A justiça d\'além-mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (séc. XVIII). 1. ed. Recife: Massangana - Fundação Joaquim Nabuco, 2009. v. 1. 195p.

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Descrição do Produto

Pref;ício

António Manuel Hespanha

Maria Filomena Coelho FUNDAçAO JOAQUIM NABUCO

EDITORA MASSAN'ANA

ISBN 978-8s- 7 0t9

-481 -7

Maria Filomena Cìoelho

Reservados todos os direitos desta edição.

Reprodução proibida, mesmo parcialmente, sem autorização da Editora Massangana da Fundação foaquim Nabuco. FundaEão foaquim Nabuco I www.fundaj.gov.br Avenida 17 de Agosto, 2187 - Ed. Paulo Guerra Recife, PE - CEP 52061-540 Editora Massangana I Telefone (81) 3073.6363 Telefax (81) 3073.6319 | www.fundaj.gov.br

-

Casa Forte

-

PRssrorNrl oe FuNoeçÃo f oeourv NABuco

Fernando Lyra DrRproneos Curruna Isabela Cribari CoonorNeooR-cEul oR EonoRR MessaxcaNe Mário Hélio Gomes de Lima CoonoENeooR oE

E

urroneçÃo

Sidney Rocha PnoJEro cnerrco/cnpe

Editora Massangana

Foi feito o deposito legal. Impresso no Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Fundação foaquim Nabuco. Biblioteca) Coelho, Maria Filomena. A justiça d'além-mar: Iógicas jurídicas feudais em Pernambuco (séc. XVIII) Maria Filomena Coelho. - Recife : Fundação foaquim Nabuco, Editora Massangana, 2009.

/

190 p.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-70 t9

1. [ustiça

-

-481 -7

Período colonial, século

Processo jurídico

-

Brasil

-

XVIII

-

Pernambuco

-

História. 2. Direito

-

Colônia. L Título.

cDU

34.096(81 3.4) (091)

Sumário

Prefócio, por António Manuel Hespanha, 7 Agradecimentos, 9 1. |ustiça, verdade e reconciliação,

11

2. Tradição e memóría, 17 3. A justiça no cotidiano de Olinda e Recife, 23

4. O gládio espiritual da excomunhão, 39 5.

A separação das jurisdições,79

6. Lutas de bandos, 99 7

. O controle do centro, 135

8. Reflexões finais, 165

Pretácio

Este livro de Maria Filomena Coelho tem todos os méritos que a arte da história e a arte da escrita, combinadas com maestria, podem

conferir a um liwo, além de ter o grande interesse de reabrir uma velha questão que os historiadores costumam pôr. A históri a faz-se sobretu do na diacronia ou, antes, na sincronia? Ou seja, fazer história é reconstituir as incontáveis fìeiras cronológicas de perfis de evolução que se

tecem na sociedade, cada uma com a sua seqüência, os seus ritmos,

contrário, surpreender, de uma mirada, um espírito de época que as combina e as confunde, desvalorizando fenômenos dissonantes e desgarrados, para valorizar os acordes harmônicos do todo? Vi a questão discutida, recentemente, a propósito da narrativa histórica (?) de Gilberto Freyre 1, no seu jeito ímpar de, paas suas cesuras. Ou, pelo

tinando algo sobre a realidade, escolhendo fatos avulsos com um criterioso descritério, nos dar, empaticamente, o tom de uma época. Claro que, nos interstícios dos fatos narrados, existem outros desatendidos.

Mas felizmente desatendidos, porque o som de um tempo só surge límpido quando se silenciam os ruídos dos seus vários tempos.

muito mais precavida na cultura de um método, na observância das regras de arte da história estabelecida. Mas a sua sensibilidade de artista da escrita e de uma compreensão não atomista das coisas dá-lhe afelizliberdade de aspirar a 'com-preender', apreender o conjunto; o conjunto que subjaz e suporta (under-stand) A Maria Filomena

é

a diversidade incomensurável das coisas aparentes (no duplo sentido

de que aparecem e apenas parecem, não sendo tanto como isso).

Esta empresa de ligar a história do Brasil colonial a uma lógica

profunda, trans-secular, de organizaçáo mental e comportamental remete para essa idéiavigorosa de que a longa duração reside, sobretudo, dentro de nós, numa geometria muito durável das almas, que irmana os juristas italiano s do trecento com os rábulas do Pernambuco setecentista. Referi-me, num caso ou noutro, a juristas

- embora

de estirpes diversas. Mas podia seguramente insinuar que esta lógica

daprâtica incluía rústicos e, como hoje dizemos, subalternos; embora, as estratégias de aplicação dos mesmos modelos mentais pudessem acabar por ser diferentes. Uma sociedade em que, fazendo-se política,

se

faz Deus por acrés-

cimo. Onde fazerjustiça ganha a dimensão de um sacramento. Mas, ao mesmo tempo, onde Deus, o pecado, o crime, o justo, a justiça e o sacramento, têm dimensões incertas

e

geometrias variáveis. Uma soci-

edade em que, por isso, o poder de dizer a justiça representa o poder decisivo de declarar a ordem, de fazer Deus. E em que, ainda por isso, a luta pela

jurisdição

é obsessiva,

fulcral

- talcomo o descreveu Leo-

nardo Sciascia, nas suas magnífic as Recitazione della controversia Iíparitana dedicata ad A,D. (Einaudi, Torino 1969). Reclamar a sua jurisdição não é, como hoje, apenas defender uma prerrogativa orgânica; élutar por uma autonomia de criação do mundo, de definição do bom e do justo, de domínio de Deus. Benditos os liwos que nos acordam dos torpores do habitual, que

nos obrigam a pensar mais em grande e mais em risco, a desaÍìar as eüdências quanto a especificidades de épocas e de lugares, pondo em destaque outras evidências mais constantes e mais gerais, embora mais subtis e menos usuais na literatura história que guarda as conveniências.

António Manuel Hespanha, Lisboa, inverno de 2008. 1

|oaquim F.ALCÃO e Rosa Maria B. de ARAÚJO (orgs.) .O ímperador das

idéias. Gilberto Freyre em questão. Rio de faneiro: Topbooks, 2001.

1

. fustiça, verdade e reconciliação

Longe dos olhos do rei, nas terras de além-mar, são comuns as reclamações dos súditos que se sentem injustiçados, ou, melhor, sem acesso a um determinado tipo de justiça. Será, sobretudo, a voz dos mais letrados a que podemos ainda ouvir nos documentos que regis-

tram a perplexidade e o desespero dos que compreendiam as implicações de viver tão longe do alcance da mão do rei, a quem cabia, por missão cristã, distribuir a justiça. Viver longe dessa justiça era viver à margem da cristandade. Assim deve ser entendido, em parte, o descomunal esforço que realizou o cônego da Sé de Olinda, Veríssimo Rodrigues Rangel, ao decidir relatar, ao longo de quase quinhentos fólios, os acontecimentos que "desassossegaram" o povo de Pernambuco, no século XVIII: o confronto jurisdicional entre importantes personagens da elite local, o

bispo, frei Luiz de Santa Tereza, o vigário geral, Manoel Pires de Carvalho , e o juiz de fora, Antônio Teixeira da Mata. Do próprio punho e letra do cônego somos introduzidos nessa história: Discursos Apologeticos e Noticia fidelissima das vexações e desacatos cometidos pelo Doutor Antonio Teixeira da Mata, contra a Igreja e jurisdição eclesiastica de Pernambuco. Composto pelo Doutor Verissimo Rodrigues Rangel, Conego da Sé de Olinda e Promotor do luizo Eclesiastico... ' (Í1.3)

Thl como o próprio anuncia, o discurso será apologético, ou seja, uma exposição que se estruturaapartir do debate entre as partes anta-

gônicas. Os dois lados serão colocados frente a frente, permitindo o

confronto entre a verdade e o erro. Apologética vem do verbo grego apologeomai, que significa defender-se, e, na Idade Média, acabou por configurar a defesa ou a justifïcação da fé religiosa2. Mais precisamente, dentro da Escolâstica, isto se desenvolve como demonstração

racional do depósito da Revelação, sufragada pela autoridade diüna

e

pelo magistério da lgreja. Parece-nos, portanto, fundamental nunca perder de vista esse propósito anunciado logo na primeira linha. Amigo Leytor, tem sido taes os sucessos de Pernambuco neste passado anno de 1750, e tem-se fallado tantas lingoas nesta babilonia de enredos... Permitta Deus que hum cazo tam extravagante sirva de exem-

plo, avizo, e desengano, para que de Portugal senão mandem para estes lugares das Americas, que tanto distão dos olhos de El Rey, Ministros de primeira entrança sem experiencia, Letras,

e

prudencia. (F1.3).

Originários do reino, o bispo, o vigário geral e o cônego encarnam a política que permitiu que Portugal fizesse circular a sua elite, tanto nos quadros da administração, quanto na vida religiosa. Uma disputa em torno àprimazia sobre a execução testamentária da fundação de uma capela é o estopim que deflagra a contenda e cujos desdobramentos e estratégias desenvolvidas pelos adversários nos

permitem refletir sobre alguns aspectos da integração dessa elite, quer ao nível local, quer ao nível das instituições, atando-a ao projeto maior do império. Assim, pequenos interesses do cotidiano, laços de amizade, devoções, fidelidade e parentesco vêem seu caráter íntimo

redimensionado pela intromissão forânea de funcionários reais

e

re-

ligiosos que, com suas diferentes interpretações desse mesmo projeto, vão dando forma ao império.

Dirigindo-se diretamente ao "amigo leitor", o cônego Veríssimo Rangel dá uma pista sobre a intencionalidade de tão extenso documento: deixar paraa posteridade uma versão "justa" e "verdadeira"

1z

de "hum cazo tam extravagante"3. Acontecimentos que transforma-

ram o cotidiano de Olinda e Recife, e que, dada a sua transcendência, necessitam ficar na lembrança. A partir de uma narrativa cuidadosamente tecida, o cônego leva o leitor por um intrincado labirinto de petições, acórdãos e cartas rogatórias perfeitamente costuradas por

comentários e explicações que, sutilmente, vão (re) construindo a memória desse confronto. Mais importante do que os fatos em si, é a maneira como eles serão recordados não só pelos seus contemporâneos, como pelas gerações futuras. O côneg o faz a história do processo jurídico, transformandoo em um longo caminho sirnbólico, preenchendo lacunas, até conseguir com que o leitor transcenda a materialidade dos acontecimentos e passe do real à sua representação. Uma representação ideal, eticamente orientada, que constrói uma verdade bastante diferente dos padrões de objetiüdade consagrados hoje em dia. No século

XVIII, pelo menos

em Pernambuco, depois de um longo caminho que se iniciou na Idade Média, o direito está na plenitude da 'processualiz ação' , o que signifi-

ca dizer que, muito mais do que a busca da verdade, o que pretende dom Veríssimo Rangel é valorizar ametodologia que permitirá eternizar os fatos que, do contrârío, perder-se-ão no tempo. Aidéia da jus-

tiça que, muitas vezes, precisa ser cega , para justamente poder distanciar-se do real, desconstruir os fatos, paravoltar a construí-los através de um método pensado paraalcançar a verdade. Essa 'verdade' traduz-se, principalmente, por uma aspiração de caúúer universalista: alcançar apaz, o bem comum darespublica, o sossego do povo. Alcança-se a pã2, o que significa dizer que ela não um dado natural, mas que é preciso um árduo trabalho de todas as partes envolvidas para que ela seja efetíva. Para o cônego, parece é

claro que não bastava que o conflito tivesse cessado. Era fundamental que a sociedade pudesse elaborar essa memória, de uma forma que lhe permitisse superar as parcialidades que se formaram à volta do bispo, do vigário geral e do juiz de fora, e que voltasse a ter von-

13

tade de compartilhar

a

vida. Dentro desta aspiração, a reconciliação

um elemento basilar, e que encontra eco, não por acaso, na esfera da sacralidade cristã. Acompanhando tal lógica, pode compreenderse que processo jurídico ideal era aquele que permitia, além da (re)construção do ocorrido, chegar à reconciliação, à composição. é

Isto alcançado, o bem comum era uma conseqüência natural que viprosperidade. Esse é ohorizonte de expectativa da justiça política cristã: uma reconciliação que passa também pela jurisdiEão sobre o pecado , a falta

ria sob a forma do sossego

contra Deus

e

e da

contra os homens. Desde os primórdios do cristianismo,

é na assembléia (ecclesía) que se dá o

institucionaliza-se

a

perdão

e

cadavez que isto ocorre,

própria profecia. "O sentido da redenção reside no

perdão do pecado como rebelião do homem contra Deus, no restabelecimento da ordem comprometida pela culpa de Adão" 4.Talvez esteja aqui o remédio para o assombro de muitos estudiosos da ldade Moderna, quando se deparam com alógicada justiça no Antigo Regime. Por isso a reconciliação preocupa ao cônego Veríssimo Rangel que, ao longo da reconstituição dos acontecimentos e da transcrição dos passos a

jurídicos processuais, mostra, incessantemente,

contenda

se resolva também na

a necessidade de

que

memória. Como um eco, que comegou

a reverberar na Idade Média, a reconciliação entre os homens de boa

vontade obedece à mesma lógica que lhes permitir â, nalinha do horizonte, alcançar a felicidade suprema de passar pelo luízo Final e sentar-se à mesa do banquete que reconcilia a humanidade com Deus. "Pex et iustítia osculatae sunt" t e, portanto, a cidade de Olinda,

dividida entre dois bandos, encabeçados precisamente pelos mais importantes membros da elite, representantes da justiça divina e da justiça terrena, era a própria imagem da ausência de justiça. Havia que

curar as feridas que os dois gládios, em guerra, abriram no tecido social. Era essa a proposta teológico-política do cônego Veríssimo Rangel. A nossa, para jâ, é a de compreender de que forma e com que fios se teceu essa memória.

14

Notas

I o manuscrito encontra-se nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, Lisboa, na Seção "Manuscritos do Brasil", livro

i4 e i5. Decidimos

em

adotar

as referências originais e, portanto, citaremos o número do fólio quando se

tratar do primeiro tomo; no que respeita ao segundo, citaremos o no do capítulo, uma vez que os fólios não estão numerados. 2 Carlos Moreira

de AZEYEDO (dir.). Dícíonórío de História Religíosa

de Portugal. Tomo

I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, pp.82-8J.

3

Não deixa de ser interessante notar o nome do cônego, Veríssimo, adequadíssimo para os fins que se propõe: dar uma versão verdadeira. a

Paolo PRODI. Uma Históría da lustiça. Do pluralismo dos tribunais ao moderno dualismo entre a consciência e o direito. Lisboa: Estampa, 2002, p.31. 5

Salmo 84.

15

8. Reflexões finais

justiça na ldade Moderna Tânto na ldade Média, quanto na Idade Moderna, é necessário perceber a forma complexa como se entrelaçam vida política e prâtica jurídica, de cuja fusão nasce a pedra angular para a construção da 8.1 . Othar feudal sobre a

sociedade cristã ocidental. Da cultura popular às manifestações da

elite, o cotidiano era construído com base no direito e a face mais visível do poder aparecia nos tribunais. O exercício do poder político confundia-se com o jurídico e forjava seu sentido nos rituais e cerimônias que punham o direito sempre em evidência

1.

Na realidade, pode-

dizer que o fim último do poder político foi, durante muito tempo, distribuir a justiç a e garantir que cada um tivesse o que lhe era de se

direito. Da mesma forma, a religião inseria-se nessa dinâmica normativa, reguladora, que ia se confìgurando, quer por meio dos dogmas e cânones da lgreja, quer pelo direito do dia-a-dia. A religião e o direito, em consonância, organizam e controlam as relações sociais. Não se

trata de um modelo que teria sido imaginado e imposto à sociedade mas de uma elaboração a partir da experiência do cotidiano. Há algum tempo que não

se

vêem trabalhos no Brasil que propo-

nham autílização de documentos legais e jurídicos como fontes primárias que instrumentalizema reflexão. Considerados muitas vezes como 'defeituosos' - já que as leis simplesmente denotariam vontades; intenções, retórica, e que, portanto, não serviriam paraapreender a realidade -, eles foram substituídos apressadamente por textos

165

considerados mais 'fiáveis', como testamentos, diários, relatos, cartas particulares. Alguns estudos repousam, ainda, na confrontação das leis com a sua aplicação e cumprimento

- ou descumprimento -

o que, de certa forma, ajudaria a invalidar os textos jurídicos como fontes adequadas para apreender o real. Quando muito, reforça-se o alertade que há que tomá-los com extremo cuidado, paranão 'defor-

mar'a imagem. Entretanto, a historiografta do Direito viu-se renovada por propostas que fazem uma leitura diferente dos textos jurídicos medievais e modernos. Ao sublinhar a descontinuidade semântica dos conceitos jurídicos, conferem-lhes um valor temporal atê então negligenciado e o Direito recupera sua dimensão histórica 2. Os textos dogmático-jurídicos passam a ser esquadrinhados como peças importantes que refletem uma forma histórica de pensar as relações sociais e o próprio vocabulário jurídico revela uma transformação de sentidos que precisa ser dimensionada pelo historiador.

Naturalmente, existem outras instâncias reguladoras da vida cotidiana tão importantes quanto as normas jurídicas no processo de organização social, como a moral, a disciplina, a hierarquia. Mas o que merece ser ressaltado é que o direito ovivo' não se constitui em oposição ao direito dos letrados mas é, ao mesmo tempo, credor e devedor daquele. O exercício do poder na Idade Média e Moderna pressupõe o do-

mínio de diversos aspectos da vida social. A interpenetração de vârios níveis permite uma compreensão orgânica do real que interliga o natural e o sobrenatural. No universo político do medievo e do Antigo Regime é possível observar a pluralidade das esferas que permi-

tem a experiência do poder, na qual o Estado é apenas uma entre muitas. Há um carâter natural-tradicional na ordem jurídica do período, que se vislumbr a a partir de uma abordagem literária das fontes documentais, permitindo compreender que o arcabouço normativo e regulador da sociedade, embora oficializado pelo Estado, não é en-

166

gendrado por ele, mas resulta de uma soma de saberes, experiências e costumes dispersos pelos mais variados níveis e órgãos que

com-

3. Essa

põem o grande corpo social percepção mostra-se extremamente profícua e redimensiona aquilo que muitos insistem em ver apenas como o caminho da centralização do poder nas mãos do Estado, como se as demais esferas políticas fossem antagônicas e concorrentes dos juristas e monarcas de então, como se estes vissem a Igreja, a famflia, e as corporações como entraves à centralização. Parece mais sensato pensar que é o historiador que assim recria a realidade porque não consegue perder de vista o Estado do século XIX no final da linha cronológica; tudo o que o antecede acaba sendo interpreta-

do como avanços e recuos próprios dessa evolução.

Inversamente, se olharmos os primeiros séculos da formação do Brasil através da lente feudal, desfaz-se a visão "esquizofrênica" de

um poder central que titubeia entre a modernidade econômica e o arcaísmo mental, e surge uma monarquia que compreende a particularidade de dominar um império com pouca uniformidade a. Suas realidades geográficas e populacionais são de tal forma múltiplas e os desafios para alcançar o domínio são de tal maneira variados, eue as respostas teriam de ser específicas, caso a caso. E aqui se aplica a

larga experiência medieval farta em exemplos de amálgama entre povos e culturas, convivência entre leis e costumes diferentes, superposição de jurisdições. interpretado por alguns historiadores como falta de coerência na política centralizadorados reis portugue-

Aquilo que normalmente

ses da Idade

é

Moderna, ganha outras cores

se

analisado dentro da lógi-

ca de um soberano que ainda não pode esquecer completamente aidéia

de ser um primus inter pares. Se tomarmos como exemplo os primei-

ros séculos da colonização do Brasil, compreende-se por que povoar

e

dominar longínquas paragens só poderia ser pensado dentro da dinâmica da conquista e da parceria que o rei e a nobreza experimentaram ao longo da Idade Média. Mesmo no século

XWII,

a elite pernambuca-

na ainda lembra que foram seus antepassados que sustentaram a coroa

na cabeça do monarca

5.

A parceria era uma realidade forte que apare-

ce plasmada nos documentos. Ainda assim, alguns reis são acusados

pelos historiadores de apresentar uma "mentalidade senhorial" ana-

crônica (!), ao fazeremconcessões

e

privilégios a nobres que constitui-

riam focos de reação à política centralizadora'.

À partida, estamos lidando com uma metrópole que está muito longe do perfil centralizador, típico do Estado Racional e do lluminismo. Ela compreende de forma positiva a delegação de poderes a particulares na missão povoadora. Por outro lado, os próprios agentes do rei acabam por engrossar a população colonial, identiÍìcam-se

rapidamente com a terra e criam interesses diversos da metrópole, o que tornou corrente no século XVII a expressão "mazombos", utilizada pelas autoridades metropolitanas, recém-desembarcadas no Brasil, atônitas com a autonomia de seus pares coloniais. Com o tempo, dentro de uma lógica feudal, a função que deveria ser circunstan-

cial, acaba por ser patrimonializada. O corpo burocrático

- que nos

trópicos, muitas vezes, ainda ê, chamado a exercer funções militares - é composto por uma aristocracia que, em muitos aspectos, mantém uma visão política de mundo muito próxima à do feudalismo, o que daria'direito' ao comprador de se ressarcir posteriormente, recorrendo ao abuso dos privilégios, às gratificações ou à corrupção 7. Isso ajuda a compreender que os funcionários da'monarquia centralizadora' se encastelem contra o rei atrâs de seus cargos, que façam parte dos compadrios locais, que montem redes clientelares. Não deixa de ser sintomático que, na colônia, a aristocracia continue encontrando sua mais alta definição de prestígio no domínio da terra e que as gestas familiares alcancem seus momentos mais gloriosos ao descrever as façanhas dos antepassados recentes nas lutas contra índios,

franceses, holandeses, espanhóis e portugueses. O prestígio social continua sendo marcado pela tradição, que promove os homens pelo seu papel reitor na sociedade e não pelo que possuem. As atividades

1ó8

ligadas à terra e à guerra, consideradas pilares de formação e sustentação da sociedade, eram as únicas valorizadas. O domínio da terra nas conquistas, não se restringe ao que hoje se denomina propriedade,

reduzidaunicamente ao aspecto econômico. Nos primeiros séculos da colonizaçáo, a aristocracia continuava entendendo o domínio como patrimônio econômico

e

político. Ao ocuparem cargos administrativos

com privilégios e mercês estendidos pela própria coroa, que os considerava seus delegados -, muitos senhores chegaram a alcançar um

-

grau de autonomia política jamais sonhado pelos senhores feudais.

Propor o vocabulârio feudal para explicar uma época histórica além da Idade Média requer, obviamente, algumas qualificações. primeiro, há que dizer que alguns dos mais ilustres historiadores, levados a se interrogar sobre determinadas especificidades brasileiras, encontram a resposta na Idade Média portuguesa. Tâl conexão é perceptível nas obras de Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro 8. Posteriormente, Arno e Maria fosé Wehling, também nessa perspectiva, deram uma excelente contribuição, com uma das poucas obras historiográficas de síntese sobre a formação da América portuguesa e. Entretanto, estamos diante de abordagens díspares, caracterizadas basicamente pelo fato de que pertencem não só a diferentes gerações de historiadores, mas porque seus autores escreveram em distintos momentos das discussões que

transformaramas abordagens do medievo. Enquanto Raymundo Faoro ainda se preocupa com as precisões terminológicas e as classificações

- se as capitanias hereditárias

são, ou não, feudais

-, Sérgio Buarque de Holanda, às vezes quase ensaísta, crê descobrir um individualismo acentuado no perfil do português colonizador que, segundo ele, era específico do homem medieval ibérico. fá

os

historiadores mais recentes tendem a problematizar aquelas especificidades , talvez influenciados também pela profusão de 'estudos de caso' que pululam ultimamente na âreada História do Brasil.

169

Ao olhar para a Idade Modern a a partir da Idade Média, o que primeiro salta à vista é um vasto conjunto de evidências que, em boa medida, permitem reconhecer uma série de sobrevivência s/atualizações da sociedade feudal. E aqui cumpre dizer que entendemos por feudalismo uma certa maneira de organizaçã.o da vida humana que tem no cristianismo o seu pilar fundamental. Apartir da certeza de que o Cristo nasceu, morreu e ressuscitou, a existência hum ana é condicionada pela inexorabilidade doluízo Final, que permitirâ, ïi-

nalmente, alcançar a felicidade suprema: a entrada no Paraíso e a reunião definitiva com Deus. Para isto fomos criados: para voltar a Deus. O método para percorrer esse caminho vai sendo modelado ao longo de muito tempo. Embora o feudalismo tenha sido, paraalguns, somente a expressão política e institucional desse método, hoje compreendemos que ele extrapolou essa esfera e que se converteu em

uma autêntic a gramártica que dava sentido a todos os aspectos da vida e que percorria de alto a baixo a pirâmide social, chegando a integrar o plano terrestre com o sobrenatural. A partir de uma compreensão hierarquizada da sociedade, que é reflexo da própria hierarquia celestial, acredita-se que é desejável que os mais preparados conduzam a humanidade nessa peregrinatio pelaTerra. Uma caminhada que terá que ser feita com a ajuda de vários agentes, cuja legi-

timidade será necessariamente medida pelo ideal cristão. Tânto a Igreja, quanto a monarquia - com diferentes pesos políticos, segundo as circunstâncias

-

serão as fontes legitimadoras dessa medida.

As leis e normas que vão emitindo refletem um profícuo diálogo, como resultado da amálgama entre a vontade de realizar oprojeto e a imposição do cotidiano. As normas não são só as escritas, mas também aquelas que o costume consagrou. Tendo como objetivo o bem da Respublica Christiana, regula-se a vida em todos os aspectos: so-

ciais, econômicos e políticos, configurando uma complexa cultura cristã. Assim, dentro da cultura cristã-feudal, a sociedade se hierarquíza, parapermitir que o todo funcione de maneira orgânica e que

170

cada parte do corpo social reconheça facilmente qual a sua função na

grande tarcfa da Salvação. Neste particular, o privilégio, a graça e o dom permitem àqueles que detêm o poder ir premiando os indivíduos que devem ser reconhecidos ao longo da caminhada. A guerra e as

alianças matrimoniais são motores importantes que perpassam todos os aspectos da vida, e, portanto, dentro da lógica da hierarquizagáo,

transformam-se também em fatores de distinção social. No que res-

peita à economia, tanto a riqueza como as transações comerciais, como a remuneração do trabalho serão reguladas pelo bem comum, ou seja, pela lógica cristã-feudal. O campo da política, que tem no exercício da justiça sua principal ârea de atuação, norteia-se pela máxima do Digesto: a cada um o que lhe é de direito. Uma filosofia que entronca perfeitamente com a concepção de uma sociedade assentada na hierarquia e no privilégio. Reconhecemos ainda uma lin-

guagem própria do feudalismo que tem na vassalagem

e na

fidelidade

suas expressões mais significativas. É precisamente apartir dessas

realidades que aidéia da feudalidade se espalha por todos os níveis da pirâmide social, quer verticalmente, quer horizontalmente, e con-

verte-se no vocabulário que expressa as mais valortzadas formas de relações: entre o homem e a divindade, entre iguais, entre senhores camponeses, ou mesmo entre amantes

e

10.

Foi com base nessa idéia de feudalismo que adentramos a ldade Moderna. Sem dúvida uma realidade diferente daquela que conhece-

XI, mas com as raízes consolidadas apartir das transformações engendradas no processo de revitalizaçáo do mundo urbano. Neste momento talvez não seja demais lembrar que

mos para os séculos X

e

esse fenômeno do crescimento das cidades, que durante algum tem-

po certa historiografia explicou como sendo exclusivamente burgu-

principal motor de arranqu.. É justamente essa aristocracia que irâ fortalecer o poder do estado a partir do momento em que opta por abrir mão da exploração direta ês, teve na aristo craciasenhorial seu

dos camponeses e diversifica suas atividades econômicas, buscando

171

numa instância mais elevada o controle que jânáo consegue exercer. Nas épocas de crise ou de ameaça externa, o poder do estado tendia a ser reforçado pela camada senhorial, enquanto em períodos de

maior

tranqüilidade era natural que os senhores tentassem recuperar o terreno cedido à Coroa. Por outro lado, o papel da monarquia não era unicamente o de controlar as bases da pirâmide social, mas também garantir a disciplina entre as camadas superiores, o que explica os inúmeros conflitos entre realezae nobreza, interpretados apressadamente como típicos embates entre monarcas defensores dos interesses burgueses e velhos aristocratas retrógrados.

Concomitantemente à vida institucional, o cotidiano da América portuguesa revela-se também impregnado pela cultura feudal, sobretudo na forma como se fazia a justiça.

8.2. Cotidiano e tógicas jurídicas No que tange à maneira como aquela sociedade enquadrou a sua vida jurídica, o que primeiro salta aos olhos é que as diÍìculdades do cotidiano e a reprodução da vida não poderiam esperar as morosas decisões da distante Relação da Bahia ou da longínqua Relação de Lisboa. Nem sempre as particularidades sociais e físicas dos trópicos encontravam eco nas rebuscadas leis elaboradas na corte e, na maior parte das vezes, eram incompreensíveis paraquem precisava apenas se haver

com o vizinho. Embora a lei da metrópole fosse reconhecida

como uma espécie de marco de referência, esta convivia também com uma outra, informal, que fora engendrada na própria convivência das gentes, impregnada dos seus máximos valores morais e éticos, e a

autoridade reconhecida para a fazer cumprir era aquela emanada dos que se mostravam competentes para salvaguardar o corpo e o espírito da comunidade. Uma comunidade com necessidades tão prementes, como eram as vilas e aldeias dos séculos XVI,

XWI e XVIII no

Brasil, não podia se dar ao luxo de colocar atrás das grades ou depor-

tar todos os seus membros 'fora da lei', sob pena de perder parte substancial da população. O mais lógico é imaginar uma forte ten172

dência ao emprego de táticas de pacificação que induzissem à concórdia entre as partes e à reparação do erro. Essa é uma solução já experimentada na Idade Média, onde

a

justiça, tanto em suas normas

punitivas como em suas regras policiais, tem por objetivo a manutenção da paz e da honra; uma justiça que conduz mais à composição.

Entretanto, a repressão faz-se presente quando o erro diz respeito à religião. As heresias deveriam ser punidas e reprimidas severamente, uma vez que elas comprometem

a

visão de mundo da sociedade, sub-

vertendo a autoridade e pondo em perigo os nexos justificadores da organização social.

Isto remete à idéia de que a concepção de lei de uma determinada sociedade depende da posição que nela ocupe o ser humano, o que

permite compreender o direito como uma categoria sócio-cultural, na qual se expõem os aspectos essenciais da individualidade humana.

A lei significa a criagão de um sistema de laços entre as pessoas, convertendo-se na base da própria sociedade. Nesse quadro, é fundamental o fortalecimento dos laços que unem os membros da comunidade, e o comportamento indiüdual está orientado por um vasto sistema de proibições e incentivos. Em algumas sociedades o livre

arbítrio não é contemplado, devendo o indivíduo seguir exemplos aprovados pela religião, pela lei e pelo código moral, que são compreendidos como um corpo uno

harmônico que sintetrza aprópria consciência social. Muitos destes aspectos estão presentes ao longo da Idade Média, mas é a introdução da idéia do livre arbítrio pelo cristianismo, que dará novos contornos, por exemplo, à percepEão e

da lei pela sociedade. De qualquer forma, cremos que isto é mais óbvio ao nível do direito dos letrados e do estado, enquanto nas comunidades de aldeia e pequenas vilas que dependem basicamente da coesão interna entre seus membros, as questões individuais são relegadas a segundo plano.

justiça é o equilíbrio e a virtude da como uma perpétua e natural vontade essencialista - a

A partir da certeza de que sociedade

-

a

173

civilizagão cristã construiu uma êtica e uma moral que regulam as relações entre os homens, convertendo-se em uma verdadeira identidade filogenética. Uma abordagem cultural da prâticada justiça pres-

supõe uma preocupação especial em compreender a realidade como o encontro entre os homens e os valores que eles vinculam e articulam. Assim, importa decifrar a significação (o sentido) da ação social (as condutas humanas). Estendendo este enfoque à interpretação das

fontes legais, será possível ultrapassar a mera preocupação com o sen-

tido objetivo dos preceitos jurídicos , paraalcançar aprópriaação, cujos resultantes e determinantes desempenham um papel importante, assim como as representações sobre o sentido e o valor desses mesmos

preceitos. Não se trata de pressupor um grupo que determina o rumo dos comportamentos indiüduais, mas de tomar as elaborações coleti-

vas, por exemplo os preceitos jurídicos, como referências, como um dos dados da realidade frente aos quais os comportamentos individuais, dotados de intencionalidade, se

orienta*.

É óbvio que tampouco

se deve perder de vista o processo de estabelecimento de relações de

dominação entre indivíduos

e

grupos de indivíduos, bem como arela-

ção dessa dominação com as regulamentações institucionais. Neste ponto, a vida nas conquistas americanas é fortemente inva-

dida por uma lógica feudal. A dominação encontra legitimidade na validade das ordenações e poderes de mando herdadas pela tradição.

Os dominados não são membros de uma associaçáo, mas companheiros ou súditos do senhor; pode haver ou não quadro administra-

tivo; as relações do quadro administrativo com o soberano não são determinadas pelo dever do cargo, mas pela fidelidade pessoal; não se obedece a uma ordem estatuída, mas à pessoa delegada pela tradição; as ordens são legítimas em parte pela força da tradição, em parte pelo arbítrio do soberano em interpretar essa tradição

11.

jurídico que convive de forma natural com várias jurisdições e poderes. A história colonial está cheia de exemplos que envolvem disputas jurisdicionais, Essa concepção do poder constrói um cotidiano

174

contendas entre magistrados e conselhos municipais, câmaras e instâncias eclesiásticas, sem que isto seja considerado indesejável t'. É sintomático que apesar de vários indivíduos e instituições terem lutado vigorosamenteparaproteger seus interesses particulares ou cole-

tivos e suas esferas de autoridade, a legitimidade das instituições jamais tenha sido questionada. Dentro dos parâmetros feudais era perfeitamente lógica a convivência entre instâncias que, inclusive, faziam da conflitividade, que a superposição de jurisdições criava, um dos garantes de sua existência. Isso possibilitava que as forças políticas estivessem em permanente movimento e ajuste, sem permi-

tir que uma se sobrepusesse definitivamente

às demais. A fluidez cer-

tamente convinha a uma sociedade em processo de assentamento

e

construção, como era amedieval e a colonial. Os confrontos, quando ocorrem, são conflitos jurisdicionais, circunstanciais, mas não de fundo. Não há rigorosamente confronto de'visões de mundo'. Assim, é natural, e mesmo desejável, que a justiça seja manipulada para que o modelo seja perpetuado. Não existe a idéía de uma justiEa neutra mas, sim, de uma justiça justa, boa, sendo que os conceitos de justo

e

de bondade são forjados pelos padrões morais e religiosos.

8.3. O poder de fazer Deus Mais do que chegar a conclusões definitivas, nossa pretensão é refletir sobre a forma como a justiça foi vivida e pensad a a\ém-mar. Num exercício de "história cruzada", quisemos compreender não só como pensaram os protagonistas do conflito, mas também com que olhar os historiadores de hoje analisam a justiça de então. A lente que propusemos valoriza o peso da tradição na construção da América Portuguesa, e, para isso, foi fundamental não perder de

vista toda a experiência que os homens da metrópole acumularam ao

longo da Idade Média, enquanto se constituíam em reino cristão. A partir de uma fonte primária bastante generosa, que permitiu surpreender as cidades de Olinda e Recife em um momento conflitivo, foi possível flagrar a disputa pelo poder de fazer justiça. Uma idéia

175

i li

I

I

de justiça profundamente sacralizada

-

quer do lado eclesiástico quer

do lado secular - que nos remete àquele conselheiro anônimo da República Florentina que, no século XV sintetizava: "Deus é República, e quem governa a República governa Deus. Da mesma forma, Deus é justiça, e quem faz justiçafaz Deus" 1r. O caminho para "sefazer Deus, fazendojustiça" foi longo. Identificamos o quilômetro zero no ponto em que a Igreja, no século XII, conseguiu levar a cabo a separação entre o pecado e o delito (entre o forum Dei e oforum ecclesiae), dando ao foro penitencial uma essência jurídica. Foi este desmembramento que permitiu que a noção de pecado começasse afazer parte também da dinâmica política, pas-

sando a alimentar as argumentações dos conflitos jurisdicionais. O

ponto de chegada está por identificar com precisão, mas parece-me acertado imaginar que o encontremos entre os séiulos XVIII e XIX, quando o estado consegue o poder de"fazer Deus". Thnto no discurso quanto na prâtica, ele vai alargando o conceito de delito e cha-

mando a si o controle sobre os atos e intenções considerados perigosos para a ordem estabelecida. Enfim, cada vez mais , é'pecado' atentar contra o estado, reunindo-se outra vez essa dimensão com o delito.

Defendemos aidéia de que se trata de um período uno, que vai dos séculos XI/XII aos séculos )Õ/III/XIX, e que reconhece em Cristo a chave que permite o acesso a todas as instâncias da vida e da morte. No campo da representação política, uma Respublíca Christiana, que pode ser identificada como tal, na medida em que configura uma comunidade de direito que se pauta pelas leis de inspiraEão divina, cujo príncipe supremo é o Cristo. Ao longo de sua existência,vão se

fraguando as divergências e as confluências conceituais entre pe-

cado e delito, em uma tensão permanente em torno ao domínio do foro, em torno ao poder de "fazer Deus" . Para melhor compreensão,

inspiramo-nos na teoria de Reinhart Koselleck, mais precisamente das categorias de "horizonte de expectativa" e de "espaço de experi-

176

ëncía"

ra.

Assim, o que confere uma unidade específica a esse longo

corte cronológico é o horizonte de expectativa. Não importa a data que escolhamos ao longo desse tempo; a sociedade ocidental se en-

caminha paraDeus, através do Cristo. É esse o horizonte e ele

é

imutável. O que, sim, está sempre em mutação, adaptação, atualizaEão,

ê,

o espaço de experiência. As condições espaciais e temporais

fazemcom que a maneira de se encaminhar para Deus, e as interpretações da mensagem do Cristo se amalgamem às necessidades e às

circunstâncias. A experiência se dá num determinado tempo e espaços objetivos, mas também reverberanalinha do tempo e será'experimentada' (e transformada) depois como memória pelas gerações

futuras. A tensão entre a experiência e a expectativa é o que permite

encontrar novas soluções para a vida humana, inaugura novos padrões, gera o tempo histórico e impede que o historiador tenha uma percepção estática dessa relaEão. À medida que lemos o memorial do cônego Veríssimo Rangel, essas categorias convertem-se no instru-

mental perfeito parauma problematizagão na longa duração. Assim, foi possível pensar as lógicas jurídicas na modernidade, mas em es-

treita relação com o medievo, ou seja, dentro de uma lógica mais própria daqueles momentos, quando história ainda não significava o passado, mas um elo essencial que conectava o que passou com o futuro, uma ponte que permitia ligar memória e esperança. Certamente reconhecemos que as experiências medievais são diferentes das experiências modernas, entretanto reconhecemos em ambas épocas uma unidade coerente, baseada na lógica feudal-crtstá, capaz

de integrar as estruturas herdadas do passado por meio da atualizaçáo.

Do ponto de vista político-jurídico, encontramos em Pernambuco, no

século)O/III, bastantes evidências do que acabamos de dizer. Com relação às instituições, um sistema baseado na cessão das prerrogativas do soberano a particulares; um sistema político alicerçado no exercício do poder a partir de um sistema piramidal, que delega poderes do vértice para a base; um sistema sociocultural que,

177

fundado nas relaEões pessoais, oferece fidelidade e obediência e recebe em troca favores e proteção. Não nos parece de todo irrelevante que a palavra "vassalo" continue se fazendo presente, traduzindo um sistema que se assenta na relação contratual entre patrono e cliente, entre fidelidade e proteção. É irto que esperam tanto os súditos, quanto os fiéis, ou, melhor, os súditos-fiéis. O conceito de honra, que durante tanto tempo constituiu o ponto

fulcral da cultura cavaleiresca, foi facilmente absorvido pela cultura da Corte, e vemos como vários personagens da nossa história o relacionam com o serviço que prestam ao estado e ao bem comum. A monarquia moderna, como a feudal, encarrega-se de aumentar elou

limitar o poder da aristocracia que a sustenta, segundo as necessidades e as possibilidades. Por meio da participação direta na administração do reino ou como senhores de terras que beneficiavam de condições privilegiadas, ela ia tentando aumentar os poderes jurisdicionais. O poder, sem o reconhecimento da Coroa, sem a chancela do vocabulário jurídico do estad o, jâ não interessa, porque não seria socialmente reconhecido. Em boa medida verificamos que a luta pelo

poder se dá dentro da própria lei, buscando os enquadramentos necessários para atingir o reconhecimento social, embora recorra tam-

bém a estratégias mais destrutivas. O estado ainda não controla totalmente a violência da aristocracia, mostrando que o caminho que se iniciou na Idade Média, ainda não foi abandonado. A luta pelos ofícios e pelas jurisdições transforma o serviço ao estado no palco onde se desenrola a competição pela proeminência, e as armas convertem-se em peças jurídicas capciosas, jogos duplos, ciladas burocráticas para ganhar terreno sobre os concorrentes. Os benefícios feudais que outrora eram patrimonializados são agora subs-

tituídos pelos ofícios que vão passando de pai para filho, com as bênçãos do monarca. Por mais que as leis estabeleçam o controle do estado sobre o sistema e que se desenvolvam técnicas administrativas inovadoras, elas revelam-se inócuas diante de uma cultura que olha

178

parao rei como a fonte dos privilégios e das mercês. O próprio monarca também é presa das exigências de seus aristocratas e burocratas, pois sem eles é impossível tomar conta do império e, mais importante, sem eles a própriamonarquia perde o sentido. Em Olinda e Recife, como no resto das conquistas, o desejo por conseguir o hábito da Ordem Militar de Cristo, insere-se na dinâmica que acabamos de desenhar. O monarca monopoliza a concessão desse

símbolo cavaleiresco que exalta a dependência dos seus nobres e fortifica a sua devoção e a sua fidelidade. Entretanto, dentro do espírito

feudal, essa Íïdelidade é de çarâter contratual

e

portanto permite uma

compreensão bastante pragmâtica da relação entre o rei e o vassalo.

A

lógica da distribuição dos ofícios e cargos é orientada pela expectativa dos serviços que se hão de prestar, mas também sobre aqueles que já se

prestaram, o que ajuda a explicar a facilidade com que a maior parte

apropria dos benefícios que advêm do seu exercício. Ao longo do relato do cônego Veríssimo podemos acompanhar as diferentes formas como os agentes da justiça do rei se inseriam na se

dinâmic a da política local, bem como o papel da corrupção e do su-

borno dentro de uma mentalidade que aparece muito vinculada à lógica feudal: o poder está acima do direito positivol5. A camaradagem entre funcionários podia estender-se a todos níveis, e o dinheiro aparece como fio condutor da solidariedade entre os oficiais menos graduados e seus superiores hierárquicos. Em última instância, a competição pelo poder passa pela legitimação do rei, e ele se faz presente nos momentos mais conflitivos, 'pasteurizando' o carâter agônico e redefinindo as cotas a que cada um

tem direito dos favores reais. É i-po.tante notar que todos aqueles que se sentiram injustiçados ao longo deste conflito, puderam dirigir-se ao rei diretamente, usando aquela velha fórmula da diplomática medieval: Senhor, venho até vós parapedir justiça, graça, perdão. Invocavam o senhor da justiça, e esperavam que ele exercesse o seu dever. Parao nosso propósito, interessa sublinhar, entretanto, que a

179

intervenção real, se bem que transforma a aparência da competição, não altera a sua essência. Nas palavras de Renata Ago: "O problema é, então, o da aquisição do poder e da riqu eza, em um momento em

que

se

vão restringindo as margens para a conquista pessoal com as

armas, a guerra, a rapina, e só resta a via indireta, que passa pelo reconhecimento de outrem"

16.

Em semelhante contexto, percebemos que as inúmeras questões de precedência que pulularam nas conquistas não são meras questiúnculas, mas elementos visíveis da posição que cada um ia ocupando

dentro da competição. Que ao ouvidor Francisco de Araújo the negassem a cadeira de espaldar na missa era um fato gravíssimo que diminuía o seu poder pessoal e o poder da Coroa. As relações entre o poder central e os poderes locais são uma das facetas desse jogo, no qual se prevêem as trocas e os compromissos, mas também a patrim onialização do poder, o que nem sempre era

visto como usurpação da jurisdição da Coroa. Por outro lado, parece patente que a maneira de fazer política em Pernambuco não pode ser

traduzida como simples resistência ao poder central. É irnpottante reconhecer os jogos particulares que se insinuaram por trás dos conflitos jurisdicionais que conduziram a narrativa do cônego. Por exemplo, lembramos de fosé Correia de Sá, que parece manipular o juiz de fora, o que leva a pensar que provavelmente os problemas já vinham de trás e que o juiz, bem como os magistrados que vieram depois, acabaram cooptados por uma das facções locais que já existiam antes da sua chegada. Ou seja, estes funcionários reais não inauguraram o conflito, mas deram-lhe nova dimensão,

e

maior üsibilidade,

o que permitiu que o centro e os poderes locais interagissem dentro da mesma lógica política, reforçando a ordem estamental.

No que respeita às lógicas jurídicas, pudemos observar que paralelamenteàvolunúas do estado, sobrevivem práticas culturais e simbólicas que a antropologia identifica como características das sociedades tradicionais. As solidariedades que se vão formando dão

180

um carâter "trans-individual"; é, di{tcil definir as fronteiras entre o direito, a moral e o costume, revelando estes últimos aos conflitos

uma capacidade coercitiva tão ou mais eficiente do que a norma positiva 17; o discurso jurídico é permeado de padrões éticos de conduta; a coação náo é monopolizadapelas instituições, sendo substituída ora por uma "violência doce", que encontraeco nos registros axiológicos da comunidade

- e cujo objetivo

conciliação das partes e a volta ao equilíbrio - ora pelo confronto das partes que recorrem a estratégias e lógicas próprias da luta de bandos; a atuaçã,o de indivíduos no âmbito da justiça que não possuem formação jurídica 18. éa

O cotidiano, que os confrontos de Pernambuco revelaram, desenha-se com um perfil de sociedade bastante próxima àquelas que se assentaram durante o processo da Reconquista ibérica. Homens e mulheres profundamente vinculados por instituições tradicionais, que partem da própria noção de "conquista", povoam aterrapelo parentesco e concebem o poder com base na fusão do velho bqn do guerreiro com o controle dos cargos da administração real e da governança da terra.

o perfil

do nobre, do homem bom das conquistas, era bastante mais elástico do que o exigido para definir a velha fidalguia do

reino. Por outro lado, as conquistas revelavam-se grandes oportunidades paramostrar serviço e "limpar o sangue", caso fosse preciso. Não podemos esquecer que esse foi também o perfil inicial de muitas casas nobres metropolitanas que começaram seu processo de ascensão a partir dos conselhos de fronteira ao longo da Idade Média. A concepção da sociedade e do poder baseia-se na idéia de um corpo

hierarquizado

ordenado segundo os desígnios divinos, muito embora à tripartição corporativa medieval se tenham associado outros e

elementos, tornando a imagem mais complexa.

o rei é a cabeça desse corpo e sua figura

será sempre preservada

no imaginário de além- mar, principalmente como último sustentáculo da justiça. Ele é o árbitro dos conflitos e só intervém quando as circunstâncias ameaçam alterar os fundamentos que garantiam a exis-

181

tência da Respublica Christíana. Mesmo quando nos parece que os deveres políticos são facilmente suplantados pela moral ou pelos laços clientelares, pensamos que se trata de um fenômeno que deve ser entendido de forma mais fusional. Quando nos parece que a polí-

tica cedeu frente à moral, na realidade estamos diante de um componente fundamental da própria política. Afinal, não se pode conceber a condenação sem a possibilidade da graça, ou o exercício do poder

sem a materialidade da mercê.

No que respeita ao peso da administração real na conÍiguração do poder local, comprovamos como essa estrutura terminou por potencializar as dinâmicas clientelares e as lealdades pessoais. Entretanto,

insistimos em que essas redes clientelares não podem ser julgadas a partir da lógica estatal-burocrática racional, o que as reduziriaa um sistema corrupto. As instituições administrativas eram o arcabouço que contribuía para dar consistência às redes de carâter pessoal que

uniam os diversos níveis de poder e sobre os quais se apoiava o governo da monarquia. No universo das disputas, sob uma lógica eminentemente feudal, a jurisdição constituía não só um meio formal de poder político, mas era tamb ém, ao nível local, um dos principais pontos de apoio insti-

tucional das redes clientelares da aristocracia. As lutas das facções locais pelo controle do poder levavam os habitantes a procurar, conforme a situação, a proteção de um dos bandos ou da Coroa. O recurso a um tribunal real podia servir de meio de pressão de uma facção contra a outra, a fim de obrigar a uma repartição diferente de favores, equilibrando as relações de dom e contradom locais. É sobre essa mentalidade que finalmente compreendemos a cor-

rupção e o suborno. Pagar paraconseguir certidões falsas ou sentenças favoráveis, desviar dinheiro do Estado, ou receber dinheiro de particulares para guiá-los pelos meandros da administração, eram

práticas comuns exercidas por aqueles que estavam investidos pela autoridade do próprio monarca. Visto desta perspectiva, temos que

182

pensar que os abusos faziam parte do próprio sistema, e à vista da reação reticente do poder central frente a tais práticas, tendemos a

concordar, em parte, com fean-Claude Waquet: muito mais do que uma disfunção, estaríamos diante de uma função 1e. De qualquer forma, não podemos desconhecer que muitas vezes o Estado reagiu ener-

gicamente para punir aqueles que eram acusados de suborno ou corrupção, mas dentro da lógica da tadição, tudo dependia da circunstância e dos indivíduos envolvidos. Portanto, segundo o caso, a corrupção e o suborno poderiam ser vistos ora como função, ora como disfunção. Claro que, aos olhos do historiador, com acesso a

uma análise muito mais ampla dos acontecimentos, é possível ver como a intromissão do dinheiro na justiça de Pernambuco, a corrupção e o suborno, funcionaram como canais importantes que permiti-

ram que os poderes locais pudessem relativizar e tornar mais suportável o poder da metrópole. Mas também seria bastante limitador se entendessemos o fenômeno apenas em benefício dos poderes locais. Quando o provedor Rego Barros e o almoxarife Bandeira davam festas suntuosas com o

dinheiro desviado dos cofres públicos, o status que eles alcançavam com o impacto dos festejos não deixava de reverter, em última instância, em favor da Coroa, uma yez que eles também eram vistos pela sociedade como funcionários de Sua Majestade. O panor amaé ambíguo e complexo. Lembrando a atuação do juiz de fora, poderíamos, por exemplo, apresentâ-Ia por duas vertentes opostas: uma que sublinha seu caráter de funcionário da Coroa, coisa que certamente era reconhecida pelos habitantes de Pernambuco, e, outra que destacao autoritarismo e o personalismo do magistrado,

ponto de subverter as normas do soberano. Embora seja reconhecidamente um representante da justiça do rei em Pernambuco, o fato é que ele, Antônio da Mata, de simples funcionário, transforma-se a

em dono das instituições, fonte da lei,

o

que distribui as benesses do

estado, ou que persegue e pune.

183

Antes de encerrar, convém reintroduzir um elemento essencial: a questão moral. Como dissemos anteriormente, há um discurso que condena de forma enfiticatodas aquelas práticas, chegando a classi-

ficá-las como pecado. Afinal, fomos expulsos do paraíso, justamente pela corrupção que o pecado original infligiu no homem! Para o sé-

XVIII, a corrup ç-ao era afraqueza da naturezahumana, o fracasso davirtude, o triunfo das paixões... do indivíduo! Cremos que esta

culo

é a chave que nos

permite compreender como o Antigo Regime con-

seguiu teorizar sobre o suborno e a corrupção sem comprometer o sistema: estas práticas eram muito mais um problema de indivíduos pecadores, do que uma questão social ou política.

Em Pernambuco, isto é visível na carta que o governador Luiz Correia de Sá escreve ao secretário de estado da Marinha e do Ultramar sobre o comportamento reprovável do desembargador Brandão, que tinha ido a Pernambuco investigar o caso do juiz de fora. Para ele, a justiça do rei é infalível, o problema reside nos indivíduos que a aplicam2o.

Segundo fean-Claude Waquet, é a moralização da corrupção que impede a sua generalizaçáo e que se converta em drama político coletivo. Ela não é uma subversão frente ao estado. É rrrn crime-pecado de alguns indivíduos 2r.

Diante da lei, havia sempre um amplo espaço de manobra, coisa que, de resto, não era unicamente aplicável aos casos de corrupção, mas que se estendia a qualquer matéria de direito. A casuística e a probabilística são métodos que permitem adequar a realidade às circunstâncias e que se encaixaram perfeitamente à mentalidade tradi-

cional. Dessa forma é possível maquiar a realidade, e o mundo não entra em convulsão. Valendo-se de casos anteriores e até mesmo das contrastantes opiniões dos juristas, o corrupto sempre encontrará uma forma de comprovar para si mesmo e para os outros que no seu caso concreto essa classificação pecaminosa não se aplica.

184

No caso do provedor da Fazenda, por exemplo, ele poderia alegar tratar-se de um erro de contas, mas jamais de roubo. A atitude laxista da Coroa, ao demorar tanto para "tomar as contas" a estes proprietá-

rios dos ofícios, acabapor ajudar nesta dinâmica. Aliás, também devemos lembrar que a própria Coroa usa dois pesos e duas medidas à hora de julgar os abusos. No caso do Provedor, certamente pesou a

tância social

e

impor-

política que os Rego Barros tinham em Pernambuco e,

foi aplicada com rigor. Porém, o rei, nesse caso, não se mostra débil e sim clemente, o que dá uma dimensão política distinta. O que o rei perdeu em dinheiro, certamente ganhou em tranquilidade política. Afinal, não podemos esquecer que a própria Coroa

portanto,

a lei não

participa ativamente da fraude e que sua forma de atuar empurra a sociedade à necessidade de transgredir as normas positivas. A reduzida capacidade de coação do centro exige que as composições se apoiem fundamentalmente sobre o assentimento das partes, e a vida vai se institucionalizando por meio de órgãos pouco especiali-

zados e marcados pelo patrimonialismo. O seu profundo enraiza-

mento nas realidades locais acaba por assentar a sua legitimidade não só na Coroa, mas também no prestígio social de quem os controla. Como foi possível acompanhar, a flexibilidade processual é imensa, abrindo ampla margem para as consolidações da experiência e paraas negociações no decorrer dos processos, cujas decisões tendem mais ao compromisso ou à mediação, procurando que nenhuma das partes seja completamente sacrificada.

O que paranós hoje

é

um fosso entre a norma e a sua prâtica,para

a época era aúnica maneira possível de alcançar a reconciliação. Nessa

matéria há uma pergunta que se impõe: qual era a expectativa do homem moderno com relação à lei? Seria a mesma no que respeitava à justiça? A expressão emblemátrca, "aler se obedece mas não se

cumpre", longe do tom cínico e jocoso que hoje nos suscita, na realidade denota uma mentalidade que fazia distinção entre o obedecer e

185

o cumprir. Reconhece-se a lei como um enquadramento legítimo para

regular a vida da sociedade, o que não quer dizer que ela deva ser executada de forma matem âtica. Por outro lado, também não podemos esquecer que isto denota uma relação com a lei que não

ê,

totali-

zante, fruto da percepção clara de que as normas foram criadas pelos

homens e que, portanto, sempre haveráum poder mediatizador que

imiscui entre cada indivíduo e a lei. O poder coercitivo é circunstancial evarrável, segundo as capacidades do agente que o exerce e de acordo ao grau de culpabilidade que os indivíduos reconhecem na se

transgressão. Ou seja, é o reconhecimento do poder; o poder de inclusão ou de exclusão.

Quase dez anos após o início

*,

.""nitos, encontraremos

o

juiz

de fora, Antônio da Mata, e o desembargador, Manuel Brandão, ocu-

pando assentos na Casa da Suplicaçáo, em Lisboa. Apesar de conhecermos a opinião desaprovadora da Relação da Bahia com relação às suas condutas nos respectivos exercícios do cargo no Brasil, o fato é

que as carreiras não foram afetadas. Frei Luiz de Santa Terezafoi retirado da Sé de Olinda, em 77 54, e chamado ao reino, onde terminaria seus dias. Do ouvidor, Francisco de fuaújo, não temos notícias. Com relação à vida das gentes, que aqueles oficiais deixaram alémmar, não será difícil imaginar como seguiu... ... nestes paizes aonde náohâ frio, nem calma seguem os genios dos homens as impressões do clima (...) Mas assim como entre todos os climas da america he o de Pernambuco o mais brando, assim os animos dos seos habitadores são os mais fallazes. (FI. 211v.)

18ó

Notas

I Aaron GUREVICH. Medieval popular culture: Problems of belief and perception. Cambridge: Univ. Press, 1981. 2 Nossa reflexão baseia-se sobretudo na extensa obra de

António Manuel

Hespanha. Na ltália, os maiores expoentes são: Paolo GROSSL

II

domi-

nio e le cose. Percezione medievali e moderne dei diritti reali. Milão, 1992. Pietro COSTA. Iurisdíctio. Semantica del potere politico medievale. Milão: Giuffré, 1969.

i Esta abordagem

e conclusão são sobretudo visíveis em Bartolomé CLA-

VERO. Temas de historía del derecho: derecho común. Sevilha, 1979. Antidora. Antropologia católica de la economía moderna. Milão: Giuffré, 1991. a

António M. HESPANHA. 'A constituição do Império português. Revisão

de alguns enviesamentos correntes". In: FRAGOSO, foão (org). O Antigo Regime nos Trópicos; A dinâmica imperial portuguesa (séc.XVI-XVfII).

Rio de faneiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 165-188. 5

IANTI

6

Uma análise historiográfica sobre essa questão em Maria Filomena COE-

Manuscrítos do Brqsí\, Livro 34, Cap.23

LHO. "Olhar medieval sobre o Brasil colônia" . In: Revísta Múltipla, (junho/2002), pp. 1 13- 130.

12

7 Perry Anderson vê

no fenômeno da compra dos cargos por parte da aristocracia na administração renascentista, uma "caricatura monetarizada" da investidura de um feudo. Perry ANDERSON, op.cit. p.35. 8

João Capistrano de ABREU. Capítulos de Hístória Coloníal. Belo HorizontelSão Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988. Sérgio Buarque de HOLANDA.

187

Raízes do BrasiL Rio de [aneiro: ]osé Olympio, 1979. Raymundo FAO-

RO. Os Donos do Poder. vol. 01, Porto Alegre: Globo, 1984. e

Arno e Maria J.C. V/HELING. Formação do Brasíl Coloníal. Rio de

[aneiro: Nova Fronteira, 1994. r0

Embora não seja objetivo deste trabalho traçar as diferenças entre regime

feudal e regime senhorial, não podemos deixar de esclarecer que nossa abordagem tende a reuni-los, seguindo o próprio espírito medieval e mo-

derno. Não está demais recordar que, em 1789, a Assembléia Nacional Constituinte, na França revolucionâria, não aboliu os direitos senhoriais

e,

sim, os direitos feudais, muito embora a maior parte da historiografia insis-

ta em que naquele momento se ftatava mais dos primeiros do que dos segundos. O fato é que a experiência e o cotidiano absorveram a terminologia feudal e a transformaram no vocabulário que traduzia as suas relações de dependência, e nós só podemos concordar... Também não está demais lembrar que sem o vocabulário feudal não existe senhorio. 11

Sobre a dominação exercida com base na tradição ver Max WEBER."Os

Thês Tipos Puros de Dominação Legítima".

In

Metodología das Cíêncías

Sociaís, vol. 2. São Paulo/Campinas: CortezlEditora da Unicamp, 1992. 12

O sentimento de perplexidade diante dessas contendas é fruto daquela

historiografia que não consegue se libertar do paradigma do estado racional do século XIX, e acaba por classificar essas manifestações como incongruências no caminho da centralização do poder. 15

De um conselheiro anônimo da República Florentina, 31.07.1431.; cita-

do por PRODI, op.cít., p.17. ra Reinhart

KOSELLECK. Futures past. On the semantics of historical

time. Cambridge, MIT Press, 1985. 15

Ver Alain GUERRE AU , Le féodalisme: vn horizon théorique. Paris, 1980.

16

Renata AGO. La feudalità in Etò Moderna. Roma, Laterza, 1998, p.153.

17

Tal como foi visto por Hans KELSEN. L'anima del diritto. Figure

archaiche della giustizia e concezione scientifica del mondo. Roma, Carri-

oo,1989. 18

Isto está melhor explicado em António M. HESPANHA, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique", In: Ius Comune, vol.X (

188

1

e83).

re

fean-Claude WAQUET, op.cít., op.cit., pp. 75-76.

20

AHU

2t

lean-Claude V/AQUEI op.cít. p.l2O.

-

Pernambuco - 6326

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