A justiça como equidade como utopia realista: introdução ao argumento da estabilidade da teoria da justiça de John Rawls

June 30, 2017 | Autor: Marcos Fanton | Categoria: John Rawls, Filosofia Politica
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A justiça como equidade como utopia realista: Uma introdução ao argumento da estabilidade da teoria da justiça de John Rawls Marcos Fanton Pode-se dizer que o argumento da estabilidade da justiça como equidade foi elaborado com uma função expressamente realista, isto é, de teste dos “limites de possiblidade política praticável” de uma sociedade liberal1. Rawls viu-se às voltas com a dificuldade de convencer seus leitores de que há a possibilidade de uma concepção política liberal tornar-se um ponto de vista público e compartilhado entre cidadãos de uma sociedade democrática que permite a coexistência de diferentes e incompatíveis visões de mundo e de estilos de vida. Procurou dar conta, ainda, de mostrar como um arranjo institucional adequado e específico (o ideal de uma sociedade bemordenada) criaria condições suficientes para o florescimento de um senso de justiça entre os seus cidadãos, capaz de anular tendências destrutivas de valores liberais essenciais. Nesse sentido, o prolongamento do argumento da posição original dá um quadro mais detalhado das ideias de sociedade bem-ordenada e de cidadania traçadas pela justiça como equidade. Perguntas sobre a própria possibilidade do liberalismo político, sobre que tipos de instituições políticas e sociais são necessárias ou, ainda, sobre a relação entre valores políticos e não-políticos nas visões de mundo dos cidadãos, fazem parte dessa nova etapa de reflexão. Para Rawls, tais problemas são fundamentais, ainda que tenham ocupado tão pouco espaço de discussão na história da filosofia. Sem estabilidade, uma teoria da justiça revelar-se-ia insatisfatória, pois as instituições de um regime democrático não estariam garantidas2. Ao mesmo tempo, dependendo do tipo de estabilidade, uma concepção política poderia tornar-se incoerente e impraticável, negando seus próprios princípios de justiça (veja-se o exemplo da “virada política” do próprio Rawls3). Tanto em Uma teoria da justiça quanto nas reformulações posteriores (presentes no Liberalismo político e em Justiça como equidade: uma reformulação), o argumento da estabilidade é dividido em duas partes. A primeira preocupa-se com a relação política entre a estrutura básica de uma sociedade liberal e seus cidadãos. Ali, é desenvolvida uma “psicologia moral do razoável”, uma espécie de conjunto de princípios psicológicos que esclareceria o desenvolvimento de um senso de justiça nos cidadãos forte e eficaz o suficiente para manter estável e unida tal sociedade. Já

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J. RAWLS, Justiça como equidade: uma reformulação, São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 5-6. RAWLS, Justiça como equidade. p. 261. 3 Não irei tratar, especificamente, dessa transformação do argumento da estabilidade, isto é, das modificações que Rawls realiza entre Uma teoria da justiça e Liberalismo Político. Este tema é interpretado de maneira sistemática e detalhada por Paul Weithman. Para tanto, ver P. WEITHMAN, Why political liberalism? On John Rawls’s political turn. Oxford: Oxford, 2011. Kindle Edition. (Como se trata de ebook, citarei as posições do texto, e não suas páginas, através da abreviatura “po.”). 2

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a segunda parte tem a função de responder à questão premente de uma concepção política liberal para uma sociedade democrática pluralista: como valores políticos e não-políticos relacionam-se? Como se pode evitar a opressão política, estabelecer um nível razoável de tolerância política e, ao mesmo tempo, manter os cidadãos unidos na defesa de determinada concepção política? Enfim, como é possível atingir o ideal liberal de que o poder político, ao tratar de questões constitucionais essenciais, é exercido de tal modo que todos os cidadãos possam aceitá-los voluntária e razoavelmente?4 Uma das vantagens importantes dessa última etapa de argumentação é afastar da reflexão filosófica determinadas teorias da justiça do estatuto de possíveis candidatas ao consenso político. Tem-se a oportunidade de deixar de lado concepções utópicas (em um sentido pejorativo), porque são compreendidas como impraticáveis, ou concepções que atingiriam certa estabilidade em um sentido equivocado, isto é, por meio de persuasão, retórica ou constrangimentos normativos excessivos5. Como veremos mais adiante, Rawls é particularmente claro ao levar em consideração esses últimos critérios, na medida em que, ao considerar o fato do pluralismo razoável como um dos fatos característicos das sociedades democráticas atuais, reviu sua própria concepção e descartou, de antemão, sociedades reguladas por visões de mundo particulares. Segundo Rawls, a “pergunta à qual a tradição procura responder não tem resposta: nenhuma doutrina abrangente é apropriada como concepção política de um regime constitucional”6. Doutrinas abrangentes não podem ser compreendidas como alternativas políticas e devem ser descartadas da “família” de concepções políticas razoáveis7. Somente nos últimos anos, porém, esta etapa de argumentação da justiça como equidade recebeu a devida atenção tanto em sua complexidade e dificuldade quanto em sua importância para a teoria da justiça como um todo. Para citar um exemplo famoso, o debate sobre a natureza humana entre liberais e comunitaristas permaneceu preso à noção de partes da posição original como um conceito metafísico de pessoa. Contudo, “isto deveria nos soar estranho”, afirma Anthony Laden, pois ignora toda a concepção de psicologia moral e a discussão sobre sensibilidade moral estabelecidas na parte final de Uma teoria da justiça. A questão remanescente, para Laden, é entender os motivos que levaram tantos intérpretes a tomar essa concepção como a concepção particular de natureza humana da justiça como equidade, enquanto a terceira parte é muito mais rica e detalhada na descrição dos traços psicológicos dos seres humanos e de sua relação com contextos de cooperação justa8. 4

RAWLS, Justiça como equidade. p. 271. J. RAWLS, Liberalismo político, São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. XLVII. 5 RAWLS, Justiça como equidade. p. 264. 6 RAWLS, Liberalismo político. p. 159. 7 RAWLS, Liberalismo político. p. XL. 8 LADEN, A.S. The house that Jack built: Thirty years of reading Rawls. in: Ethics, Vol. 113, No 2 (2003), p. 375.

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Paul Weithman talvez seja o autor que mais se dedicou a esclarecer de maneira sistemática e pormenorizada esta parte da obra de Rawls. Seu recente livro, Why political liberalism? On John Rawls’s political turn, como se verá mais adiante, é um divisor de águas neste debate, pois restabelece a verdadeira importância dada por Rawls à especulação filosófica sobre os princípios e ideais políticos que tornariam possível, em condições históricas e sociais favoráveis, uma sociedade democrática justa. Weithman realiza, nesse sentido, uma defesa do liberalismo político, ao mesmo tempo em que pretende mostrar, através da estrutura teórica da justiça como equidade, como um mundo justo é possível e como nós, seres humanos, somos capazes de sustentá-lo, mesmo com concepções abrangentes de bem9. Meu objetivo principal com este texto é esclarecer a estrutura do argumento da estabilidade e mostrar os principais problemas que este pretende resolver, deixando de lado, contudo, o desenvolvimento de cada parte do argumento (a de aquisição do senso de justiça e a de um ideal normativo de consenso sobreposto entre uma concepção política e doutrinas abrangentes). Inicialmente, porém, gostaria de realizar, em linhas gerais, uma interpretação sistemática da justiça como equidade, que elucida a importância de se diferenciar as diferentes etapas do método do equilíbrio reflexivo para a correta interpretação da teoria rawlsiana – e, consequentemente, do argumento estudado. 1 Os três pontos de vista da justiça como equidade Realizarei três comentários nesta parte do artigo: o primeiro trata do procedimento sistemático do método do equilíbrio reflexivo utilizado por Rawls, composto por diferentes etapas (ou pontos de vista); o segundo elabora o ponto de vista do filósofo e expõe o que chamarei aqui de “ponto de vista de Rawls”; e, por fim, o terceiro ressalta a importância de se observar a estrutura metodológica geral de sua teoria da justiça. A justiça como equidade possui uma ordem sistemática de apresentação que, se deixada de lado, pode tornar sua interpretação equivocada e, consequentemente, sua defesa ou crítica inócuas. Tal ordem é apresentada por Rawls, por exemplo, na Primeira Conferência do Liberalismo Político. Segundo o autor, devemos levar em consideração três pontos de vista de sua teoria política: “o das partes da posição original, o dos cidadãos em uma sociedade bem-ordenada e, finalmente, o nosso o seu e o meu, que estamos formulando a ideia de justiça como equidade e examinando-a como uma concepção política de justiça”10. Não devemos entender, porém, a expressão ‘ponto de vista’ da mesma forma como é utilizada na linguagem comum (como “Este é meu ponto de vista...”), isto é, 9

WEITHMAN, Why political liberalism? po. 290. RAWLS, Liberalismo político. p. 32. Rawls oferece uma curta explicação da noção de ‘ponto de vista’ ao discutir o conceito de bem no §61 de Uma teoria da justiça. 10

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como uma perspectiva subjetiva de interpretar e julgar uma questão, um fato ou o mundo. Em Rawls, os dois primeiros pontos de vista constituem “criaturas artificiais que habitam nosso dispositivo de representação”11, especificados de acordo com sua relação com as questões e ideias fundamentais da justiça como equidade. Cada um desses pontos de vista, portanto, são elaborados para responder a e justificar um problema específico e constituem-se por um conjunto de desejos e finalidades, de regras de raciocínio e de deliberação, de certos tipos de informação disponíveis e da sua relação com outras “criaturas” (ou partes) e com o mundo político e social. O ponto de vista das partes da posição original, por exemplo, é modelado com o intuito de determinar o melhor modo de reflexão e acordo a respeito dos termos equitativos de cooperação social entre cidadãos de uma sociedade pluralista. Para isso, o argumento é simplificado e abstraído de circunstâncias cotidianas que poderiam distorcer o acordo e torná-lo injusto. As partes, assim, são consideradas livres e iguais e com duas capacidades morais (racional e razoável) em seu grau mínimo. Sua motivação é reduzida à defesa dos direitos básicos que poderão garantir os interesses fundamentais de seus planos de vida, quaisquer que eles sejam, tendo em vista a restrição de informações disponíveis pelo véu-da-ignorância. Por fim, o modo de deliberação sobre os princípios de justiça é elaborado a partir da teoria da escolha racional e possui, ainda, algumas restrições formais específicas. A posição original torna-se, portanto, um modelo adequado sobre o que, “aqui e agora”, consideramos as condições equitativas de acordo sobre princípios de justiça e sobre as restrições mais aceitáveis às razões12. Como segundo comentário, cabe esclarecer a função do terceiro ponto de vista (“o seu e o meu” de “aqui e agora”, isto é, o de Rawls e de seus leitores). Rawls explicitamente não o inclui na composição da justiça como equidade, pois ele é o ponto de vista de avaliação da concepção política através do equilíbrio reflexivo: “Trata-se de saber em que medida a visão como um todo articula nossas convicções ponderadas mais firmes acerca da justiça política” após “cuidadosa ponderação” e “ajustes e revisões”13. Nesse sentido, usualmente, este ponto de vista é atrelado a um método de justificação coerentista e não-fundacionalista de concepções políticas, cujo estágio final é um estado ideal de reflexão individual – o equilíbrio reflexivo amplo e geral. O interessante, no entanto, é perceber que esse ponto de vista não está apenas no final da justiça como equidade, como método de avaliação e justificação, como também está no início da teoria, como método “contextualista” e intuitivo de escolha de juízos ponderados promissores para a modelagem das ideias fundamentais e do procedimento de uma teoria da justiça. Em textos como A independência da teoria moral ou Conferências sobre a história da filosofia política, Rawls chama esse ponto de vista de o “ponto de vista do filósofo” – o início do método reflexivo segundo a 11

Ibid. RAWLS, Justiça como equidade. p. 113. 13 RAWLS, Liberalismo político. p. 33. 12

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interpretação aqui defendida. No primeiro texto citado, Rawls afirma que a investigação filosófica sobre questões morais e políticas parte da troca de papéis do indivíduo: do papel de cidadão, que tem uma concepção moral particular e busca defendê-la como a mais razoável entre as opções disponíveis, para o papel de teórico da moral. Esse deve observar e interpretar as diferentes intuições e concepções morais presentes em determinada sociedade como um esquema coerente de princípios morais. A motivação filosófica desse empreendimento é a caracterização e o refinamento de concepções morais familiares a nós (em grande parte, da tradição filosófica) para, após uma comparação ponderada entre elas, realizar a escolha da teoria mais razoável para solucionar determinado conflito político14. No Liberalismo Político, em um parágrafo dedicado à justificação do uso de ideias abstratas em discussões sobre questões políticas, supostamente desvinculadas da realidade, Rawls afirma o seguinte: “Voltamo-nos para a filosofia política quando nossos entendimentos políticos compartilhados […] colapsam e também quando estamos internamente dilacerados”15. O ponto de vista do filósofo caracteriza-se, assim, pelo trabalho de compreensão, escolha e sistematização coerente de juízos ponderados presentes na cultura política com vistas à resolução de determinado problema ou conflito político profundo. Rawls nomeia esse processo inicial de abstração, modelagem ou idealização, pois ele seleciona determinados aspectos presentes na sociedade como relevantes para a elaboração de um quadro conceitual e unificado de orientação16. É assim que, na justiça como equidade, as cinco ideias fundamentais são inicialmente elaboradas; todas são abstrações de juízos ponderados a um nível tal que torne mais clara e ordenada nossa compreensão de algum conflito político e, ao mesmo tempo, facilite a sua resolução17. Há critérios para a escolha de algum juízo ponderado ou de alguma ideia fundamental que caracterizaria uma teoria da justiça? Ou, ainda, há algum procedimento para estabelecer a prioridade de uma ideia sobre outra, como a prioridade do justo sobre o bem (a característica central da justiça como equidade) ou como a ideia de sociedade como sistema equitativo de cooperação (sua ideia organizadora central)? Até onde sei, não acredito que Rawls tenha se deparado com essa questão ou tenha se preocupado com isso de maneira mais detalhada. No texto A independência, Rawls apenas afirma, em um tom bastante intuicionista, que devemos desenvolver aquelas concepções que “nos atraem como as mais promissoras” para o consenso político 18 . No Liberalismo, Rawls mantém esse tom ao mencionar o “fato de nos sentirmos coagidos”, 14

J. RAWLS, The independence of moral theory. In: _____. Collected papers. Harvard: Harvard University Press, 1999. p. 288-9. 15 RAWLS, Liberalismo político. p. 53. 16 RAWLS, Liberalismo político. p. 182-3, nota 20. 17 Tais ideias são apresentadas na Primeira Parte de Justiça como equidade: uma reformulação. A apresentação da ideia da posição original nessa obra é bastante detalhada no que diz respeito ao processo de modelagem. Para tanto, ver §6, Reformulação. 18 RAWLS, The independence of moral theory. p. 289.

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“impelidos” ou, até mesmo, “surpresos” com o desenvolvimento e aprofundamento de determinados juízos ponderados em princípios e critérios para uma concepção política19. Portanto, o procedimento de escolha e organização dos juízos ponderados da cultura democrática em ideias abstratas, apesar de sistemático, não foge de certos elementos arbitrários do filósofo, algo “inevitável” em certos momentos da teoria política20. Além disso, é também através deste ponto de vista inicial do filósofo que Rawls interpreta seu contexto político e social, sistematizados conceitualmente como as circunstâncias da justiça política21. Tomados como “fatos da sociologia comum”, são compreendidos e reconhecidos por todos os pontos de vista da justiça como equidade e de seus leitores. Após sua virada política, Rawls elenca cinco fatos principais: o fato do pluralismo razoável, o fato da opressão, o reconhecimento dos limites do juízo, o fato de que um regime democrático duradouro e estável deve ser apoiado, de modo livre e voluntário, pela maioria dos seus cidadãos e o fato da existência de uma situação histórica compartilhada, a cultura política de fundo22. Todos eles formam o ponto de vista histórico da justiça como equidade, o contexto no qual brota a pergunta fundamental de Rawls, composta pelos problemas da justiça política e da tolerância em sociedades democráticas: “como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais que permanecem profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis?”23 A importância dessa espécie de “ponto de vista histórico” pode ser visualizada na interpretação de Rawls dos autores da tradição da filosofia política. “Para compreender as obras desses autores” (de Hobbes, Locke, Rousseau, Mill), afirma Rawls, “devemos identificar seus pontos de vista e o modo como estes determinam a interpretação e discussão das perguntas levantadas”24. Assim, devemos nos esforçar em compreender “as respostas que diferentes autores deram às suas (não às nossas) perguntas”, considerando-os como “autores escrupulosos e inteligentes que estão, no mínimo, em pé de igualdade conosco em todos os aspectos essenciais”25. Este “método de interpretação caridosa e contextualmente situada” 26, denominado recentemente 19

RAWLS, Liberalismo político. p. 54. RAWLS. Teoria. p. 53 e 112-3. É nesse contexto que R.M. Hare acusa Rawls de ser um “intuicionista pluralista”: “A teoria de Rawls é mais sistemática do que isso [intuicionismo], mas não é melhor fundamentada”. R.M. HARE, “Rawls’ Theory of Justice-I”, in: Philosophical Quarterly, Vol. 23, No 91 (1973). p. 146. 21 Mesmo presente em Teoria, a importância desse conceito só se tornou visível com a virada política, isto é, quando Rawls reformula a justiça como equidade, tendo em vista o fato do pluralismo razoável. RAWLS. Teoria. §22; Justiça como equidade. §§24 e 59. 22 No Liberalismo, tais fatos aparecem na Primeira Conferência (§6) e na Segunda (§2). Em Justiça como equidade: uma reformulação, Rawls retoma o conceito de “circunstâncias da justiça”, presente em Teoria, §22, e amplia-o (para tanto, ver Parte V, §59, p. 279-81). 23 RAWLS, Liberalismo político. p. 4. 24 J. RAWLS, Conferências sobre a história da filosofia política, São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 113. 25 RAWLS, Conferências. p. 114. 26 A expressão é de S.A. LLOYD, Learning from the history of political philosophy. In: MANDLE, J.; REIDY, D.A. A companion to Rawls. Oxford: Blackwell, 2014. p. 526ss. 20

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por Lloyd, permite não apenas interpretar concepções políticas, mas também diferenciar os significados e usos de ideias aparentemente únicas e formais, como a do contrato social, presente em Hobbes, Locke e Rousseau27. Por fim, esse método permite pensar que a avaliação da justiça como equidade deve partir, assim gostaria Rawls, de sua questão fundamental e das circunstâncias históricas, políticas e sociais levadas em consideração – enfim, de sua concepção de mundo político e social. O que pretendo apontar com tais afirmações é o seguinte: caso não concordemos com algum dos elementos presentes no ponto de vista de Rawls, como sua pergunta fundamental (enfatizada repetidamente no Liberalismo Político) e suas circunstâncias de justiça política, então dificilmente poderemos concordar com seus argumentos e objetivos finais, como a posição original ou o problema da estabilidade. Ao discutirmos esse último problema, diz Rawls, devemos concordar “desde já que uma concepção política tem de ser exequível, inscrever-se na arte do possível”28. Ou seja, concordamos que, dadas determinadas circunstâncias históricas favoráveis e vontade política para tanto, uma concepção política liberal pode se tornar estável e garantir a unidade social entre seus cidadãos. Por fim, acredito que não é demais reafirmar tais pontos de vista. A falta de observação das diferentes etapas da justiça como equidade pode ocasionar equívocos de interpretação de determinados conceitos rawlsianos e, principalmente, de sua estrutura argumentativa. É por causa disso, por exemplo, que Henry Shue, em um artigo influente, leu Uma teoria da justiça “de trás para frente”, colocando o princípio aristotélico e seu efeito associado como o princípio motivacional para se chegar a princípios de justiça que garantiriam planos de vida satisfatórios29. Em um artigo relacionado, Shue afirma que “a primeira premissa na geometria moral rawlsiana contém hipóteses sobre a motivação humana em seus níveis mais profundos”30. Com o que já foi esboçado aqui, este não é o caso, e, na verdade, as hipóteses sobre motivação humana e psicologia moral dependem da e só podem ser reveladas após a construção dos princípios da justiça. Rawls está ciente de tais problemas na interpretação de sua teoria e mostra que um dos pontos críticos de diversos leitores está, justamente, na desconsideração dos elementos atribuídos às partes na posição original. Cito Rawls: A justiça como equidade é muito mal-entendida quando as deliberações das partes e as motivações que lhes atribuímos são confundidas com uma interpretação da psicologia moral, quer de pessoas reais, quer de cidadãos de uma sociedade bem-ordenada. A autonomia racional não deve ser confundida com a autonomia plena. Esta última é um ideal político e um componente do ideal mais abrangente de sociedade bem-ordenada. A

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RAWLS, Conferências, p. 118. RAWLS, Justiça como equidade. p. 263. 29 H. SHUE, “Justice, Rationality, and desire: on the logical structure of justice as fairness”, in: Southern Journal of philosophy, Vol. 13, No 1 (1975). p. 197. 30 SHUE, H. “Liberty and self-respect”, in: Ethics, Vol. 85, No 3 (1975). p. 96. 28

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autonomia em si não é de modo algum um ideal, e sim uma forma de modelar a ideia do racional na posição original31.

Esta citação não é apenas importante porque pode prevenir possíveis equívocos de interpretação, como também dá pistas sobre o que ocorre na passagem entre um ponto de vista e outro – algo que parece pouco explícito em determinados momentos. Rawls refere-se à autonomia racional como uma ideia modelada, diferenciando-a da autonomia plena, um ideal político. Ser racionalmente autônomo é ser livre para exercer as próprias capacidades morais e intelectuais e, ao mesmo tempo, ter interesse em garantir as condições apropriadas para o “desenvolvimento adequado e o pleno exercício dessas faculdades”32. Tal ideia tem o objetivo explícito de modelar um modo de deliberação autônomo das partes na posição original, de acordo com o modo como os cidadãos de uma sociedade democrática se representam. Caso elas não tenham esse interesse de garantir um conjunto de bens primários, essenciais para o seu desenvolvimento como pessoas plenas, pensaremos que elas “não têm autorrespeito e mostram fraqueza de caráter”, isto é, que são heterônomas ou, o que daria quase no mesmo para Rawls, que não se importam com a influência de fatores contingentes e irrelevantes (do ponto de justiça) no resultado final da distribuição de bens33. Já a autonomia plena é um ideal político (e não ético, como frisa Rawls) realizado pelos cidadãos de uma sociedade bem-ordenada na esfera pública. Do ponto de vista da teoria da justiça, a conduta esperada por tais cidadãos é modelada de acordo com a estrutura da posição original, ou seja, o aspecto relevante para o exercício da autonomia plena é a relação política entre os cidadãos e a estrutura básica em uma situação de igualdade equitativa. Assim, espera-se que as pessoas ajam de acordo com os princípios de justiça, reconhecendo-os publicamente como justos e utilizando-os no foro da razão pública. A mesma transformação ocorre com outras ideias, como a de sociedade ou a de cidadão com determinadas capacidades morais, que serão foco de nossa atenção mais adiante. 2 O argumento da estabilidade: estrutura e problemas fundamentais Habermas, em sua famosa resenha sobre o Liberalismo Político, recrimina o teste “imanente” da estabilidade de uma teoria da justiça. Se Rawls percebe que sociedades contemporâneas constituem-se de visões de mundo plurais, ele deve perceber, ao mesmo tempo, que tal problema é primariamente empírico. Habermas aponta, nesse sentido, para a impossibilidade de determinação da aceitabilidade de uma concepção política com base em premissas puramente teóricas. A concepção como um todo, pelo contrário, deve ser adotada e criticada no foro da razão pública entre cidadãos “de carne e sangue”, e não por cidadãos ficcionais com argumentos traçados 31

RAWLS, Liberalismo político. p. 33. RAWLS, Liberalismo político. p. 87-8. 33 RAWLS, Liberalismo político. p. 91. 32

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imaginariamente pelo filósofo como parte de uma “simulação mais ou menos realista dos discursos reais”34. Por que, então, Rawls insiste em desdobrar o argumento da posição original em mais uma etapa? A principal justificativa dada pelo filósofo americano é a necessidade de especificação da ideia de sociedade bem-ordenada, tornando-a mais realista, isto é, ajustando-a às condições históricas e sociais, e coerente com os princípios da justiça escolhidos na primeira etapa do argumento da posição original. Ou seja, a ideia de sociedade bem-ordenada, apenas geral no início da elaboração da justiça como equidade, adquire um sentido particular após a escolha de uma concepção de justiça. Nesse sentido, também do ponto de vista teórico, uma concepção de justiça deve adequar-se aos fatos gerais presentes em sociedades democráticas e levá-los em consideração. Este tipo de raciocínio hipotético, portanto, não visa à confirmação da aceitabilidade da concepção política em um cenário “simulado”, como critica Habermas. Seu objetivo principal é verificar sua viabilidade prática, a fim de servir como uma proposta política no âmbito da razão pública “sem que para isso seja preciso criticar ou rejeitar seus [dos cidadãos] compromissos religiosos ou filosóficos mais profundos”35. Podemos encontrar, contudo, outras justificativas. Por um lado, Rawls pretende evitar que valores políticos sejam “marionetes manipuladas nos bastidores por doutrinas abrangentes” 36 . Devemos especificar melhor algumas ideias fundamentais da justiça como equidade, além de seu procedimento e seus princípios de justiça (como as de sociedade, de estrutura básica, de cidadania e de justificação pública), a fim de completar seu quadro conceitual. Assim, exige-se de uma concepção política, para torná-la disponível à razão pública como uma “estrutura adequada de pensamento”, que ela seja completa, isto é, que ofereça, por si própria, uma ordenação sistemática de princípios e valores políticos capazes de resolver questões básicas de justiça política37. Além disso, uma concepção política ideal tem a vantagem de servir de “guia” a nossas atitudes e reflexões cotidianas sobre questões de justiça, inspirando-nos a nos envolver na dimensão política38. “Se consideramos ponto pacífico e como conhecimento de senso comum que uma sociedade democrática bem-ordenada é impossível”, argumenta Rawls no final da introdução à edição de 1996 do Liberalismo Político, nossos pensamentos e atitudes sobre o mundo político e

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J. HABERMAS, Reconciliation through the public use of reason: remarks on John Rawls’s political liberalism, in: The journal of philosophy, Vol. 92, No 3 (1995). p. 121. 35 RAWLS. Liberalismo político, p. 461. 36 RAWLS. Liberalismo político. p. 539-40. 37 Veja-se, por exemplo, o debate sobre a situação atual nas cortes jurídicas brasileiras com a explosão do uso de princípios constitucionais nas decisões jurídicas e sua falta de clareza e determinação tanto sobre seus conteúdos e limites quanto sobre as prioridades de direitos e liberdades a serem garantidas. 38 Z. STEMPLOWSKA; A. SWIFT, Rawls on ideal and nonideal theory. In: MANDLE, J.; REIDY, D.A. A companion to Rawls. Oxford: Blackwell, 2014. p. 124.

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social, a qualidade e tom de nossas discussões políticas, seriam muito diferentes39. A ascensão de Hitler ao poder e o colapso da República de Weimar teve como uma de suas causas, assim afirma Rawls, a falta de apoio das elites tradicionais à Constituição e sua descrença na possibilidade de um regime democrático justo. Por isso, se nos importamos e discutimos problemas de justiça social, de legitimidade do poder político e de uma sociedade pluralista, devemos partir do pressuposto mais básico da possibilidade prática de uma sociedade razoavelmente justa e, consequentemente, da capacidade dos seres humanos de compreender e agir motivados por uma concepção política razoável que estruture esta sociedade. O melhor texto que introduz o tema da estabilidade é Justiça como equidade: uma reformulação. Ali, Rawls inicia a Parte V afirmando que o primeiro argumento da posição original, que tem por objetivo escolher provisoriamente os princípios de justiça para uma sociedade democrática, evitou conscientemente os problemas derivados de “psicologias (ou atitudes) especiais”, como “as inclinações invejosas ou malévolas das pessoas”, a “vontade de dominar ou alguma tendência à submissão” ou “uma peculiar aversão à incerteza e ao risco”40. É característico da posição original possuir tais simplificações, principalmente na modelagem da racionalidade das partes. Contudo, diz Rawls, “essas atitudes [especiais] são importantes na vida humana e têm de ser consideradas em algum momento”41. A questão que surge, então, para as partes da posição original é: como essa concepção política, esquematizada pelos princípios de justiça que acabamos de escolher, pode se autossustentar, isto é manter-se estável ao longo do tempo? As partes devem indagar se as pessoas que crescem numa sociedade bem-ordenada pelos dois princípios de justiça - os princípios adotados na primeira parte do argumento adquirem um senso de justiça suficientemente forte e eficaz para que possam normalmente concordar com dispositivos justos e não sejam levadas a agir por outros motivos, por exemplo, pela inveja e pelo desprezo sociais, por uma vontade de dominar ou por uma tendência a se submeter? Caso adquiram um senso de justiça suficientemente forte e não pendam para o lado oposto por causa dessas atitudes especiais, então o resultado da primeira parte do argumento se vê confirmado e o argumento a favor dos dois princípios está completo42.

Este trecho merece algumas considerações. Em primeiro lugar, devemos notar que Rawls ainda está falando em partes, ou seja, o argumento da estabilidade é uma deliberação realizada no esquema de representação da posição original, mas em um segundo momento (em um segundo ponto de vista). Agora, as partes devem considerar os princípios de justiça já realizados (hipoteticamente em uma sequência de quatro estágios) na estrutura básica da sociedade, fornecendo um pano de fundo institucional e uma cultura política de fundo aos cidadãos que ali nascem, crescem e se desenvolvem. O véu-da-ignorância é retirado por completo e as partes 39

RAWLS, Liberalismo político, p. LXVIII-LXIX. RAWLS, Justiça como equidade. p. 257. 41 RAWLS, Justiça como equidade. p. 257-8. 42 RAWLS, Justiça como equidade. p. 258. 40

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avaliam a probabilidade de tais cidadãos serem influenciados ou deixarem-se dominar por atitudes especiais desestabilizadoras, como as já mencionadas. Em segundo lugar, essa modificação de argumentos é acompanhada de uma modificação do problema a ser tratado. As partes na posição original enfrentam, como já foi visto, o problema da determinação de termos equitativos de cooperação social para uma sociedade, estabelecidos por meio de um acordo entre pessoas livres e iguais. As partes devem decidir quais princípios são coletivamente racionais, ou seja, quais são os termos de cooperação mais razoáveis para a distribuição de direitos e de vantagens produzidas na colaboração social dos indivíduos participantes. Os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada, por outro lado, refletem se a obediência a tais princípios, dadas condições de justiça, é individualmente racional. Isso significa, então, que os cidadãos deliberam sobre as perdas e os ganhos em cooperar uns com os outros a partir da concepção política efetivada na estrutura básica da sociedade. Além disso, tais cidadãos refletem sobre a aceitação e o apoio a essa concepção política, mesmo quando suas visões de mundo não são liberais. Portanto, a pergunta mais geral a ser feita, nesta etapa da teoria, não é mais sobre as regras de cooperação social, mas: dado que as instituições são justas e os demais cidadãos agem de modo justo, devo eu também ser justo? Agir de maneira justa é a melhor resposta ao agir justo dos demais?43 Vejamos, então, o argumento da estabilidade em maiores detalhes. Rawls secciona-o, conforme mencionado ainda na introdução do texto, em duas etapas. A primeira é elaborada com o intuito de esclarecer a relação política entre as instituições da sociedade bem-ordenada (sua estrutura básica) e seus cidadãos em um pano de fundo democrático justo. Deve-se descrever as principais premissas da psicologia humana deduzidas da concepção política escolhida (a “psicologia moral do razoável”, no caso da justiça como equidade) e as condições de uma sociedade com instituições justas. Com isso, os cidadãos irão desenvolver e adquirir um senso de justiça forte e eficaz o suficiente para neutralizar tendências psicológicas desestabilizadoras no campo político, na medida em que a justiça como equidade torna-se um “fim último”44. Rawls dirá que tais cidadãos adquirem uma “lealdade razoável e informada” aos princípios de justiça e estão dispostos a agir de maneira justa por uma “motivação suficiente do tipo apropriado”45. Essa etapa do argumento, contudo, não oferece grandes problemas e Rawls é o primeiro a admitir isso ao considerá-la uma “questão trivial” com uma “resposta óbvia”46. Se já pressupomos que determinado indivíduo tem um senso de justiça efetivo e duradouro, dadas condições favoráveis 43

RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 631. Sobre esse tipo de abordagem do problema da estabilidade, ver: P. WEITHMAN, Why political liberalism? e G. GAUS, The turn to a political liberalism. In: MANDLE, J.; REIDY, D.A. A companion to Rawls. Oxford: Blackwell, 2014. 44 RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 493. 45 RAWLS, Justiça como equidade. p. 264. 46 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 702.

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para seu uso, é racional para ele agir de acordo com os princípios de justiça, isto é, “ser uma boa pessoa é bom para tal pessoa”47. “Sendo os tipos de pessoa que são”, diz Rawls, “os membros de uma sociedade bem-ordenada desejam, mais do que qualquer coisa, agir com justiça, e realizar esse desejo faz parte do seu bem”48. Já a segunda etapa, muito mais conhecida e discutida pela literatura, trata da relação entre valores políticos e não-políticos, isto é, da possibilidade de um consenso sobreposto entre uma concepção política e diversas doutrinas abrangentes. Em Teoria, essa etapa constituiu-se no problema da congruência entre o justo e o bem: Rawls imagina um indivíduo hipotético que adotará o ponto de vista da justiça como equidade se e somente se isto for um meio efetivo de satisfazer outros tipos de desejos, independentes dos valores políticos. No Liberalismo Político, Rawls desiste da escolha deste “cidadão hipotético”, pois ele é modelado com determinada visão abrangente (isto é, com valores não-políticos derivados da justiça como equidade), e passa a trabalhar apenas com “casos exemplares” de consensos sobrepostos (como entre sua teoria e o liberalismo clássico, o utilitarismo, algumas doutrinas religiosas, etc.). O objetivo principal, aqui, é mostrar que, sendo o liberalismo uma concepção política situada em um domínio específico (o domínio do político), seus princípios e valores “têm peso suficiente para prevalecer sobre todos os outros valores que possam entrar em conflito com eles”49. A melhor maneira (ou a “melhor resposta”) para determinado cidadão viver e realizar os ideais e valores de sua própria doutrina abrangente é assegurar “elementos constitucionais essenciais” através da defesa de valores exclusivamente políticos, como os da justiça como equidade. A reformulação do argumento leva em consideração o pluralismo razoável e, nesse sentido, deixa a cargo dos cidadãos, “individualmente, decidir por si próprios como a concepção política que lhes é comum está relacionada com suas visões mais abrangentes”50. Para a reconstrução da estrutura do argumento da estabilidade, valho-me da interpretação recente de Paul Weithman, Why political liberalism? On Rawls’s political turn. Um dos principais objetivos de sua obra é dar uma interpretação de como e porque Rawls tornou-se insatisfeito com Uma teoria da justiça e reformulou-a como uma concepção política. Falar que esta mudança ocorreu devido ao reconhecimento do fato do pluralismo razoável em sociedades democráticas é dar uma explicação muito simplista e direta. Segundo Weithman, devemos levar a sério a 47

RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 492. Ibid. 49 RAWLS, Justiça como equidade. p. 261. 50 RAWLS, Justiça como equidade. p. 267. Uma diferença marcante das etapas do argumento pode ser visualizada no uso distinto de teorias do bem. Aquilo que Rawls chama de “teoria completa do bem” [full theory of the good] é utilizada na primeira etapa, como uma teoria que pressupõe a escolha de princípios de justiça para definir outros conceitos morais, como virtudes, ideais e valores, assim como os princípios da psicologia moral, que explicarão o desenvolvimento do senso de justiça e os sentimentos associados. Já a segunda parte do argumento utiliza a “teoria fraca do bem” [thin theory of the good], presente em outras etapas da teoria, como o primeiro argumento da posição original, e restringe-se a elementos de racionalidade essenciais e independentes dos princípios de justiça. Ver, para tanto, a introdução do Capítulo VII de RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 489ss. 48

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autocompreensão de Rawls sobre os defeitos de sua obra, feita no prefácio do Liberalismo Político: “Mas, para entender a natureza e a extensão das diferenças [de Teoria], é preciso vê-las como um esforço para resolver um grave problema interno à justiça como equidade, a saber, aquele que surge do fato de que a interpretação na parte III de Teoria não é coerente como um todo”51. Nesse sentido, para Weithman, o motivo da “virada política” de Rawls, realizada na década de 80, é a reformulação do argumento da estabilidade e da unidade de uma sociedade bem-ordenada. É importante deixar claro, adverte Weithman inicialmente, o que Rawls entende por ‘estabilidade’. Normalmente, este tipo de tema é discutido na filosofia e ciências políticas como o problema da “estabilidade estatal”. Determinado Estado torna-se estável, quando não há maiores modificações em suas principais estruturas. Fronteiras geográficas, o tipo de regime político ou a observação e aplicação regular das leis e da Constituição por grande parte da população são exemplos de critérios para verificarmos este tipo de estabilidade. Para Weithman, não é com isto que Rawls está preocupado. Por um lado, regimes totalitários também podem se tornar estáveis por algum período de tempo. Por outro, um Estado justo permite modificações estruturais, desde que se mantenha o mesmo padrão de justiça. Conforme a definição de Rawls, o termo ‘estabilidade’ é predicado de uma concepção de justiça, não de um Estado: “Estabilidade significa que, sempre que as instituições se modificam, ainda permanecem justas ou aproximadamente justas, pois são feitos ajustes em razão de novas circunstâncias sociais”52. Para a justiça como equidade, a estabilidade está muito próxima à condição de equilíbrio. Temos um Estado (ou, ao menos, um esquema de cooperação) estavelmente justo, se nos encontramos em uma situação de “equilíbrio geral justo”, em que uma concepção de justiça é válida e regula efetivamente uma sociedade e, ao mesmo tempo, seus membros reconhecem publicamente e compartilham esta concepção ao longo do tempo. Para Rawls, “um equilíbrio é estável sempre que os afastamentos dele, provocados, digamos, por distúrbios externos, invocam forças internas do sistema que tendem a levá-lo de volta ao estado de equilíbrio, a não ser, é claro, que os choques externos sejam grandes demais”53. A noção de sociedade bem-ordenada de Rawls busca definir esse estado de coisas. Nesse cenário, a concepção política da justiça como equidade já atingiu o estatuto de ponto de vista compartilhado e aceito por todos os cidadãos, que possuem um senso de justiça

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RAWLS, Liberalismo político. p. XVI. RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 565. Rawls considera, ainda, outro tipo de estabilidade: a “estabilidade das razões”, isto é, a condição de que a proteção dos interesses fundamentais dos cidadãos é continuamente exigida por estes e, ao mesmo tempo, estão garantidas por princípios de justiça. Tal estabilidade, porém, faz parte do primeiro argumento da posição original, e não deve ser confundido com o tema em questão. Justiça como equidade. p. 154-5. 53 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 564. 52

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efetivo e sabem, ademais, que a estrutura básica de sua sociedade respeita os princípios de justiça dessa concepção54. Weithman interpreta o argumento da estabilidade da justiça como equidade, de modo intuitivo, através da teoria dos jogos, na medida em que Rawls vê-se deparado em evitar tanto os “riscos de um dilema do prisioneiro generalizado”55 quanto uma solução baseada no soberano hobbesiano (uma sociedade estável no “sentido errado”). Essenciais para o estabelecimento desta interpretação são os §§76 e 86 de Teoria. Rawls acredita, assim coloca Weithman, que há uma alternativa entre essas soluções dada a partir de uma “interpretação razoável da sociabilidade humana”56. Seguindo a sugestão de Weithman, pode-se examinar as dificuldades da estabilidade de uma sociedade através de um caso específico do dilema do prisioneiro, o “dilema dos soldados com morteiros” [mortarmen’s dilemma], uma versão do problema clássico reelaborado por Edna Ullman-Margalit57 . Na versão simples de Weithman, a história é contada do seguinte modo. Imaginemos dois soldados com morteiros que se localizam em diferentes, mas próximos, postos avançados e estão prestes a se deparar com um ataque inimigo na tentativa de salvar sua cidade. Os três resultados finais estipulados são: se ambos permanecerem em seus postos, cada um possui 50% de chance de ser capturado pelo inimigo ou de o repelir. Ao contrário, se ambos desertarem e, consequentemente, o inimigo invadir seus postos sem qualquer resistência (e a cidade que defendem), eles terão de 70% a 30% chance de serem capturados. Se um deles fugir, enquanto o outro permanecer em seu posto, o primeiro poderá voltar para a cidade a salvo e o segundo terá uma chance de 90% de ser capturado. Assim, conclui Weithman, “a solução coletivamente racional é, para ambos, a de permanecer em seus postos, mas a escolha racional para cada indivíduo é desertar”58. Portanto, um dos riscos da estabilidade de uma concepção política não é apenas a irracionalidade de indivíduos (as “atitudes especiais” de Rawls), mas a adoção contínua de um ponto de vista auto-interessado ou, mais precisamente, de um ponto de vista alternativo ao da justiça como equidade. Avaliando-se cada ação isoladamente e, ainda, dado o conhecimento generalizado de que muitos indivíduos contribuem para o bem público (no caso, salvar a cidade), parece que a decisão de desistir ou transgredir regras será perfeitamente racional. Comparada com uma perspectiva coletiva, essa conduta parece obter um resultado ínfimo (para o bem ou para o mal), com o adicional de potencializar os próprios ganhos do indivíduo (no caso, correr menos risco de morte). Contudo, em um cenário no qual os indivíduos adotam massivamente o ponto de vista 54

RAWLS, Justiça como equidade. §3. RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 712. 56 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 711. 57 E. ULLMAN-MARGALIT, The emergence of norms, Oxford: Oxford University Press, 1997. 58 WEITHMAN. Why political liberalism? po. 843 (grifos meus). 55

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auto-interessado, o resultado final será pior para todos. No caso de Rawls, se indivíduos adotarem massivamente concepções políticas diferentes, a justiça como equidade torna-se instável e há a generalização do dilema do prisioneiro, cujo resultado é o surgimento de um mero modus vivendi59. Em Teoria, essa dificuldade é denominada “problema do isolamento”, visto normalmente através da figura do “passageiro clandestino” [free rider]60. Aliado a esse risco, há o problema da confiança mútua. Este envolve a possibilidade de estabelecermos um reconhecimento público e compartilhado entre as partes a respeito da aderência e manutenção do acordo estabelecido entre determinadas regras de cooperação recíproca. A dificuldade de se estabelecer um acordo de desarmamento entre países é um exemplo instrutivo. A disposição para agir nos termos do acordo pode se ver fragilizada, se não percebermos garantias de que não sofreremos ou nos arruinaremos por adotar tal posição, já que a outra parte pode estar apenas simulando. Afinal, dependendo do cenário em que nos situamos, agir justamente não é a melhor resposta. Regimes totalitários ou altamente injustos são apenas um cenário drástico do que estou me referindo. O que fazer, para utilizar uma expressão bastante apreciada por Hannah Arendt, “quando as fichas estão sobre a mesa” [“when the chips are down”], isto é, em circunstâncias malignas e de crise perpetradas por regimes políticos insanos? Uma concepção política pode exigir um impulso romântico e suicida de obediência do senso de justiça de seus cidadãos mesmo em tais cenários? Para a justiça como equidade, a resposta é negativa: “O senso de justiça nos leva a promover esquemas justos e a fazer a nossa parte neles quando acreditamos que os outros, ou pelo menos um número suficiente deles, também farão a sua”61. Um dos motivos de se considerar a justiça como equidade como uma utopia realista tem esse objetivo: mostrar que seus ideais são possíveis “sem assumir motivações heróicas”62 , pois não exigem, do indivíduo, uma posição completamente altruísta nem completamente egoísta63. Há diferentes modos de se tentar resolver essa situação embaraçosa originada pelos problemas do isolamento e da confiança mútua. Voltemos, novamente, ao dilema dos soldados com morteiros. Uma alternativa de incentivar ou, mais adequadamente, de coibir os soldados de fugirem de seus postos seria promulgar sanções severas no caso de deserção, tornando essa opção menos

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RAWLS. Justiça como equidade. p. 274. RAWLS. Uma teoria da justiça. p. 332. 61 RAWLS. Uma teoria da justiça. p. 333 (grifos meus). Para Weithman, o problema da confiança mútua é uma parte essencial do argumento da estabilidade e sua solução é denominada “Tese de Nash”: “Se o esquema cooperativo deve ser estavelmente justo, cada participante deve ser capaz de perceber, ao refletir, que é bom para ele manter esta disposição se outros também o fazem”. WEITHMAN. Why political liberalism? po. 4456 (grifos meus). 62 Z. STEMPLOWSKA; A. SWIFT. Rawls on ideal and nonideal theory. In: MANDLE, J.; REIDY, D.A. A companion to Rawls. Oxford: Blackwell, 2014. p. 122. 63 Em Teoria, Rawls fala o seguinte, ao interpretar a origem do senso de justiça em Mill: “Essa origem dupla indica que, em sua opinião [de Mill], a justiça envolve um equilíbrio entre o altruísmo e as reivindicações do eu e, por conseguinte, envolve uma ideia de reciprocidade. A doutrina contratualista atinge o mesmo resultado [...]”.Uma teoria da justiça. p. 620. 60

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atraente (irracional). Em casos extremos, poder-se-ia imaginar que os postos estão cercados de minas terrestres, caso em que a fuga de um dos soldados significaria sua própria morte64. Tais sugestões, contudo, são descartadas por Rawls, porque impõem estabilidade à sociedade através da mera imposição. Enquanto concepção liberal, a justiça como equidade não pode se utilizar de tais meios para torná-la aceitável entre cidadãos que explicitamente a rejeitam ou a criticam (poder-se-ia pensar, até mesmo, se este é o modo mais eficaz de realizar isto). A estabilidade não é um assunto meramente prático, que se mantém por meio da persuasão e da retórica ou do cerceamento de cidadãos: um dos fatos pressupostos por Rawls desde o início de sua teoria é o de que um regime democrático duradouro e estável deve ser apoiado de modo livre e voluntário pela maioria dos seus cidadãos65. Para Rawls, o Estado hobbesiano é o exemplo mais claro dessa solução, pois torna-se estável através do poder efetivo de punir e fiscalizar os membros dessa sociedade. Este poder político é considerado um elemento exterior, um “mecanismo acrescentado a um sistema de cooperação”66, porque a estabilidade é atingida “por um soberano que não é, ele mesmo, um sujeito e não tem, ele mesmo, uma tabela de ganhos, mas está acima dos sujeitos e altera suas tabelas de ganho utilizando a coerção e a ameaça”67. O soberano hobbesiano, na interpretação de Rawls, assegura a estabilidade com a alteração das “condições fundamentais que possibilitam que os indivíduos pensem racionalmente”68. Contra Hobbes, Rawls quer deixar claro que os problemas que afetam a estabilidade de uma sociedade (em particular, os problemas do isolamento e da garantia mútua) podem ser resolvidos da mesma forma com o desenvolvimento de um senso público de justiça e de atitudes naturais, como amizade e confiança mútua. Freeman interpreta essa exclusão da solução de Hobbes como uma consequência da prioridade do justo em relação à eficiência e à estabilidade e, ao mesmo tempo, da separação entre condições de justiça e condições de eficiência ou de estabilidade. Como diz Rawls, na primeira frase de Teoria, “a justiça é a virtude primeira das instituições sociais”. Teorias injustas, “por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformuladas ou abolidas”69. O que está em jogo, portanto, é a estabilidade de uma sociedade justa, e não a estabilidade de uma sociedade per se70. Nesse sentido, há uma “divisão de trabalho” nas concepções políticas entre o estabelecimento, em primeiro lugar, das condições do justo, isto é, de “concepções políticas normativas”, e,

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WEITHMAN, Why political liberalism? po. 844. RAWLS, Justiça como equidade. p. 264. 66 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 613. 67 WEITHMAN, Why political liberalism? po. 331. 68 RAWLS, Conferências. p. 86. 69 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 4. 70 S. FREEMAN, Congruence and the good of justice. In: _____. Justice and the social contract: essays on Rawlsian political philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007. 143-4. 65

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posteriormente, das condições de estabilidade deste tipo de sociedade com base em princípios psicológicos e ideais e valores políticos71. Além disso, Rawls menciona que nenhum dos “ideais, princípios ou preceitos defendidos na sociedade tira proveitos injustamente da fraqueza humana”72. Pensar no poder político como a primeira alternativa plausível para influenciar psicologicamente seus cidadãos é o mesmo que considerar a consciência moral “um mecanismo psicológico compulsivo”, passível de se tornar estritamente obediente “mediante o terror de algum castigo”73. Esta interpretação do senso de justiça não faz parte da justiça como equidade: “O senso de justiça de uma pessoa não é um mecanismo psicológico compulsivo espertamente instalado por aqueles que têm a autoridade para garantir inabalável obediência das pessoas às leis criadas para promover os interesses daqueles”74. Se a possibilidade de repressões enérgicas a opositores e dissidentes não é uma alternativa viável, quais possibilidades nos restariam? De acordo com a exposição da versão clássica do dilema anteriormente descrito, o perigo de instabilidade poderia ser amenizado com a formação de um senso de honra entre os membros da unidade militar, de modo que cada um se sinta motivado a cumprir seu dever. Além disso, seu senso de honra seria tal que, para o soldado, o comprometimento com os termos deste código e com os desejos gerados por este ideal formariam uma parte dominante de sua concepção de vida boa75. Na visão de Weithman, a justiça como equidade enfrenta os problemas da estabilidade exatamente desse modo76. Seu principal objetivo é mostrar como, com o cenário idealizado da sociedade bem-ordenada, os riscos de desestabilização são desfeitos e a concepção de justiça encontra-se em um equilíbrio estável através da adesão livre, espontânea e contínua de cada cidadão. Os valores e ideais políticos da justiça como equidade concretizados em instituições básicas, assim como o senso de justiça e as respectivas leis psicológicas da reciprocidade produzem “o mesmo resultado” de um soberano hobbesiano eficaz77. Referências bibliográficas: FREEMAN, Congruence and the good of justice. In: _____. Justice and the social contract: essays on Rawlsian political philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007. GAUS, The turn to a political liberalism. In: MANDLE, J.; REIDY, D.A. A companion to Rawls. Oxford: Blackwell, 2014. 71

Em suas Conferências, Rawls interpreta a teoria de Mill da mesma forma, isto é, com essas duas etapas de argumentação. RAWLS. Conferências. p. 293. 72 RAWLS, Uma teoria da justiça. p. 636. 73 T. HOBBES, Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil, São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 124. 74 RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 636. 75 WEITHMAN, Why political liberalism? po. 884. 76 WEITHMAN, Why political liberalism? po. 927ss. 77 RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 613.

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