual intervenção do Judiciário nas decisões do Poder Público 259, nem todas, tampouco em todos os casos concretos-, poderão exaurir a máxima efetividade do direito à saúde, tendo em vista o seu caráter coletivo. Isso porque uma demanda individual dificilmente revela de alguma omissão estatal que gera efeitos para toda a comunidade, e não somente o indivíduo. As ações coletivas, além de promover o acesso mais célere e barato que as individuais, ainda permitem a quebra de barreiras socioculturais, que evitam a banalização dos conflitos, conferindo um peso político muito maior.260

5.6) A tutela por ações individuais com efeitos coletivos As ações individuais com efeitos coletivos são aquelas demandas que, embora tenham origem individual, visam à produção de efeitos coletivos. Esses efeitos são gerados não em decorrência da natureza jurídica de direito material unitária (como ocorre nas ações pseudoindividuais, explicado logo em seguida), mas por atingir pessoas que não participarão do processo. É o caso, por exemplo, de uma demanda contra o Estado, intentada pelo Ministério Público no exercício de suas atribuições, visando ao fornecimento de um medicamento para o tratamento de uma doença de que é acometido o indivíduo titular do direito, requerendo, ao final, não só para o substituído mas para todas as pessoas que se encontrem na mesma situação. Uma das grandes diferenças entre a tutela individual da coletiva, como já mencionado, é a extensão subjetiva da coisa julgada. Na tutela individual, os efeitos 258

GRINOVER, Ada Pellegrini. A marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p.57. 259 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense: 2011, p. 150. 260 WATANABE, Kazuo. Do processo individual de defesa do consumidor. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 4.

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da sentença serão, em regra, interpartes, fazendo com que a coisa julgada material atinja somente as pessoas que participaram do processo em contraditório, não prejudicando ou beneficiando terceiros.261 Em contrapartida, na tutela coletiva, a coisa julgada poderá gerar efeitos ultra partes ou erga omnes.262 No primeiro caso, fazendo coisa julgada aos integrantes do grupo, categoria ou classe, quando se tratar de direitos coletivos (stricto sensu). No segundo caso, a coisa julgada se estende a todos de forma irrestrita, quando se tratar de direitos difusos. O que ocorre nas ações individuais, contudo, é que a ação de natureza individual pretende gerar efeitos ultrapartes, a fim de beneficiar ou prejudicar pessoas alheias ao processo. Esse tipo de ação não se caracteriza, nos moldes da teoria geral do processo até então conhecida, nem como individual, nem como coletiva. Isso porque contrariaria alguns institutos processuais consolidados, como o da legitimidade. De acordo com o art. 6º, do Código de Processo Civil, ninguém está autorizado a pleitear em juízo direito de que não seja titular, a não ser nos casos excepcionados pela lei. A doutrina classifica duas modalidades de legitimidade: ordinária e extraordinária. A ordinária seria aquela exercida pelo próprio titular do direito material discutido em juízo e a extraordinária seria aquela exercida por um terceiro que a lei autorizasse a representar o titular em juízo. O instituto da legitimidade tenta evitar que aqueles que não participaram em contraditório, seja em nome próprio ou em nome alheio autorizado pela lei, sofram os efeitos da coisa julgada.263 A partir dessas lições, verifica-se que surge um problema de técnica processual nas ações individuais com efeitos coletivos: a sua falta de legitimidade quanto ao pedido de alcance coletivo. É que, segundo as regras estabelecidas na lei processual civil, somente a lei pode estabelecer a legitimidade extraordinária e, somente no caso da Ação Popular é que se previu a possibilidade de um indivíduo (cidadão) ajuizar ações de natureza coletiva.

261

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 706. 262 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 202. 263 FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 122.

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Isso quer dizer que, pelo menos no atual sistema processual, esse tipo de demanda demonstra-se inadequado para a tutela do direito à saúde.

5.7) A tutela por ações pseudoindividuais Kazuo

Watanabe264

foi

quem

primeiro

utilizou

a

expressão

ações

pseudoindividuais para se referir a ações que, embora originariamente individuais, em razão da unitariedade da relação de direito material envolvido, terão um provimento de efeito erga omnes. Para exemplificar a situação jurídica citada, Watanabe cita o caso das mais de 30 mil ações individuais distribuídas em uma vara da comarca de São Paulo que visavam à exclusão das tarifas cobradas pela assinatura telefônica.265 Segundo o autor, essas ações seriam ações pseudoindividuais, pois a solução aplicada no provimento para um indivíduo nessas demandas teria que ser aplicada, necessariamente, a todos os usuários do serviço público. Explica, ainda, que a prestação de serviços de telecomunicação está regulada em contrato de concessão. A exploração desse serviço público se submete ao controle pela ANATEL -Agência Nacional de Telecomunicações, inclusive no que se refere à alteração das tarifas cobradas em contraprestação pelo serviço, as quais devem ser aplicadas de forma uniforme para todos os usuários. Em decorrência disso, qualquer alteração do valor da tarifa cobrada pela prestadora de serviços ou mesmo a sua exclusão, como era pretendido por aquelas ações, afetaria o contrato de concessão, como um todo, geraria efeitos para todos os usuários do serviço, pois essa alteração, como já dito, somente pode ser feita de forma global.266 Por esse motivo, classifica Watanabe como pseudoindividuais as ações individuais propostas que objetivam um provimento que, em decorrência de sua relação de direito material de natureza unitária, somente possa gerar um efeito coletivo. Na área da saúde, Ada Pellegrini Grinover cita o exemplo de um indivíduo que necessite do fornecimento de um medicamento em decorrência de alguma 264

In Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo. Vol. 139. São Paulo, setembro, 2006, p. 29-35. 265 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 20. 266 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 22.

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enfermidade e que formule um pedido no sentido de que o medicamento seja incluído na lista de distribuição gratuita do SUS. Segundo a autora, como o sistema único de saúde somente pode adotar medidas globais, esse pedido somente atingirá a todos os possíveis usuários do SUS, indiscriminadamente. 267 Tanto para Watanabe quanto para Grinover, as ações pseudoindividuais são tecnicamente inadequadas para tutelar direitos de natureza unitária. A solução processual, proposta por Watanabe, é de não se admitir o processamento dessas demandas, reconhecendo, entretanto, que a suspensão destas já faria um efeito prático equivalente.268 Para Grinover, haveria duas soluções não excludentes, uma mais diplomática e outra mais radical. A primeira seria no sentido de se notificar os legitimados coletivos (previstos no art. 5º, da Lei de Ação Civil Pública), a fim de ajuizarem uma ação coletiva na qual os autores individuais figurariam como assistentes litisconsorciais. Na segunda solução proposta, o juiz poderia, independentemente de provocação, converter a ação individual em coletiva, substituindo o polo ativo por algum dos legitimados coletivos e determinando que os autores individuais funcionem como assistentes litisconsorciais.269 Realmente, as ações pseudoindividuais não se demonstram adequadas para a tutela de um direito essencialmente coletivo. Em regra, os legitimados coletivos, pela sua própria peculiaridade, são mais bem preparados para enfrentar um conflito dessa natureza. Caso as demandas pseudoindividuais não sofressem nenhum tipo de restrição, numa visão prospectiva, elas poderiam afetar toda a coletividade com a formação, eventualmente, de uma coisa julgada injusta e ilegítima.

5.8) A tutela por ações pseudocoletivas O termo pseudocoletiva foi trazido na doutrina por Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, em sua obra intitulada Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos, publicada no ano de 2000. 270 Nessa obra, o autor critica determinadas técnicas utilizadas na praxe forense em que as ações de natureza 267

GRINOVER, Ada Pellegrini. Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado. 268 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 23-4. 269 GRINOVER, Ada Pellegrini. Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado. 270 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000.

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coletiva eram propostas, contendo pedidos individualmente concretos. 271 O autor forneceu o exemplo de ações promovidas por entidades associativas para o levantamento dos valores das contas vinculadas ao fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS) de seus associados.272 Para Araújo Filho, a prática, além de provocar a distorção dos propósitos constitucionais, poderia causar, em muitos casos, a usurpação dos direitos individuais.273 Para explicar este último, citou o exemplo de uma pessoa que fazia jus ao levantamento citado, mas que tal valor já havia sido levantado por uma associação da qual era filiado, mesmo sem o seu consentimento, sem qualquer correção monetária ou condenação de honorários advocatícios.274 O autor argumenta, ainda, que esse tipo de ação é falsa ação coletiva (daí o termo pseudocoletiva), pois a condenação genérica, em eventual procedência dos pedidos, não pode ser menor que a condenação específica, por serem de natureza diversa. As ações pseudocoletivas são caracterizadas por terem sido propostas por um único legitimado coletivo, mas que, na verdade, estão sendo pleiteados, específica e concretamente, os direitos individuais de inúmeros substituídos, equiparável, portanto, segundo o autor, ao litisconsórcio multitudinário. 275 Assim, poderiam sofrer restrições quanto ao seu número de favorecidos no caso de prejudicarem o desenvolvimento do contraditório ou do exercício da função jurisdicional. Entretanto, Araújo Filho entende que, no caso das ações pseudocoletivas, o juiz não poderia limitar o número de litisconsortes como o parágrafo único do art. 46276, do Código de Processo Civil o autoriza no litisconsórcio multitudinário. 277 Isso 271

ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 199. 272 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 199. 273 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 199. 274 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 199. 275 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 200. 276 O texto incluído pela Lei nº 8.952/94 prescreve: “O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão.” 277 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 201.

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porque o número de titulares não é discriminado e a limitação causaria a pulverização de ações, ferindo o objetivo constitucional da possibilidade de representação coletiva das associações e, consequentemente, a celeridade e economia processuais. 278 Além disso, as regras prescritas nos artigos 95 e 104,279 do Código de Defesa do Consumidor, não poderiam ser aplicadas, o que implicaria a impossibilidade de suspensão das ações individuais quando da existência de ações pseudocoletivas, gerando litispendência entre elas.280 Essa litispendência poderia provocar a incidência de decisões díspares, ou até mesmo contraditórias. 281 Ainda esclarece o autor que “uma ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos não significa a simples soma das ações individuais.”282 A pretensão do legitimado coletivo visa ao acolhimento de um tese jurídica geral, que poderá ser aproveitada a todos que se encontrarem em situação análoga. 283 Por essa razão, as inúmeras pretensões singularizadas das ações pseudocoletivas não se coadunariam com o objetivo daquelas. Por todas essas razões, Araújo Filho sustenta que a técnica utilizada em ações pseudocoletivas é inviável, pois traduziria em mero somatório de ações individuais.284 Discordando do posicionamento de Luiz Paulo Araújo Filho, Ada Pellegrini Grinover sustenta que o fato de existirem ações coletivas com pedidos individuais, por si só, não é suficiente para determinar a inadequação da técnica. Elege a regra

278

ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 201. 279 O artigo 95 prescreve “Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.”E o art. 104: “As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.” 280 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 202. 281 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 202. 282 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 114. 283 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 114. 284 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 115.

102

de continência do art. 105,285 do Código de Processo Civil, como solução para a coexistência de ações individuais e (do que é chamado por Araújo Filho de) pseudocoletivas, o que implicaria a suspensão dos processos individuais, conforme estabelece o art. 265, IV, “a”,286 do Código de Processo Civil.287 Embora as críticas de Araújo Filho tenham contribuído para o estudo do direito processual coletivo, na atual madureza desse ramo do processo civil, em consonância com o princípio da máxima prioridade jurisdicional da tutela coletiva, elas não se sustentam. Segundo esse princípio, o Poder Judiciário deve dirimir desde os grandes conflitos coletivos aos vários conflitos individuais entrelaçados pela homogeneidade, em garantia da economia processual e homogeneidade das decisões judiciais. Ademais, as ações coletivas, como já mencionado, servem também para a tutela dos direitos individuais homogêneos, que possuem como características a homogeneidade e a origem comum. A individualização dos titulares do direito, bem como a dos pedidos, em nada alteraria a admissibilidade da tutela por ações coletivas. A sentença na ação coletiva será genérica, não pelo fato de assim ser mais adequado a esse tipo de tutela, mas sim de, no caso dos direitos difusos ou individuais homogêneos, a discriminação dos titulares ser impossível ou inviável. O próprio Código de Processo Civil estabelece em seu art. 286288 que o pedido deve ser sempre certo e determinado, prevendo hipóteses em que este poderá ser genérico. No sistema do Código de Defesa do Consumidor, essa norma se inverte, sendo regra o pedido genérico.289 Entretanto, isso não quer dizer que, em um ou em outro, caso a lei não preveja expressamente a sua vedação, a exceção possa ser utilizada. Nem na perspectiva do polo passivo, as críticas prevaleceriam, já que na Prescreve o artigo 105: “Havendo conexão ou continência, o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode ordenar a reunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam decididas simultaneamente.” 286Prescreve o artigo: “Suspende-se o processo: (...) IV - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente;” 287 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 213. 288 O artigo prevê, in verbis: “O pedido deve ser certo ou determinado. É lícito, porém, formular pedido genérico: I - nas ações universais, se não puder o autor individuar na petição os bens demandados; II - quando não for possível determinar, de modo definitivo, as consequências do ato ou do fato ilícito; III - quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.” 289 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 556. 285

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contestação, mais do que no pedido genérico, o réu poderia contestar especificadamente os valores pleiteados por cada um dos titulares. Isso tudo facilitaria a execução da sentença, que não seria ilíquida como no pedido genérico e promoveria a celeridade do procedimento para a tutela desses direitos. Realmente, a proteção dos direitos individuais pelo sistema do Código de Processo Civil é uma ficção jurídica para resolver o problema da limitação do litisconsórcio facultativo, já que os titulares não figurarão nenhum dos polos nas ações coletivas. Por isso tudo, a proteção dos direitos acidentalmente coletivos (individuais homogêneos) não seria equiparável ao litisconsórcio multitudinário, não podendo sofrer limitação, a não ser que mais de um legitimado esteja figurando o polo da ação coletiva e prejudique o direito de defesa ou o desenvolvimento do processo.290 Assim, o entendimento de Ada Pellegrini Grinover parece ser o mais adequado às atuais necessidades da tutela coletiva dos direitos. Na pesquisa sobre Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde foi verificada a ocorrência de ações pseudocoletivas para a tutela jurisdicional do direito à saúde. Em todos esses casos, o Ministério Público ajuizara demanda de natureza coletiva para a proteção de interesses de um indivíduo apenas. Veja-se, por exemplo, o Reexame Necessário nº 026730820.2010.8.13.0313, julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A ação civil pública foi ajuizada pelo Ministério Público que pleiteava a condenação do Estado de Minas Gerais ao fornecimento de medicamento à base de Enoxiparina, pelo tempo necessário ao tratamento de uma pessoa individualizada. A legitimidade do órgão ministerial foi reconhecida pelo tribunal sob o fundamento de que “(...) a legitimidade ativa do Ministério Público afirma-se, não por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas por se tratar de interesses individuais indisponíveis.” As decisões do Superior Tribunal de Justiça têm reiterado esse entendimento: A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que o Ministério Público é parte legítima para propor ação civil pública com objetivo de tutelar diretos individuais indisponíveis, como é o caso de fornecimento de medicamentos à pessoa necessitada. 291 290

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 257. 291 Precedentes: REsp 46.861/SP, 1ª Seção, Rel. Min Teori Albino Zavascki, DJ de 7.5207; REsp 920.17/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 6.207; REsp 852.935/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 4.10206; REsp 823.079/RS, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJde 2.10206;

104

Embora na prática a legitimidade do Ministério Público esteja sendo reconhecida pelos órgãos jurisdicionais e a mesma tenha fundamentação no art. 127, do texto constitucional292, a boa técnica processual não está sendo observada, já que a finalidade de instrumento coletivo é atender à coletividade, e não a um interesse individual. Tal inobservância seria adequadamente justificável caso não houvesse outros instrumentos ao alcance do órgão ministerial, o que não é o caso. O Ministério Público poderia se valer de ações ordinárias, de mandados de segurança, por exemplo.

REsp 856.194/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de2.9206; REsp 70.853/RS, 1ªTurma, Rel. p/acórdão Min. Luiz Fux, DJ de 21.9206; REsp 82.712/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 17.4206. 292 O artigo 127 da Constituição de 1988 estabelece que: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

105

6) O ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

ACERCA

DA

6.1) Considerações preliminares Devido ao grande número de decisões provenientes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal atinente à tutela do direito à saúde, após detalhada pesquisa pelos sítios eletrônicos dos referidos órgãos, decidiu-se eleger aqueles que foram considerados paradigmáticos e representativos do entendimento predominante. Em relação ao caso selecionado do Superior Tribunal de Justiça, recurso ordinário em mandado de segurança nº 24.197/PR, embora já tenha sido objeto de estudo desta pesquisadora, em trabalho já publicado293, continua sendo o que melhor representa o entendimento daquele tribunal e, por isso, será novamente apreciado, porém mais detalhadamente.

6.2) Superior Tribunal de Justiça: o caso do recurso ordinário em mandado de segurança nº 24.197/PR O recurso ordinário interposto pelo Ministério Público do Estado do Paraná visava à reforma da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Paraná que denegou a segurança a Keigi Yanaga, o qual padecia de Hepatite crônica, do tipo “C”, de genótipo 3, e não possuía condições de arcar com os custos dos medicamentos dos quais necessitava: Interferon Peguilado Alfa-2ª ou Alfa-2b e Ribavirina. Keigi os requeria do Secretário de Estado da Saúde do Estado do Paraná e do Secretário de Saúde do Município de Curitiba, como autoridades coatoras. A decisão exarada pelo Tribunal de Justiça do Paraná fundou-se, primordialmente, no fato de que: [...] o ente público não pode ser compelido a fornecer medicamentos para o paciente que não preenche os requisitos previstos no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde, o qual estabelece, com base em estudos científicos, os critérios de inclusão específicos para cada enfermidade (...). [...] O impetrante informou que o vírus nele inoculado apresenta genótipo do tipo 3ª (fl. 3) e que se submeteu anteriormente ao tratamento com Interferon Convencional, associado com Ribavirina, 293

ALVES, Lucélia de Sena. A judicialização do direito fundamental à saúde e a necessidade da adoção de critérios preestabelecidos. In SILVA, Adriana Campos; SILVA, Carla Ribeiro Volpini. Governança Pública, Atuação Judicial & Direitos Humanos. Vol. 5. Belo Horizonte: Initia Via, 2012, p. 23-40. Disponível em: http://initiavia.com/s01v05. Acesso em 13 ago. 2013.

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pelo prazo de 6 (seis) meses, sem resultado (fl. 27). Dessa forma, dúvida não há de que o impetrante não preenche os requisitos estabelecidos no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde para a enfermidade em questão, o que impossibilita o fornecimento dos remédios solicitados (...)”

As razões do recurso interposto pelo Ministério Público, em favor de Keigi, eram no sentido de que a burocracia pública para o fornecimento de medicamentos não pode prevalecer quando estiver em risco a vida do titular do direito. Além do mais, a alegada ineficácia do medicamento requerido para casos como o do impetrante não coadunava com o consenso da comunidade científica, o que o legitima a obter uma última chance de lutar pela sua vida. O Estado do Paraná, que teve o seu pedido de inclusão na lide como litisconsorte passivo, apresentou contrarrazões ao recurso do Ministério Público, aduzindo que os medicamentos solicitados pelo impetrante eram recomendados a pacientes que ainda não tinham sido tratados e que possuíam o genótipo 1 da doença. Ao mesmo tempo, alegou que a recusa do fornecimento dos medicamentos se deu em razão da ausência de certeza de sua eficácia para o tratamento de casos como o de Keigi, que possuíam o genótipo 3 da Hepatite. O voto do então Ministro Luiz Fux, relator do caso, fundou-se, basicamente, nos artigos 6º e 196, da Constituição de 1988, bem como no princípio da dignidade humana, o qual, segundo o referido Ministro “é valor influente sobre todas as demais questões nela previstas e (...) há de superar quaisquer espécies de restrições legais.” Ressaltou, também, o Ministro Fux que a Portaria nº 863/2002 do Ministério da Saúde294, que regulamenta critérios de inclusão e exclusão para o fornecimento dos medicamentos requeridos pelo impetrante, contrariava o relatório médico por ele apresentado. Após o voto do relator do caso, o então Ministro Teori Albino Zavascki pediu vista que resultou em voto contrário ao do Ministro Luiz Fux, no sentido de negar provimento ao recurso. Os fundamentos utilizados pelo ministro residiram no fato de que: a) inexiste na

Constituição

vigente

direito

subjetivo

individual

de

acesso

universal,

incondicional, gratuito e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à

294

Disponível em: < http://hepato.com/portaria_863.htm>. Acesso em 15 ago. 2013.

107

saúde, médico ou farmacêutico; b) cabe aos Poderes Legislativo e Executivo estabelecer e promover políticas públicas de implementação de direitos sociais; c) o conceito de mínimo existencial seria o direito a uma prestação estatal que pode ser identificada imediatamente à luz das normas constitucionais e que possa ser atendida de forma igualitária e universal, não havendo dever do Estado de atender a uma prestação individual se não for viável o atendimento de todos os demais indivíduos que se encontrem na mesma situação; e d) não há direito líquido e certo para a assistência farmacêutica com medicamento de alto custo e que seja ineficaz, na opinião da comunidade médica. Os dois primeiros argumentos merecem destaque. O primeiro deles foi fundamentado em artigo de Octávio Luiz Motta Ferraz e Fabíola Sulpino Vieira, intitulado Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante, mais especificamente no trecho: Ainda que soubéssemos exatamente quais políticas são eficazes para garantir o mais alto grau de saúde possível a toda a população, seria impossível implementar todas essas políticas. Isso porque, enquanto as necessidades de saúde são praticamente infinitas, os recursos para atendê-las não o são, e a saúde, apesar de ser um bem fundamental e de especial importância, não é o único bem que uma sociedade tem interesse em usufruir. 295

Para desenvolver o segundo argumento, o ministro Zavascki ressaltou que as normas para o fornecimento do medicamento (política pública) requerido pelo autor contidas na Portaria nº 863/2002 do Ministério da Saúde, excluía a sua indicação para o caso do impetrante, o que coadunava com a posição dos órgãos técnicos oficiais, bem como da comunidade científica nacional e estrangeira da área de medicina, opinião que o Poder Judiciário não teria condições técnicas para contradizer. Proferido o voto divergente, também pediu vista o Ministro Benedito Gonçalves, pronunciando voto que seguiu o posicionamento do relator, no sentido de conceder a segurança a Keigi Yanaga, a fim de “tentar prolongar um pouco mais a vida do paciente.”

295

FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabíola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. DADOS- Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol.52, nº 1, 2009, p. 226. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/dados/v52n1/v52n1a07.pdf>. Acesso em 16 ago, 2013.

108

Com isso, o voto do Ministro Luiz Fux prevaleceu no julgamento do caso, tendo sido acompanhado pelos Ministros Benedito Gonçalves e Hamilton Carvalhido, vencido, portanto, o voto do Ministro Teori Albino Zavascki.

6.3) Supremo Tribunal Federal: o caso do agravo regimental da tutela antecipada nº 175/CE Antes de se aprofundar no caso, é relevante ressaltar que, nos dias 27, 28 e 29 de abril de 2009, bem como nos dias 4, 6 e 7 de maio do mesmo ano, foi realizada audiência pública, por iniciativa do então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, ocasião em que foram ouvidos 50 especialistas da área da saúde, entre advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público, magistrados, professores, médicos, técnicos da saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde.296 Essa iniciativa deu-se em virtude do grande número de processos relativos à tutela do direito à saúde em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Após a realização dessa audiência pública, consolidou-se, no Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência sobre a tutela do direito fundamental à saúde, a qual serviu de baliza para casos análogos ao do agravo regimental na suspensão da tutela antecipada nº 175/CE. O recurso foi interposto pela União a fim de reformar a decisão do Ministro relator do caso, Gilmar Mendes, que indeferiu o pedido de suspensão da decisão da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª região, nos autos da apelação nº408729/CE. O Ministério Público Federal interpôs mandado de segurança em favor de Clarice Abreu de Castro Neves, portadora da patologia denominada Nieman-pick, tipo

C.

Esta

doença

neurodegenerativa

rara

causa

vários

distúrbios

neuropsiquiátricos, como movimentos involuntários, disartria, paralisias progressivas, entre outros, males dos quais vinha sofrendo desde os seus cinco anos de idade, quando a doença foi diagnosticada. Em razão disso, requereu da União, do Estado do Ceará e do Município de Fortaleza, o fornecimento, através de mandado de

296

Estas informações foram retiradas do sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude>. Acesso em 17 out. 2013.

109

segurança, do medicamento Zavesca (miglustat), que custaria aos cofres públicos a importância de R$ 52.000,00 mensais. A fim de comprovar suas alegações, o Ministério Público Federal apresentou relatórios médicos emitidos pela Rede Sarah de Hospitais, os quais informavam que o uso do medicamento pleiteado poderia possibilitar a sobrevida, proporcionando melhoria da qualidade de vida dos portadores da doença citada, corroborado por exames clínicos e laboratoriais que atestavam a doença de Clarice. Em suas razões recursais, a União alegou a violação ao princípio da separação dos poderes, bem como a sua ilegitimidade passiva. A decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, negou provimento ao recurso da União, acompanhando o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do caso. Ao proferir seu voto, o Ministro Gilmar Mendes destacou a relevância da questão da judicialização da saúde, bem como das políticas públicas em geral, asseverando que o tema “envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área da saúde e a sociedade como um todo”.297 Iniciando o seu voto com pertinente introdução acerca da doutrina dos direitos sociais fundamentais, reserva do possível e a garantia do mínimo existencial, Gilmar Mendes mencionou a realização da audiência pública realizada em 2009, destacando as conclusões sobre o tema da judicialização da saúde firmadas neste ato, a fim de apresentar critérios para decisões em casos afins. Esclareceu Gilmar Mendes que a própria Constituição, em seu art. 196, apontou os limites e as possibilidade para a implementação do direito à saúde, a partir da interpretação das expressões “direito de todos”, “dever do Estado”, “garantido mediante políticas sociais e econômicas”, “que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”; redigido pelo princípio do acesso universal e igualitário. Interpretou a expressão “direito de todos” como um direito de titularidade individual e coletiva, simultaneamente, sendo que o deferimento do primeiro tipo de tutela estaria condicionado ao não comprometimento do funcionamento do sistema único.298 297 298

STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 81. STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 86.

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A responsabilidade solidária dos entes federativos foi interpretada a partir da expressão “dever do Estado”. Ressaltou o Ministro que “o fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e terem conjugado os recursos financeiros dos entes da federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles.”299 Na oportunidade, informou a existência de projeto de súmula vinculante sobre esse aspecto.300 Acerca da realização “mediante políticas sociais e econômicas”, Gilmar Mendes asseverou a impossibilidade de não fazer uso de escolhas alocativas para a implementação das políticas de saúde, uma vez que sempre haverá novas descobertas científicas de acordo com a evolução da medicina, bem como surgirão novas patologias.301 A dimensão preventiva do direito à saúde foi destacada quando da significação de “que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”, tendo destacado que o art. 198, II, da Constituição reforça esse entendimento.302 Quanto ao “acesso universal e igualitário”, Gilmar Mendes citou o voto da Ministra Ellen Gracie, publicado no DJe de 26 de fevereiro de 2007, no STA-91-1/AL, argumentando que as políticas públicas de saúde devem alcançar a população como um todo, sem privilégios ou preconceitos de qualquer espécie. Ao final, propôs critérios a ser seguidos pelos julgadores de casos análogos, com base em suas conclusões após a realização da audiência pública supracitada: a) Ao deferir uma tutela de saúde incluída entre as políticas do Sistema Único de Saúde, o Judiciário não estaria criando uma política pública, mas tão somente determinando o seu fiel cumprimento; b) Se a pretensão da parte requerente não estiver incluída entre as políticas do SUS, seria imprescindível verificar se ela decorre: de uma omissão legislativa ou administrativa; de uma decisão administrativa de não fornecê-la; ou de uma vedação legal ao seu fornecimento; c) É vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possua registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pois tal registro garantiria a segurança e o benefício do produto;303 299

STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 86-7. STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 102. 301 STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 89. 302 STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 89. 300

111

d) Deve-se dar prioridade a tratamentos que o SUS fornece em detrimento de opção diversa requerida pelo paciente, sempre que não houver comprovação científica da ineficácia ou a impropriedade do tratamento já existente, uma vez que o SUS filiou-se à corrente da “medicina com base em evidências”;304 e) Quando se tratar de inexistência de tratamento na rede pública, devem-se diferenciar

os

tratamentos

puramente

experimentais

dos

novos

tratamentos ainda não testados pelo SUS. Os tratamentos experimentais, assim considerados aqueles que ainda não possuem comprovação de eficácia, consistidos em pesquisas realizadas por laboratórios de ponta, o Estado não pode ser condenado a prestá-los. O fundamento desta impossibilidade apoia-se no fato de que, como não são comprovados, nenhum país consegue adquiri-los. Já os novos tratamentos ainda não incorporados pelo SUS, caso essa não incorporação seja ocasionada pela omissão administrativa, ela poderá ser impugnada, individual ou coletivamente, pelo Poder Judiciário, necessitando, entretanto, de ampla dilação probatória. f) Por derradeiro, o Ministro relator defendeu a imprescindibilidade de instrução das demandas relativas à tutela do direito à saúde, a fim de se evitar a “produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto examinado.”305

No dispositivo do acórdão estudado, Gilmar Mendes negou provimento ao agravo regimental, sob o argumento de que o pedido formulado pela parte agravante possuía natureza nitidamente recursal, contrariando o entendimento da Corte sobre o cabimento do referido remédio processual.

303

Ressalvou Gilmar Mendes que a Lei nº 9.782/99 prevê a possibilidade de dispensa de registro a medicamentos adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde. 304 Ressaltou o Ministro que as diretrizes terapêuticas e os protocolos clínicos do SUS não são inquestionáveis, o que, portanto, permite a contestação judicial. 305 STF, AgRe nº 175/CE, Min. Rel. Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2010, p. 97.

112

7) A APLICAÇÃO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO 7.1) A proporcionalidade como critério de verificação da necessidade da tutela processual na judicialização do direito fundamental à saúde O princípio da proporcionalidade306 surgiu por obra da doutrina e da jurisprudência alemã e suíça.307 Embora sua introdução no Direito Constitucional tenha ocorrido primeiramente na Suíça, foi a Alemanha que lhe atribuiu status de princípio constitucional, a partir de 1950.308 Inicialmente aplicado no Direito Administrativo, mais precisamente no Direito de Polícia, o princípio da proporcionalidade passou a ter aplicação constitucional. 309 Segundo Paulo Bonavides, apesar de não definir claramente o princípio, os primeiros casos de sua aplicação foram o “Lüth-Urteil” e o “Apotheken-Urteil”, ambos de 1958.310 No primeiro caso, o Judiciário alemão teve que resolver a colisão entre o direito à liberdade de imprensa e o direito à manifestação do pensamento, decorrente da pretensão de proibição de manifestações públicas de pessoas que incentivavam o boicote a um filme de conteúdo antissemita.311 No segundo, coube ao Estado (Legislativo) justificar a restrição ao exercício do direito de profissão, advindo da imposição de prévia autorização estatal para a abertura de novas farmácias, sob o argumento de se evitar prejuízos às já existentes. 312 Em 16 de março de 1971, entretanto, a Corte alemã firma o entendimento de forma mais clara sobre o princípio da proporcionalidade, pela primeira vez, num caso sobre o armazenamento de petróleo, asseverando: O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado. O meio é adequado quando com seu auxílio se pode alcançar o resultado desejado; é necessário, quando o legislador não poderia ter escolhido um outro meio, 306

A doutrina traz outras nomenclaturas como: princípio da razoabilidade e princípio da proibição de excesso. Ver GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional. 4ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 266-7. 307 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 362. 308 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 370. 309 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 370. 310 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 371. 311 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 21 312 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.21.

113

igualmente eficaz, mas que não limitasse ou limitasse de maneira menos sensível o direito fundamental.313

Com o passar do tempo, a aplicação do princípio da proporcionalidade foi se estendendo a outros campos. Atualmente, conforme José Joaquim Gomes Canotilho, a compreensão do princípio deve ser no sentido de vinculação do legislador, da administração e do julgador, ressaltando, acerca deste último, a possibilidade de aplicá-lo no âmbito dos direitos a prestações.314 Apesar de a maioria da doutrina tratar a proporcionalidade como princípio, Virgílio Afonso da Silva, apoiando-se na teoria dos direitos fundamentais desenvolvida por Robert Alexy, sustenta tratar-se de regra.315 Segundo a teoria dos direitos fundamentais desenvolvida por Robert Alexy, as normas que dizem o que deve ou não ser constituem o gênero ao qual pertencem as regras e os princípios.316 As regras são caracterizadas pelo baixo grau de generalidade e pela máxima do tudo ou nada, que dita que ou ela é aplicável ou não no caso concreto.317 Um exemplo de regra seria o disposto no art. 5º, LIV, da Constituição de 1988, que estabelece “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. De acordo com essa regra, toda prisão ou restrição a fruição de bens sem o devido processo legal é ilegal e não há outra interpretação para essa regra. Os princípios, em contrapartida, possuem um grau de generalidade alto e caracterizam-se pela impossibilidade de aplicação da máxima do tudo ou nada, pois são considerados mandamentos de otimização que não dependem

somente

das

possibilidades

fáticas

do

caso

concreto,

mas,

principalmente, de suas possibilidades jurídicas para a sua aplicação, que são determinadas pelos princípios e regras colidentes.318Isso quer dizer que os princípios serão aplicados na maior medida possível dentro das possibilidades

313

BVerfGE 30, p. 292 apud RESS, George. Der Grundstaz des Verhältnismässigkeit in europäischen Rechts-Ordnungen. Heidelberg, 1985, p. 13. Citado por BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, p . 372. 314 GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional. 4ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 270. 315 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 168. 316 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p.87. 317 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p.87. 318 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 90.

114

jurídicas e fáticas do caso concreto.

319

Um exemplo de princípio é o da liberdade de

expressão, previsto no art. 5º, IV, da Constituição, que estabelece “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” De acordo com esse princípio, toda pessoa é livre para manifestar-se, desde que não seja de forma anônima. Entretanto, a realização desse princípio encontra limites nas situações fáticas e jurídicas do caso concreto, como, por exemplo, se a livre manifestação colidir com o direito de privacidade e a honra das pessoas, este poderá sofrer restrições, inclusive total. Para resumir, a aplicabilidade de uma regra será, predominantemente, definitiva, e a do princípio, prima facie.320 Virgílio Afonso da Silva considera a máxima da proporcionalidade como regra, uma vez que não estaria sujeita a condicionantes fáticas e jurídicas do caso concreto, aplicando-se, portanto, no todo.321 Segundo o autor, a confusão feita a respeito da proporcionalidade advém de sua especialidade, já que não se trata de uma regra de condutas ou de competência (como a maioria dessa espécie), mas de uma regra acerca da aplicação de outras regras.322 A aplicação da regra da proporcionalidade no direito processual civil brasileiro, ainda que comum como critério de julgamento, principalmente no controle da constitucionalidade,323 demonstra-se quase que inexistente quanto à verificação dos pressupostos processuais para o recebimento da petição inicial. A verificação dos requisitos de admissibilidade em uma demanda demonstra-se de suma importância para que se evitem diversos problemas que podem nascer de uma prestação jurisdicional inadequada. Em se tratando da tutela do direito sanitário, essa verificação se torna ainda mais essencial, já que, conforme já exposto, não será todo tipo de demanda que promoverá a sua máxima realização. Uma demanda 319

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 104-5. 320 É necessário que se cite a observação feita por RobertAlexy, de que essa máxima não é absoluta, fazendo uma crítica à Dworkin: “do lado das regras, a necessidade de um modelo diferenciado decorre da possibilidade de se estabelecer uma cláusula de exceção em uma regra quando da decisão do caso. Se isso ocorre, a regra perde, para a decisão do caso, seu caráter definitivo. A introdução de uma cláusula de exceção pode ocorrer em virtude de um princípio.” In Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 104. 321 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 168. 322 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 169. 323 Pode-se citar o célebre caso sobre a regulamentação da profissão de jornalismo (RE nº 51.961/SP), julgado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal em 12/11/2009, além do caso da (im)possibilidade de prisão civil como meio de coerção para o pagamento de dívida proveniente de contrato de alienação fiduciária, julgado no mesmo ano (RE nº 349.703 RS).

115

de natureza individual que contenha um pedido de alcance coletivo, por exemplo, não se demonstra adequada para a tutela desse direito. Isso porque os direitos sociais são concretizados por políticas públicas, que são pensadas e executadas coletivamente e, numa demanda individual, o universo do julgador estará restrito à análise das particularidades do caso proposto pelo autor individual. O

que

se

pretende

é

sustentar

a

utilização,

pelo

julgador,

da

proporcionalidade como regra de verificação da adequabilidade da tutela eleita pelo autor da demanda que visa a tutelar o direito à saúde. Portanto, diante do caso concreto, o julgador deve verificar se a via eleita pelo autor será ou não apta a promover o direito a uma tutela adequada. Robert Alexy preleciona que a máxima da proporcionalidade se subdivide em três máximas parciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.324 A adequação e a necessidade dizem respeito a características fáticas e a proporcionalidade em sentido estrito diz respeito às características jurídicas.325 Para ilustrar a submáxima da adequação, Alexy cita o caso BVerfGE 19 em que o direito de liberdade profissional colidia com o da proteção ao consumidor. 326 Nesse caso, um comerciante que havia instalado uma máquina de venda automática de cigarros em seu estabelecimento questionava a exigência legal de expertise para tal ato. A lei dispunha que, para a proteção do consumidor, o comerciante de cigarros deveria comprovar o seu conhecimento técnico-comercial, a fim de evitar prejuízos econômicos e à saúde do consumidor. O Tribunal Constitucional Federal entendeu que a exigência legal de conhecimento técnico para a exploração comercial de qualquer mercadoria em máquinas automáticas não era adequada para proteger o consumidor e que, por isso, violaria o direito de liberdade profissional. Quanto à submáxima da necessidade, o autor alemão exemplifica através do caso BVerfGE 53.327 Nesse caso, a liberdade profissional colidia novamente com a proteção ao consumidor. Uma portaria proveniente do Ministério para a Juventude, Família e Saúde proibia a comercialização de doces que, embora contivessem chocolate em pó, não fossem feitos de produtos genuinamente de chocolate. Tal 324

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 116. 325 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 588. 326 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 588-9. 327 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 590.

Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São

116

exigência, segundo a ideia da lei, protegeria o consumidor contra eventuais práticas enganosas. A corte alemã decidiu que, apesar de a exigência legal ser adequada para a proteção do consumidor, ela não era necessária, uma vez que existiriam meios menos invasivos para promovê-la, como a obrigatoriedade de informação do rótulo do produto. Alexy esclarece que a submáxima da proporcionalidade em sentido estrito se verifica através do sopesamento de princípios colidentes.328 Esse sopesamento teria três passos: 1º) avaliação do grau de não satisfação de um dos princípios; 2º) avaliação da importância da satisfação do princípio colidente; e 3º) avaliação se a importância da satisfação do princípio colidente justifica a afetação ou não satisfação do outro princípio.329 A exigência de inserção de avisos nos rótulos de produtos tabagistas demonstra-se proporcional, no caso BVerfGE 95, pois suas razões são fortes.330 Quanto ao primeiro passo, verifica-se que, tanto o direito de liberdade comercial quanto o da proteção à segurança do consumidor, são satisfeitos. A importância da proteção da segurança do consumidor justifica a afetação à liberdade comercial. A partir desse raciocínio, nota-se que o que se defende não é a utilização das máximas parciais da proporcionalidade em sentido estrito ou da adequação, mas sim da necessidade. Segundo o autor alemão, a máxima da necessidade está ligada à ideia de eficiência, prescrevendo que, na existência de dois meios adequados, o meio menos intenso deve ser escolhido.331 Essa escolha deve primar pela vedação de sacrifícios desnecessários a direitos fundamentais.

332Nesse

sentido, o julgador,

diante de uma demanda individual que pretenda a produção de efeitos coletivos, ao verificar que esta não é a via que promoverá a máxima realização do direito social envolvido, deverá aplicar a máxima da proporcionalidade e declarar a sua ineficácia, fundamentando sua decisão na máxima parcial da necessidade. Impedir-se-ia,

328

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 594. 329 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 594. 330 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 595. 331 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 591. 332 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 591.

fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São

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assim, o sacrifício desnecessário de lesão potencial ao direito da coletividade à saúde pelo direito individual. Sérgio Cruz Arenhart, em sua recente obra intitulada “A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos”, defende a utilização da regra da proporcionalidade como critério para gerir a massa de processos apresentada à análise jurisdicional na atualidade, com o fim de amenizar o seu vulto.333 Segundo a aplicação da proporcionalidade no processo civil, justificaria a preponderância da tutela coletiva sobre a individual, sob a colisão entre as garantias processuais das partes e o interesse na eficiência da prestação jurisdicional.334 A partir de uma interpretação perfunctória do art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988, constatar-se-ia que a técnica processual utilizada para a tutela de um direito que esteja sofrendo lesão ou ameaça de lesão não poderia ser objeto de apreciação do julgador quanto à sua adequabilidade, uma vez que a tutela do direito poderia se dar de qualquer forma e a qualquer custo. As tendências mais modernas do Direito Processual Civil vêm interpretando o dispositivo constitucional citado segundo a máxima da efetividade da tutela jurídica processual.335 O conceito dessa máxima vai muito além da simples prestação jurisdicional, abrangendo, necessariamente, a prestação jurisdicional efetiva do direito substancial envolvido. Utilizando o microssistema de direitos coletivos como pano de fundo para a verificação da adequação da técnica processual na tutela dos direitos fundamentais sociais, a partir da leitura do art. 83, do Código de Defesa do Consumidor, poder-seia inferir, numa primeira análise, que “todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Entretanto, este dispositivo deve ser

333

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29. 334 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 40. 335 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 83-84; ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 27-30; GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 143-9; MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 143-154; CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Vol. II. Tradução de Hermes Zaneti Junior. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p.51; DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 153-4.

118

entendido em conjunto com o disposto no art. 84, que permite poderes ao juiz de “conferir ao processo, mais especificamente ao seu provimento, maior plasticidade e mais perfeita adequação e aderência às peculiaridades do caso concreto.”336 O princípio da adequação deriva do due process of law, encontrando-se em dois principais momentos no Direito Processual: a) no legislativo, como orientador da confecção das leis; e b) no jurisdicional, autorizando ao juiz, diante do caso concreto, adaptar o procedimento às suas peculiaridades.337 Isso quer dizer que, no momento legislativo, o devido processo deve ser observado pelo legislador para a confecção das normas de direito processual que irão servir de instrumento efetivo de concretização do direito substancial a ser tutelado, atendendo a todas as suas finalidades, sob pena de falência do próprio direito. No momento jurisdicional, da mesma forma, a via processual escolhida pelo autor também deve estar sujeita a este princípio, para que não sofra as mesmas consequências da sua inobservância. Na legislação processual portuguesa, o princípio da adequação está previsto expressamente no art. 547, que dispõe: “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”. O art. 2º, que dispõe sobre a garantia de acesso aos tribunais ressalva a adequação como condição de acesso, dispondo:

A todo direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercitivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.

A legislação brasileira ainda não prevê o princípio da adequação expressamente como no modelo português, mas implicitamente o insere nos dispositivos que possibilitam a alteração do padrão procedimental pelo juiz em casos específicos como: a) na inversão do ônus da prova do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor; b) na conversão do procedimento sumário em ordinário do 336

WATANABE, KAZUO. Efetividade da tutela jurídica processual. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Fonrense, 2011, p. 110. 337 DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Princípio da adequação jurisdicional do processo coletivo: benfazeja proposta contida no projeto de nova Lei de Ação Civil Pública. In GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON,Petrônio. Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p.247.

119

art. 277, §§ 4º e 5º, do Código de Processo Civil; c) no julgamento antecipado da lide do art. 330, do Código de Processo Civil, dentre outros.338 O projeto da nova lei de Ação Civil Pública (projeto nº 5.139/2009) prevê, expressamente, o princípio da adequação em seu art. 10, §1º339, o que consagrará de forma inequívoca a aplicação desse princípio. Entretanto, Fredie Didier e Hermes Zaneti entendem que tal princípio não precisa ser previsto expressamente pelas regras, para ter aplicação, uma vez que este é corolário do devido processo legal adequado.340 Assim, com base no que se expôs sobre a aplicação da regra da proporcionalidade, bem como da efetividade da tutela jurídica processual, afirma-se que o juiz, quando o direito discutido na demanda for um direito individual homogêneo,341 não tem somente o poder, como o dever de verificar, desde a propositura da demanda, a adequabilidade da via processual eleita pelo autor para a tutela do direito à saúde. Em caso de inadequação, o magistrado deverá adotar as medidas processuais existentes na legislação para reverter a situação e torná-la adequada, inclusive determinando a conversão das demandas individuais em coletivas. Essa postura provém do dever de zelar pela idoneidade da prestação jurisdicional através da aplicação da técnica processual adequada para que se possa evitar uma tutela inefetiva, imprestável ou tardia.342 É certo, contudo, que a atual conjuntura do Direito Processual limita a atuação do magistrado nesse sentido, o que contribui para a ocorrência do principal problema na judicialização do direito à saúde, assim como todos os direitos sociais: a observância de seu caráter coletivo. É que, apesar de decorridos quase cinquenta

338

Outras possibilidades ainda são citadas por Fredie Didier e Hermes Zaneti Júnior In GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON,Petrônio. Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p.251. 339 O dispositivo prescreve: “Até o momento da prolação da sentença, o juiz poderá adequar as fases e atos processuais às especificidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico coletivo, garantido o contraditório e a ampla defesa.” 340 DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Princípio da adequação jurisdicional do processo coletivo: benfazeja proposta contida no projeto de nova Lei de Ação Civil Pública. In GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON,Petrônio. Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 252. 341 Os direitos coletivos (stricto sensu) e os difusos somente poderão ser tutelados por instrumento coletivo. 342 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 144-5.

120

anos desde a inserção dos primeiros instrumentos de tutela coletiva dos direitos, quase todo o direito processual ainda é pensado para uma litigância individual.343 Isso fortalece a importância do tema e a necessidade da renovação do Direito Processual,

em

consonância

com

a

summa

divisio

individual/coletivo

constitucionalizada.

7.2) A coletivização de direitos individuais através da aplicação da proporcionalidade O aumento constante do número de processos em tramitação é uma preocupação constante entre os juristas. Os tribunais já não conseguem dar respostas céleres aos conflitos levados a seu crivo. Os advogados, auxiliares da justiça e jurisdicionados sofrem as consequências dessa tutela tardia ou ineficaz. Mais especificamente sobre o direito à saúde, como já informado, o Conselho Nacional da Justiça apurou a existência de 240.980 demandas em trâmite nos órgãos judiciais brasileiros.344 Desde então, o tema ganhou a atenção dos estudiosos do direito. Por conta disso, a procura por soluções processuais criativas se intensifica cada vez mais no cotidiano jurídico. A tutela coletiva de direitos individuais, nesse contexto, passa a ter papel central. O que se busca não é o mero estudo de situações em que se transformariam demandas individuais em ação coletiva por se enquadrar no conceito de direitos individuais homogêneos, até porque o atual sistema processual já oferece soluções. O que se propõe é a aplicação da proporcionalidade como critério de conversão da demanda individual em coletiva. Partindo da máxima da proporcionalidade, a análise individual de um elevado número de demandas pelo Poder Judiciário, cujo objeto poderia ser tratado coletivamente, constitui desperdício de recursos.345 Portanto, sempre que o

343

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 243. 344 Relatório atualizado da resolução 107 do Conselho Nacional de Justiça, disponível em:< http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/relatorio_atualizado_da_resolucao107.pdf>. Acesso em 18 jan 2014. 345 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 145.

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magistrado verificar a utilidade da proteção coletiva, ele deve adotar providências legais que assim o autorize.346 Sérgio Cruz Arenhart propõe a identificação de três elementos que promoverão essa coletivização: a) a inviabilidade de formação de litisconsórcio; b) afinidade de questões; e c) a utilidade predominante da tutela coletiva em relação às partes e ao Judiciário.347 O parágrafo do art. 46, do Código de Processo Civil, prevê a possibilidade de o juiz limitar o número de litisconsortes, no litisconsórcio facultativo, quando este possa prejudicar o rápido andamento do processo ou dificultar o exercício do direito de defesa.348 É com base nesse raciocínio que o elemento da inviabilidade de formação do litisconsórcio se baseia. Não seria útil a ocorrência de várias sentenças que julguem ações de objeto comum, pois a formação de vários grupos de demandas não se coaduna com o objetivo do litisconsórcio, que é a uniformidade das decisões e a celeridade processual. 349 Nesses casos, o juiz poderia converter essas ações em uma só demanda coletiva. A afinidade de questões diz respeito à existência de ao menos um ponto comum de fato ou de direito entre as pretensões.350 Assim como para a formação do litisconsórcio,351 não é necessário que as demandas sejam conexas (quando lhes for comum objeto ou causa de pedir). É necessário existir, apenas, um ponto comum de fato ou de direito.352 Por fim, a utilidade da tutela coletiva deve respeitar o interesse do Judiciário de agrupar em uma só demanda as ações individuais, bem como a prestação da

346

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 145. 347 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 145, 348 O dispositivo prevê: “ O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão. 349 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 147. 350 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 148. 351 O art.46, do Código de Processo Civil dispõe sobre as hipóteses de formação de litisconsórcio: “Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito; III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir; IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.” 352 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 148.

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tutela jurisdicional adequada e mais eficaz; além de ser mais vantajoso para as partes envolvidas.353 Quanto a este último, há casos em que as particularidades do caso de um e de outro indivíduo tornará inviável a tutela coletiva.354 Por conta disso, para a identificação desse elemento, é necessário que o magistrado faça uma ponderação entre as vantagens e desvantagens para apontar o tipo de tutela que servirá mais adequadamente ao caso tratado.355 De acordo com Freddie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior, o magistrado, como diretor do processo, está autorizado a conformar o procedimento às particularidades do caso concreto, no sentido de promover uma tutela adequada ao direito material. 356 Atualmente, não há previsão legal na legislação processual brasileira que preveja a possibilidade de conversão de demandas individuais em coletivas, de ofício pelo juiz. Mas, com base no princípio da adequação, o juiz poderia assim atuar de lege lata. O código apenas prevê, em seu art. 277, § 4º, a possibilidade de conversão do procedimento sumário em ordinário, prescrevendo que: “O juiz, na audiência, decidirá de plano a impugnação ao valor da causa ou a controvérsia sobre a natureza da demanda, determinando, se for o caso, a conversão do procedimento sumário em ordinário.” Apesar de pautar no mesmo fundamento, o da adequação do procedimento às peculiaridades do direito substancial, a conversão de demandas individuais em coletivas ainda não está prevista expressamente. Não se trata, tampouco, de sugerir o indeferimento da petição inicial, com fundamentação no art. 295, do CPC, que dispõe: “quando o tipo de procedimento, escolhido pelo autor, não corresponder à natureza da causa, ou ao valor da ação; caso em que só não será indeferida, se puder adaptar-se ao tipo de procedimento legal”. Os interesses individuais podem ser tutelados por ações dessa mesma 353

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 152. 354 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 152. 355 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos direitos individuais homogêneos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 152. 356 DIDIER JÚNIOR, Fredie; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Princípio da adequação jurisdicional do processo coletivo: benfazeja proposta contida no projeto de nova Lei de Ação Civil Pública. In GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON,Petrônio. Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p.251.

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natureza. Apesar de não serem a via mais adequada, como já foi dito, não é tecnicamente equivocado, pelo menos na atual conjuntura legal. Além do mais, o objetivo desta pesquisa não é retardar o exercício da jurisdição, mas o aperfeiçoar para promover a sua celeridade. Constata-se, pois, que a atual legislação processual brasileira não supre as necessidades modernas, pelo que clama por modificações. José Carlos Barbosa Moreira já defendia esse posicionamento há trinta anos.357 Há em tramitação algumas propostas de lei que buscam satisfazer essa necessidade. O projeto de lei que propõe um novo Código de Processo Civil (nº 8.046/10), aprovado no dia 26 de março de 2014 pelo plenário da Câmara dos Deputados, traz alterações significativas no que se refere à tutela dos direitos supraindividuais. A mais significativa delas encontra-se em seu artigo 334, que prevê a possibilidade de conversão das ações individuais em coletivas. A relevância social e a dificuldade de formação de litisconsórcio serão os pressupostos das duas hipóteses de conversão previstas no projeto. O julgador poderá determinar a conversão de uma demanda individual nas seguintes hipóteses: a) caso possua um alcance coletivo, em que os titulares do direito pretendido sejam pertencentes, simultaneamente, ao indivíduo e à coletividade (direitos difusos); e b) caso a solução do litígio deva ser, necessariamente, uniforme a todos os interessados, em razão de sua natureza ou de disposição legal (direitos coletivos stricto sensu). Além disso, os parágrafos do artigo em comento preveem algumas proibições: a) a de o juiz proceder à conversão ex officio, já que prevê que o Ministério Público ou a Defensoria Pública devem formular tal pedido; b) a de conversão quando se tratar de direitos individuais homogêneos; e c) quando houver um dos impedimentos processuais previstos que a inviabilize (quando já houver ação coletiva em trâmite que trate do assunto, quando a audiência de instrução já houver se iniciado, ou quando o juízo for incompetente para o julgamento do feito). O instituto da conversão das ações individuais em coletivas surge para solucionar, de maneira satisfatória, o problema da inadequação da via eleita pelo autor da demanda. Possibilitará a harmonização do tipo de tutela com a natureza do

357

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 07.

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direito material envolvido. Esse instituto servirá como técnica de regularização das demandas individuais com efeitos coletivos e as demandas pseudoindividuais. Conforme



sustentado

no

presente

trabalho,

as

demandas

pseudoindividuais e as individuais com efeitos coletivos são instrumentos inadequados para tutelar os direitos coletivos (lato sensu). Isso se dá pelo fato de incorrer incompatibilidade entre a natureza do direito tutelado e a ação escolhida para a tutela desses direitos. Tal instituto demonstra-se relevante não só para o caso da judicialização da saúde como para todos os casos de judicialização de direitos sociais. Quanto às proibições, discorda-se da impossibilidade de conversão ex officio pelo magistrado, diante do atual contexto jurídico em que se encontra. A possibilidade legal de conversão ex officio das demandas individuais em coletivas demonstra-se necessária no que tange à proteção do direito à saúde.358 As razões foram expostas ao longo deste trabalho: seja porque há inúmeras ações de cunho individual em trâmite, seja pela natureza do direito material envolvido, seja pela obediência às lições da Análise Econômica do Direito, entre outras. A exigência de que ela seja requerida pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública somente estenderia o número de atos processuais, desnecessariamente, uma vez que a conversão pelo juiz seria fundamentada em critérios legais. Além disso, inobstante sejam os legitimados coletivos mais atuantes, os demais legitimados pela Lei de Ação Civil Pública não poderiam ser olvidados, sob pena, inclusive, de sua inconstitucionalidade. Ada Pellegrini também tece algumas críticas acerca da redação do dispositivo em comento: - a conversão deveria se fazer ex-officio e não a requerimento dos legitimados, e muito menos após ouvida dos autores individuais (que podem ser milhares ou até milhões): a obrigatoriedade da conversão 358

Conforme Ada Pellegrini Grinover, o texto aprovado por unanimidade na Câmara foi suprimido por comissão do Senado sob a alegação de que: “A inconstitucionalidade do incidente de coletivização de demandas é manifesta, á luz da inafastabilidade da jurisdição e do posicionamento de integrantes da Suprema Corte, por privar o autor individual do controle do seu processo, criando indevido obstáculo ao exercício do seu direito de ação. A matéria deve regulada em lei específica, a exemplo da Lei da Ação Civil Pública ou do Código de Defesa do Consumidor, este último em atualização no Congresso Nacional, por meio de projetos de lei oriundos de Comissão de Juristas presidida pelo Min. Herman Benjamin, do STJ. Sem prejuízo, o incidente de resolução de demandas , repetitivas abrangerá as hipóteses de coletivização, inclusive aquelas ligadas ao litisconsórcio facultativo unitário, fornecendo, assim, uma representa (sic) eficaz. Propõe-se, por essas razões, a exclusão do dispositivo, renumerando-se os demais.” Entretanto, ressalta que os processualistas estão se mobilizando para que o texto seja mantido. In Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado.

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está na necessidade de atingir uma sentença com efeitos erga omens (art. 334, I) ou de tratar unitariamente a relação de direito material (art. 334, II); - a menção à dificuldade de litisconsórcio é totalmente inadequada no caso: as ações em defesa de direitos difusos ou coletivos (ss) não tem nada a ver com o litisconsórcio; - não há conveniência na exclusão da coletivização quando já iniciada a audiência de instrução e julgamento (pois a prova poderia ingressar como emprestada no processo coletivo); - se houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto, é evidente que não há necessidade de coletivização, mas a solução deveria será a extinção dos processos individuais, aplicando-se ao caso o disposto no par. 9º.359

O instituo da conversão de demandas individuais em coletivas difere-se significativamente do instituto do incidente de resolução de demandas repetitivas, também previsto no Projeto de Novo CPC. Nos termos do artigo 988, do projeto, o incidente de resolução de demandas repetitivas somente é cabível perante os tribunais de justiça ou perante os tribunais regionais federais, a requerimento das partes, do Ministério Público, da Defensoria Pública, de pessoa jurídica de direito público, de associação civil ou de ofício pelo relator ou órgão colegiado. Ademais, é necessário que haja risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica em demandas que tenham como objeto a mesma questão. O incidente de resolução de demandas repetitivas adveio da ideia de vinculação de precedentes. A doutrina especializada a conceitua como “o mecanismo em permitir que, entre várias demandas idênticas, seja escolhida uma só, a ser decidida pelo tribunal, aplicando-se a sentença aos demais processos, que haviam ficado suspensos.360 Além disso, a prática dos precedentes garante às partes o gozo de diversos benefícios, como a segurança jurídica, a celeridade e a previsibilidade (ou não surpresa) na prestação jurisdicional. Pela redação do art. 139, X, do Projeto de Novo Código, o juiz passa a ter do dever de dirigir o processo no sentido de oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública ou outro legitimado coletivo para promover, se for o caso, a propositura de demanda coletiva.

359

GRINOVER, Ada Pellegrini. Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado. 360 GRINOVER, Ada Pellegrini. Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado, p. 5

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Assim, o instituto da conversão de demandas individuais em coletivas visa à regularização processual das demandas que envolverem direitos coletivos (stricto sensu) e difusos. O instituto do incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua vez, visa à regularização processual das demandas que envolvam direitos individuas homogêneos. É inegável, todavia, que ambos os institutos certamente contribuirão para a adequada tutela dos direitos transindividuais. O desafio do direito processual civil na atualidade deve ser no sentido de converter o maior número possível das demandas individuais em coletivas, possibilitando a máxima atuação dos legitimados coletivos, principalmente quando se referir ao direito à saúde, a fim de que seus princípios basilares, da universalidade e da igualdade não sejam feridos.361

361

GRINOVER, Ada Pellegrini. Anotações sobre ações coletivas e ações individuais no campo da saúde. Texto ainda não publicado.

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8) CONSIDERAÇÕES FINAIS Longa foi a trajetória das conquistas humanas para que o direito à saúde fosse considerado um direito social fundamental, bem como para que a força normativa de uma constituição fosse medida a partir do grau de efetivação de seus preceitos fundamentais. Os direitos sociais hoje são entendidos como direitos que asseguram a fruição dos demais direitos. A saúde, neste contexto, revela-se um pilar que sustenta dois dos direitos mais essenciais ao ser humano: a vida e a dignidade. Consoante o texto constitucional, a saúde é um direito de todos e dever do Estado por intermédio da atuação de todos os entes federativos. Eventuais omissões ou erros praticados para a sua efetivação enseja a pretensão processual de seus titulares. As políticas públicas sanitárias, portanto, precisam mais do que ser levadas a sério. Precisam ser efetivas e minimamente suficientes para atender as necessidades da população. O atual cenário das políticas públicas de saúde desenvolvidas pelo Poder Público não se harmoniza com esse compromisso. O mínimo constitucional de aplicação orçamentária é invariavelmente desrespeitado pelo Executivo, a confecção de leis que irão regulamentar devidamente o sistema é tardia. Tudo isso explica o constante aumento de demandas sanitárias que abarrotam o Judiciário, que, por conta disso e de outras razões, não consegue dar respostas céleres, ou muitas vezes, adequadas às demandas. A teoria da separação dos poderes não deve ser interpretada como fora no liberalismo. A harmonia entre os poderes e a sua separação são garantias que asseguram o controle jurisdicional dos atos praticados pelo Poder Público para a implementação das políticas sanitárias. A ausência de recursos financeiros não pode ser aceita como justificativa para a ineficiência das políticas estatais quando a análise do orçamento público do Estado de Minas Gerais, por exemplo, aponta gastos anuais médios de R$ 167, 53 milhões, segundo dados contidos no sítio eletrônico do Tribunal de Contas. O controle jurisdicional de políticas é concordante com o modelo de Estado Democrático de Direito. Através dele minimizam-se os efeitos maléficos e muitas vezes irreparáveis de uma atuação insuficiente do Poder Público. Entretanto, o controle jurisdicional possui falhas e deve ser aprimorado pelos sujeitos processuais.

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Buscou-se discutir criticamente os principais argumentos jurisprudenciais e doutrinários acerca do tema da judicialização, apontando os seus aspectos eventualmente incoerentes. Constatou-se, a partir disso, que a simples afirmação de insuficiência de recursos e de aumento das desigualdades sociais não deve prevalecer a menos que se faça um estudo aprofundado pelo assunto. As pesquisas estudadas que apontavam que a judicialização da saúde favoreceria as camadas mais abastadas da sociedade não se sustentam, por se apoiarem em premissas equivocadas. A técnica processual deve ser adequada à finalidade a que se destina o direito. Como verificado por intermédio do perfil da judicialização da saúde no estado de Minas Gerais apresentado, os instrumentos processuais de natureza individual estão sendo utilizados como regra para a tutela do direito à saúde. Em respeito ao caráter coletivo das políticas públicas, as ações de natureza coletiva devem ser os principais instrumentos processuais para a tutela do direito sanitário, restando, para os demais tipos processuais, a subsidiariedade. Diante do atual cenário, é possível que o Judiciário também incorra nas mesmas falhas que os poderes Legislativo e Executivo, já que o vultoso volume de processos (cada vez mais crescente) obstaculiza a sua atuação apropriada. No entanto, para que ocorra a mudança dessa realidade processual, é necessário que a legislação processual também acompanhe o desenvolvimento da tutela coletiva e possibilite outras saídas processuais ao julgador. A possibilidade de coletivização das demandas individuais é uma solução viável ao problema. Apoiando-se na teoria dos direitos fundamentais desenvolvida por Robert Alexy, bem como nos critérios estabelecidos pela lei, o julgador poderia determinar essa coletivização, fundamentando sua decisão na máxima parcial da necessidade, proveniente da máxima da proporcionalidade. Embora proíba a conversão ex oficio, o Projeto nº 8.046/10 (Novo CPC), na versão aprovada pela Câmara dos Deputados, também instaura o novo instituto da coletivização das demandas individuais em coletivas, o que resulta em grande avanço para o Direito Processual Civil brasileiro. A supressão do instituto nos demais atos do processo legislativo seria um retrocesso. A judicialização da saúde precisa avançar quanto ao aspecto das técnicas processuais vigentes. Entretanto, ela certamente contribui para a diminuição dos

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efeitos maléficos da ineficiência das políticas públicas disponíveis para a efetivação desse direito.

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WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo. Vol. 139. São Paulo, setembro, 2006.

138

APÊNDICE

AVALIAÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL COLETIVA E INDIVIDUAL A PARTIR DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

RELATÓRIO DE PESQUISA

Ada Pellegrini Grinover (coord) Kazuo Watanabe Ligia Paula P. Pinto Sica (coord) Lucélia de Sena Alves Maria Tereza Sadek Natalia Langenegger Vivian Ferreira

Assistentes de Pesquisa Bianca Torrano Giovana Possignolo Katherine Martins Marília Gabriela de Silva e Lima

São Paulo 2014

139

ÍNDICE

1. Introdução ................................................................................................................. 140 2. A tutela jurisdicional do direito à saúde ................................................................... 145 2.1. Direito à saúde: direitos sociais, políticas públicas e judicialização ............................. 145 2.2. Mecanismos processuais para a tutela do direito à saúde ........................................... 1558

3. Notas Metodológicas .................................................................................................. 28 4. Achados de pesquisa: apresentação dos dados ....................................................... 1748 4.1. Dados do Tribunal de Justiça de São Paulo ..................................................................... 38 4.2. Dados do Tribunal Regional Federal da 3ª região ........................................................... 49 4.3. Dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ................................................................ 56

5. Conclusões finais ........................................................................................................ 74 6. Referências Bibliográficas ...................................................................................... 2107 Anexo 1 – Ficha.............................................................................................................. 81

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APRESENTAÇÃO

Apresentamos ao público o resultado da pesquisa jurisprudencial conduzida pelo Centro de Estudos e Pesquisas Judiciais – Cebepej e Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, por meio dos Coordenadores e Pesquisadores nela indicados, versando sobre a judicialização da saúde nos Estados de São Paulo e Minas Gerais. Dos dados coletados extraíram-se as seguintes conclusões:

1)

A total inexistência de ações individuais de efeitos coletivos e de ações pseudoindividuais junto à Justiça de São Paulo e Minas Gerais, no campo da saúde;

2)

a baixíssima incidência de ações coletivas nesse mesmo campo e nos referidos Estados;

3)

a enorme preponderância de ações individuais, alimentando o fenômeno da litigância repetitiva, com todas suas desvantagens (acúmulo de trabalho, decisões contraditórias, condução atomizada de questões que poderiam ser agrupadas num tratamento único e uniforme);

4)

ausência completa de iniciativa dos legitimados às ações coletivas para aglutinarem inúmeras demandas repetitivas, com pedidos idênticos e em face do mesmo réu, ajuizando uma única ação coletiva (seja em defesa de direitos coletivos, seja de direitos individuais homogêneos362);

5)

a substituição da iniciativa correta, indicada no n. 4, pela propositura canhestra de demandas de natureza individual, querendo que passem por ações coletivas (ações pseudocoletivas).

A situação da judicialização da saúde, nos Estados acima indicados, é calamitosa. Talvez não caibam juízos de valor em pesquisas dessa natureza. Mas eu, em nome pessoal, não posso furtar-me a fazê-lo. Certamente somos todos responsáveis por essa situação: a começar pelo legislador, que se recusou a modernizar os processos coletivos, dando-lhes 362

A respeito dessa aglutinação vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça sinalizou no sentido da suspensão da tramitação dos processos individuais, para que se aguardasse o julgamento da ação coletiva.

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maior eficácia; passando pelo Poder Judiciário que, em relação ao acesso às vias coletivas, hesita entre a abertura e os entraves, dificultando-o; passando pelo próprio juiz, que não quer e não sabe lidar com processos coletivos, assim como pelos legitimados, que frequentemente se perdem em questões corporativas, deixando de exercer seu papel; por todos nós especialistas que, após mais de 30 anos de introdução em nosso país dos processos coletivos, ainda não conseguimos vê-los vicejar na realidade. E chegando enfim à sociedade brasileira, profundamente individualista e egoísta. O único dado positivo que emergiu da pesquisa é que, nesse campo, não se encontrou a aberração das ações pseudoindividuais, que constatamos existir no campo das relações de consumo363. Magro consolo, diante das demais conclusões.

São Paulo. Julho de 2014 Ada Pellegrini Grinover Coordenadora

363

Como, por exemplo, nas ações relativas à tarifa telefônica, em que as demandas só poderiam ser conduzidas coletivamente, dada a unitariedade da relação jurídica de direito material.

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1. Introdução Consoante o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Diante do mandamento constitucional, o ordenamento jurídico brasileiro prevê, basicamente, dois tipos de processo para garantir à tutela judicial de direitos: em primeiro lugar, o processo derivado do direito de ação individual, regulado pelo Código de Processo Civil e destinado à tutela de interesses individuais; e o processo coletivo, para a tutela de direitos coletivos,364 sob a égide da Lei de Ação Civil Pública (Lei no 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/90). Esta divisão teórica bastante simples, segundo a qual os interesses individuais são tutelados por ações individuais e os interesses coletivos por ações coletivas, no entanto, não parece corresponder à prática atualmente vivida pelos tribunais brasileiros. Por uma série de motivos, tem se verificado na práxis forense diferentes formas de manejo dos instrumentos processuais existentes, conduzindo a uma realidade muito mais complexa, na qual ações individuais provocam efeitos na coletividade e ações coletivas, muitas vezes, têm alcances consideravelmente limitados. Nesse sentido, pesquisadores do campo do processo civil vêm relatando a existência de novos tipos de demandas, às quais vêm chamando de pseudocoletivas365 ou individuais de efeitos coletivos e pseudo-individuais,366 dentre outras nomenclaturas. Embora ainda exista ampla divergência na doutrina sobre a possibilidade de identificar diferentes tipos de demandas e a classificação que deveria ser atribuída a cada uma delas, há consenso de que essas formas alternativas de manejo dos instrumentos processuais que se desenvolveram na prática desafiam a teoria do processo e trazem problemas reais para a efetividade e celeridade da prestação jurisdicional. Isso porque há dúvida de como essas 364

Refere-se, aqui, aos interesses coletivos lato sensu, ou seja, incluem-se nessa categoria os interesses difusos, os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos, na forma como se encontram definidos no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. 365 Cf. Araújo Filho (2000, pp. 199-202). 366 Cf. Watanabe (2006, pp. 28-33); Bonício & Sica (2014, pp.279-285).

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demandas devem ser tratadas: devem ser consideradas como ações individuais e sujeitas às regras estabelecidas no Código de Processo Civil ou deveriam ser tratadas como coletivas e sujeitas às normas do Código de Defesa do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública? Ou deveriam receber um regime legal intermediário mais adequado? Estas questões se tornam relevantes na medida em que as normas processuais que regulam o processo têm importantes efeitos na realidade social ao determinar quais pessoas são partes legítimas para ingressar com a ação, quais causas de pedir podem ser aceitas em juízo, quais tipos de provas são necessários e suficientes para a procedência da demanda e se a sentença deve ter efeitos erga omnes ou inter partes. Assim, quando uma ação é manejada pelo Ministério Público em benefício de um direito individual367 em vez de manejar uma ação coletiva em prol de todos os demais cidadãos que se encontrem na mesma situação fático-jurídica, o resultado é o aumento do número de processos em curso no Poder Judiciário, reduzindo, assim, a eficiência e a celeridade da prestação jurisdicional, com prejuízos, ainda, à isonomia. Da mesma forma, quando ações individuais são ajuizadas para a tutela de um interesse que é materialmente vinculado a uma pluralidade de pessoas e que, portanto, reclama solução comum, é possível, por um lado, que alguém que não participou da demanda seja afetado por ela; por outro lado, a multiplicação de demandas individuais, contribui para a sobrecarga do judiciário, além de criar a possibilidade de que casos que merecem solução idêntica sejam julgados de forma diferente. Na ausência de regras claras para lidar com este tipo de situação, a questão que se coloca é como juízes e tribunais vêm atuando quando são confrontados com este tipo de demanda. É possível que estejam atuando de maneira não uniforme, tomando decisões com base em diferentes interpretações acerca do ordenamento jurídico em vigor. Com isso, é provável que surjam soluções diferentes para casos iguais, o que incentiva a atomização de demandas que deveriam ser tratadas de maneira molecularizada368. Tais problemas apontam para a necessidade de realização de ajustes legais para que a administração da justiça se dê de forma mais célere, isonômica, uniforme e equilibrada. Isso só é possível com a melhor compreensão do que efetivamente se passa no Judiciário brasileiro.

367 O qual tem que ser indisponível, por força do art. 127, caput, da Constituição Federal. 368 Os temos atomização e molecularização foram cunhados por Kazuo Watanabe para contrapor o tratamento coletivo e individualizado de demandas jurídicas que afetam a uma coletividade. Nesse sentido, ver Watanabe (2006).

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Para tanto, a presente pesquisa se concentra em um caso específico, que diz respeito ao direito à saúde, uma vez que se trata de um direito que pode ser tutelado tanto no plano individual, por se tratar de um direito subjetivo, quanto no plano coletivo, pois é possível pleitear intervenção em políticas públicas. O direito à saúde permite, assim, o manejo de diferentes remédios jurisdicionais e a comparação entre os diferentes tipos de tutelas delas resultantes. Pretende-se, assim, mapear quais são os tipos de demandas que vem sendo propostos para tutelar o direito à saúde, em especial pela análise de suas causas de pedir e seus pedidos. Com isso, espera-se compreender quais mecanismos processuais estão efetivamente sendo usados pelas pessoas que buscam o socorro do Poder Judiciário, bem como verificar quais os resultados que estas demandas têm produzido. Ou seja, pretende-se identificar, dentro da pluralidade de vias existentes para a tutela do direito à saúde, quais são as vias efetivamente eleitas pelos jurisdicionados e qual tratamento que cada uma delas tem recebido do Poder Judiciário. Importante esclarecer, nesse sentido, que, embora sejam temas de pesquisa relevantes e pertinentes, não se pretende adentrar na questão da execução das sentenças e nem se aprofundar nos impactos da judicialização do direito à saúde na política pública ou no orçamento público.369 O foco, portanto, está na comparação das diferentes vias processuais existentes para a tutela do direito à saúde quanto à sua utilização e quanto aos seus resultados. O presente relatório de pesquisa, além desta breve introdução, está estruturado da seguinte forma: inicialmente, busca-se expor mais extensamente o problema de pesquisa que ora se apresenta, explicitando as bases teóricas sobre as quais a pesquisa foi construída. Em seguida, descreve-se em detalhe a metodologia de pesquisa empregada para, depois, apresentar os resultados até então obtidos. Finalmente, são apresentadas as conclusões preliminares do estudo.

369

Existe toda uma linha de pesquisas que se aprofundam no tema da judicialização do direito à saúde que, não obstante, foi utilizada como embasamento teórico para a realização da presente pesquisa. Nesse sentido, ver Ferraz (2009); Lopes (2006 e 2011); Sabino (2011); Silva (2008); e Wang (2009).

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2. A tutela jurisdicional do direito à saúde 2.1. Direito à saúde: direitos sociais, políticas públicas e judicialização O direito à saúde é previsto pela Constituição Federal de 1998 como um direito social de caráter universal, assegurado a todos os indivíduos, de forma igualitária e isonômica: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O direito à saúde, como se depreende do texto constitucional, consiste no direito de todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país de se beneficiarem de políticas públicas estatais adequadas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, e à prevenção de doenças, de acordo com o que se considera, ao mesmo tempo, possível e desejável. Evidentemente, a definição das condições nas quais se considera que o direito à saúde pelo Estado vem sendo adequadamente garantido é complexa. Exatamente quais tratamentos e medicamentos devem estar disponíveis na rede pública de saúde?370 Devem ser investidos mais recursos em prevenção de doenças ou em cirurgias complexas? Como os hospitais

De acordo com Marco Antônio da Costa Sabino: “O dever do Estado de implementar progressivamente os direitos tais como a saúde está estampado no artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, que assegura o reconhecimento do Estado de que todos têm o direito de desfrutar do mais alto grau de saúde física e mental. Também desde 1977 a Organização Mundial da Saúde estabelece o uso de listas de dispensação de medicamentos como um escopo a ser perseguido pelo Estado para uma melhor execução das ações e políticas estatais na área da saúde.” Pelas diretrizes da CF/88 e da Lei n. 8.808/90, fez-se necessária a criação da Política Nacional de Medicamentos (PNM). O autor prossegue: “Como dados essenciais da ação executiva na área da saúde [e em obediência à orientação da OMS], existem as listas de dispensação obrigatória. Trata-se de séries de medicamentos que o Estado elegeu como de fornecimento universal e gratuito, compondo listas dos remédios que deverão ser dispensados pelas unidades estaduais ou municipais competentes. As listas mais importantes são: (I) de medicamentos essenciais (chamada RENAME – Relação Nacional dos Medicamentos Essenciais), considerados prioritários para o tratamento das doenças mais prevalentes do país; e (II) de medicamentos excepcionais, remédios de alto custo e baixa incidência populacional, que, geralmente, demandam tratamento continuado. Os medicamentos excepcionais consomem cerca de 1/3 dos recursos previstos para a implementação da política de acesso a medicamentos.” (2011, pp. 367-368). Essas listas são facetas do “planejamento” a que alude a Constituição Federal de 1988. Conforme SABINO, essas listas representam uma previsão, um planejamento do Executivo (o que não pode ser feito pelo Judiciário). Sobre a elaboração das listas e sobre quem tem competência para tanto, vide o mesmo artigo citado de Sabino (2011, pp. 368-371). 370

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devem ser geograficamente distribuídos? Quantos médicos de cada especialidade devem ser contratados pelo Estado para atuar em determinada região? Estas são apenas algumas das perguntas que precisam ser respondidas no processo de criação de uma política pública estatal voltada à realização deste direito social. Resta claro, desta forma, que a efetivação do direito à saúde depende de uma série de decisões que precisam ser tomadas no sentido de construir uma política pública para atender ao constitucionalmente previsto. A adequação destas, no entanto, costuma ser controversa e questionável, cuidando-se, no limite, de decisões políticas371. As dificuldades em relação à realização do direito à saúde tornam-se, assim, evidentes e não se restringem a este direito, sendo comuns a todos direitos sociais, como o direito à educação e à moradia, por exemplo. Historicamente, os direitos sociais foram constituídos ao longo do século XX, com o desenvolvimento do Estado de bem-estar social, a partir da premissa de que o bem comum deve ser produzido coletivamente e distribuído coletivamente,372 com base em direitos de caráter universal.373 A partir de então, as constituições ultrapassaram os limites da estruturação do poder e da garantia das liberdades públicas para tratar igualmente dos denominados “direitos de segunda geração”, que englobam os direitos econômicos, sociais e culturais. Previstos no art. 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966,374 estes direitos surgiram como prerrogativas dos segmentos mais desfavorecidos da sociedade, na 371

Aparentemente, ao menos quanto à composição da RENAME, a escolha dos medicamentos da lista é feita por profissionais do governo (Ministério da Saúde), de universidades e de vários órgãos especializados, dentre eles, ANVISA. Em tese, qualquer interessado pode requerer a revisão da RENAME administrativamente. É necessário compreender bem como funciona a composição das listas de medicamentos, especialmente a questão dos fármacos excepcionais (de baixa incidência populacional e de alto custo), que - justamente pelas suas peculiaridades - não geram interesse na indústria farmacêutica, tendo em vista a ótica de mercado. A este respeito, consultar Sabino (2011, pp. 368-370). Por mais que exista uma decisão política, nesses casos das listas de dispensação obrigatória, parece haver um controle sério, feito por órgãos com representantes pré-estipulados, com representatividade ampla na área da saúde (governo, agências reguladoras, professores universitários), de modo a tratar o problema dos medicamentos sob o aspecto estatístico e sob a visão da "medicina baseada em evidências". Em tese, esses profissionais têm mais condições de elaborar um planejamento de aquisição e de distribuição de medicamentos. Ao menos, esses órgãos especializados (responsáveis pela elaboração das listas) possuem melhores condições de atuação que o Judiciário. 372 O caráter plurilateral dos direitos sociais acarreta um dever de repartição de ônus e bônus para todos. Ver Marinho (2009, p. 20). 373 O tema da distribuição é tema central da obra de diversos economistas e cientistas políticos do século XX, que sustentam que o bem comum resulta da produção coletiva a ser distribuída e não como a soma dos bens individuais, individualmente produzidos. Nesse sentido, ver Lopes (2001, pp. 96-97). 374 A redação Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adota uma linguagem declaratória, enunciativa e simbólica, sugerindo uma realização progressiva destes direitos, mas sem efetivamente assegurar condições de exercício. BUCCI, Maria Paula Dallari, O conceito de política pública em direito, pp. 06 – 07.

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forma de obrigações do Executivo, de modo a exigir uma intervenção continuada e ativa dos poderes públicos: “A característica básica dos direitos sociais está no fato de que, forjados numa linha oposta ao paradigma kantiano de uma justiça universal, foram formulados dirigindo-se menos aos indivíduos tomados isoladamente como cidadãos livres e anônimos e mais na perspectiva dos grupos, comunidades, corporações e classes a que pertencem. Ao contrário da maioria dos direitos individuais tradicionais, cuja proteção exige apenas que o Estado jamais permita sua violação, os direitos sociais não podem simplesmente ser ‘atribuídos’ aos cidadãos; cada vez mais elevados à condição de direitos constitucionais, os direitos sociais requerem do Estado um amplo rol de políticas públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade – políticas essas que têm por objetivo fundamentar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas por sua positivação.”375

Ao Estado passou a ser atribuído, assim, o dever de prestar serviços como o de educação, saúde, assistência social, habitação, cultura, lazer, organização do trabalho – bens “escolhidos pela sociedade como necessários ao mínimo desenvolvimento social”.376 “Ao Estado passou a incumbir a tarefa de distribuir à população esses bens, da maneira mais igualitária possível, sem que houvesse privilégio ou prejuízo de cada qual, dentro de suas respectivas necessidades, mormente porque esses bens sociais devem ser considerados como indivisíveis, no sentido de que pertencem a todos e, ao mesmo tempo, a ninguém.”377

Houve, assim, um processo de ampliação de direitos que modificou a postura absenteísta do Estado para atribuir-lhe um enfoque prestacional, característico das obrigações de fazer.378 A lógica por trás da garantia destes direitos é a lógica da justiça distributiva379, cuja compreensão requer que se recupere a noção de bem comum380 e de bem indivisível. Os direitos sociais apresentam justamente as características de indivisibilidade e de comunhão381: 375

Cf. Faria (1998, p. 105). Cf. Sabino (2011, p. 354). 377 Cf. Sabino (2011, pp. 354-355). 378 Cf. Bucci (2006, pp. 2-3). 379“Então nesse primeiro momento eu quero dizer que discutir justiça distributiva não é discutir filigrana, não é discutir sensibilidade para com os pobres, não é discutir misericórdia nem caridade. É discutir uma regra e, portanto, uma regra de razão, fria a respeito de como vários têm simultaneamente acesso a uma coisa, ou seja, são as regras de uso das coisas comuns.” Lopes (2001, p. 96). 380 É preciso recuperar o conceito de bem comum como categoria normativa, para então pensar os problemas de cooperação. Para maiores informações sobre os conceitos de bem comum e de bem coletivo, consultar Lopes (2003). 381 Cf. Lopes (2001, pp. 93-96). 376

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“[...] direitos sociais são bens coletivos universais de natureza continuativa, prestacional e plurilateral, ou seja, a relação que os envolve é duradoura, voltada para o futuro e o seu objeto é (ou está) indivisível.”382

A presença estatal tornou-se essencial e indispensável como partícipe, indutor ou regulador do processo econômico. Todavia, os excessivos avanços jurídicos nessa área nem sempre significam progresso real na concretização de serviços públicos de qualidade.383 É certo que as políticas públicas implementadas pelo Poder Público nunca foram suficientes para satisfazer a imensa demanda de uma população carente de serviços em quantidade e qualidade aceitáveis; de outro lado, a atual constituição ampliou ainda mais o processo de constitucionalização de temas que já foram vistos como reservados ao campo da política.384 Nesse sentido, é possível sustentar a existência de uma debilidade inerente aos direitos sociais, na medida que sua realização depende de “tarefas de Estado, programas de objetivos sujeitos a amplas margens legislativas e políticas de configuração.”385 “Os críticos consideram ingênua ‘a inflação de direitos’ promovida nesse processo. Alertam para o fato de que, como disse certa vez um jurista, ‘a Constituição não cabe no PIB’. Haveria um excesso de direitos, correspondentes a aspirações sociais, cuja satisfação depende da macroeconomia, da organização dos setores produtivos, da inserção do Estado na economia mundial, enfim, de variáveis estranhas ao direito. Para os países em desenvolvimento, o rol de direitos inspirado nas Declarações Internacionais e nos textos constitucionais dos países avançados constitui ideal irrealizável, em vista dos meios disponíveis.”386

A baixa efetividade dos direitos, como é o caso do direito à saúde, pode ser explicada pela própria estrutura destes direitos. Com efeito, por tratar-se de um direito a prestações em sentido estrito, que implica uma obrigatoriedade para que o Estado preste determinados serviços à população em geral, a sua realização demanda o investimento de recursos públicos.387 Tais custos são suportados pelo Estado, o qual é financiado pela sociedade em geral, por meio da tributação.

382

Cf. Marinho (2009, p. 19). Cf. Bucci (2006, pp. 3-4). 384 A exemplo da regulação do salário mínimo, a fixação de taxas de juros e a garantia de direitos à saúde, à educação, ao trabalho e à moradia. 385 Cf. Bucci (2006, p. 8). 386 Cf. Bucci (2006, p. 4). 387 De acordo com Virgílio Afonso da Silva, embora seja correto afirmar a necessidade de gastos para a realização de qualquer direito, também é verdade que a implementação dos direitos sociais e 383

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Seria simplista, no entanto, afirmar que apenas os direitos sociais demandam investimentos para que sejam eficazes. Todos os direitos fundamentais garantidos dependem do dispêndio de recursos públicos. Mesmo os direitos de liberdade – que garantem uma esfera de autonomia aos indivíduos no âmbito da qual o Estado não pode intervir, um dever negativo ao Estado – implicam gastos com direitos de proteção e com direitos a organização e procedimentos, por exemplo, com a instalação de polícia, com a criação de leis e com a organização judiciária.388 É falacioso, assim, o argumento de que as liberdades públicas não custam dinheiro. Como conclui Flávio Galdino, com base nas ideias de Cass Sustein e de Stephen Holmes, “direitos não nascem em árvores”.389 Não obstante, a efetivação dos direitos sociais é mais dispendiosa. Isso porque, como explica Virgílio Afonso da Silva, boa parte dos requisitos fáticos, institucionais e legais para uma produção quase plena dos efeitos das liberdades públicas já existe e são aproveitados de maneira global por todas elas, enquanto as reais condições para o exercício dos direitos sociais ainda têm de ser criadas e exigem, além de tudo, o que é necessário para a produção de efeitos das liberdades públicas, outras prestações estatais, específicas para cada um dos direitos sociais.390 O fato de as condições para o exercício eficaz das liberdades públicas já existirem não é, ressalte-se, fruto do mero acaso. Na realidade, a proteção aos direitos de liberdade, também conhecidos como direitos de primeira geração, se deu antes no tempo, como produto do Estado moderno de bases liberais. Já os direitos sociais, ou direitos de segunda geração, só vieram a ser reconhecidos mais tardiamente, sob a influência de uma nova concepção acerca dos fins do Estado391. Não é por outro motivo que estamos acostumados a pensar “como se a propriedade não demandasse qualquer prestação pública para ser exercida. Estamos muito acostumados porque assim fomos ideologicamente formados”.392 O não reconhecimento dos custos das liberdades públicas pode ser – como vem sendo – usado ideologicamente para que se priorize econômicos custa ainda mais caro aos cofres públicos. Assim, há uma diferença essencial (em termos de alocação de recursos públicos) entre decisões que visam a garantir os direitos civis ou políticos e decisões que visam a realizar ou a garantir direitos sociais ou econômicos (2008, p. 593). 388 Cf. Virgílio Afonso da Silva (2008, p.234-236). 389 Cf. Galdino (2005, p. 347). 390 Cf. Silva (2008, pp. 237-242). 391 Na verdade, esta afirmação se aplica aos países de desenvolvimento mais antigo. Nos países de desenvolvimento tardio, como o Brasil, as liberdades individuais foram garantidas junto ou depois dos direitos sociais. Cf. Santos; Marques & Pedroso (1996). No caso específico do Brasil, os direitos sociais foram garantidos antes dos direitos políticos e civis. Cf. Carvalho (2010). 392 Cf. Flávio Galdino (2005, p. 230).

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a realização de direitos de liberdade, como o direito de propriedade, em detrimento da realização dos direitos sociais, como a saúde ou a educação.393 De todo modo, fato é que a realização do direito à saúde é extremamente custosa. Como afirma Alexy, mesmo os direitos sociais ditos mínimos “têm, especialmente quando são muitos que deles necessitam, enormes efeitos financeiros”.394 Este, claramente, é o caso do Brasil: um país em que os índices de concentração de renda são tão elevados que apenas uma pequena parcela pode recorrer a tratamentos pagos em hospitais particulares.395 E se, de um lado, a realização do direito à saúde demanda elevados investimentos, de outro lado, os recursos públicos são limitados e escassos. A limitação dos recursos de que o Estado dispõe constitui-se, portanto, em limite fático à efetivação dos direitos fundamentais, de modo que sua efetividade estaria vinculada às capacidades financeiras do Estado. Por este motivo, passou-se a sustentar a colocação dos direitos sociais sob o que se denominou “reserva do possível”. Segundo Ingo Wolfganf Sarlet: “De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a ‘reserva do possível’ (...) passou a traduzir (...) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público”.396

De fato, a eficácia de todas as normas que garantem direitos fundamentais depende, além dos requisitos intrínsecos, de natureza técnico-normativa, também de requisitos extrínsecos à norma, de natureza fática.397 Por este motivo, qualquer análise realista dos direitos fundamentais deve, necessariamente, levar em consideração as possibilidades concretas de realização, tendo em vista a escassez dos recursos públicos.

393

Nesse sentido, ver Ferraz (2009, p. 228). Cf. Alexy (2008, pp. 512). 395 Segundo o Relatório sobre Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil tem a oitava pior relação entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres (índice Gini). A estatística completa encontra-se disponível em . 396 Cf. Sarlet & Figueiredo (2010, pp. 28 e s.). O tema é abordado com mais detalhes por Marinho (2009). No mesmo sentido, ver também Jacob (2011). 397 Cf. Ferraz Jr., (2003, p. 199). 394

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Mas essa escassez, isoladamente, não justifica uma conclusão contrária à existência de direitos fundamentais sociais.398 A limitação dos recursos não pode ser tomada de forma absoluta, a ponto de se sobrepor totalmente à fundamentalidade dos direitos. Este é apenas um dos elementos a ser levado em consideração, mas nunca o único.399 É muito comum que se refira aos custos econômicos e financeiros dos direitos como meros óbices à efetividade dos direitos sociais. Esta análise, contudo, não parece adequadamente completa. Afirmar, por exemplo, que a não realização efetiva do direito à saúde decorre da escassez dos recursos públicos significa enunciar apenas metade do raciocínio envolvido. Em verdade, o raciocínio que leva à aceitação da tese da reserva do possível pode ser descrito do seguinte modo: são muitos os direitos garantidos, mas os recursos para a sua efetivação são escassos e insuficientes para uma realização total de todos eles; assim, os recursos escassos devem ser distribuídos para que sejam aplicados em diferentes áreas, conforme determinadas prioridades. Daí é possível extrair duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, os recursos econômicos não são apenas óbices, mas pressupostos para a realização dos direitos, sendo justamente o que os torna possíveis. Em segundo lugar, a realização de determinados direitos em detrimento de outros não é necessariamente resultado direto da escassez dos recursos, mas geralmente de uma escolha política acerca da alocação desses recursos – escolha esta que só se torna necessária em razão da escassez. Não é propriamente o esgotamento dos recursos disponíveis que costumam frustrar a efetivação de um ou outro direito social, mas a necessidade de realizar escolhas trágicas 400, ou seja, a necessidade fática de optar acerca de como devem ser realizados os gastos públicos. 401 “Em um cenário de recursos escassos, no qual não há dinheiro suficiente para resolver nem mesmo os principais problemas de saúde, educação e moradia dos indivíduos – e essa é a realidade em quase todos os países do mundo – é necessário que alguém tome a decisão sobre como e onde os recursos públicos serão alocados.”402

A questão que se coloca, neste ponto, é acerca de quem é competente para realizar a alocação dos recursos públicos. Não sem motivo, a questão dos orçamentos públicos foi tão

398

Cf. Alexy (2008 , pp. 512 e s). Cf. Wang (2009, p. 541). 400 Cf. Calabresi & Bobbit (1978, p. 18). 401 Cf. Galdino (2005, p. 235). 402 Cf. Silva (2008, p. 590). 399

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cara ao constituinte de 1988.403 É notória a importância e a legitimidade dos orçamentos públicos para a condução das políticas administrativas e a concretização dos direitos constitucionalmente previstos: “(...) [os orçamentos públicos são] legítimos instrumentos de definição e articulação de políticas e programas da Administração Pública tendentes a dar eficácia aos direitos constitucionalmente previstos e, nesta condição, como barreiras constitucionais contra eventual abuso ou disfunção por parte do Judiciário no exercício de seu poder extroverso ou contramajoritário.”404

Os instrumentos orçamentários previstos na Constituição Federal podem ser considerados as expressões jurídicas de políticas públicas por excelência.405 Dessa forma, embora a escassez de recursos não deva ser ignorada, a previsão de direitos sociais na constituição brasileira não pode ser entendida como simples “lírica constitucional”406 (sem a existência de qualquer consequência jurídica para essa previsão ou seu descumprimento). A falta de concretização dos direitos sociais é frustrante, tornando inócuo ou ao menos bastante esvaziado o “Estado Social de Direito” previsto no art. 1º da Constituição Federal. Alguns autores, como é o caso de Virgílio Afonso da Silva, sustentam que a concretização dos direitos sociais deve ser uma conquista da sociedade civil realizada por meios políticos, em um posicionamento similar ao de José Joaquim Gomes Canotilho, para quem “a efetivação dos direitos sociais deve ocorrer pela intensificação de participação democrática na política dos direitos fundamentais.”407 Entretanto, cada vez mais verifica-se que os interessados recorrem ao Judiciário contra a omissão do Poder Público ou a implementação insatisfatória dos comandos constitucionais,408 com base no garantia constitucional de acesso à Justiça prevista no artigo 5o, inciso XXXV da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”: “(...) um grande número de operadores do direito encaram os desafios suscitados pelos direitos sociais a partir dessa transposição, da seguinte maneira: visto que a constituição garante, por exemplo, um direito à saúde,

403

Cf. Jacob (2011, p. 244). Cf. Jacob (2011, p. 241). 405 Cf. Bucci (2006, p. 244). 406 Expressão usada por Robert Alexy, de acordo com Silva (2008, p. 588). 407 Wang (2009, pp. 22-23). 408 Há falhas no processo político – os Poderes Executivo e Legislativo, muitas vezes, tornam-se reféns das distorções causadas pela atuação de grupos de interesse majoritários e minoritários. Nesse sentido, ver Badin (2011, p. 21). 404

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se uma pessoa não tem acesso a um determinado tratamento médico ou a um determinado medicamento, então é tarefa do Judiciário garantir que essa pessoa receba o tratamento e o medicamento necessários.”409

É importante ressaltar que, no Brasil, a defesa dos direitos sociais costuma ser abordada a partir da perspectiva de direitos humanos. O Poder Judiciário tornou-se um dos principais atores políticos, modelando decisões políticas e econômicas que antes eram tomadas apenas por chefes do Executivo e legisladores.410 O fenômeno da adoção de uma postura mais ativa por parte do Poder Judiciário é tratado por uma vasta literatura, que se divide entre aqueles que condenam o que chamam de “ativismo judicial inconsequente” e aqueles que veem ainda maiores prejuízos no que poderia ser chamado de “omissão judicial resignada”. São basicamente três as frentes em que os argumentos se desenrolam: a partir da crítica neo-institucional, da crítica da legitimidade e da crítica da capacidade institucional.411 A crítica neo-institucional a uma atuação judicial mais proativa é aquela que sustenta que o Poder Judiciário seria um importante instrumento garantidor de previsibilidade e de direitos de propriedade e que o ativismo judicial imporia um aumento aos custos de transação, o que afastaria investimentos e dificultaria o desenvolvimento econômico.412 Assim, essa vertente defende a necessidade de ponderação, pelo juiz, das consequências econômicas das suas decisões e ressalta, ainda, os dilemas de se decidir a respeito da alocação de recursos escassos. Esta crítica é rebatida por aqueles que sustentam que o critério de eficiência econômica propugnado por essa abordagem neo-institucional ignoraria as injustiças existentes no ponto de partida das relações entre os agentes, além do que seria impossível que se concebesse um método adequado para determinar o que seria uma decisão eficiente que não permitisse que o juiz mascarasse as suas opções ideológicas ou, ainda, que o juiz ponderasse, de fato, todas as consequências de uma decisão.413 Outra vertente questiona a legitimidade democrática do Poder Judiciário, cujos membros não são eleitos pelo voto popular, para atuar ativamente no desenho e na implementação das políticas públicas. Segundo esta corrente, a indicação pelo Judiciário das 409

Silva (2008, pp. 587-588). Helmke & Ríos-Figueroa (2011, p. 1). 411 Essa categorização foi elaborada a partir de uma combinação dos critérios adotados por Veríssimo (2006) e por Badin (2011). 412 Veríssimo (2006, pp. 76-77). 413 Badin (2011, p. 33). 410

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medidas específicas que deveriam ser adotadas pelo governo seria contrária ao princípio da separação de poderes e resultaria na usurpação dos poderes do Legislativo pelo Judiciário, uma vez que as decisões envolvendo políticas públicas, alocação de recursos e escolhas de prioridades, deveriam ser tomadas pelo processo político414. A esta crítica se opõem aqueles que sustentam que a atuação do Poder Judiciário nas políticas públicas seria democraticamente legítima por impedir a inércia dos demais poderes em concretizar as garantias constitucionais, bem como por fornecer um canal institucional de vocalização dos interesses das minorias, geralmente excluídas do processo político. A judicialização representaria, assim, um sintoma de que a participação social no processo de formulação e implementação das políticas públicas teria se intensificado.415 Por fim, uma terceira crítica diz respeito à problematização acerca da capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com as questões distributivas envolvidas nas decisões sobre políticas públicas. É importante considerar que o Poder Judiciário foi institucionalmente criado com vistas à resolução de conflitos privados bilaterais. A judicialização de direitos sociais, por outro lado, passou a impor aos juízes o dever de decidir sobre novas questões com as quais não estavam habituados, envolvendo problemas de justiça distributiva, relacionados à alocação de recursos, com impactos que extrapolam as partes envolvidas no litígio. O sucesso da adjudicação de direitos sociais dependeria, assim, de uma mudança radical no modelo de adjudicação tradicionalmente praticado pelo Poder Judiciário. Seria necessária uma transição de uma lógica de justiça comutativa, preocupada com a resolução de problemas privados por meio de sentenças de reparação de danos que afetam apenas as partes envolvidas no litígio e que são impostas exclusivamente pelo Judiciário, para uma nova lógica de justiça distributiva, com decisões prospectivas que impactam a coletividade, impondo uma agenda reformas continuadas cuja implementação depende de uma relação de cooperação entre Judiciário e Executivo. A combinação da promessa constitucional de direitos sociais com um modelo de processo judicial insuficientemente aparelhado resulta em prejuízo para a plena efetivação desses direitos. Pesquisas empíricas voltadas ao mapeamento deste processo de judicialização dos direitos sociais no Brasil apontam que a atuação do Judiciário produz efeitos irracionais nas políticas públicas e no orçamento público e, ainda, que a individualização das demandas

414 415

Badin (2011, pp. 36-44). Badin (2011, pp. 36-44).

155

termina por favorecer aqueles com mais fácil acesso ao Judiciário, ou seja, a classe média e, portanto, não conduz a uma efetiva transformação social.416 A partir das constatações empíricas das limitações à capacidade institucional do Judiciário, surgem propostas e tentativas de reforma do processo adjudicatório para adaptá-lo aos novos desafios que se lhe apresentam. Exemplo disso são os projetos de lei que procuram aprimorar o procedimento para os processos coletivos e para o tratamento adequado de políticas públicas (visando a um “processo para conflitos de interesse público”). 2.2. Mecanismos processuais para a tutela do direito à saúde A realização do direito à saúde depende da estruturação e da promoção de políticas públicas pelo Estado. O controle da legalidade e da adequação dessas políticas, por sua vez, pode ser realizado pelo Poder Judiciário, quando provocado e sempre a posteriori. A esse respeito, importante ressaltar que não há rigidez quanto ao tipo de processo ou espécie de demanda a ser utilizada para o controle de políticas públicas; para efeitos processuais, é a natureza do provimento que realmente importa: “qualquer tipo de ação – coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual – pode ser utilizada para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle das políticas públicas. E não importa a espécie de demanda:

meramente

declaratória,

constitutiva

ou

condenatória,

mandamental ou executiva lato sensu”.417

Ainda, como afirma Ada Pellegrini Grinover, “(...) é certo que os direitos coletivos (latu sensu) gozam de instrumentos processuais específicos de proteção: Lei da Ação Civil Pública, Mandado de Segurança Coletivo, Ação Popular, Ação de Improbidade Administrativa. Mas é certo também que, por intermédio de uma demanda individual, podem ser protegidos direitos e interesses coletivos lato sensu”.418

Isso se deve ao fato de o direito à saúde ter natureza bidimensional, ou seja, possuir uma dimensão individual e uma coletiva. Trata-se de direito de todos e de cada um. Dessa forma, é juridicamente admissível tanto a ação do indivíduo que, na condição de detentor de direitos subjetivos, ingressa em juízo para pedir, por exemplo, o fornecimento de

416

A este respeito, ver Silva e Terrazas (2011) e Wang (2008). Grinover & Watanabe (2007, pp. 854-855). Nesse sentido, temos também: “(...) qualquer tipo de ação, na jurisdição constitucional e na ordinária, pode ser utilizado para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle e a possível intervenção em políticas públicas” (Grinover, 2011, p 57). 418 Grinover (2011, p 145). 417

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medicamento pelo Estado, quanto a ação ajuizada pelos legitimados para pleitear a correção ou a melhoria da política pública para todos os beneficiários do SUS. O direito à saúde, portanto, pode ser tutelado tanto individualmente como coletivamente. Mas na prática forense, muitas vezes a distinção entre o individual e o coletivo é menos clara e muito mais complexa do que se pode imaginar, dando origem, por exemplo, a demandas individuais com efeitos coletivos e demandas coletivas com impactos limitados, entre outras. A doutrina processual brasileira vem discutindo o tema e propondo diversas maneiras de classificar as diferentes formas de tutela jurisdicional dos direitos coletivos. Inexiste, no entanto, até o momento, um consenso doutrinário a este respeito. Dessa forma, para viabilizar a realização da presente pesquisa, foi necessário adotar alguma forma classificação. Buscando acomodar alguns dos principais critérios propostos na literatura brasileira sobre processo civil, propõe-se, aqui, uma classificação segundo a qual seria possível identificar cinco tipos de ação que vêm sendo utilizados para a tutela jurisdicional do direito à saúde – as ações tipicamente individuais, as ações coletivas, as ações individuais com efeitos coletivos (em certas situações, admissíveis), as ações pseudoindividuais e as ações pseudocoletivas (essas duas últimas inadmissíveis)– conforme se passa a descrever adiante. Importante esclarecer que a classificação aqui sugerida não tem a pretensão de ser a única, a mais correta ou a mais acertada. Trata-se de uma classificação que se apoia na doutrina brasileira existente sobre o tema e que se revelou útil para orientar a realização da pesquisa. Não obstante, espera-se que os resultados obtidos com a pesquisa empírica possam contribuir para a avaliação crítica das classificações doutrinárias existentes, inclusive a classificação que ora se propõe, aproximando-as da realidade vivida nos tribunais e contribuindo para uma melhor compreensão de como as normas processuais são efetivamente empregadas pelos atores do sistema de justiça, criando, assim, base para propostas de alterações legislativas que visem à melhora da tutela jurisdicional dos direitos coletivos no país.

A) A ação individual consiste em ação ajuizada por uma pessoa física ou um grupo de indivíduos em litisconsórcio na qual a causa de pedir, o pedido e os efeitos da sentença são tipicamente individuais419. A pretensão busca efetivar o quanto individual do direito à saúde e

“Ou seja, um sujeito inserido na coletividade carente de certa política pública poderá requerer a tutela da sua parcela subjetiva daquele direito coletivo, por intermédio de uma demanda individual, que tratará somente a ele a proteção requerida”. Ver Zufelato (2013, p. 327). 419

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a sentença procedente produz efeitos inter partes, ou seja, beneficia somente o autor da ação. O regime jurídico processual ao qual se submetem as ações individuais é o estabelecido pelo Código de Processo Civil (CPC).420 O direito à saúde, apesar da sua dimensão coletiva, pode ser judicializado de maneira individualizada. Como esclarece Salles: “[Existe a] possibilidade de apresentação individual de muitos dos chamados direitos sociais. Não obstante sua vocação ao atendimento de demandas de coletividades específicas, compostas de pessoas ou grupos em situação similar, muitas vezes o direito social pode ser traduzido em típico direito subjetivo individual e, nessa condição, ser exigido judicialmente. Tome-se, por exemplo, o direito à educação, veiculado mediante o pleito de uma vaga para uma criança em determinada escola. O direito à saúde, postulado por meio do pedido de um medicamento ou tratamento para um paciente específico. (...) Essa “individualização” será sempre possível quando o direito social puder ser partível em uma parcela atribuível a um sujeito.”421

Exemplos desse tipo de ação foram abundantemente encontrados na presente pesquisa. É o caso da apelação nº 0010495-98.2011.8.26.0073, por exemplo, que foi interposta contra decisão proferida em mandado de segurança individual impetrado pela Defensoria Pública em face do município de Avaré, visava ao fornecimento de medicamento não fornecido pela rede pública para portador de encefalopatia epiléptica e retardo mental severo pela Municipalidade de Avaré. O Tribunal negou provimento ao recurso para manter decisão proferida em primeira instância, a qual havia condenado a Prefeitura a fornecer gratuitamente os medicamentos e insumos descritos na receita médica. O acórdão foi fundamentado no direito constitucional à saúde (art. 189, CF) e na obrigação concorrente dos entes federados de prestar serviços de saúde a todos os cidadãos422. Outro exemplo é a apelação nº 0147082-60.2008.8.26.0000, em foi interposta contra decisão proferida em mandado de segurança individual impetrado em face do Secretário de Saúde de São Paulo que se requeria do Secretário de Saúde o fornecimento gratuito de leite neocate para um indivíduo alérgico a leite de vaca.

A sentença em primeira instância

“Na concepção tradicional, à idéia de interesse ou direito está sempre ligada a de respectivo titular. As relações jurídicas podem estabelecer-se, na configuração mais simples, entre indivíduo e indivíduo (relações interindividuais), ou entre mais de um titular, no pólo ativo ou passivo, ou em ambos (relações plurissubjetivas), mas ainda segundo a estrutura clássica.” (Watanabe, 1984, p. 197). 421 Salles (2009, pp. 800-801). 422 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 13ª Câmara de Direito Público. Apelação nº 001049598.2011.8.26.0073. Disponibilizado em 30/11/2012. Des. Relator Borelli Thomaz. 420

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“concedeu, em parte, a segurança, impondo a autoridade impetrada a obrigação de fornecer ao impetrante, gratuita e prontamente, o alimento indicado na inicial, de acordo com a prescrição médica e até quando for necessário, ou similar, com o mesmo princípio ativo, afastando o pleito de condenação genérica e condicional.” O tribunal negou provimento ao recurso interposto pelo Fazenda do Estado de São Paulo sob o fundamento de que embora não tenha havido recusa expressa da autoridade impetrada em fornecer o medicamento, não seria plausível crer que alguém prefira recorrer ao judiciário quando possui medicamento a sua disposição423. Por fim, vale mencionar a apelação nº 0005424-69.2010.8.26.0132 promovida em face do Município de Catanduva e da Fazenda do Estado de São Paulo a fim de pleitear a reforma da decisão proferida em ação cominatória movida em face do município de Catanduva e da Fazenda do Estado de São Paulo, com vistas ao fornecimento de medicamento para uma portadora de Diabetes Mellitus Tipo I – insulina dependente CIDE 10.7. A sentença em primeira instância julgou procedente a ação “para condenar [Fazenda Pública do Estado de São Paulo e Prefeitura Municipal de Catanduva] ao fornecimento do medicamento a parte autora que contenha o principio ativo (e não o nome comercial específico), nas quantidades prescritas pelo médico, enquanto necessário ao seu tratamento”. O Tribunal negou seguimento ao recurso interposto pelas requeridas com fundamento no direito constitucional à saúde (art. 189, CF) e na obrigação concorrente dos entes federados de prestar serviços de saúde a todos os cidadãos424.

B) A ação coletiva425 consiste na ação ajuizada por alguma das entidades possuidoras de legitimidade ativa, nos termos do art. 5º da Lei de Ação Civil Pública426 e do art. 82 do

423

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 8ª Câmara de Direito Público Apelação nº 014708260.2008.8.26.0000. Disponibilizado em 18/06/2012. Des. Relator Carvalho Viana. 424 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 13ª Câmara de Direito Público. Apelação nº 000542469.2010.8.26.0132. Disponibilizado em 16/07/2012. Des. Relator Peiretti Godoy. 425 Para fins desta pesquisa, ações coletivas são essencialmente a ação civil pública, uma vez que este é o principal meio hábil para defender coletivamente o direito à saúde perante o judiciário. Todavia, não se ignora a existência de outros instrumentos processuais destinados à defesa coletiva de direito, consistentes na ação popular, na ação de improbidade administrativa e no mandado de segurança coletivo. Este último instrumento processual é passível de ser utilizado para a defesa do direito à saúde, mas é empregado em quantidade reduzida de oportunidades devido á limitação do seu escopo a “direito líquido e certo”. 426 Lei nº 4.717/85, art. 5º: “Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil. b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à

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Código de Defesa ao Consumidor427, com vistas à tutela de direitos difusos, coletivos lato senso ou individuais homogêneos428. A causa de pedir é fundamentada em um interesse coletivo, o pedido busca tutelar uma coletividade e os efeitos da sentença são erga omnes. Sobre as ações coletivas, Kazuo Watanabe afirma: “(....) O legislador claramente percebeu que, na solução dos conflitos que nascem das

relações

geradas

pela

economia

de

massa,

quando

essencialmente de natureza coletiva, o processo deve operar também como instrumento de mediação dos conflitos sociais neles envolvidas, e não apenas como instrumento de solução de lides. A estratégia tradicional de tratamento das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente coletiva em demandas-átomo. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular, como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, evitará a sua banalização que decorre de sua fragmentação e conferirá peso político mais adequada às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos.”429

O caso do “desbloqueio de cruzados” exemplifica bem a diferença entre as ações individuais e as ações coletivas: “Tome-se o exemplo da ação aforada para o ‘desbloqueio de cruzados’. Se a inconstitucionalidade do bloqueio é arguida incidenter tantum, como mera

ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. 427 Lei nº 8.078/90, art. 82: “Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. § 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.” 428 Segundo a classificação constante do Código de Defesa do Consumidor, os interesses difusos são interesses transindividuais de objeto indivisível e indisponível, e seus titulares são indeterminados. Os interesses coletivos stricto sensu também são transindividuais e de objeto indivisível, mas seus titulares são pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária devido a uma relação jurídica base. Os interesses individuais homogêneos, por sua vez, são propriamente individuais e de objeto divisível, mas podem vir a ser tutelados coletivamente devido à sua origem nas mesmas circunstâncias de fato. Os direitos difusos e coletivos stricto sensu possuem como elementos comuns a transindividualidade e o objeto indivisível. Eles se diferenciam no que concerne à possibilidade de determinação dos sujeitos: enquanto os interesses difusos possuem sujeitos indeterminados, os interesses coletivos strictu senso possuem sujeitos determinados ou determináveis . Os interesses individuais homogêneos possuem em comum com os interesses coletivos strictu senso a possibilidade de determinar seus titulares. A semelhança com os interesses difusos consiste em que seus titulares são ligados pela mesma circunstância factual. 429 Grinover & Watanabe (1999, p. 4).

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questão prejudicial para justificar o pedido de desconsideração dos bloqueios individualizados, estamos diante de demanda individual, quando muito com pluralidade de partes. Para que a ação seja verdadeiramente uma demanda coletiva, o autor deverá, mediante enunciação de causa de pedir adequada (v.g. inconstitucionalidade), postular a desconstituição do ato geral de bloqueio de cruzados, postulando provimento jurisdicional que beneficie de modo uniforme todas as pessoas que se encontrem na mesma situação.” 430

Uma ação coletiva encontrada na presente pesquisa (vide apelação nº 900003518.2010.8.26.0562),431 ilustra bem as características deste tipo de ação: o caso diz respeito a uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público contra o Município de Santos pedindo a instauração imediata de terapia familiar na rede do Sistema Único de Saúde do Município em favor de crianças e adolescentes. A sentença de primeiro grau julgou a ação improcedente, mas a decisão foi reformada pelo Tribunal, que condenou o Município, com base nos direitos constitucionais das crianças e adolescentes, enquanto uma coletividade, à saúde, à vida, ao respeito e à dignidade. Nota-se que, no caso, a ação foi ajuizada por legitimado ativo (Ministério Público), com base em direito coletivo lato senso (direito constitucional da criança e do adolescente à saúde), tendo o pedido a finalidade de beneficiar uma coletividade indeterminada (todas as crianças e adolescente munícipes de Santos) e o resultado do acórdão produzirá efeitos erga omnes (todos aqueles que precisarem de terapia familiar).

C) A ação pseudoindividual ,são demandas propostas de forma individual, mas que são fundadas sobre uma relação jurídica material de natureza plurisubjetiva e incindível, que somente poderia ser objeto de uma ação coletiva. A relação jurídica de direito material subjacente às ações pseudoindividuais é idêntica às relações jurídicas de direito material que ensejam o litisconsórcio unitário. Conforme explica Kazuo Watanabe, o litisconsórcio unitário ativo, embora seja uma situação facultativa e não obrigatória no ordenamento jurídico brasileiro, é aquele em que a natureza da relação de direito material existente entre os diversos sujeitos que participam do processo exige uma solução única, unitária, uniforme, isonômica. Para explicar, o autor cita o caso da anulação de casamento requerida pelo MP, em que não é possível que a demanda seja julgada procedente em face de um dos cônjuges e improcedente em relação ao outro. 430

Grinover & Watanabe (1999, p. 81). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Câmara Especial. Apelação nº 900003518.2010.8.26.0562, Des. Relator Encinas Manfré. Julgado em 27/02/2012. 431

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No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover faz as seguintes considerações sobre o litisconsórcio unitário e que podem ser úteis na compreensão do que vem a ser as ações pseudoindividuais: “Nesse contexto, é o direito material que cria a unitariedade, no tocante aos direitos e obrigações substanciais dos indivíduos, e essa unitariedade vai se refletir na lide, determinando a formação de litisconsórcio unitário. Naquele plano se estabelece, portanto, não apenas a necessidade de que todos os participantes da relação compareçam ao processo, mas de que a decisão para todos, no tocante a essa relação, seja exatamente a mesma. A incindibilidade da questão jurídica (incindibilidade do direito material) passa a produzir a incindibilidade do processo, e o que é uno a respeito de mais de uma pessoa não pode judicialmente cessar ou modificar-se senão a respeito de todos os interessados. O pedido que se faz, e os efeitos buscados, com relação a um dos litisconsortes, de igual modo – e com igual eficácia - deve ser feito para os outros, o que levou a doutrina ao entendimento de que, nestas hipóteses, se está diante não de um cúmulo subjetivo de demandas, mas de uma ação única, que somente pode ser exercida em face de todos os envolvidos. Apesar da pluralidade de pessoas interessadas como autores ou réus, estes e aqueles surgem como partes únicas, tal como se fosse o caso de um processo simples, com um só autor e um só réu. A questão, posta dessa forma, parece situar-se no terreno da legitimação para agir (ou legitimidade das partes) necessariamente abrangente dos titulares da relação jurídica que se pretende deduzir em juízo. Na esteira do pensamento de Enrico Redenti, se a relação substancial que se forma é única para vários sujeitos, as modificações que porventura forem nela operar, para serem eficazes, devem se estender para todos. Por esse motivo, a legitimação para tratar dessas mudanças (quer no polo passivo, quer no polo ativo da relação processual) pertence conjunta - e não separadamente – a todas aquelas pessoas. E, ainda por esse motivo, não pode o juiz se pronunciar sobre essas eventuais modificações, sem provocar efeito direto e imediato sobre todas aquelas pessoas. Daí por que, se as partes da pretensão que se busca, segundo o esquema abstrato traçado na lei, são duas ou mais de duas, todas devem participar do processo.”432

No campo dos direitos coletivos, há casos em que o indivíduo ingressa em juízo de forma individual, mas o seu pedido se refere a uma relação de direito material mais ampla, que afeta um grande número de pessoas, e que, ao mesmo tempo, é incindível. Estes casos 432

Grinover (2002, p. 99).

162

reclamam por uma solução única para todas essas pessoas, como no exemplo de demanda proposta por um sócio pleiteando a anulação de decisão tomada pela assembleia de uma S/A, em que “não há lugar para a concomitância de demandas individuais que objetivem o mesmo resultado prático. É suficiente a propositura de uma única ação de anulação” 433.

Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover defende a impossibilidade de ser processada e julgada ação cujo direito material exige a unitariedade de tratamento entre os jurisdicionados sem que todos os atingidos pelos efeitos da sentença tenham ciência do processo e possam levar seus interesses ao conhecimento do magistrado. No mesmo sentido, Kazuo Watanabe argumenta que as ações individuais que se baseiam em relações materiais incindíveis não são desejáveis, pois permitem a repetição de inúmeras demandas individuais e podem dar origem a decisões conflitantes tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista prático. Assim sendo, o autor defende que as ações individuais baseadas em relação jurídica substancial de natureza incindível (ações pseudoindividuais) deveriam ser proibidas. Outra solução por ele atribuída seria determinar a suspensão das ações individuais diante de uma ação coletiva, mas ressalta que não há atualmente regra explícita nesse sentido, o que leva a sérios problemas na administração da justiça.

Não foram encontrados casos na pesquisa capazes de ilustrar as características das ações pseudoindividuais. Ada Grinover e Kazuo Watanabe434 ainda cogitam, como quarta categoria, a “ação individual de efeitos coletivos”, que consiste em: “ação ajuizada como sendo individual, mas na verdade, em função do pedido, os efeitos da sentença podem acabar atingindo a coletividade. Assim se um indivíduo, invocando seu direito subjetivo, afirma ter direito a uma prótese importada, que está excluída do seu plano de saúde, pedindo a revisão de uma cláusula contratual, de duas uma: ou o juiz só determina que a prótese lhe seja fornecida, e estará tratando a ação como individual; ou determina que a cláusula contratual seja revista, para beneficiar a todos, tratando o pedido individual como tendo efeitos coletivos. Neste segundo caso, teremos uma ação individual com efeitos coletivos”.

433 434

Watanabe (2006). Grinover & Watanae (texto não publicado cedido pelos autores).

163

Registre-se que o Projeto de novo CPC – que já foi aprovado no Senado Federal (PLS nº 166/2010, em 15.12.2010) e na Câmara dos Deputados (PLS nº 8046/2010, em 26.03.2014), e ora se acha novamente no Senado – propõe a criação do “incidente e conversão da demanda individual em coletiva” (art. 334), a ser aplicado em duas situações em que, em princípio, poderia se identificar repercussões coletivas a uma pluralidade de sujeitos indeterminada. Não foram encontrados casos na pesquisa capazes de ilustrar as características das ações individuais de efeitos coletivos.

E) A ação pseudocoletiva consiste em ação ajuizada por entidade possuidora de legitimidade ativa, nos termos do art. 5º da Lei de Ação Civil Pública435 e do art. 82 do Código de Defesa ao Consumidor436, com vistas à tutela de direitos de apenas um indivíduo. A causa de pedir será fundamentada em direito individual indisponível, o pedido buscará tutelar apenas um indivíduo ou alguns indivíduos em litisconsórcio e os efeitos da sentença serão inter partes. A jurisprudência do STJ reconhece como função do Ministério Público “buscar a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde de pessoa pobre especialmente quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar, prematuramente, a sua morte.”437 e, por isto, reconhece sua legitimidade para demandar em favor de apenas um indivíduo.O MP tem seguidamente invocado para essas demandas o regime jurídico da Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, com extensão dos efeitos da sentença “erga omnes”: mas o Judiciário tem recusado a extenão

que, tecnicamente, se mostra inadequada pois não há direito

Lei nº 4.717/85, art. 5º: “Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil. b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. 436 Lei nº 8.078/90, art. 82: “Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. § 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.” 437 Superior Tribunal de Justiça, Primeira Turma, Recurso Especial nº 819.010/SP, Min. Relator: José Delgado. Julgado em 28 de março de 2006. 435

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transindividual em jogo.e até a matéria a ser provada é diferente e mais ampla do que a necessária à demanda individual. Esse tipo de ação é recorrente na amostra da pesquisa. Na Apelação/Reexame Necessário nº 0009770-05.2009.8.26.0292438, por exemplo, é possível verificar um caso de condenação de um Município ao pagamento de quarenta sessões de tratamento em câmara hiperbárica para uma pessoa possuidora de diabetes por sentença proferida em ação civil pública movida pelo Ministério Público. O Tribunal justificou a sua decisão pelo caráter pragmático do direito constitucional à saúde e afirmando: “Estado que não pode eximir-se do cumprimento de sua obrigação sob pretextos de repartição de competências, falta de numerário ou ausência de padronização dos fornecimentos do SUS”. Não houve no acórdão nenhum debate ou questionamento acerca da adequação do manejo, pelo Ministério Público, de ação civil pública em benefício de uma única pessoa. Com base na aplicabilidade imediata do direito constitucional à saúde (art. 189, CF) e na obrigação concorrente dos entes federados de prestar serviços de saúde a todos os cidadãos, o Tribunal de Justiça de São Paulo também condenou, em ação civil pública proposta pelo Ministério Público (apelação nº 9001038-45.2011.8.26.0506), o município de Ribeirão Preto e a Fazenda do Estado ao fornecimento de fraldas descartáveis geriátricas a quatro portadores de neoplasia, síndrome demencial, bexiga neurogênica e demência.439 No

mesmo

sentido,

na

Apelação/Reexame

Necessário



9000683-

69.2010.8.26.0506440, a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público contra o Município de Ribeirão Preto e a Fazenda do Estado de São Paulo resultou na condenação dos requeridos ao fornecimento de seis fraldas descartáveis geriátricas por dia, enquanto perdurar a necessidade, a idoso portador de sequelas geradas por acidente vascular cerebral. A decisão proferida pelo Tribunal justificou a legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública em benefício de pessoa hipossuficiente com base na jurisprudência do STF e do STJ.441

438

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 8ª Câmara de Direito Público. Apelação / Reexame necessário nº 0009770-05.2009.8.26.0292, Des. Relator Osni de Souza. Julgado em 08.02.2012. 439 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Câmara de Direito Público Apelação nº 900103845.2011.8.26.0506. Disponibilizado em 06/08/2012. Des. Relator José Luiz Germano. 440 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 10ª Câmara de Direito Público. Apelação / Reexame necessário nº 9000683-69.2010.8.26.0506, Des. Relator Antonio Carlos Villen. Julgado em 30/01/2012. 441 Os casos citados no acórdão foram: RE 507927/RS, RE 509569/SC, Resp 819010/SP e Resp 898260.

165

3. Notas metodológicas A presente pesquisa se insere em uma linha de pesquisas sobre o tema Estado de Direito e acesso à justiça, que envolvem a análise de instrumentos de acesso à justiça e de adequação do sistema jurídico processual com vistas à efetividade da prestação jurisdicional. Como já se adiantou, pretende-se avaliar a forma como se desenrola a atuação do Poder Judiciário brasileiro em casos envolvendo direitos que podem ser tutelados, tanto individuais como coletivamente. Com efeito, existe uma série de direitos que podem ser pleiteados tanto em nome do indivíduo quanto em nome da sociedade como um todo, de uma associação ou de outras entidades coletivas. É o caso dos direitos sociais à saúde, à educação ou à moradia: tanto é possível que o indivíduo acione o Poder Judiciário em busca de uma tutela jurisdicional que o favoreça individualmente, como também é possível que o Ministério Público ingresse com uma ação pleiteando o controle jurisdicional de uma política pública. Muito embora o ordenamento preveja estes dois tipos de ações para a tutela de dois tipos de interesses distintos – ação individual para a tutela individual, e ação coletiva para a tutela de interesses coletivos442 – é sabido que a prática jurisdicional é mais complexa, havendo casos em que a tutela do interesse individual pode acarretar a tutela reflexa do interesse coletivo, por exemplo, ou ainda casos em que a tutela do interesse individual se dá pela via coletiva. Nesse sentido, pretende-se apresentar, em primeiro lugar, um diagnóstico empírico de como os mecanismos processuais previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro vêm sendo efetivamente manejados pelos jurisdicionados e de como o Poder Judiciário vem respondendo a essas práticas processuais. Em seguida, busca-se avaliar se os mecanismos processuais atualmente existentes são adequados ou não para a promoção da efetividade da prestação jurisdicional. A hipótese com que se trabalhou, elaborada com base na doutrina existente sobre o tema, foi a existência de 5 diferentes tipos de demandas: tipicamente individuais, tipicamente coletivas, pseudo-coletivas, pseudo-individuais e individuais de efeitos coletivos. Na determinação das demandas judiciais que deveriam compor o universo da pesquisa, o primeiro recorte a que se procedeu foi temático. O mapeamento da prestação jurisdicional

O termo “interesses coletivos” é usado aqui em sentido amplo para abranger todas as formas de interesses que vão além da esfera individual, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos. A classificação dos diferentes tipos de interesses consta do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. As normas relativas à tutela dos interesses transindividuais podem ser encontradas em diversos diplomas normativos, entre eles o Código de Defesa do Consumidor (Lei n o 8.078/90) e a Lei de Ação Civil Pública (Lei no 7.347/95). 442

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em casos envolvendo direitos que podem tanto ser pleiteados individualmente como coletivamente abarca um universo extremamente amplo. Decidiu-se, assim, centrar o foco sobre as demandas judiciais envolvendo a tutela do direito à saúde. A escolha do direito à saúde como campo temático de interesse não é aleatória. Como indicam diversas pesquisas jurídicas recentes sobre o tema, o direito à saúde vem sendo altamente judicializado, com fortes impactos orçamentários e no planejamento de políticas públicas de saúde. Trata-se, dessa forma, de um caso emblemático da tutela jurisdicional de um direito social fundamentalmente coletivo, mas que vem sendo levado ao Poder Judiciário na forma de pretensões individuais com bastante freqüência.443 No esforço de mapear as características da tutela jurisdicional do direito à saúde, o ideal seria que a amostra de casos de pesquisa fosse extraída de todo o universo de demandas judiciais ajuizadas com este objeto, ou seja, a partir das demandas em primeira instância. A pesquisa de processos em primeira instância, contudo, se revela inviável, uma vez que não é possível selecionar, separar e individualizar todas elas. Em primeiro lugar, porque os cartórios judiciais não mantêm registros dos seus processos classificados por assunto. Além disso, não existe um protocolo diferenciado para este tipo de demanda que permita o acesso à informação de quantas e quais são estas demandas. Por outro lado, os sites de todos os Tribunais do país disponibilizam mecanismos de busca de jurisprudência por meio de palavras-chave, o que permitiria que fossem encontrados os processos relativos à tutela do direito à saúde em segundo grau de jurisdição. Assim, por uma questão de viabilidade, o universo desta pesquisa foi restrito às ações judiciais que chegaram aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. A escolha pela busca de ações judiciais por meio dos sites dos Tribunais implica algumas limitações que devem ser aqui explicitadas. Não se trabalhou, evidentemente, com todas as ações judiciais sobre o direito à saúde já ajuizadas. Tampouco se conseguirá acesso a absolutamente todas as demandas que já foram levadas à apreciação do Tribunal de Justiça em grau de recurso. O objeto de pesquisa limita-se, dessa forma, às ações judiciais levadas à apreciação do Tribunal de Justiça e disponibilizadas por ele em seu mecanismo de busca jurisprudencial, a partir de determinados filtros de busca (palavras-chave)444.

443

Ferraz (2009); Silva (2011 pp. 825–853); Wang (2009). As dificuldades de acesso à informação no Poder Judiciário e os problemas relativos à formação, à alimentação e ao acesso das bases eletrônicas de julgados dos tribunais é abordada de forma interessante em: Wang et. al. “A pesquisa em direito e as bases eletrônicas de julgados dos tribunais: matrizes de análise e aplicação no supremo tribunal federal e no superior tribunal de justiça” (no prelo). 444

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Importante esclarecer, ainda, que as limitações fáticas à realização da presente pesquisa, como tempo e recursos, impediram que se procedesse à avaliação da prestação jurisdicional relativa ao direito à saúde nos Tribunais de todo o país, de modo que uma delimitação espacial também foi realizada, tendo-se selecionado apenas os casos encontrados junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Tribunal de Justiça de Minas Gerais e ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Esta escolha se justifica, em primeiro lugar, porque São Paulo é um Estado com alta concentração demográfica, apresentando a maior parte dos atendimentos e serviços de saúde do país.445 Trata-se de uma opção conveniente diante da adequação às necessidades da pesquisa, do sistema de busca e de visualização dos trâmites processuais, em face das decisões que os sites dos tribunais selecionados disponibilizam.446 Como São Paulo é um estado de características muitos peculiares, foi selecionado, como contraponto, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Importante esclarecer

que a opção por abranger também o Tribunal Regional

Federal da 3ª Região decorre de uma questão de coerência teórica e metodológica. De fato, considerando que a presente pesquisa adota como referencial teórico o direito à saúde em sua matriz constitucional e que a Constituição Federal determina a criação do Sistema Único de Saúde, financiado e gerido no âmbito federal, para implementar este direito, a inclusão dos casos levados à justiça federal torna-se crucial para a compreensão do fenômeno da judicialização do direito à saúde.447 Por fim, em função da grande quantidade de demandas judiciais, envolvendo o direito à saúde, disponibilizadas nos sites do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do Tribunal

445

Segundo dados do censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, a população do Estado de São Paulo é de 41.262.199. Acesso em 04 abril 2013. 446 Foram coletadas informações acerca dos mecanismos de busca de processos e de jurisprudência dos tribunais de segunda instância de todo o país. Isso permitiu a elaboração de uma tabela comparativa, a partir da qual se chegou à conclusão de que o sistema operacional do site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o “e-Saj”, seria o mais adequado para a coleta dos dados considerados relevantes para a pesquisa, uma vez que permite a visualização do inteiro teor das principais decisões e do trâmite processual com alguma riqueza de detalhes. Conforme informações prestadas em 08 de novembro de 2012 pela biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), órgão responsável pela disponibilização de decisões no site do Tribunal, o banco de dados acessível pela página de busca de jurisprudência do site do TJ/SP compreende todo o universo de acórdãos e sentenças registrados desde 1998, não havendo qualquer seleção pelo setor de jurisprudência para o lançamento no sistema. Isto significa que todos os acórdãos publicados pelo TJSP dentro do período abrangido pela pesquisa deveriam, segundo a informação obtida, ser acessíveis no site do Tribunal. 447 É importante ressaltar que a alimentação dos bancos de dados dos sites de tribunais obedece a critérios pouco transparentes, de modo que não é possível assegurar que todas as decisões efetivamente publicadas no Tribunal estejam efetivamente disponíveis no site.

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Regional Federal da 3ª Região, procedeu-se a recorte temporal de modo que serão analisadas as demandas disponíveis relativas ao período compreendido entre os anos de 2010 a 2012. Procedeu-se à coleta dos dados por meio da busca de jurisprudência por palavraschave. Considerando que o recorte temático da pesquisa está relacionado a aspectos processuais e não a características materiais específicas do direito à saúde, as palavras-chave utilizadas foram: “direito à saúde”, “direito fundamental à saúde”, “direito constitucional à saúde”, “direito universal á saúde”, “SUS” e “Sistema Único de Saúde”. Procurou-se, assim, abarcar todas as expressões em que o direito à saúde, nos moldes dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal, pode ser expresso nas mais variadas decisões judiciais. Optou-se por escolher as expressões “direito à saúde” e “SUS” porque elas são abrangentes e não limitam a amostra a alguma questão específica do direito à saúde, como ocorreria se as palavras-chave fossem, por exemplo, “medicamentos”, “tratamentos”, entre outros. Quando do levantamento das decisões no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, as palavras-chave foram acrescidas, ainda, dos termos excludentes “não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”,448 de modo a refinar os resultados apresentados pelo site do Tribunal, visto que questões criminais, penais, fiscais, tributárias, consumeristas e envolvendo plano e seguro de saúde são recorrentes e estão fora do escopo desta pesquisa. Este mesmo procedimento não pode ser repetido no levantamento de decisões do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, devido à inexistência de tais filtros na ferramenta de pesquisa de jurisprudência do site deste Tribunal. De todo modo, a eliminação de decisões que não se enquadravam no objeto da pesquisa foi feita posteriormente, por meio da leitura das decisões encontradas. Em pesquisa exploratória realizada no dia 18 de outubro de 2012 no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foram encontrados os seguintes resultados: - para o ano de 2010, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 2619 acórdãos449; com o termo “‘direito fundamental’ à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 309 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 116 acórdãos; com 448

Importante esclarecer que a ordem de aparição dos termos excludentes incluídos nas palavraschave não altera o resultado da pesquisa jurisprudencial no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se verificou em testes realizados no dia 17 de setembro de 2012 449 Os números levantados não consideram os acórdãos do colégio recursal, homologações de acordo ou decisões monocráticas, que também são disponibilizados no campo de pesquisa jurisprudencial do site do tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

169

o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 2 acórdãos, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 3720 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 3720 acórdãos; totalizando 7.136 acórdãos relevantes para o ano de 2010. - para o ano de 2011, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 3096 acórdãos; com o termo “direito fundamental à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 620 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 153 acórdãos; com o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 11 acórdãos; com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 4267 acórdãos; e com o termo “‘Sistema Único de Saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 4267 acórdãos; totalizando 12.414 acórdãos relevantes para o ano de 2011. - para o ano de 2012 com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 2075 acórdãos; com o termo ‘direito fundamental à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 349 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 149 acórdãos;com o termo “direito universal à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 25 acórdãos, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 2902 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 2902 decisões; totalizando 8.402 acórdãos relevantes para o ano de 2012 (até o dia 18 de outubro). Do mesmo modo, em pesquisa exploratória realizada no dia 19 de outubro de 2012 no site do Tribunal Regional Federal da 3ª Região foram encontrados os seguintes resultados:

170

- para o ano de 2010, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 13 acórdãos 450; com o termo “‘direito fundamental’ à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1 acórdão; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1 acórdão; com o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 5 acórdãos, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 55 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 56 acórdãos; totalizando 357 acórdãos relevantes para o ano de 2010. - para o ano de 2011, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 24 acórdãos; com o termo “direito fundamental à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1 acórdão; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, nenhum acórdão; com o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 18 acórdãos; com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 78 acórdãos; e com o termo “‘Sistema Único de Saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 49 acórdãos.; totalizando 170 acórdãos relevantes para o ano de 2011. - para o ano de 2012 com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 41 acórdãos; com o termo “‘direito fundamental à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 4 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, nenhum acórdão;- com o termo “direito universal à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 24 acórdãos, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 62 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não

450

Os números levantados não consideram os acórdãos do colégio recursal, homologações de acordo ou decisões monocráticas, que também são disponibilizados no campo de pesquisa jurisprudencial do site do tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

171

plano não seguro”, 46 decisões; totalizando 177 acórdãos relevantes para o ano de 2012 (até o dia 19 de outubro de 2012). Em pesquisa exploratória realizada no dia 19 de setembro de 2013 no site do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais foram encontrados os seguintes resultados: - para o ano de 2010, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1066 acórdãos; com o termo “‘direito fundamental’ à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 76 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 7 acórdãos; com o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1 acórdão, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1099 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 377 acórdãos; totalizando 2.626 acórdãos relevantes para o ano de 2010.

- para o ano de 2011, com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1204 acórdãos; com o termo “direito fundamental à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 141 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 23 acórdãos; com o termo “‘direito universal à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, não foram encontrados acórdãos; com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1372 acórdãos; e com o termo “‘Sistema Único de Saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 397 acórdãos; totalizando 3.137 acórdãos relevantes para o ano de 2011.

- para o ano de 2012 com o termo “‘direito à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1337 acórdãos; com o termo “‘direito fundamental à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não

172

plano não seguro”, 109 acórdãos; com o termo “‘direito constitucional à saúde’ não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 22 acórdãos;- com o termo “direito universal à saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, não foram encontrados acórdãos, com o termo “SUS não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 1239 acórdãos; e com o termo “Sistema Único de Saúde não criminal não penal não fiscal não tributário não consumidor não plano não seguro”, 357 decisões; totalizando 3.064 acórdãos relevantes para o ano de 2012. Todas as páginas de resultado encontradas foram copiadas por meio da ferramenta “print screen” para que seja possível identificar exatamente quais foram as decisões encontradas na data de realização da busca no site. Este procedimento foi adotado porque a alimentação do banco de dados do tribunal parece ser irregular e pesquisas realizadas em dias diferentes podem encontrar números diferentes de decisões. Devido ao grande número de decisões sobre direito à saúde disponível nos bancos de dados dos mencionados tribunais, foi necessário realizar análise amostral das decisões encontradas. A amostra foi selecionada a partir de séries aleatórias (1 acórdão em apelação, excluindo os 20 seguintes , selecionando o 21º acórdão seguinte) começando, sempre, pelos últimos números, ou seja, em ordem decrescente, de cada palavra-chave. Para evitar que constassem da amostra acórdãos idênticos extraídos de palavras-chave distintas, foram mapeados todos os números dos acórdãos para, então, suprimir os acórdãos repetidos. Dessa forma, criamos uma amostra de números não repetidos a partir do universo coletado. Selecionados os processos que comporão o universo de pesquisa, as decisões foram analisadas com vistas a responder um questionário (anexo 1) que contém diversas questões acerca do mapeamento dessas ações, seus pedidos e seus trâmites processuais, a exemplo das questões e classificações a seguir:: i) autor; ii) réu; iii) vara de origem, iv) órgão julgador no Tribunal de Justiça, v) data do julgamento em primeira instância, vi) data do julgamento em segunda instância, vii) natureza da ação (individual, coletiva ou pseudo coletiva), viii) tipo processual, ix) pedidos; x) houve decisão liminar em primeira instância?; xi) houve recurso contra a decisão liminar?; xii) houve prolação de sentença?; xiii) foi interposta apelação?; xiv) resultado da ação em primeira instância; xv) resultado da ação em segunda instância; xvi) alcance da decisão (inter partes ou erga omnes); xvii) abrangência territorial da decisão; xviii) natureza da execução (obrigação de dar, de fazer ou de não fazer); xix) houve reconhecimento de litispendência?; xx) houve reconhecimento de conexão ou continência? xxi) Em caso de

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reconhecimento de conexão ou continência, houve reunião ou suspensão de processos?; e xxii) Qual o fundamento para reconhecimento da conexão ou continência? Para responder às perguntas constantes do questionário formulado, foi consultado o inteiro teor das decisões que compõem a amostra da pesquisa.As respostas a estas perguntas foram tabuladas em uma planilha de Excel, de modo a permitir o cruzamento dos dados obtidos e a realização de uma análise global e comparativa do cenário da judicialização do direito à saúde no Estado de São Paulo. Algumas das informações relevantes a serem extraídas de cada um dos processos que compõe o objeto da pesquisa são: quem são os atores envolvidos na judicialização de direito à saúde, quais os tipos de pedidos formulados, qual a taxa de êxito das ações e de deferimento de antecipação de tutela e quais os efeitos e abrangência das decisões proferidas.

174

4. Achados de pesquisa: apresentação dos dados A seguir, passa-se a esclarecer os dados coletados no Tribunal de Justiça de São Paulo, no Tribunal Regional Federal da 3a Região e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

4.1. Dados do Tribunal de Justiça de São Paulo No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a grande maioria dos acórdãos analisados referia-se a ações tipicamente individuais. De um total de 659 acórdãos, 595 (90,28% do total) foram classificados como ações tipicamente individuais, no sentido de se referirem a ações ajuizadas por uma pessoa física ou um grupo de indivíduos em litisconsórcio, com o objetivo de efetivar um direito individual e subjetivo à saúde. A este grande número de ações individuais, contrapõe-se um número extremamente reduzido de ações coletivas – foram encontradas apenas 3 ações (0,45% do total) –, fundamentadas no interesse coletivo e buscando a tutela de interesses de uma coletividade. Foram encontradas, ainda, 61 ações pseudocoletivas (9,26% do total). Cuida-se, no caso, de ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, com fundamento em interesse coletivo, mas pleiteando a tutela dos direitos de apenas um indivíduo ou de alguns indivíduos em litisconsórcio. Não foram encontradas ações pseudoindividuais ou individuais com efeitos coletivos, o que talvez possa ser explicado pelo recorte temático da presente pesquisa, que se concentra nas ações sobre direito à saúde.

No que toca ao tipo processual em primeira instância, a maior parte dos acórdãos analisados diz respeito a ações ordinárias (305 ou 46,28% do total) e a mandados de

175

segurança individuais (286 ou 43,39% do total). Foram identificados, ainda, 2 mandados de injunção individuais e 2 ações cominatórias. As 3 as ações coletivas e as 61 ações pseudocoletivas referem-se a ações civis públicas.

Nota-se, assim, a prevalência das ações tipicamente individuais sobre as coletivas, bem como o uso da ação coletiva para a tutela de interesses individuais. Diante destes achados, importa esclarecer quem são os autores e os réus de cada um destes tipos de ação, quais são os pedidos que eles formulam e qual o resultado que eles obtêm. Nesse sentido, quanto aos autores, o Ministério Público foi autor das 3 ações coletivas encontradas, bem como de 60 ações pseudocoletivas e de 4 mandados de segurança individuais. A Defensoria Pública, por sua vez, aparece como autora de apenas 1 ação pseudocoletiva, embora apareça, ainda, na qualidade de advogado de indivíduos que propuseram ações tipicamente individuais.451 A grande maioria dos casos, no entanto, traz o indivíduo como autor de ações tipicamente individuais, na forma de ações ordinárias e mandados de segurança. É de se considerar, ainda, uma baixa incidência de casos em que se verifica a existência de litisconsórcio. Com efeito, registraram-se apenas 2 casos de litisconsórcio, um em mandado de segurança e um em ação ordinária.

451

A pesquisa identificou 52 ações ordinárias, 17 mandados de segurança individuais e 1 mandado de injunção em que a Defensoria atuou em nome de indivíduos. É importante ressaltar, no entanto, que apenas 168 acórdãos permitiram a identificação do patrono, ou seja, 11% dos acórdãos analisados, enquanto nos outros 491 casos, o acórdão não oferecia dados sobre o patrono. Assim, devido a irrelevância estatística do dado, não é possível extrair conclusões acerca da relevância da atuação da Defensoria na judicialização do direito à saúde.

176

Já no que toca ao polo passivo, nota-se que a maior parte dos acórdãos refere-se a ações ajuizadas contra o Estado e o Município (foram registrado 453 casos contra o Estado e 324 contra o Município), sendo apenas uma pequena parcela os casos envolvendo planos de saúde e seguradoras. É importante ressaltar, no entanto, que isso pode ser atribuído ao fato de que, nos casos envolvendo planos de saúde, a argumentação jurídica apresentada pelo Tribunal é de natureza consumerista, como revelou uma pesquisa exploratória sobre o tema. Assim, estes casos foram excluídos da amostra, que se limitou à coleta de acórdãos em que a argumentação jurídica envolvia o direito à saúde.

No que diz respeito aos pedidos formulados pelos autores, nota-se que a esmagadora maioria dos casos envolve pedidos de fornecimento de medicamento. Em seguida, verifica-se

177

uma incidência considerável de pedidos de fraldas, insumos médico-hospitalares e aparelhos. Os acórdãos analisados permitiram identificar os seguinte tipos de pedidos:452

Pedido

Quantidade

Fornecimento de medicamento

512

Fraldas

120

Insumos

93

Aparelho

42

Tratamento médico

26

Intervenção cirúrgica

8

Indenização de gastos

5

Internação em hospital público

4

Exames médicos

4

Fornecimento de material de enfermagem

3

Equipamentos

3

Órteses/próteses

3

Consulta médica

2

Dieta alimentar especial

2

Internação em hospital particular

1

Entre as ações pseudocoletivas, manteve-se a prevalência de pedidos de fornecimento de medicamento (42), seguida pelos pedidos de fornecimento de insumo médico-hospitalar (11) e pelos pedidos de tratamento médico (5), de fornecimento de fraldas (5), de aparelhos (3), de intervenção cirúrgica (2), de equipamento médico-hospitalar (1), de realização de exame médico (1) e de custeio de dieta alimentar especial (1). Foi possível notar que duas das três ações coletivas encontradas tinham por objetivo exigir do Poder Público o cumprimento de leis. Uma delas pleiteava a implantação de terapia familiar no SUS em favor de crianças e adolescentes, sendo que já havia previsão 452

A quantidade de pedidos é maior do que a quantidade de acórdãos pelo fato de uma ação poder conter mais de um pedido.

178

orçamentária na LDO para tanto – a ação foi julgada improcedente em primeira instância, mas a decisão foi reformada pelo Tribunal. A outra, pleiteava a regularização no fornecimento de medicamentos da lista básica de programas de saúde como o “Programa Dose Certa” e o “Programa Dose Certa Saúde Mental” e foi julgada parcialmente procedente em primeira instância, decisão que foi posteriormente mantida pelo Tribunal. Apenas uma das ações coletivas não tinha por objetivo forçar o Poder Público a cumprir disposições legais, mas pleiteava a prorrogação compulsória de um convênio entre uma Prefeitura e um hospital particular. Devido à impossibilidade jurídica do pedido a petição inicial foi indeferida e o recurso de apelação foi conhecido e improvido, mantendo-se, assim, a decisão de primeiro grau. Ainda sobre o pedido, verifica-se entre os acórdãos pesquisados 446 ações (67,67%) em que o autor formulou apenas um pedido principal. Em 92 casos (13,96%) foi formulado um pedido principal e um pedido subsidiário. Em 80 casos (12,13%) verifica-se a cumulação simples e em 17 casos (2,57%), cumulação alternativa.

Dos acórdãos pesquisados, em apenas 3 casos não houve resolução do mérito – uma ação coletiva em que houve o indeferimento da petição inicial e duas ações tipicamente individuais nas quais considerou-se ausente alguma das condições da ação453. Nos demais 656 acórdãos houve julgamento do mérito. Destes, 615 foram julgados procedentes (93,75%), 22 parcialmente procedentes (3,35%) e 23 improcedentes (3,73%).

453

Cabe ressaltar que nos Tribunais de São Paulo foram analisados somente decisões proferidas em sede de apelação.

179

Dentre os acórdãos em que se reconheceu em primeira instância a procedência do pedido, 610 foram decididos contrariamente ao Poder Público, seja ele o Estado ou o Município. Todos os acórdãos parcialmente procedentes também foram decididos contrariamente ao Poder Público. Assim, é possível concluir que dos acórdãos analisados, 632 foram julgados contrariamente ao Estado, favorecendo os interesses dos indivíduos postulantes. Apenas em 22 casos o Poder Público foi vencedor em relação ao autor. Entre as ações individuais com julgamento de mérito, 554 foram procedentes, 20 improcedentes e 20 parcialmente procedentes. Já entre as ações coletivas, a taxa de êxito cai consideravelmente, uma vez que apenas 2 delas tiveram o seu mérito julgado e, destas, uma foi julgada improcedente, e a outra parcialmente procedente. 454 As ações pseudocoletivas, por sua vez, foram todas julgadas procedentes.

454

Fala-se, neste momento, dos resultados em primeira instância. É importante ressaltar que, no caso das ações coletivas encontradas na pesquisa, alguns destes resultados se alteraram no Tribunal. Assim, no caso a ação coletiva que havia sido julgada improcedente, o recurso de apelação interposto pelo autor foi conhecido e provido, reformando-se a sentença de primeira instância para reconhecer a procedência da demanda. O resultado das outras duas ações, no entanto, manteve-se inalterada pelo Tribunal, uma vez que os recursos de apelação foram conhecidos, mas improvidos.

180

Identificou-se que não houve incidência de suspensão de processos e foi estatisticamente irrelevante a incidência de conexão, continência e litispendência (apenas 1 caso). O único caso de litispendência foi reconhecida em mandado de segurança individual, pelo fundamento de identidade de partes e de causa de pedir.455 Dentre os acórdãos analisados, a maioria não permitiu extrair informações a respeito dos pedidos de antecipação de tutela e de liminar. Foi possível, não obstante, identificar 118 pedidos de tutela antecipada e 204 pedidos de liminar.456 O pedidos de tutela antecipada referem-se, na maior parte dos casos, a ações tipicamente individuais, embora tenha-se verificado um caso de pedido de antecipação de tutela em ação pseudocoletiva. Já os pedidos de liminar foram encontrados em uma ação coletiva, em 29 ações pseudocoletivas (47,54%

455

Cumpre ressalvar que informações sobre eventual suspensão do processo ou sobre a existência de conexão ou continência não foram encontradas no inteiro teor nos acórdãos. Todavia, isso não significa necessariamente que não tenha havido suspensão, conexão ou continência nos casos analisados, embora se julgue essa hipótese improvável devido à importância de tais incidentes processuais para o desenvolvimento da demanda. Em outras palavras, embora possa haver casos em que a suspensão, conexão ou continência não tenham sido mencionadas no inteiro teor do acórdão, acredita-se ser improvável que isso ocorra porque informações de tamanha importância para o desenvolvimento do processo geralmente são descritas no relatório do acórdão. 456 O termo antecipação de tutela é aqui utilizado na forma do artigo 273 do Código de Processo Civil, para referir-se à possiblidade de o juiz antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde considere haver (i) verossimilhança da alegação, (ii) prova inequívoca e (iii) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu. Já o termo liminar é utilizado de forma genérica para designar toda forma de tutela judicial cautelar e anterior ao julgamento de mérito da demanda, com vistas a garantir a exequibilidade do provimento jurisdicional final.

181

das pseudocoletivas) e em 174 ações tipicamente individuais (29,24% das tipicamente individuais).

Também não foi possível extrair dados sobre a fixação de astreintes da maior parte dos acórdãos analisados (esta informação está ausente de 495 acórdãos), de modo que não é possível extrair conclusões estatisticamente relevantes a este respeito. Não obstante, nos 164 acórdãos nos quais estas informações apareceram, foi registrada a fixação de astreintes em 109 acórdãos, enquanto apenas 55 acórdãos indicam a não fixação. Dentre os acórdãos que indicam a fixação de astreinte, em 50 deles foi fixada multa no valor de até R$ 500; em 17 deles, multa entre R$ 500 e R$ 1000; em um caso, foi estabelecida multa entre R$ 1mil e R$ 2mil; em 2 casos, multa entre R$ 2mil e R$ 5mil; e em 2 casos, multa acima de R$ 10mil.

182

Em 266 acórdãos analisados foi possível registrar a existência de recurso contra a decisão que concedeu a tutela antecipada ou a liminar pleiteadas pelo autor. Em 196 casos, o acórdão não permitiu extrair a informação acerca do resultado do recurso. Nos casos em que isso foi possível, contudo, registra-se que em 57 recursos os pedidos de antecipação de tutela e liminar não foram providos, 9 foram providos e 4 foram parcialmente providos.

Como já se adiantou nas notas metodológicas, a presente pesquisa concentrou-se em recursos de apelação. Nesse sentido, é interessante notar quem recorre das decisões de primeira instância.

183

Como se nota, os recursos do réu são mais frequentes. Registraram-se 605 recursos interpostos pelo réu, o que é coerente com o fato de que a grande maioria das ações havia sido julgada procedente em primeira instância. Importante ressaltar que, entre os acórdãos analisados, o réu corresponde ao Poder Público na esmagadora maioria dos casos. Entre os 605 recursos interpostos pelo réu, 586 referiam-se a ações que haviam sido julgadas procedentes em primeira instância (96,85%); 18 referiam-se a ações que haviam sido julgadas parcialmente procedentes em primeira instância (2,97%) e apenas 2 referiam-se a ações que haviam sido julgadas improcedentes em primeira instância (ressalvando-se que em um destes casos a ação havia sido julgada improcedente em relação ao Estado, mas procedente em relação ao Município) (0,33%).

Já em 65 dos acórdãos pesquisados (9,86% do total), o recurso foi interposto pelo autor. Destes, 23 referiam-se aos casos em que a ação havia sido julgada improcedente. Como já se viu, houve exatamente 23 casos de improcedência e a análise destes casos revela que em todos os casos em que a ação foi julgada improcedente, houve recurso do autor.

184

Os outros 42 recursos interpostos pelo autor referem-se a 6 ações que haviam sido julgadas parcialmente procedentes em primeira instância – casos em que o autor busca no Tribunal a procedência total da sua demanda – e a 37 ações que haviam sido julgadas procedentes – casos em que o autor busca no Tribunal alterações em relação ao que lhe havia sido concedido pela sentença de primeiro grau. É interessante notar uma tendência no TJ/SP no sentido de não reformar as sentenças de primeira instância em ações envolvendo o direito à saúde. Com efeito, 79,6% dos recursos foram conhecidos e improvidos, enquanto apenas 5,8% foram conhecidos e completamente providos e 12,6% foram conhecidos e parcialmente providos.

Entre os 563 recursos que foram conhecidos, mas improvidos pelo TJ/SP, 499, ou seja, 88,6% correspondiam a recursos interpostos pelo Poder Público na qualidade de requerido. Já entre os 41 recursos que foram conhecidos e providos, ou seja, nos casos em que a sentença de primeira instância foi completamente alterada, verifica-se que em 18 casos a sentença em favor do Estado foi revertida em favor do indivíduo, em 13 casos, a sentença em favor do indivíduo foi reformada, mas se manteve em favor do indivíduo e, apenas em 10

185

casos a sentença em favor do indivíduo foi reformada para favorecer o Estado. Verifica-se, assim, que o Tribunal mantém um alto índice de condenações do Poder Público nos casos de judicialização da saúde.

4.2. Dados do Tribunal Regional Federal da 3ª região Antes de iniciar a descrição e avaliação dos dados coletados no Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF3), cumpre ressalvar que a quantidade de acórdãos levantados nesse Tribunal foi significativamente inferior àquela encontrada nos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais devido a limitações do sistema de busca de acórdãos disponibilizado no site do Tribunal. A despeito de ter sida empregada a mesma metodologia de seleção de acórdãos no sistema de busca de todos os três Tribunais, no TRF3 a pequena quantidade de acórdãos encontrada foi tal que permitiu à equipe de pesquisa analisar todo o material encontrado que tivesse relação imediata com o objeto da pesquisa (26 acórdãos). Nesse sentido, os dados encontrados no TRF3 não podem ser considerados representativos do universo de processos em trâmite ou julgados pelo Tribunal, mas serão apresentados de modo a permitir comparação com os demais Tribunais ora avaliados. Dentre os 26 acórdãos avaliados, 2 dizem respeito a ações coletivas e 24 se referem a ações tipicamente individuais. Não foram identificadas no TRF3 ações pseudocoletivas, pseudoindividuais ou individuais de efeitos coletivos. Nesse sentido, a amostra do TRF3 está em consonância com a amostra do TJ/SP no que diz respeito à grande diferença na proporção entre ações coletivas e individuais, mas difere por não possuir ações pseudocoletivas, que apareceram no TJ/SP em maior quantidade do que as ações coletivas. As 2 ações coletivas encontradas no TRF3 foram ajuizadas em primeira instância como ações civis públicas, enquanto as ações tipicamente individuais foram ajuizadas como mandados de segurança individual (2) e ações ordinárias (22).

186

As ações coletivas encontradas no TRF3 foram propostas pelo Ministério Público Federal e as 24 ações tipicamente individuais foram ajuizadas por pessoas físicas, tendo sido encontrada apenas uma ação na qual houve litisconsórcio ativo.457 Esses dados também corroboram as informações encontradas no TJ/SP, quais sejam: (i) as ações coletivas foram ajuizadas essencialmente pelo Ministério Público, (ii) as ações tipicamente individuais foram ajuizadas por pessoas físicas principalmente pela via do mandado de segurança individual e da ação ordinária, e (iii) houve baixa incidência de litisconsórcios ativos.

Em relação ao polo passivo das demandas em primeira instância, o Estado figurou como requerido em 19 processos (73%), o Município em 11 processos (42,3%) e a União em 457

Entre estas ações, somente foi possível identificar a atuação da Defensoria Pública na qualidade de patrono em 2 acórdãos. É de considerar, no entanto, que a extração de dados foi realizada com base no inteiro teor dos acórdãos e somente foi possível identificar a presença de Defensores Públicos quando expressamente mencionado no documento. Nos demais casos, o acórdão apenas menciona o nome próprio do patrono sem qualificá-lo enquanto advogado privado ou Defensor Público, não sendo possível, portanto, garantir a confiabilidade deste dado específico e avaliar a atuação da Defensoria em processos envolvendo o direito à saúde.

187

22 processos (84,6%). Em 5 processos (19,3%) houve apenas um requerido e nos demais processos houve litisconsórcio passivo. Nesse sentido, assim como no TJ/SP, no TRF3 as ações envolvendo direito à saúde também são ajuizadas primordialmente em face do Poder Público.

Os pedidos formulados pelos autores das ações ora analisadas solicitam o fornecimento de medicamentos (19 acórdãos), tratamento médico (3 acórdãos), fornecimento de aparelhos (2 acórdãos) e fornecimento de prótese (1 acórdãos) e pagamento de indenização de valores gastos com aparelhos (1 acórdão). Nas ações coletivas encontradas o pedido consistiu (i) na distribuição gratuita pelo SUS de medicamentos e (ii) na inclusão da aquisição de aparelhagem de audição entre as hipóteses em que é permitida a dedução de valores do Imposto de Renda.

188

Ainda em relação ao pedido, entre os acórdãos pesquisados há 22 ações (84,6%) em que o autor formulou apenas um pedido principal, 1 ação (3,8%) em que foram formulados pedido principal e subsidiário, 3 ações (11,5%) em que houve cumulação simples de pedidos e 1 ação (3,8%) com cumulação alternativa de pedidos.

No que diz respeito ao resultado das ações em primeira instância, em apenas um acórdão o magistrado julgou a demanda extinta sem resolução do mérito em razão da morte do autor. Entre as ações tipicamente individuais que foram julgadas no mérito em primeira instância, 2 foram julgadas improcedentes (8,3%), 17 procedentes (70,8%) e 5 foram parcialmente procedentes (20,8%). Assim, é possível concluir que 22 ações tipicamente individuais (91,6%) foram julgadas em desfavor do Estado, favorecendo os interesses dos indivíduos postulantes. Estes dados corroboram com o resultado encontrado nos acórdãos proferidos pelo TJ/SP, em que a maioria das ações tipicamente individuais foram julgadas procedentes ou parcialmente procedentes em desfavor do Poder Público. Em relação às 2 ações coletivas analisadas, ambas tiveram o seu mérito apreciado pelo magistrado de primeira instância, mas a ação que pleiteava o fornecimento de medicamentos foi indeferida, enquanto a ação com pedido de indenização de valores gastos com aparelhos foi julgada procedente. Assim, pela avaliação conjunta entre TJ/SP e TRF3 foi possível verificar um maior índice de indeferimento de ações coletivas em relação às ações tipicamente individuais.

189

Foi possível identificar pedido de antecipação de tutela em 16 dos acórdãos analisados (61,5%), dos quais 2 foram em ações coletivas os demais foram em ações tipicamente individuais. No mesmo sentido, foi possível identificar pedido de liminar em 3 acórdãos (11,5%), todos envolvendo ações tipicamente individuais.458 Não foi possível extrair dados sobre a fixação de astreintes da maior parte dos acórdãos analisados,459 de modo que não é possível extrair conclusões estatisticamente relevantes a este respeito. De todo modo, foi possível identificar a fixação de astreintes em 4 acórdãos, cujo valor foi de até R$ 500 ou entre R$ 5000 e R$ 10.000. É possível notar que os valores de astreintes fixados nas decisões do TRF3 são equivalentes aos valores fixados nas decisões do TJ/SP. Em relação aos recursos, 3 foram interpostos pelo autor (11,5%), 21 pelo requerido (80,7%) e 10 por terceiros interessados, consistentes no Estado, no Município, na União e no INSS (38,4%)460. Entre os recursos interpostos pelo autor, 2 objetivavam alterar decisões de improcedência da ação e 1 buscava rediscutir os termos de decisão procedente. Houve um caso em que a ação foi julgada improcedente e o autor não recorreu da decisão. Entre os recursos interpostos pelo requerido, 17 dizem respeito a ações que foram julgadas procedentes

458

É possível que tenha havido maior incidência de pedido de antecipação de tutela. Isto porque o relator e demais desembargadores que compuseram a turma julgadora podem não ter mencionado no acórdão o eventual pedido de antecipação de tutela ou de liminar. 459 Porque não há informações sobre esse respeito no inteiro teor de diversos acórdãos. 460 Houve multiplicidade de recursos em alguns processos.

190

(80,9%), 3 a ações julgadas parcialmente procedentes (14,2%) e 1 a ação julgada improcedente (4,8%).

Quanto ao resultado dos recursos, foi possível notar que em nenhum acórdão houve reforma de decisão proferida em primeira instância em favor do autor. Entre as 3 ações julgadas improcedentes em primeira instância, em 1 caso o recurso interposto pelo autor foi conhecido e improvido, em 1 caso o recurso interposto pelo autor foi conhecido e parcialmente provido, e em 1 caso o recurso interposto pelo réu foi conhecido e improvido. Por sua vez, entre as 5 ações julgadas parcialmente procedentes pelo magistrado em primeira instância, em 4 casos o recurso foi conhecido e improvido e em 1 caso foi conhecido e parcialmente provido. Deste modo, é possível denotar que, tal como ocorreu no TJ/SP, o TRF mantém um alto índice de condenação do Poder Público nos casos em que o direito à saúde é judicializado.

191

4.3. Dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais A análise dos 442 acórdãos do Tribunal de Justiça (dos quais foram selecionados 408), indica que não houve incidência de suspensão do processo e não foram encontrados casos em que tenha incidido litispendência ou conexão. Quanto ao polo ativo, constatou-se que o indivíduo foi responsável pelo ajuizamento da maior parte das demandas. Dos 408 acórdãos analisados, 362 constaram o indivíduo como demandante, representando 89% das demandas; 44 ajuizadas pelo Ministério Público (11%); e somente em 2 foi encontrado o litisconsórcio de mais de um demandante, o que representa menos de 1% do total de demandas. É oportuno esclarecer que em diversos casos, conforme indica o gráfico sobre o patrono das demandas, a Defensoria Pública ajuizou a maior parte das demandas em que o indivíduo figura o polo ativo.461

O Município figurou no polo passivo das demandas analisadas em sua grande maioria, com 219 casos (53,67%), seguido do Estado de Minas Gerais, com 138 casos (33,82%). Foram encontradas, também, 23 ocorrências de formação de litisconsórcio passivo entre esses dois entes federativos (5,63%) e em 12 outros o litisconsórcio foi formado pelo Estado de Minas e o Secretário de Estado de Saúde (2,94%). Em 2 casos os demandados eram planos de saúde privados. Em 14 casos foram encontrados outros demandados (3,43%). 461

Diferentemente do Ministério Público, a Defensoria Pública, exceto nas ações coletivas, não figura no polo ativo da demanda em que assiste o titular do direito discutido em juízo.

192

No que diz respeito ao tipo de ação escolhido pelo autor das demandas, a ação individual foi constatada como o tipo mais frequente, representando 91,17% dos casos. Somente em 3 casos o tipo escolhido foi a ação coletiva (menos de 1%). Além das ações individuais e das ações coletivas, foram encontradas 33 ações pseudocoletivas (8, 08%), nas quais, apesar de o tipo processual ser coletivo, as autores visavam o alcance de um pedido de alcance meramente individual. Não foram encontradas ações individuais com efeitos coletivos ou ações pseudoinviduais.

193

Obs. Neste gráfico considerou-se “pseudocoletivas” as ACP’s com pedidos individuais

O quadro a seguir ilustra o perfil de tipo processual das demandas analisadas. A ação ordinária foi o tipo mais comum, com 255 ocorrências, 62% do total. Em 117 dos casos, utilizou-se o mandado de segurança individual (29%). O tipo menos comum foi a ação civil pública, com 36 ocorrências, representando somente 9% dos casos.

194

Como a metodologia utilizada foi a análise de acórdãos em segunda instância, não foi possível verificar, em todos os casos, a informação quanto à formulação ou não de pedido de assistência judiciária. Em 312 acórdãos não constava tal informação, totalizando 77% dos casos. Em 25 demandas não houve tal requerimento (6%). Em 46 deles, o pedido foi formulado (11%) e em 25, ou 6%, tal pedido não se aplicava.462

Os efeitos processuais pretendidos pelos demandantes foram essencialmente individuais. Em nenhuma ação ordinária ou em nenhum mandado de segurança o efeito pretendido foi coletivo. Somente em 3 das ações civis públicas encontradas é que o efeito pretendido foi coletivo.

462

Por se tratar de mandado de segurança, por exemplo, em que a própria lei já isenta o autor do pagamento de custas processuais.

195

Na relação entre ações e tipo processual, somente em 3 casos foram encontrados pedidos de alcance coletivo e, em todos eles, tratava-se de ação civil pública. Todas as ações ordinárias e todos os mandados de segurança buscavam pedidos que se limitavam à esfera individual. Em 33 ações civis públicas os efeitos do pedido, caso deferido, não se estenderiam à coletividade e, por conta disso, foram consideradas ações pseudocoletivas.

196

Obs. Neste segundo gráfico de tipos de ações x tipo processual, considerou-se “pseudocoletivas” as ACP’s com pedidos individuais

O próximo gráfico ilustra a relação patronos das demandas e tipo processual. Constatou-se que a Defensoria Pública foi responsável pelo patrocínio de 189 demandas, representando 83,06%. O patrocínio por advogados particulares foi registrado em 176 dos casos e o Ministério Público em 43 casos. A maior atuação do Ministério Público foi por intermédio de ação civil pública (81% de sua atuação total), embora em sua maioria para a proteção de direitos individuais (representando uma distorção da ação civil pública, e criando uma nova categoria de demandas, que se podem chamar pseudocoletivas). A Defensoria Pública e os advogados particulares atuaram por intermédio de ação ordinária (83% e 52% de suas atuações, respectivamente), conquanto as atuações também sejam expressivas pela via do mandado de segurança.

197

Quando relacionados os quesitos patronos versus tipos de ação, verificou-se que os advogados particulares e a Defensoria Pública atuaram primordialmente em ações individuais e que o Ministério Público, em ações pseudocoletivas, não obstante tenha atuado nos únicos casos em que as ações civis públicos visavam um efeito coletivo do provimento final.

198

Pelo fato de terem sido analisados acórdãos, e não decisões de primeira instância, o valor da causa foi de difícil verificação. Assim, foi possível apenas apurar o valor de 3 causas. Em uma delas o valor ultrapassava R$5.000,00 e nas demais o valor era de até R$ 1.000,00.

199

Obs. Apenas 3 dos acórdãos coletados informaram o valor da causa

No que diz respeito à quantidade de pedidos formulados pelo demandante, verificouse que em 87,99% das demandas o pedido foi somente principal (359 delas). Em 23 dos casos houve cumulação simples de pedidos (5%); em 19, cumulação eventual (4%); e em 7, cumulação alternativa (1%).

200

Em 67,64% dos casos analisados houve requerimento de antecipação de tutela (276 ocorrências). Em 4 dos casos não houve tal pedido (inferior a 1%) e em 128 não foi possível extrair essa informação (31,37%).

201

Somente em um caso dos acórdãos analisados houve a formulação de pedido liminar diverso do objeto final pretendido pelo autor. Em 280 demandas não houve a formulação desse pedido (68,62%). Em 127 dos casos não foi possível extrair essa informação (31,12%).

Em apenas 78 casos houve aplicação de multa pelo descumprimento da decisão que concedeu a tutela antecipada. Em 29 deles, o valor da multa arbitrada foi fixado em quantia não superior a R$1.000,00; em 27, a multa foi fixada entre R$ 1.000,00 e R$ 2.000,00; e em 13 o valor não superou R$500,00. A multa foi superior a R$ 2.000,00 em somente 2 casos. Em 7 casos não foi possível extrair a informação acerca do valor da multa.

202

Obs. Houve aplicação de multa em aproximadamente 19, 11% dos casos

No que tange ao provimento final de 1ª instância, verificou-se que os pedidos do autor foram julgados procedentes na grande maioria dos casos (86,4% dos casos). Em 15 casos eles foram julgados improcedentes e em 11 (5,2%), parcialmente procedentes (3,8%). O resultado não foi informado em 13 casos.

203

O tipo de condenação mais comum foi a condenação em uma obrigação de dar, totalizando 199 decisões (48,77%). As condenações em obrigação de fazer representaram 28,92% das decisões. Não foi possível encontrar tal informação em 91 casos (22,30%).

Quanto ao perfil de interposição de recursos, verificou-se que em 73% dos casos o réu era o recorrente. Em 19% não se aplicava porque se tratavam de decisões de competência originária do Tribunal de Justiça.463 Em 7% das demandas o autor recorrera e em 1% autor e réu simultaneamente.

463

Como o mandado de segurança contra ato do Secretário de Saúde de Estado.

204

Das 408 decisões analisadas, em 157 o recurso foi conhecido e improvido (38,48%). Foram conhecidos e providos 52 recursos (12,74%). Conhecidos e parcialmente providos somaram 67 decisões (16,42%). Em 129 dos acórdãos, tal quesito não se aplicava por se tratar de competência originária do Tribunal de Justiça.464

464

Como o mandado de segurança contra ato do Secretário de Saúde de Estado.

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Obs.: Os acórdãos classificados como “não se aplica” foram para os casos em que a competência do Tribunal era originária.

Dos recursos interpostos contra a decisão que concedera a tutela antecipada ao autor, 42% foram improvidos (33); 33% foram parcialmente providos e 17% foram providos. Não foi possível extrair tal informação em 6% dos acórdãos.

O número de recursos contra a decisão que denegara a tutela antecipada ao réu não alcançou números expressivos, conforme ilustra o gráfico a seguir.

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No que se refere aos objetos dos pedidos formulados pelo autor, constatou-se que 85% dos pedidos visavam ao fornecimento de medicamento ou outros insumos, como fraldas geriátricas, por exemplo. Em 6% dos casos, o pedido pretendido foi a realização de cirurgias. As internações, a realização de exames e de tratamentos em geral foram responsáveis, cada uma delas, por 3% dos pedidos.

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Conforme demonstra o gráfico abaixo, em 99% dos casos analisados os efeitos das decisões foram inter partes e menos de 1% delas, ultra partes.

Obs.: Considerou-se erga omnes as decisões que atingiriam a todos em âmbito nacional e ultra partes para aquelas de âmbito estadual ou municipal.

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5. Conclusões finais O ordenamento jurídico brasileiro admite, basicamente, dois tipos de processo para garantir a tutela judicial de direitos: o tradicional processo individual, que assegura à pessoa o acesso à justiça para garantir seus direitos subjetivos clássicos; e o processo coletivo, que visa à tutela de interesses transindividuais (difusos, coletivos, ou individuais homogêneos). Não obstante, a prática forense vem apontando a existência de tipos intermediários de processos, que se situam a meio caminho entre a tutela individual e a coletiva: trata-se das ações individuais de efeitos coletivos, das pseudoindividuais e das pseudocoletivas. Há dúvidas sobre como tratar esses tipos de demandas, ou seja se devem elas ser submetidas ao regime do Código de Processo Civil ou ao regime do minissistema de processos coletivos, constituído principalmente pela Lei da Ação Civil Pública, pelo Código de Defesa do Consumidor e pelas regras, constitucionais e legais, sobre o Mandado de Segurança Coletivo. Essas perplexidades refletem-se sobre o tratamento a ser dado a questões resolvidas diversamente pelo processo individual e pelo coletivo, como no campo da legitimação, da coisa julgada e até em relação às provas a serem utilizadas em cada demanda, influindo sobre a adequação e efetividade da prestação jurisdicional. O direito à saúde, mais especificamente, pode ser tutelado tanto individual (como direito subjetivo pessoal) quanto coletivamente, hipótese em que o Judiciário pode, quando provocado, controlar e intervir nas políticas públicas. O direito à saúde permite, assim, o manejo de diferentes tipos de processos, ensejando a comparação entre as diversas espécies de tutelas deles resultantes. O objetivo da presente pesquisa foi, primordialmente, mapear os tipos de demandas que vem sendo propostos para tutelar o direito à saúde e identificar os resultados que essas demandas têm produzido. Foram analisados 659 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo; 442 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e 26 Tribunal Regional Federal da 3a região, julgados entre 2010 e 2012. Os acórdãos foram selecionados a partir de uma busca com palavras-chave nos sites dos Tribunais e a posterior conformação de uma amostra, em que, para cada acórdão aleatoriamente selecionado, 20 eram, também aleatoriamente, descartados. Foram descartados, ainda, acórdãos que não guardassem relação fática com o objeto da pesquisa.

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Desta resultou a constatação de uma esmagadora preponderância das ações individuais: 90,28% das ações encontradas no TJ/SP eram tipicamente individuais, no TRF3 tais ações compuseram 92,3% das ações analisadas e no TJ/MG 89 %. O indivíduo só é legitimado às ações individuais e estas ostentam uma grande probabilidade de êxito – mais de 93% das ações individuais ajuizadas no TJ/SP com base no direito à saúde foram julgadas procedentes em primeira instância, e o índice de reforma pelo Tribunal revelou-se baixíssimo. O mesmo cenário foi constatado no TRF3, em que 91,6% das ações tipicamente individuais foram julgadas total ou parcialmente a favor do autor, sendo que em nenhuma delas houve reforma em segunda instância. No TJ/MG esse percentual atingiu 86,4%. O êxito das ações individuais é provavelmente reforçado no caso do direito à saúde, por tratar-se de casos urgentes que possuem grande apelo emocional, influenciando a decisão judicial. A pesquisa não evidenciou a existência de qualquer ação individual com efeitos coletivos ajuizados para tutelar um interesse ou direito que se refletisse numa pluralidade de pessoas. Talvez isso se deva ao fato de que a pesquisa se restringir à judicialização da saúde, sendo possível que esses tipos de ação sejam mais frequentes em outros campos, como no do consumidor ou no ambiental, o que mereceria ampliar o foco em futuras pesquisas jurisprudenciais.. As ações coletivas, por sua vez, embora tenham sido localizadas, existem em quantidade consideravelmente menor do que as ações individuais. Apenas 0,45% do total de acórdãos analisados no TJ/SP referia-se a ações coletivas, enquanto no TRF3 as ações coletivas constituíram 7,6% da amostra e no TJ/MG 0,75%.. A taxa de êxito entre as ações coletivas também é baixa em comparação com o das ações individuais. Isso favorece a multiplicação de demandas individuais, o que atravanca o Poder Judiciário, prejudicando a eficiência e a celeridade da prestação jurisdicional. E ainda interfere, consideravelmente, com o orçamento público, desvirtuando irracionalmente as políticas públicas de saúde elaboradas pelo Poder Público. O mais surpreendente resultado da pesquisa talvez tenha consistido na circunstância de se detectar a existência de ações que chamamos pseudocoletivas: ou seja, ações (rotuladas e recebidas como ações civis públicas) ajuizadas pelo Ministério Público em favor de um único indivíduo. Tecnicamente, trata-se de escolha equivocada, pois o microssistema de processos coletivos serve à tutela de interesses ou direitos supra-individuais, e não individuais. Nesses casos, a legitimação do Ministério Público não deriva das regras que regem o processo coletivo, mas da previsão constitucional que lhe atribui a incumbência de defender direitos

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indisponíveis (art. 127, caput, CF): e de direitos individuais, tratados individualmente, se trata. É certo que o Ministério Público, nesse tipo de demanda, tem tentado dar tratamento coletivo ao pedido, postulando a extensão dos efeitos da sentença a outros indivíduos que se encontrem na mesma situação. Mas, corretamente, o Judiciário tem se negado a isto, até porque a prova produzida em relação a um único indivíduo não pode, evidentemente, ter a amplitude necessária para se estender aos demais componentes de um hipotético grupo.

Isso dito, podemos formular as conclusões finais da presente pesquisa:

6)

A total inexistência de ações individuais de efeitos coletivos e de ações pseudoindividuais junto à Justiça de São Paulo e Minas Gerais, no campo da saúde;

7)

a baixíssima incidência de ações coletivas nesse mesmo campo e nos referidos Estados;

8)

a enorme preponderância de ações individuais, alimentando o fenômeno da litigância repetitiva, com todas suas desvantagens (acúmulo de trabalho, decisões contraditórias, condução atomizada de questões que poderiam ser agrupadas num tratamento único e uniforme);

9)

ausência completa de iniciativa dos legitimados às ações coletivas para aglutinarem inúmeras demandas repetitivas, com pedidos idênticos e em face do mesmo réu, ajuizando uma única ação coletiva (seja em defesa de interesses coletivos, seja em defesa de direitos individuais homogêneos)465;

10)

a substituição da iniciativa correta, indicada no n. 4, pela propositura canhestra de demandas de natureza individual, querendo que passem por ações coletivas (ações pseudocoletivas).

6. Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

465

A respeito dessa aglutinação vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça sinalizou no sentido da suspensão da tramitação dos processos individuais, para que se aguarde o julgamento da ação coletiva.

211

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