A Laicidade em disputa: o caso francês e a legislação do véu
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A Laicidade em disputa: o caso francês e a legislação do véu Maria Fernanda Salcedo Repolês Francisco de Castilho Prates Introdução No mês de abril de 2011, uma jovem caminhava pelas ruas de Paris quando foi abordada pela polícia em razão da roupa que usava, um véu denominado niqab,1 o qual tampava quase que inteiramente o seu rosto, já que apenas os olhos estavam visíveis. Ainda que informada que aquele tipo de vestimenta havia sido proibida na França, Hind Ahmas, cidadã francesa e mulçumana, recusouse a retirálo, por entender que tal ordem contrariava o seu direito fundamental de liberdade religiosa. Por sua atitude, Ahmas foi conduzida à delegacia e, posteriormente, condenada com base nas disposições da lei nº 20101192, de 11 de outubro de 2010,2 promulgada pelo então Presidente Nicolas Sarkozy, a qual veda, nos espaços públicos, qualquer vestimenta que se destine a ocultar o rosto (“nul ne peut, dans l’espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage”), onde este espaço foi definido como aquele constituído por vias públicas, assim como por lugares abertos ao público em geral ou afetados a serviços públicos. Como sanção, foi lhe imposta uma pena pecuniária e a obrigação de passar 15 dias frequentando aulas sobre deveres cívicos, imposições estas, salientese, que Ahmas jamais reconheceu, sempre entendendo que a legislação a que estava sendo submetida era inconstitucional, afirmando que não era ela quem precisava de lições de cidadania, mas sim, o juiz que lhe havia condenado, ao qual faltaria legitimidade para lhe impor que se abstivesse de usar, publicamente, um véu que conformava sua própria identidade pessoal.3 Em outra situação, que também dizia respeito ao uso do véu islâmico, o judiciário francês confirmou a demissão de uma empregada de uma creche em razão da mesma decidir usar o referido véu, entendendo que teria se configurado um “delito grave” que legitimava a dispensa da funcionária Fátima Afif, sendo que, ao analisar a decisão, os representantes legais da empresa disseram que a mesma decisão era histórica para a garantia do secularismo.4 Registrese, a burca, que cobre todo o corpo, e o niqab, que deixa apenas os olhos a mostra. Disponível em: . Acesso em: 06/05/2014. 3 Informações concernentes sobre este caso estão disponíveis em: ; e http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/09/110926_franca_veu_bg.shtml. Acessos em: 05/07/2014. 1 2
Neste caso, ocorrido em 2008, portanto anterior à citada lei de 2010, aplicouse outra legislação restritiva, a denominada “loi française sur les signes religieux dans les écoles publiques”, em vigor desde 2004,5 que limita o uso de símbolos religiosos tidos como ostensivos em instituições de ensino públicas. Tal lei é pioneira, no contexto francês, em interditar certas condutas religiosas em nome da laicidade, visando diminuir tensões sociais que se supõe advir destas mesmas condutas “exageradas” que algumas das identidades religiosas existentes na sociedade da França costumam exibir cotidianamente. Ainda no ano de 2004, com base na mesma lei que veda símbolos religiosos ostensivos nos liceus públicos, dez adolescentes mulçumanas, que se recusaram a ir às aulas sem o véu, foram expulsas de suas escolas em várias regiões da França. Segundo o relato de uma das adolescentes, no início ela era impedida de assistir às aulas com o véu e, em protesto, raspou seus cabelos. Em sua visão, ela foi submetida a uma tentativa de lavagem cerebral e, por todo o ocorrido, ficou deprimida e passou a sentirse como se estivesse nua nas ruas.6 Como ainda veremos, os legisladores franceses buscaram legitimar este tipo de legislação com argumentos relacionados à necessidade de contenção de disputas sociais, as quais poderiam ser insufladas caso as representações díspares de mundo, de fundamento religioso, não ficassem restritas à dimensão privada, isto é, diríamos que estas normativas pretendem invisibilizar potenciais conflitos como meio de se procurar estabilizar interações sociais de base religiosa. Além disso, outra linha argumentativa, construída como uma espécie de resposta estatal às críticas oriundas, principalmente, das comunidades mulçumanas, foi a de que o véu seria uma opressão simbólica das mulheres, não admitida em um estado secular e laico como a França, isto é, a restrição seria um caminho para se ampliar a emancipação e a integração das francesas de origem mulçumana dentro do contexto social que habitam, procurando configurar, ousamos anotar, uma espécie de repressão que liberta. Realcese, porém, que casos similares podem ser encontrados em período anterior à promulgação das duas leis aqui referidas, pois como informa Tarcísio Amorim Carvalho,7 no segundo semestre de 1989, a imprensa francesa destacava a situação de” [...] três meninas muçulmanas – Samir Saidani e as irmãs Leila e Fatima Achaboun”– impedidas de assistir às aulas em um colégio na cidade de Creil, ao norte de Paris”, sendo que esta proibição foi
Dados e informações sobre o caso estão disponíveis em: . Acesso em: 12/07/2014. 5 Disponível em: . Acesso em: 06/05/2014. 6 Disponível em: . Acesso em: 15/07/2014. 7 CARVALHO, 2013, p. 106. 4
justificada pelo fato de “limitar a exteriorização excessiva de todo pertencimento religioso ou cultural”.8 Ora, estes casos, entre outros, desvelam o maior desafio do constitucionalismo moderno, entendido este como um árduo e inconcluso projeto de afirmação de liberdade, igualdade, que é o de assumir o pluralismo como constitutivo das democracias constitucionais, fazendo com que a identidade não possa ser traduzida como sinônimo de unidade e de homogeneidade e, simultaneamente, de não abdicar de se manter como um espaço de crítica e autonomia, espaço este que, como condição de possibilidade de sua própria abertura, necessita, em certos momentos, estabelecer limites ao próprio pluralismo, ou melhor dizendo, às pretensões abusivas e ilegítimas de pluralismo. Desafio este, ainda mais complexo, quando partimos da constatação de que o constitucionalismo não faz muito sentido na ausência de qualquer pluralismo. Em uma comunidade completamente homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo [...] seria supérfluo.9
Assim, reconhecendo que todo recorte epistemológico é, por si mesmo, um risco, já
que sombras sempre haverão de existir em qualquer ato do conhecer, entendemos que inúmeras indagações podem ser formuladas, entre elas: Como compreender o lugar e o sentido da laicidade no contexto nacional e constitucional francês? Diferentes orientações e identidades religiosas podem, com justificativa da defesa da laicidade, ser enviadas apenas ao privado? Pode, a defesa do Estado laico, justificar silêncios e exclusões sociais? Devemos também perguntar se não estaria ocorrendo uma instrumentalização da noção de laicidade, refletindo uma islamofobia crescente na conjuntura francesa, haja vista que, na atualidade, uma das maiores defensoras do estado laico é a líder do partido da extrema direita Frente Nacional, Marine Le Pen,10 conhecida por suas posições radicalmente contra os imigrantes, o que levou Jean Baubérot, um dos maiores estudiosos sobre laicidade na França, a ironizar, afirmando que a mesma era “la championne de la laïcité dominante”.11 RAPHAELLE apud CARVALHO, 2013, p.106. ROSENFELD, 2003, p. 21. 10 Ainda que enfatizando que não era racista ou xenófoba, Marine Le Pen disse, em um discurso de 2012, que apenas discordava daqueles “imigrantes que não querem reconhecer a autoridade da lei e da cultura francesas”, também dizendo que, em sua análise, haveria um vínculo entre imigração e aumento da violência nas ruas da França. Disponível em: . Acesso em: 12/07/2014. Em outro momento, a referida Marine Le Pen comparou os religiosos mulçumanos existentes nas ruas francesas (“prières de rue”) a uma verdadeira ocupação do território da França, como a ocorrida durante a Segunda Grande Guerra, só que sem tanques ou soldados. Disponível em: . Acesso em: 01/07/2104. 8 9
Em linha confluente, ainda que menos radical, também o exPresidente Sarkozy exteriorizou posição recorrente nos atuais debates sobre a laicidade na França, que é aquela defensora de uma identidade de raízes cristãs (racines chrétiennes”), identidade esta que exigiria uma certa adaptação ou acomodação da fé islâmica no interior daquela sociedade.12 Diante destas estratégias de tradução da laicidade, perguntamos: não estaria havendo uma subordinação ou um predomínio da noção de identidade nacional enquanto unidade, em relação à identidade constitucional13 e à sua dimensão pluralista? Nesse sentido, apropriando nos de um pensamento de Newton Bignotto sobre as tensões entre tolerância e diferença, indagamos se não haveria um processo de “nomear o outro e mesmo perseguilo”, onde esta ação de constituir a diferença estaria, ainda que de modo subliminar, pretendendo “criar a identidade do corpo político pela sua negatividade”?14 São questões como estas que nos guiarão na abordagem do tema, o qual, por óbvio, não temos a pretensão de esgotar. Buscamos, assim, problematizar as contradições existentes, tendo como referência um Estado Democrático de Direito que se reconhece como projeto histórico em constante reinvenção e, por isso mesmo, plural, caracterizado por uma série de tensões entre o público e o privado, a liberdade e a igualdade e, principalmente, para nossas análises, entre a identidade e a diferença, sendo que esta última, ao contrário de ser um problema, é potencialmente produtiva, pois “[...] é precisamente a existência dessa permanente tensão entre a lógica da identidade e a lógica da diferença que faz da democracia um regime particularmente adaptado ao caráter indeterminado e incerto da política moderna.”15 1 Contextualizando a questão: apontamentos sobre a laicidade na França Digase que, desde o início de todas as controvérsias, o governo francês afirmou e ressaltou que o objetivo das já citadas legislações sobre o véu não era impedir que a comunidade mulçumana francesa exercesse sua fé, mas sim, reduzir as tensões sociais existentes em razão da utilização pública de símbolos religiosos por demais ostensivos, ou
Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. Disponível em: e . Acessos em: 09/07/2014 e 16/07/2014, respectivamente. 13 A concepção de identidade constitucional, aqui empregada, advém do ensaio de Michel Rosenfeld (2003), onde a “identidade constitucional”, constitutivamente incompleta, dominada por uma insuperável abertura normativa, revela ser “[...] tão evasiva e problemática quanto são difíceis de se estabelecer fundamentos incontroversos para os regimes constitucionais contemporâneos.” (ROSENFELD, 2003, p.17) 14 BIGNOTTO, 2004, p. 68. 15 MOUFFE, 1994, pp. 106107. 11 12
seja, como o então Presidente Sarkozy salientou, o intuito da lei era “tornar a França um país mais tolerante e com uma sociedade mais inclusiva”.16 Com efeito, este contexto argumentativo, no qual a bandeira da laicidade foi hasteada com toda força pelos defensores deste tipo de normatividade restritiva, surge na esteira das proposições e das conclusões oriundas da chamada Commission de réflexion sur l’application du principe de laïcité dans la République, também conhecida como Comissão Stasi, em razão do parlamentar que a presidia, Bernard Stasi comissão instalada em 2003 e composta de representantes de diversos setores da sociedade civil francesa, que visava realizar um diagnóstico da laicidade como princípio universal e valor republicano no contexto francês concluindo com a concretização de uma série de proposições voltadas para “afirmar uma laicidade que gerasse união” (affirmer une laïcité ferme qui rassemble).17 Daí que, para a referida Commission, a laicidade foi lida como um dos pilares da unidade nacional e da garantia da liberdade individual, traduzida como concepção de bem comum, subtraindo o poder político das influências religiosas, implicando neutralidade do Estado, o qual, fundado no princípio da igualdade, não deve privilegiar qualquer orientação espiritual, nem promover ou patrocinar representações ateístas ou agnósticas de mundo.18 Todavia, dizer que o Estado deve ser neutro não era, para a Comissão Stasi, sinônimo de que o mesmo tinha que ser indiferente diante de problemas de ordem pública que podem surgir de práticas ofensivas exercidas pelos cidadãos sob o pretexto de serem oriundas de gramáticas religiosas, nem significava que laico fosse exclusivamente a afirmação da separação entre Estado e Religião, ou seja, no contexto histórico francês, a laicidade ia além de ser um “gardefrontière” entre a política e o espiritualreligioso, pois ao Estado caberia possibilitar a consolidação de valores comuns que fundamentam os vínculos sociais.19 Reconhecendo a moderna diversidade de visões religiosas e não religiosas de mundo presentes no contexto francês, assumindo que a história da laicidade jamais foi tranquila, a Comissão Stasi entendeu que as relações conflituosas, ao contrário de serem tidas como negativas, revelaramse produtivas, pois tornaram possível a contínua renovação do sentido “Mr. Sarkozy said the ban on head coverings was not aimed at persecuting Muslims, but merely to make France a more tolerant, inclusive society.” Disponível em:. Acesso em: 05/07/2014. 17 Informações sobre a Comissão Stasi disponíveis em: e . Acesso em: 08/07/2014. 18 Disponível em: . Acesso em: 08/07/2014, pp. 0609. 19 Disponível em: . Acesso em: 08/07/2014, pp.1315. 16
do laico, tido este como um valor republicano compartilhado por todos, não tendo sido visto como uma “construção dogmática” (n’a jamais été une construction dogmatique), mostrando se sensível às contingências históricas, sendo que esta capacidade adaptativa revelou ser crucial em vários momentos por ter possibilitado o equilíbrio social, como que encarnando as esperanças da sociedade francesa.20 Nesta linha, ressaltouse a laicidade como um constructo histórico oriundo das lutas republicanas iniciadas nas jornadas revolucionárias, presente na Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789, na normatização civil do clero e em tantos outros momentos no decorrer do conflitante processo histórico de afirmação de um projeto de república desvinculado do “divino”, alcançando seu ápice com a lei de dezembro de 1905, a qual separa, formalmente, Estado e Igreja, diferenciação esta assumida, enfática e explicitamente, na vigente Constituição da França, onde se pode ler que a República é laica. À luz dessas considerações, a laicidade acabou por ser interpretada como um reflexo da identidade nacional, garantidora da unidade francesa, pois dimensão civil do exercício do poder imunizada das influências religiosas dominantes, tendo como objetivo central potencializar uma “vida coletiva e a construção de um destino em comum” (vivre ensemble, construire um destin commun).21 Surge, então, uma “religiosidade civil”, onde se pode perceber que o interesse público e os imperativos republicanos de ordem estão sempre pairando, ainda que nas entrelinhas, sobre a configuração do social, desvelando, como mostra Tarcísio Amorim Carvalho,22 que o sentido da laicidade encontrase em disputa na tensa confluência entre o âmbito normativo do que se denomina de público e de privado, tensão esta que, no contexto francês, seria mais perceptível em virtude de uma série de singularidades de sua história, na qual o desejo de fazer prevalecer a identidade nacional, ainda que divergindo de compromissos constitucionais, apresentase como narrativa fundante. Em termos outros, procurando iluminar a passagem acima, podemos, com Michel Rosenfeld, apontar que nos “Estados Unidos, a Constituição se consubstancia na pedra de toque da identidade nacional”, haja vista que [...] enquanto uma nação constituída por sucessivas ondas de imigração, os Estados Unidos compreendem uma ampla diversidade de tradições nacionais e étnicas, nenhuma das quais é representativa da comunidade política como um todo. Assim, conquanto seja fácil se visualizar a
Disponível em: . Acesso em: 08/07/2014, p.12. 21 Disponível em: . Acesso em: 08/07/2014, p.17. 22 CARVALHO, 2013, pp. 99124. 20
identidade nacional francesa ou germânica sem referência às suas respectivas Constituições, o mesmo não se aplica aos Estados Unidos. (Destaques Nossos)23
Vislumbrase, assim, que o conceito de laicidade (ou secularização na concepção anglosaxã) não revela ser algo pacificado, por mais que os especialistas busquem delimitar os debates, mas sim, marcado por uma enorme ambiguidade e uma interminável complexidade, ainda mais quando analisado em contextos dominados por visões plurais de mundo, resultado de um moderno e complexo processo de racionalização das estruturas sociais, processo este que conduziu a uma distinção funcional determinante, principalmente no ocidente, entre a dimensão dita civil e a religiosa, fazendo com que, em nome de liberdades e igualdades ampliadas, nem o aparato estatal pudesse determinar a orientação religiosa de seus cidadãos, nem o poder religioso interferir na moldura das ações e políticas de estado. Como mostra o então professor do Cornell College, Larry Shiner, existem inúmeras abordagens sobre o tema, conformando variados tipos de secularização e laicidade,24 as quais, historicamente, enfatizam a dessacralização, a diferenciação funcional e a transposição de poder e posses da Igreja para o Estado,25 sendo que, durante o período revolucionário francês de 1789, esta transferência de força normativa do sacro para o mundo dilatouse para todas as esferas da vida mundana.26 Nesta linha, o citado Larry Shiner, ao analisar uma das abordagens a respeito deste polissêmico conceito, anota que o mesmo, para alguns pensadores, seria como que o “[…] historical process which tends to contest the public role of religion, […], and finally to relegate religion to the private sector of human existence”, isto é, quando a [S]ociety separates itself from the religious understanding which has previously informed it in order to constitute itself an autonomous reality and consequently to limit religion to the sphere of ROSENFELD, 2003, pp. 9596. Tomamos aqui os conceitos de laicidade e secularização como sinônimos, ainda que sabedores que há toda uma discussão a este respeito, já que tal debate iria muito além do espaço e do tempo que dispomos. Pontualmente, podemos colocar que, para certos pensadores, a noção de laicidade seria caracterizada pelo processo de separação entre o religioso e o político, onde o primeiro, desprovido do poder público, destacase e separase do último, buscandose fundar e organizar o mundo sem apelar ou fazer referência a recursos e/ou justificativas sobrenaturais ou transcendentes, afirmandose o Estado como neutro diante das religiões, enquanto o termo secularização diria respeito ao fenômeno da perda de força vinculante por parte das instituições religiosas, as quais passaram a não mais conseguir configurar, integralmente, a vida cotidiana à sua maneira, ao menos no ocidente. Em apertado resumo, poderíamos colocar que “a secularização privilegia, então, as mutações socioculturais suscitadas pela dinâmica social, pela evolução dos saberes e das técnicas, pelo desenvolvimento da racionalidade instrumental. [...] O processo de laicização, por sua vez, concerne à regulação política, jurídica e institucional da religião, do credo, da totalidade do simbólico, com suas transações e seus conflitos explícitos” (BAUBÉROT, 2011ª, p. 287). Destaquese que Baubérot é um dos pensadores que marca diferenças conceituais entre laicidade e secularização. Sobre o tema, ver: (BAUBÉROT, 2011a), (RANQUETAT JÚNIOR, 2008) e o já lembrado (SHINER, 1967). 25 SHINER, 1967, p. 219. 26 SHINER, 1967, p. 208. 23 24
private life. The culmination of this kind of secularization would be a religion of a purely inward character, influencing neither institutions nor corporate action, and a society in which religion made no appearance outside the sphere of the religious group.”27
Especificamente sobre o contexto francês deste processo de diferenciação funcional das esferas normativas, temos os escritos de Jean Baubérot, tido como um dos maiores estudiosos da questão da laicidade na França, tendo sido, inclusive, membro da acima vista Comissão Stasi, na qual foi, em alguns pontos das conclusões expostas, voz divergente. Dialogando com o filósofo do século XIX, Ferdinand Buisson, pioneiro no estudo da laicidade na história francesa, Baubérot destaca que, para o mesmo Ferdinand, “a finalidade do Estado laico consiste em permitir ‘a liberdade de todos os cultos’, e ‘a igualdade de todos [os cidadãos] diante da lei’, o exercício de direitos a partir de então assegurados independentemente de toda convicção religiosa”.28 Com base em tais argumentos, Baubérot escreve que os componentes da laicidade são, então, para nos utilizarmos de um vocabulário moderno, a liberdade de consciência e prática coletiva desta mesma liberdade (liberdade de culto); a não dominação da religião sobre o Estado e a sociedade, a separação da religião e do político; o princípio da igualdade e da não discriminação por razões religiosas.29
Estes elementos, ainda que com outros nomes (secularização, nos EUA), estão presentes em vários países, sendo que, na visão do mesmo Jean Baubérot, não há que se falar em laicidade absoluta, pois a mesma é relativa, já que dependente dos diferentes contextos históricos e sociais. Por exemplo, na França, os fundamentos concretos da laicidade estariam assentados na separação entre Igreja e Estado e no espaço de uma escola pública laica, onde estes mesmos fundamentos encontramse regulados legalmente.30 Assim, a hipótese levantada por Baubérot é que muitos dos aspectos relacionados tradicionalmente com a laicidade do Estado apresentamse com outra definição quando abordamos os mesmos a partir da ideia de nação, de identidade nacional. Em outras palavras, Baubérot realça uma posição que não deve ser desconsiderada quando da análise das legislações atuais que restringem comportamentos religiosos em público, isto é, que no caso francês, especificamente, a laicidade está imbrincada com a própria construção histórica da identidade francesa. Daí o mesmo Baubérot sugerir que, no presente, todas as questões que gravitam em torno da laicidade encontramse vinculadas “a uma crise, a uma mutação da 29 30 27 28
SHINER, 1967, p. 212. BAUBÉROT, 2009, p. 27. BAUBÉROT, 2009, p. 28. BAUBÉROT, 2009, p. 28.
identidade francesa” (la laïcité prend, dans ce pays, des caractéristiques qui me semblent liées à une crise, une mutation de l’identité française).31 Podemos, aqui, marcar uma distinção entre o processo da secularização norte americana, onde o pluralismo já estava presente na sua origem, haja vista a existência de uma série de denominações protestantes, onde a referência a Deus, na Declaração de Independência de 1776, não foi traduzida como se fosse propriedade exclusiva de um grupo religioso específico,32 daquele da França, na qual a esfera do transcendente tinha um endereço certo, a Igreja Católica, sempre dominante. Assim, no contexto francês, Deus reentrou por meio de ritos de sacralização profana das instituições republicanas pósRevolução Francesa, na figura, por exemplo, do Ser Supremo (l’Etre Suprême), refletindo um receio do retorno da influência católica, a qual se mostrou próxima da aristocracia nos assuntos mundanos.
Ilustrativamente, com Jacob Rogozinski, podemos recuperar esta dimensão do simbólico, quando o mesmo professor relata a destruição, no ano de 1793, por determinação da chamada Convenção de Saúde Pública, em pleno período do Terror, dos túmulos em Saint Denis, onde a realeza francesa era enterrada. Este ato pretendeu ser uma espécie de purgação e de desincorporação do poder, como se o absoluto saísse desta esfera. Todavia, este absoluto, agora em nova roupagem, reentrou com força conformadora, quando, por exemplo, um revolucionário republicano cortou uma parte da barba de Henrique IV para têla como uma relíquia protetiva. Lembremos também que a mesma Convenção havia determinado que as lápides reais fossem levadas ao local onde estava sendo erguido uma espécie de Panteão em memória do célebre revolucionário Marat.33 Observemos que, neste trajeto, o símbolo da realeza, o “corpo do rei”, é representado como “abjeto, “heterogêneo, mau objeto perigoso ou mau resto imundo que ameaça a homogeneidade do corpo da Nação e que convém eliminar”,34 ou seja, o outro indesejável, estrangeiro, onde, ainda que através de uma “desincorporação parcial [...], o próprio gesto de expulsar o dejeto, o grande corpo reconstitui sua unidade ameaçada”,35 desvelando a necessidade de uma essência que unificasse, que criasse identidade. BAUBÉROT, 2009, p. 28. Ousamos, neste ponto, lembrar que este acesso não privilegiado a Deus já era verificável nas tensões religiosas da Inglaterra do século XVI, surgindo como uma herança anglosaxã de longo trajeto histórico, pois, como anota Christopher Hill, ao refletir sobre a tolerância religiosa naquele período, já podíamos encontrar indivíduos como William Dell, “capelão do Exército de Novo Tipo”, o qual “argumentou, em 1645 e em 1646, que “a unidade é cristã, porém a uniformidade anticristã’’; que magistrado algum poderia proibir a prédica do Evangelho por leigos inspirados; e que “a beleza do mundo vem da diversidade de suas formas” (HILL, 1987, p. 111). 33 ROGOZINSKI, 1996, pp. 409410. 34 ROGOZINSKI, 1996, p. 418. 35 ROGOZINSKI, 1996, p. 418. 31 32
Com o mesmo Rogozinski descobrimos que, durante o julgamento de Luís XVI, com frequência, buscouse marcar o mesmo monarca como um “corpo estranho à República”, o “estrangeiro entre nós”, “mais perigoso, pois caminha ao nosso lado”, como advertiam as alas jacobinas do processo revolucionário, onde a diferença surge como mecanismo de exclusão, de recusa, onde a dessacralização da realeza unifica, retraduzindose a identidade nacional através do expurgo de seus elementos tidos como elementos nocivos.36 37 É como se o eu francês surgisse ao negar o outro indesejável, que ameaça sua unidade, sendo o “estrangeiro” representado como um contínuo risco à nação, a qual, desvinculada de “[...] sua união com a pessoa do rei, pode buscar um outro suporte de encarnação”,38 suporte este que se caracterizaria pela inegável presença da aversão ao “estranho”, ao “estrangeiro”, onde só esta nação, republicanamente sacra, expressão de um verdadeiro “Corpus Mysticum Reipublicae”39 seria detentora, a partir desta legitimação imanente, do poder soberano “[...] de designar o Inimigo, de nomear o elemento estranho e hostil”.40 De acordo com tais considerações, vemos que a força simbólica desta recusa ao estrangeiro, no contexto francês, não deve ser desconsiderada quando da análise do sentido do laico, ainda mais em tempos de crise econômica e de eventos de poderosa singularidade, como, por exemplo, os ataques às torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001, pois o desejo de estabilidade, de unidade e de identidade nacional pode vir a ser fortalecido através da explicitação de certas diferenças publicamente expostas, diferenças estas que confrontam o estabelecido, concorrendo com visões de mundo tradicionalmente predominantes, profundamente enraizadas no solo das nações, revelando que o ato de “ver”, de distinguir negativamente o outro, aquele que destoa, marcado como anacrônico, bárbaro ou atrasado, pode acabar sendo um efetivo mecanismo de criar corpo, ainda mais quando tal instrumento ocultase, por exemplo, na defesa de liberdades fundamentais. Todas essas assertivas nos impelem a recuperar certas falas de figuras proeminentes da política francesa, como o já visto Nicolas Sarkozy, haja vista que o mesmo, em inúmeros momentos, ao expor suas concepções sobre a história da França, insistiu em uma laicidade positiva (“laïcité positive”), aquela que valorizaria, preferencialmente, as citadas “raízes cristãs” francesas, ou seja, raízes da França enquanto constructo europeu, que moldam a sua ROGOZINSKI, 1996, pp. 420425. “Quando SaintJust ataca o Inimigo do Povo, de Luís Capeto aos girondinos [...], ele o descreve sempre como uma ameaça de origem exterior (é a “conjuração do estrangeiro”) que ressurge no interior, nas “entranhas da República”, para corrompêla – pois “o estrangeiro corrompe tudo” (ROGOZINSKI, 1996, p. 424). 38 ROGOZINSKI, 1996, p. 415. 39 ROGOZINSKI, 1996, p. 414. 40 ROGOZINSKI, 1996, p. 416. 36 37
“identidade”, o que legitimaria, por exemplo, um tratamento diferenciado à Igreja Católica, pois a mesma representaria um dos pilares fundacionais da unidade da nação.41 Esse tipo de colocação tem se revelado, em diversos níveis, recorrente nos debates políticos franceses, procurando legitimar um componente “sacralizado” na laicidade republicana francesa, o qual, na visão de seus apologistas, poderia construir bases identitárias mais sólidas, propiciando uma superação da fragilização dos laços sociais, fragilização esta que seria oriunda de um crescente pluralismo de visões de mundo, isto é, estaria ocorrendo uma instrumentalização, por parte de setores políticos, daquilo que alguns analistas do quadro social francês denominam de uma persistente e crescente “inseguridade cultural” (“cultural insecurity”).42 Para Jean Baubérot, crítico de tais posições, ao apelarse para supostas raízes cristãs da França, estarseia, em realidade, seguindo a lógica de uma “religion civile”, tentandose reintroduzir uma singular dimensão religiosa na identidade nacional, como se fosse necessário um aporte transcendental para se edificar vínculos sociais (lien social) mais seguros e menos conflitantes,43 ou seja, os debates contemporâneos sobre laicidade na França estariam polarizandose entre identidade, enquanto “raízes”, e diversidade, vista a partir da desconfiança e do medo do outro, do diverso e, principalmente, do estrangeiro imigrante que está entre “nós”.44 Decorreria desta posição uma espécie de “laicidade identitária”, para nos valermos, mais uma vez, de Baubérot, o qual entende que há, em falas como as de Sarkozy, uma mensagem implícita para a sociedade francesa, qual seja: que a França viveria melhor sem a força do Islã, onde a laicidade significaria “mais que o respeito das leis e a tolerância civil, isto é, uma assimilação a uma identidade patrimonial não conflituosa.”45 O mesmo Jean Baubérot ainda anota que a “reconstitution historique”, levada a efeito por Sarkozy, para fundamentar sua posição 43 44
Neste sentido, conferir: (BETZ, 2013, p. 10) e (BAUBÉROT, 2009, 2011b). LEBOURG apud BETZ, 2013, p. 12. BAUBÉROT, 2009, p. 46. Realcese que, para Jean Baubérot, refletindo a partir de uma sociedade pluralisticamente conformada, onde temas sobre ateísmo, orientação sexual e eutanásia, entre outros, podem ser publicamente debatidos, “a laicidade é a liberdade religiosa, não a repressão das religiões. A neutralidade e a separação são os meios. O objetivo visado é a liberdade de consciência. A finalidade da laicidade é a não discriminação por motivos religiosos, mas isto também vale, tanto para os homossexuais, que querem casar, quanto para os cidadãos, que expressam a vontade de morrer com dignidade. É um combate pela liberdade de consciência dos livres pensadores que querem morrer sem receber os santos sacramentos. A não discriminação deve atingir a todos.” Disponível em: . Acesso em: 17/07/2014. 45 Disponível em: . Acesso em: 02/07/2014. 41 42
é imaginária e idílica: ela faz como se jamais tivesse existido perseguição ou conflito político religioso com relação à cristandade. Dito de outro modo, é como se tudo pudesse correr bem contanto que o islã não esteja lá, como se houvesse uma demanda para que os mulçumanos se integrassem a um certo patrimônio imaginário, pois, do contrário, eles representariam um permanente déficit de laicidade [...].46
Somos inclinados, ainda dialogando com Baubérot, a visualizar uma estratégia de se empregar a laicidade para fins políticos, o que leva o referido pensador francês a chegar a escrever que estaria havendo, atualmente, uma “falsificação da laicidade” (“laïcité falsifiée”), a qual, entre outras características, acaba por ser “reduzida a mero controle da religião”(“laïcité réduite au controle de la religion”), controle este que procuraria operar também no fomento de medidas restritivas quanto à imigração, principalmente, de cidadãos que professam a fé mulçumana, conformando uma verdadeira “exploração racista do debate sobre a laicidade” (“une exploitation raciste du débat sur la Laïcité”).47 Com efeito, nos últimos tempos, gravitam em torno da questão sobre laicidade uma série de argumentos de cunho antiimigração, sendo que, em alguns momentos, como demonstra o professor HansGeorg Betz, a linha de defesa do Estado laico procura construir uma imagem da fé islâmica como o maior risco para a laicidade e a liberdade individual, chegando, por exemplo, alguns políticos franceses a caracterizar o Islã como uma religião distinta das demais, já que a mesma ainda não distinguiria, funcionalmente, Estado e Fé, isto é, o Islã representaria uma “[...] totalitarian ideology”, which demanded complete submission and which, unlike Christianity, refused to acknowledge the “fundamental distinction” between spiritual and worldly order.48 Estas posições instrumentalizadas da laicidade, simbolicamente estruturadas, de forte apelo a uma suposta identidade nacional francesa, visando recuperar uma unidade substancial perdida ou posta em perigo pela presença de uma alteridade que desestabiliza representações da França tidas, até pouco tempo, como inquestionáveis, são ainda mais visíveis quando, a já lembrada Marine Le Pen, também realçando as raízes cristãs da França, afirma que o “Islam was a relative new comer in France, where as Christianity had informed French history for centuries. It was therefore up to Islam to adapt to France and not the other way around”.49 Também citado por Betz, temos Arnaud Guillon, membro do extremista Bloc Identitaire, o qual explicita ainda mais esta vertente identitária do laico no contexto francês, 48 49 46 47
Disponível em: . Acesso em: 02/07/2014. BAUBÉROT, 2012. BETZ, 2013, p. 10. BETZ, 2013, p. 10.
ao colocar que a “laïcité understood as an identitarian principle allows us to preserve our liberties and to fight against not only fundamentalist Islam (l’islamisme) but also Islamization.”50 Para os defensores de tais posturas interpretativas, ainda que com especificidades e pontos de divergência, a laicidade emergiria como um instrumento de retomada de algo que entendemos poder denominar de eu francês, implicando em restrição e regulação de identidades vistas como não francesas, já que não compartilhariam as mesmas raízes, onde o Islã, ao ser nomeado, surge como o outro preferencial, aquele que, como já dito acima, ao ser negado, potencializaria uma reconstrução da França e sua identidadeunidade consigo mesma. Em suma, a laicidade receberia contornos fundamentalistas, não aberta ao diverso, em leitura dissonante da separação entre o Estado e a Religião, como disposta na paradigmática legislação de 1905,51 pois expulsa, da arena pública, orientações religiosas marcadas como indesejáveis, remetendo as mesmas à dimensão privada da vida social, da qual, só excepcionalmente, poderiam sair, onde o interesse público, traduzido a partir do desejo de unidade da Nação, lhes impingiria o que ousamos chamar de uma invisibilidade redentora. Contudo, esta certa laicidade, fechada e identitária, não é aceita de modo passivo na sociedade francesa, onde pensadores como, por exemplo, Paul Ricoeur e Monique Canto Sperber, criticam as legislações que restringem o véu islâmico nas escolas públicas, ressaltando a contrariedade à dimensão da igualdade e o profundo impacto denegatório no sentido da liberdade das cidadãs atingidas por tais normas. Além disso, assumindo o pluralismo, os mesmos estudiosos, após destacarem que, dentro de limites necessários, “cada um é livre para expressar sua religião, não apenas em espaço privado, mas também no comum”, advertiram, ao refletir sobre a potencial expulsão das mulçumanas das escolas públicas em razão do véu, que: Aumentar a exclusão é priválas do único acesso que elas poderiam ter a essa experiência de liberdade. É contraditório desejar que as meninas encontrem sozinhas verdadeiros recursos de autonomia ao mesmo tempo em que se impõe, contra a sua vontade, a renúncia à sua escolha religiosa.52
Esta oposição diante de uma laicidade opressiva pode ser também vista no manifesto, trabalhado pelo já lembrado Tarcísio Amorim Carvalho,53 denominado “Pour une laïcité BETZ, 2013, p. 12. Loi du 9 décembre 1905 concernant la séparation des Eglises et de l’Etat. Disponível em: . Acesso em: 10/07/2014. 52 CANTOSPERBER; RICOUER, 2003, p. A14. 53 CARVALHO, 2013, pp. 106107. 50 51
ouverte (Por uma laicidade aberta)”, no qual se verifica, ainda que o mesmo seja do ano de 1989, uma postura que já se chocava com pretensões identitárias e contrárias aos imigrantes islâmicos, que se justificavam em nome do Estado laico, haja vista que no texto do referido manifesto, há uma clara defesa de uma igualdade e uma liberdade na diferença. O que exigimos deles? Que eles rompam abruptamente com suas famílias, suas origens. Ao passo que queremos transplantar uma árvore cortando suas raízes. Na realidade, duas concepções de laicidade se confrontam. A de uma escola que teme acima de tudo as diferenças: a laicidade da blusa cinza, que não suportaria nem véus, quipás ou crucifixos. E outra, mais aberta, de uma escola laica e obrigatória acima dos particularismos, mas no respeito dos mesmos. Uma laicidade triunfante que proporcionaria a cada um as condições objetivas de uma escolha individual no seu próprio ritmo.54
Também Jean Baubérot, em vários de seus escritos, posicionase contra tal emprego estratégico da laicidade, vendo no mesmo uma leitura simplista e discriminatória, uma verdadeira falsificação, advertindo que não só a extrema direita, mas também setores mais ao centro e à esquerda do espectro político, tornaram os debates e a “defesa da laicidade um meio de estigmatizar os mulçumanos” (“la défense de la laïcité est devenueun moyen de stigmatiser les musulmans”), isto é, para o sociólogo francês, a denominada “nouvelle laïcité” não passaria da tentativa política de se criar condições que justifiquem “mais controle do Estado sobre a religião e maior repressão do que escapa deste controle.”55 O mesmo pensador ainda discorre que esta “laïcité répressive”, que tem em Marine Le Pen uma de suas personagens centrais, revela ser uma “pseudolaïcité” que certos grupos políticos franceses têm procurado impor aos demais cidadãos, como se fosse uma “laicidade da religião civil”, edificando uma estrutura hierárquica entre as religiões, “hierarquização esta, que cria um clima de malestar” na sociedade,56 ou seja, para o referido Baubérot, “na boca de uma Marine Le Pen, laicidade quer, claramente, dizer: nenhuma visibilidade para o Islã. Posição esta que não é sustentável se respeitamos a igualdade entre as religiões.”57 Façase, neste momento, um ligeiro, mas necessário desvio, para que possamos destacar que esta dimensão instrumental da laicidade francesa apresentase em sintonia com o fenômeno crescente, observado na Europa,58 de aversão ao estrangeiro, ao diferente, aversão BRUNNERIEKAUFFMANN et al. apud CARVALHO, 2013, p. 107. Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. 56 Disponível em: e . Acesso em: 16/07/2014. 57 Nas próprias palavras de Jean Baubérot : “Dans la bouche d’une Marine Le Pen, laïcité veut clairement dire: aucune visibilité de l’islam. Position qui n’est pas tenable si on respecte l’égalité entre les religions”. Disponível em: Acesso em: 17/07/2014. 54 55
esta que tem recebido um rosto mulçumano, onde, como escreve Baubérot, “o Islã tornase a representação da imigração perigosa”.59 Dito isto, tornase necessário reconhecer que a laicidade encontrase em meio a batalhas políticas pelo sentido da herança das narrativas históricas francesas, entre o recuperar, o manter e o descartar, campo de batalha este onde tem predominado uma verdadeira “compulsão identitária”,60 impondo, como um imperativo constitucional, que os questionamentos possam ser discursivamente levantados, que os cidadãosherdeiros, não só na França, não aceitem, passivamente, as experiências fundacionais que lhes querem ser impostas, pois, como o mesmo filósofo francês Jacques Derrida, uma vez escreveu, é preciso fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer inapropriável, quer se trate aliás de memória filosófica, da precedência de uma língua, de uma cultura ou da filiação em geral. Reafirmar, o que significa isso? Não apenas aceitar essa herança, mas relançála de outra maneira e mantêla viva.61
Ora, é esta possibilidade, que um Estado Democrático de Direito garante, de retraduzir certas narrativas, de divergir do que está posto, que permite que os dissensos sejam destampados por aqueles cidadãos que se sentem atingidos em seus direitos fundamentais, em seu pertencimento constitucional, os quais não aceitam a imposição de disposições normativas que entendem desqualificálos como subordinados ao “absoluto das raízes ancestrais” da França ou que pretendam libertálos de suas inadmitidas e indesejáveis identidades religiosas. Foi este direito de divergir que impulsionou uma jovem francesa, que professa a fé islâmica, a levar o seu caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, questionando a validade, diante da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da citada loi nº 20101192 du 11 octobre 2010, interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public, questionamento este que deu origem ao denominado S.A.S. v. France,62 o qual servirá de pano de fundo para algumas análises que entendemos ainda serem necessárias.
Tal assertiva pode ser comprovada, por exemplo, pelos resultados nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2014, onde houve um inquestionável avanço de partidos com plataformas eleitorais contrárias aos imigrantes, principalmente os mulçumanos, denotando um crescimento de um sentimento islamofóbico, de cunho racista, segregacionista e xenófobo. Para os dados, ver: . Acesso em: 01/07/2014. 59 Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. 60 DERRIDA, 2004, p. 34. 61 DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 12. 58
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Todas informações e dados deste caso estão disponíveis . Acesso em: 02/07/2014.
em:
2 Um julgamento, uma decisão, mas não o fim das disputas Como no caso que abre este artigo, em S.A.S v. França, a situação referiase às restrições, impostas pela lei francesa de 2010, ao uso do véu islâmico. Também aqui, a requerente, uma moça jovem, ressaltou que usava os véus por escolha própria, de que ninguém em sua família fazia qualquer pressão sobre ela. Além disso, salientou que não usava o niqab sistematicamente e em todas as circunstâncias, mas que gostaria de ter reconhecido o direito de escolha, isto é, a applicant entendia que a decisão, de usar ou não o véu, deveria ser sua, e não uma imposição externa, sob pena de retirarlhe a autonomia e a liberdade individual. Foi este o pano de fundo que levou a mesma cidadã francesa a contestar a lei, da sua nação, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), pretendendo demonstrar, diante da Convenção dos Direitos Humanos da Europa, principalmente das disposições normativas contidas nos artigos 8º, 9º, 10º e 14º,63 que vários dos seus direitos fundamentais estariam sendo desconsiderados e violados pela França ao promulgar e a aplicar a citada lei restritiva. Por sua vez, o governo francês enfatizou a necessidade do Estado, ainda que excepcionalmente, intervir na esfera pública para garantir a proteção das liberdades, atuando, dentro de um quadro de debates constitucionalmente estabelecido, para fazer respeitar um “conjunto mínimo de valores de uma sociedade aberta e democrática”, o qual incluiria a “igualdade de gênero, a dignidade humana e o efetivo respeito com os requerimentos básicos de uma vida em sociedade, de uma vida em comum” (“living together”). 64 Em poucas palavras, os representantes franceses ressaltaram que a legislação de 2010 tinha sido resultado de audiências públicas, da oitiva de vários segmentos da sociedade que poderiam ser afetados, sendo, inclusive, validada pelo Conselho Constitucional Francês, visando proteger o espaço comum de convivência, o que implicou em estabelecer limites às condutas individuais que poderiam criar tensões entre os cidadãos, chocandose com os imperativos da lembrada dimensão de vida compartilhada. Ou seja, o interesse público deveria se sobrepor aos interesses individuais, pois qualquer medida legislativa produz impactos sociais que não agradam a todos, mas isto faria parte do jogo democrático, haja vista que a lei questionada foi debatida e aprovada nos foros constitucionalmente previstos. Art. 8º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar), Art.9º (Liberdade de pensamento, de consciência e de religião), 10º (Liberdade de expressão) e 14º (Proibição de discriminação). Disponível em: . Acesso em: 18/07/2014. 64 Para uma visão mais ampla dos debates travados durante o procedimento em S.A.S., conferir a “sustentação oral” dos representantes das partes envolvidas. Disponível em: . Acesso em: 18/07/2014. 63
Em realidade, denotase que as respostas e colocações do governo francês foram na linha das justificativas apresentadas quando da apresentação do projeto de lei à Assembleia Nacional, fundamentandose, por exemplo, em posições como as defendidas por Sarkozy (“the burqa is not a religious sign; it is a sign of subservience, a sign of debasement.”) ou JeanFrançois Copé, líder da maioria no ano de 2009, para quem, o “véu islâmico chocavase fortemente contra a dignidade das mulheres” (“blow against the dignity of women”). Além disso, também os motivos expostos quando da tramitação do referido projeto de lei na Assemblée Nationale foram recuperados, isto é, a de que a finalidade precípua da lei seria a de edificar a igualdade de gênero, preservar os princípios maiores do Estado francês e promover a ordem pública.65 Em virtude desta linha argumentativa adotada, a qual procurou salientar o caráter emancipatório, de socialização e de prevenção diante do aumento da tensão social em virtude de certas práticas religiosas, o governo francês chegou a indagar, como preliminar de mérito, o status de vítima que a requerente tinha alegado, pois, na visão oficial, as intervenções restritivas eram não só necessárias ao bom funcionamento da democracia constitucional e da vida pública, como se mostraram proporcionais aos fins visados, além de não ter existido qualquer dano direto que pudesse legitimar tal qualificação, ao contrário, já que, para o governo francês, era a requerente que não se pautava por uma dose de flexibilidade em relação às suas condutas públicas. Ora, diante do exposto pelas partes, a Corte Europeia dos Direitos Humanos decidiu, em julho de 2014, que a legislação francesa não feria as normas convencionais, destacando, como central, que o respeito e a defesa da dimensão coletiva da vida legitimava os fins perseguidos pelo Estado francês, sendo que ao mesmo, nesta seara, foi reconhecido uma ampla margem de manobra (“a wide margin of appreciation”) no que tange aos caminhos escolhidos para a implementação de suas políticas públicas. Deste modo, o Tribunal admitiu, como legítimos, os argumentos de segurança pública e de proteção dos direitos e liberdades de outros, que tinham sido apresentados pelo governo francês, enquadrando os mesmos dentro das permissões tipificadas nos acima citados artigos 8º e 9º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, isto é, na interpretação dos membros da Corte, a “public safety” justificavase pela necessidade de identificação individual a fim de prevenir atos contrários à ordem e à segurança da sociedade, além de combater identidades falsas, fraudulentas, todavia, a mesma Corte ressaltou que a aplicação destas medidas
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Disponível em: . Acesso em: 18/07/2014, p.02 (pontos 6/7).
deveriam mostrarse proporcionais, e apenas quando houvesse uma concreta ameaça à segurança pública. Quanto à “protection of the rights and freedoms of others”, também aceitouse as teses do governo da França, as quais enfatizavam o “respect for the minimum set of values of an open democratic society”, onde o Estado possui um relevante papel de fomento e de garantia das interações sociais, interações estas que, com base em consensos estabelecidos, podem exigir, para manteremse abertas, que certas práticas e condutas individuais sejam restringidas como condição de possibilidade das mesmas interações. Observese, por fim, que a Corte Europeia, sempre tendo em vista a proporcionalidade da aplicação das disposições normativas contidas na legislação de 2010, reconheceu que as mesmas poderiam apresentarse excessivas, ao menos para aquele grupo de mulheres que usavam o véu que oculta o rosto. Aliado a isto, o referido Tribunal mostrou uma séria preocupação com informes que diziam que os debates políticos que precederam a adoção da lei de 2010 tinham sido marcados por uma dose de islamofobia. Em princípio, esta decisão adotada pelo TEDH revelase coerente com outras decisões de admissibilidade em situações similares que exigiram posicionamento do mesmo Tribunal, onde a defesa da segurança pública, da escola pública laica e de princípios normativos tidos como centrais para uma vida em comum, ainda mais quando defrontados com casos excepcionais, foram interpretados como se estivessem dentro da margem de apreciação do poder público, o que legitimaria, assim, interferências no âmbito normativo de certas liberdades fundamentais previstas na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.66 Contudo, um ponto destacase na decisão do Tribunal Europeu, que é o que se refere à sua interpretação do artigo 9 da European Convention of Human Rights, o qual é dividido em dois pontos, onde o primeiro dispõe que a liberdade de pensamento, consciência e religião, entre outros direitos, garante a “[...] liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos”, enquanto o ponto dois afirma que estas mesmas liberdades, ainda que excepcionalmente, podem ser legalmente restringidas quando essas restrições mostraremse “[...] necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e da moral públicas, ou à proteção dos direitos e das liberdades de outrem”. Conferir, entre outros: Phull v. France (2005), Dogru v. France (2008) e Aktas v. France (2009). Disponíveis em: . Acesso em: 14/07/2014.
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Ora, na posição construída pelo TEDH no caso em tela, o referido segundo ponto apresentase com maior força normativa, como se a singularidade do caso concreto fosse um problema intransponível para a aplicação das liberdades convencionais, onde a pretensão individual, fundamentada nas disposições do ponto inicial do artigo 9, tivesse de ceder espaço para uma suposta “necessidade da sociedade democrática”, como se a norma geral e abstrata esgotasse a dimensão de concretização do ordenamento jurídicoconvencional. Apropriando nos de argumentos elaborados por Menelick de Carvalho Netto, podemos colocar, como uma necessária reflexão, se o TEDH não teria desconsiderado a circunstância fática de que não há indivíduos gerais e nem a vida é abstrata, pois, se uma norma geral e abstrata é um enorme ganho protetivo, a mesma não nos alivia do árduo trabalho de reconhecermos que se faz necessário “[...] a concretude e a individualidade dos eventos para a configuração normativa adequada a reger aquela situação determinada, sempre específica e datada”.67 Dito isto, também nos indagamos, recuperando questionamentos antes elencados, se este prevalecente “interesse público” não estaria sendo traduzido, ora como interesse estatal, ora como interesse da maioria, isto é, será que, em um Estado Democrático de Direito como a França afirma ser, uma legislação em defesa da laicidade pode ser “legitimada” com apelos à ordem pública, a razões e necessidades de Estado e, principalmente, com fundamento na visão majoritária predominante? Ainda que aceitemos que em certas circunstâncias concretas, como, por exemplo, em um controle de passaporte realizado em um movimentado aeroporto internacional, possa ser exigido que o véu seja levantado ou mesmo vedado em certas áreas, isto não quer dizer que devamos ser cegos para a sempre presente possibilidade de instrumentalização de mecanismos e instituições da democracia constitucional, ou seja, para o risco de pretensões abusivas ocultaremse por detrás de argumentos e demandas de defesa do Estado Democrático de Direito, haja vista que “arroubos nacionais aparentemente democráticos, certamente podem levar, precisamente, a afirmações extremamente perigosas para a democracia.”68 Este risco é, como já destacamos, ainda maior quando ocorre uma ontologização dos pontos de partida das análises, imperando uma lógica do tipo civilizados contra bárbaros, onde a civilização, sinônimo de progresso e evolução positiva, marca a fronteira com o inaceitável, com o que não pode (e até mesmo não deve) ser compreendido, sendo que o nós busca comprovar que o melhor que eles fazem é abdicar de suas identidades e introjetar a nossa, ou seja, o grave risco de uma provável instrumentalização da laicidade estaria no fato CARVALHO NETTO, 2003, p. 157. CARVALHO NETTO, 2001, p. 14.
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de que a tradução do sentido de laico, além de procurar transformar o pluralismo em um obstáculo, parte de uma posição onde o outro é estereotipado, estigmatizado, transformando o diferente, o estrangeiro, em um inimigo de uma identidade fechada e autorreferida. Reiterase, mais uma vez, que muitos dos argumentos mais radicais sobre a laicidade, como, por exemplo, aquele que afirma que uma “ditadura laica é melhor que uma ditadura islâmica”,69 não são exclusividade da França, bastando que recuperemos a obscura concepção da Eurábia, tantas vezes lembrada por um dos expoentes da extremadireita holandesa, Geert Wilders, para quem, se nada for alterado, em termos de ações políticas, em um futuro não muito distante, a Europa será tomada pelo Islã, onde existirão “mais mesquitas do que igrejas”, o que, na opinião do mesmo político holandês, justificaria legislações que dessem “dinheiro para os muçulmanos holandeses irem embora”.70 É por isso que entendemos que os impactos que as mensagens71 que instituições como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos encaminham para a sociedade, quando fundamentam suas decisões, não podem ser desconsideradas, sendo necessário vermos [...] todo o processo constitucional em sua complexidade, em sua artificialidade, sendo fundamental que ele próprio seja garantido como um processo democrático e, sobretudo, que a ideia de povo não possa ser uma ideia naturalizada, total ou totalizante, excludente, pois recaímos outra vez na ditadura sempre que admitimos essa redução e absorção do indivíduo sem diferenças num todo igualitário.72
Em outros termos, posicionamonos com aqueles que entendem que normas não são apenas textos, requerendo, então, que as experiências do contexto não sejam incorporadas naturalizadamente, isto é, não há, ao menos em uma democracia constitucional como a aqui exposta, como eliminarmos a tensão entre identidade e diferença, sendo que assumimos que esta última, ao contrário de ser um problema é, em realidade, potencialmente produtiva, pois
Disponível em: . Acesso em: 18/07/2014. 70 Disponível em: . Acesso em: 10/07/2014. 71 Este fator de como as decisões tomadas são interpretadas pela sociedade, mostrase de suma importância, pois tais decisões acabam emitindo sinais sobre o caminho que está sendo trilhado em relação a um dado tema de interesse coletivo. Ora, ainda que possa ser tido como uma comparação apressada, não há como não vermos este quadro quando somos informados que, durante o desenrolar da Copa do Mundo de Futebol de 2014, o Prefeito da cidade de Nice, França, com argumentos próximos aos empregados para justificar a legislação sobre o véu (diminuir potenciais conflitos oriundos de “comportamentos intoleráveis que afetavam a tranquilidade pública”), interditou o uso “ostensivo de bandeiras estrangeiras”. Para alguns observadores, tal medida deveuse ao sucesso do time da Argélia no citado evento esportivo, o qual tinha gerado, durante as celebrações argelinas em Nice, a exposição pública de um número considerável de bandeiras daquele país do norte da África. Disponível em: . Acesso em: 19/07/2014. 72 CARVALHO NETTO, 2001, p. 14. 69
entendemos, com Chantal Mouffe, que “[...] é precisamente a existência dessa permanente tensão entre a lógica da identidade e a lógica da diferença que faz a democracia um regime particularmente adaptado ao caráter indeterminado e incerto da política moderna.”73 E isso, por sua vez, não significa que estejamos a defender alguma posição absolutista sobre o exercício dos direitos fundamentais, já que seria uma contradição performativa diante de muitos dos pressupostos por nós aqui esposados, principalmente com o sentido de uma identidade constitucional complexa, onde o risco e a contingência são constitutivos de qualquer representação de mundo, onde igualdade e liberdade, público e privado, ao invés de excluíremse, complementamse, pressupondose em insuperável tensão. O que estamos a questionar sobre legislações restritivas de direitos fundamentais e do pluralismo, como as francesas abordadas neste artigo, é o que subjaz nas sombras das mesmas, isto é, o emprego estratégico da defesa do laico como forma de subordinar e de excluir, além de uma enorme pretensão normativa de se procurar configurar e controlar a construção das identidades pessoais, da vida, através de “leis” ou de algum redivivo Comité de Salut Public ao modo jacobino, quando se acreditava, como ato de crença, na existência de uma verdade, desconhecendo a dimensão, tantas vezes por nós salientada, do risco, do imprevisível, de produzirse o que buscase combater, no caso francês, o reforço de identidades religiosas de postura fundamentalista. Assim, do exposto, podemos perceber que as disputas sobre o sentido da laicidade estão longe de se estabilizarem,74 se é que tal estabilidade seja possível, ainda mais em um Estado que se diz democrático e constitucionalmente aberto, haja vista a inegável ambiguidade presente em todas as discussões e debates apresentados sinteticamente acima, onde a laicidade é tanto apresentada como radicalmente fechada, fonte de unificação da identidade nacional, quanto aberta, constitucional e pluralista. Conclusão
MOUFFE, 1994, pp. 106107. Um exemplo expressivo destes debates e ambiguidades em torno da laicidade é a postura do sociólogo Alain Touraine, a qual revela claramente as disputas travadas, haja vista que o referido sociólogo foi, em 1989, um dos autores do manifesto, acima citado, “Pour une laïcité ouverte”, o qual contrapunhase a posições tidas como mais duras e fechadas sobre o significado de laicidade na sociedade francesa. Todavia, nos anos de 2003 e 2004, passou a defender a legitimidade de se banir os véus islâmicos, chegando, inclusive, a escrever, ao refletir sobre a lei que proíbe o uso de véus nas escolas públicas, que “somente quando a população estiver tranquila [...] é que poderemos [a sociedade francesa] fazer valer os direitos do pluralismo cultural e, no presente caso, os direitos das jovens que reivindicam o reconhecimento de sua fé.” Além disso, destacou que “as conquistas do conhecimento científico não podem ser anuladas em nome do tradicionalismo ou do irracionalismo que se estabelece antes pelo terror do que pelo convencimento” (TOURAINE, 2004, p. 11).
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Todas as questões que foram, ao longo de nosso trajeto, sendo levantadas, podem ser sintetizadas em uma só indagação: podese, dentro de uma democracia constitucional de base plural, vedarse a exposição pública de símbolos religiosos, como o véu islâmico que cobre todo ou quase todo o rosto, tendo como fundamento a defesa da laicidade e como justificativa o interesse público de diminuir tensões sociais e de preservar a autonomia e a liberdade das mulheres? Em nossa compreensão, a resposta passa, necessariamente, pela contextualização do tema, sem a qual qualquer análise se torna por demais abstrata, ampliando as áreas não iluminadas, aceitando, como se natural fosse, certas concepções que gravitam em torno da laicidade, isto é, para refletirmos sobre o alcance normativo desta laicidade na França buscamos apreender, simultaneamente, e ainda que de modo sintético, qual o sentido das relações público/privado e igualdade/liberdade e o seu consequente efeito sobre o essencial direito à divergência, à diferença. Nesta linha, os direitos individuais surgem com a mesma força normativa dos interesses públicos, os quais não são lidos como se possuíssem alguma aplicação preferencial, desvelando, de modo problematizado, que os indivíduos têm, em seus direitos fundamentais, verdadeiros trunfos, para nos apropriarmos de Dworkin (1984), frente a pretensões oriundas do Estado que se afirmam legitimadas com base em algum clamor majoritário ou defesa da ordem pública, ou seja, uma interpretação dos direitos individuais, como realiza, por exemplo, Dworkin, ao assumir que qualquer referência ao “viver coletivo/bem comum”, não são, por si mesmas, justificativas automáticas que legitimem restrições estatais das condutas individuais. Daí podemos aferir que o emprego da laicidade em seus sentidos mais extremos, como meio de legitimar restrições aos direitos de certas minorias, é uma das faces do exercício do poder na contemporaneidade. Em inúmeras casos, é negada a exclusão deste ou daquele grupo social, alegandose estar atuando em nome da própria democracia e da integração social. Para exemplificar, lembramos das situações em que a mídia, justificandose no direito fundamental à informação, recorrentemente confere “especial atenção aos crimes cometidos por minorias”,75 reforçando, sem assumir, estereótipos naturalizados do estrangeiro, do outro, sendo que estes são apresentados sempre em conjunto com epítetos depreciativos e humilhantes.76 Esta postura é ainda mais relevante quando estamos pensando o normativo, já que, se partimos das situações concretas de aplicação das normas, podemos afirmar, apropriandonos DIJK, 2008, p. 163. DIJK, 2008, pp. 155196.
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de raciocínios elaborados por Michel Rosenfeld77 ao estudar o cenário norteamericano, que, no atual quadro francês, o sentido predominante de laico constróise, ainda que em meio a fortes disputas, como reflexo de uma identidade nacional extremamente forte, mas que não pode exporse explicitamente, sob pena de afrontar os compromissos de liberdade e igualdade do moderno constitucionalismo. Devemos, pois, estar atentos ao fato de que a luta por laicidade pode ocultar pretensões abusivas, ainda mais quando não levamos a sério o poder conformador, por exemplo, de atos terroristas como os de 11 de setembro, os quais podem nos conduzir a distinguir entre direitos constitucionais dos cidadãos, mais efetivos, e dos inimigos, que podem ser relativizados, para nos apropriarmos de Günther Jakobs,78 demonstrando, de certo modo, “[...] como a percepção do Ocidente se altera quando o “outro” escapa ao terreno das diversidades já aceitas.”79 Muito do que aqui estamos procurando ressaltar pode ser sintetizado pelo verificado em um caso, ocorrido na Inglaterra, onde, inspetores educacionais, ao visitarem a escola Park View, da cidade de Birmingham, para averiguar a existência de um suposto “domínio islâmico” na referida instituição de ensino, chegaram a duas conclusões diferentes com intervalo de apenas pouco mais de dez dias. Na primeira inspeção, não obstante “brincarem com o fato de que havia muitos professores barbados”, nada viram que comprovasse qualquer evidência de um “domínio”. Todavia, dias após os jornais publicarem, com destaque, que havia uma “conspiração de aquisição de escolas”, os citados inspetores retornaram e, desta vez, produziram um outro relatório conclusivo, o qual afirmava que a escola visitada mostravase “inadequada”, já que o “extremismo” não estava contido, podendo atingir as crianças e ofender o multiculturalismo britânico. O estopim para todas as inspeções teria sido uma carta anônima contendo uma série de acusações (por exemplo, orações forçadas e clérigos extremistas), missiva esta que, posteriormente, verificouse ser uma fraude. Mas um fato, comprovado, não pode deixar de ser posto: Park View, a escola inspecionada, encontrase inserida em uma região de forte presença mulçumana, tendo, a referida instituição de ensino, durante vários períodos, sido marcada como “uma das piores da GrãBretanha”, mas, na atualidade, “coloca 8 de cada 10 de seus alunos no ensino superior”, obtendo excelentes notas, sendo, por isso, muito procurada.
ROSENFELD, 2003. JAKOBS, 2003. 79 BIGNOTTO, 2004, p. 62. 77 78
O que mais impressiona nesta situação, e daí sua importância para os nossos estudos, é a explicitação da rede mídia, medo generalizado e estereótipos naturalizados, pois, como o diretor executivo de Park View destacou, a mensagem enviada à sociedade era evidente: “Muçulmanos conservadores são extremistas, e suas escolas têm valores não britânicos”. Enquanto o diretor geral, ao colocar a questão de se havia uma “conspiração”, respondeu que “sim”, a de “reverter o mau desempenho das crianças muçulmanas neste país e permitir que elas sejam as duas coisas: muçulmanas e britânicas”.80 São estes argumentos e situações que nos fazem concordar com algumas das posições de um estudioso como Jean Baubérot, já que, para o mesmo pensador, laicidade é a separação entre o aparato estatal e a esfera religiosa, onde o imperativo de imparcialidade e de neutralidade seriam voltadas ao Estado, garantidor das liberdades e igualdades dos cidadãos enquanto indivíduos religiosos ou não, posição esta que chocase com vertentes onde a neutralidade laica é, principalmente, exigida dos cidadãos, o que, para Baubérot, é uma instrumentalização e uma falsificação do sentido de laico na história francesa, colocando em xeque a própria noção de liberdade de consciência. Em razão de tais circunstâncias, Baubérot escreve e defende que “já é tempo de separar a laicidade da repressão e para reunila novamente à liberdade.”81 Mas enfatizar a dimensão da liberdade e da autonomia dos cidadãos, como estamos assumindo, não pode ser traduzido como ausência de limites, mas sim, de que estes mesmos limites devem ser estabelecidos previamente, como necessários ao próprio operar das estruturas e procedimentos democráticos, como condição de possibilidade destes, isto é, as legislações francesas que restringem condutas religiosas no espaço público, procurando enviá las e mantêlas no privado, apresentamse muito mais como respostas a medos e estereótipos, e não como resultado de exigências postas pela própria democracia constitucional. Estes imperativos funcionais seriam visíveis, hipoteticamente, se uma agremiação política, de forte apelo religioso, disputasse as eleições defendendo uma plataforma que afirmasse que, se vencedor do pleito, iria impedir as próprias práticas democráticas, tão somente utilizando dos mecanismos e de instituições do Estado Democrático de Direito para fechálo. Em tal situação, estaríamos diante de um indubitável exercício abusivo de direitos, legitimando o aplicar de restrições, mas essas restrições, por serem condição de possibilidade Todas as informações deste caso são oriundas da reportagem “Writing and Allegations: Muslim School at Center of Debate”. New York Times News Service, June, 22, 2014. Disponível em: . Acesso em: 22/07/2014. 81 “Il est plus que temps de séparer laïcité et répression pour l’unir de nouveau à la liberté.” Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. 80
da democracia constitucional, não seriam exclusivamente direcionadas a movimentos religiosos, mas sim, a todos aqueles “fundamentalismos”, incluindo os “nacionalismos secularistas”, não sendo estratégias responsivas e/ou midiáticas, já que elas próprias revelamse, quando constitucionalmente adequadas, limitadas e garantidoras de direitos. Por fim, sob pena de nos alongarmos demasiadamente, assumindo nossos limites, não apenas em virtude do espaço que aqui dispomos, mas principalmente porque jamais pretendemos esgotar o assunto, temos que destacar que procuramos demonstrar que liberdade, emancipação e autonomia não podem ser impostos, frutos de coerção, que o público, o qual não exclui o privado, não é propriedade do estado ou de alguma eventual maioria, dizendo respeito, potencialmente, a todos os cidadãos, o que inclui os direitos fundamentais das minorias, o direito de divergir, onde, legítimas são aquelas normas validadas intersubjetiva e discursivamente, implicando que problematizemos, por exemplo, se as pretensões levantadas em defesa da laicidade são ou não abusivas, estratégias de domínio e exclusão política e participativa, isto é, se estão ou não a refletir, “simplesmente”, a circunstância de que “na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra.”82 À luz de todas estas considerações, talvez devêssemos finalizar com uma espécie de advertência, aquela elaborada pelo filósofo Karl Jaspers, que anotou, uma vez, que “por certo [...], dentro do clima da liberdade, o risco de perdição é grande e possível a perdição total. Mas, sem liberdade, a perdição é inevitável.”83 Referências ALLEN, Peter. French mother, 32, set to become first woman to be jailed for wearing banned Islamic veil. Daily Mail (On Line), December, 13, 2011. Disponível em: . Acesso em: 05/07/2014. BAUBÉROT, Jean. “La laïcité de l’UMP, c’est une France discriminatoire”. Section de Toulon de la LDH, Juin, 2, 2011. Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. BAUBÉROT, Jean (2012). La laïcité falsifiée: Peuton parler d’une instrumentalisation politique et identitaire de la laïcité en France? Mars, 2012. (Conférence) Disponível em: . Acesso em: 02/07/2014.
MONTAIGNE apud BIGNOTTO, 2004, p. 75. JASPERS, 1971, p. 74.
82 83
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