A Laicidade em disputa: o caso francês e a legislação do véu

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A Laicidade em disputa: o caso francês e a legislação do véu Maria Fernanda Salcedo Repolês Francisco de Castilho Prates Introdução No  mês  de  abril  de  2011,  uma  jovem  caminhava  pelas  ruas  de  Paris  quando  foi  abordada  pela  polícia  em  razão  da  roupa  que  usava,  um  véu  denominado  niqab,1  o  qual  tampava quase que inteiramente o seu rosto, já que apenas os olhos estavam visíveis. Ainda  que  informada  que  aquele  tipo  de  vestimenta  havia  sido  proibida  na  França,  Hind  Ahmas,  cidadã francesa e mulçumana, recusou­se a retirá­lo, por entender que tal ordem contrariava o  seu direito fundamental de liberdade religiosa. Por  sua  atitude,  Ahmas  foi  conduzida  à  delegacia  e,  posteriormente,  condenada  com  base nas disposições da lei nº 2010­1192, de 11 de outubro de 2010,2 promulgada pelo então  Presidente  Nicolas  Sarkozy,  a  qual  veda,  nos  espaços  públicos,  qualquer  vestimenta  que  se  destine  a  ocultar  o  rosto  (“nul  ne  peut,  dans  l’espace  public,  porter  une  tenue  destinée  à  dissimuler  son  visage”),  onde  este  espaço  foi  definido  como  aquele  constituído  por  vias  públicas, assim como por lugares abertos ao público em geral ou afetados a serviços públicos.  Como  sanção,  foi  lhe  imposta  uma  pena  pecuniária  e  a  obrigação  de  passar  15  dias  frequentando  aulas  sobre  deveres  cívicos,  imposições  estas,  saliente­se,  que  Ahmas  jamais  reconheceu,  sempre  entendendo  que  a  legislação  a  que  estava  sendo  submetida  era  inconstitucional, afirmando que não era ela quem precisava de lições de cidadania, mas sim, o  juiz que lhe havia condenado, ao qual faltaria legitimidade para lhe impor que se abstivesse de  usar, publicamente, um véu que conformava sua própria identidade pessoal.3 Em  outra  situação,  que  também  dizia  respeito  ao  uso  do  véu  islâmico,  o  judiciário  francês confirmou a demissão de uma empregada de uma creche em razão da mesma decidir  usar o referido véu, entendendo que teria se configurado um “delito grave” que legitimava a  dispensa da funcionária Fátima Afif, sendo que, ao analisar a decisão, os representantes legais  da empresa disseram que a mesma decisão era histórica para a garantia do secularismo.4   Registre­se, a burca, que cobre todo o corpo, e o niqab, que deixa apenas os olhos a mostra.    Disponível em: . Acesso em: 06/05/2014. 3   Informações  concernentes  sobre  este  caso  estão  disponíveis  em:  ;    e  http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/09/110926_franca_veu_bg.shtml. Acessos em: 05/07/2014. 1 2

Neste caso, ocorrido em 2008, portanto anterior à citada lei de 2010, aplicou­se outra  legislação  restritiva,  a  denominada  “loi  française  sur  les  signes  religieux  dans  les  écoles  publiques”,  em  vigor  desde  2004,5  que  limita  o  uso  de  símbolos  religiosos  tidos  como  ostensivos  em  instituições  de  ensino  públicas.  Tal  lei  é  pioneira,  no  contexto  francês,  em  interditar  certas  condutas  religiosas  em  nome  da  laicidade,  visando  diminuir  tensões  sociais  que  se  supõe  advir  destas  mesmas  condutas  “exageradas”  que  algumas  das  identidades  religiosas existentes na sociedade da França costumam exibir cotidianamente. Ainda  no  ano  de  2004,  com  base  na  mesma  lei  que  veda  símbolos  religiosos  ostensivos nos liceus públicos, dez adolescentes mulçumanas, que se recusaram a ir às aulas  sem o véu, foram expulsas de suas escolas em várias regiões da França. Segundo o relato de  uma das adolescentes, no início ela era impedida de assistir às aulas com o véu e, em protesto,  raspou seus cabelos. Em sua visão, ela foi submetida a uma tentativa de lavagem cerebral e,  por todo o ocorrido, ficou deprimida e passou a sentir­se como se estivesse nua nas ruas.6 Como  ainda  veremos,  os  legisladores  franceses  buscaram  legitimar  este  tipo  de  legislação  com  argumentos  relacionados  à  necessidade  de  contenção  de  disputas  sociais,  as  quais  poderiam  ser  insufladas  caso  as  representações  díspares  de  mundo,  de  fundamento  religioso,  não  ficassem  restritas  à  dimensão  privada,  isto  é,  diríamos  que  estas  normativas  pretendem  invisibilizar  potenciais  conflitos  como  meio  de  se  procurar  estabilizar  interações  sociais de base religiosa. Além disso, outra linha argumentativa, construída como uma espécie  de  resposta  estatal  às  críticas  oriundas,  principalmente,  das  comunidades  mulçumanas,  foi  a  de que o véu seria uma opressão simbólica das mulheres, não admitida em um estado secular  e laico como a França, isto é, a restrição seria um caminho para se ampliar a emancipação e a  integração  das  francesas  de  origem  mulçumana  dentro  do  contexto  social  que  habitam,  procurando configurar, ousamos anotar, uma espécie de repressão que liberta. Realce­se,  porém,  que  casos  similares  podem  ser  encontrados  em  período  anterior  à  promulgação das duas leis aqui referidas, pois como informa Tarcísio Amorim Carvalho,7 no  segundo  semestre  de  1989,  a  imprensa  francesa  destacava  a  situação  de”  [...]  três  meninas  muçulmanas – Samir Saidani e as irmãs Leila e Fatima Achaboun”– impedidas de assistir às  aulas  em  um  colégio  na  cidade  de  Creil,  ao  norte  de  Paris”,  sendo  que  esta  proibição  foi   

Dados  e  informações  sobre  o  caso  estão  disponíveis  em:  . Acesso em: 12/07/2014. 5   Disponível em: . Acesso em: 06/05/2014. 6   Disponível em: . Acesso em: 15/07/2014. 7   CARVALHO, 2013, p. 106. 4

justificada pelo fato de “limitar a exteriorização excessiva de todo pertencimento religioso ou  cultural”.8  Ora,  estes  casos,  entre  outros,  desvelam  o  maior  desafio  do  constitucionalismo  moderno,  entendido  este  como  um  árduo  e  inconcluso  projeto  de  afirmação  de  liberdade,  igualdade,  que  é  o  de  assumir  o  pluralismo  como  constitutivo  das  democracias  constitucionais,  fazendo  com  que  a  identidade  não  possa  ser  traduzida  como  sinônimo  de  unidade  e  de  homogeneidade  e,  simultaneamente,  de  não  abdicar  de  se  manter  como  um  espaço de crítica e autonomia, espaço este que, como condição de possibilidade de sua própria  abertura, necessita, em certos momentos, estabelecer limites ao próprio pluralismo, ou melhor  dizendo, às pretensões abusivas e ilegítimas de pluralismo. Desafio este, ainda mais complexo, quando partimos da constatação de que o  constitucionalismo  não  faz  muito  sentido  na  ausência  de  qualquer  pluralismo.  Em  uma  comunidade completamente homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de  que o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como um  todo, o constitucionalismo [...] seria supérfluo.9 

Assim,  reconhecendo  que  todo  recorte  epistemológico  é,  por  si  mesmo,  um  risco,  já 

que  sombras  sempre  haverão  de  existir  em  qualquer  ato  do  conhecer,  entendemos  que  inúmeras  indagações  podem  ser  formuladas,  entre  elas:  Como  compreender  o  lugar  e  o  sentido  da  laicidade  no  contexto  nacional  e  constitucional  francês?  Diferentes  orientações  e  identidades religiosas podem, com justificativa da defesa da laicidade, ser enviadas apenas ao  privado? Pode, a defesa do Estado laico, justificar silêncios e exclusões sociais? Devemos  também  perguntar  se  não  estaria  ocorrendo  uma  instrumentalização  da  noção  de  laicidade,  refletindo  uma  islamofobia  crescente  na  conjuntura  francesa,  haja  vista  que, na atualidade, uma das maiores defensoras do estado laico é a líder do partido da extrema  direita Frente Nacional, Marine Le Pen,10 conhecida por suas posições radicalmente contra os  imigrantes, o que levou Jean Baubérot, um dos maiores estudiosos sobre laicidade na França,  a ironizar, afirmando que a mesma era “la championne de la laïcité dominante”.11   RAPHAELLE apud CARVALHO, 2013, p.106.   ROSENFELD, 2003, p. 21. 10   Ainda que enfatizando que não era racista ou xenófoba, Marine Le Pen disse, em um discurso de 2012, que  apenas  discordava  daqueles  “imigrantes  que  não  querem  reconhecer  a  autoridade  da  lei  e  da  cultura  francesas”, também dizendo que, em sua análise, haveria um vínculo entre imigração e aumento da violência  nas  ruas  da  França.  Disponível  em:  .  Acesso  em:  12/07/2014.  Em  outro  momento,  a  referida  Marine  Le  Pen  comparou  os  religiosos  mulçumanos  existentes  nas  ruas  francesas  (“prières  de  rue”)  a  uma  verdadeira  ocupação do território da França, como a ocorrida durante a Segunda Grande Guerra, só que sem tanques ou  soldados.  Disponível  em:  . Acesso em: 01/07/2104. 8 9

Em  linha  confluente,  ainda  que  menos  radical,  também  o  ex­Presidente  Sarkozy  exteriorizou posição recorrente nos atuais debates sobre a laicidade na França, que é aquela  defensora  de  uma  identidade  de  raízes  cristãs  (racines  chrétiennes”),  identidade  esta  que  exigiria uma certa adaptação ou acomodação da fé islâmica no interior daquela sociedade.12 Diante destas estratégias de tradução da laicidade, perguntamos: não estaria havendo  uma subordinação ou um predomínio da noção de identidade nacional enquanto unidade, em  relação à identidade constitucional13 e à sua dimensão pluralista? Nesse sentido, apropriando­ nos  de  um  pensamento  de  Newton  Bignotto  sobre  as  tensões  entre  tolerância  e  diferença,  indagamos se não haveria um processo de “nomear o outro e mesmo persegui­lo”, onde esta  ação  de  constituir  a  diferença  estaria,  ainda  que  de  modo  subliminar,  pretendendo  “criar  a  identidade do corpo político pela sua negatividade”?14 São  questões  como  estas  que  nos  guiarão  na  abordagem  do  tema,  o  qual,  por  óbvio,  não temos a pretensão de esgotar. Buscamos, assim, problematizar as contradições existentes,  tendo  como  referência  um  Estado  Democrático  de  Direito  que  se  reconhece  como  projeto  histórico em constante reinvenção e, por isso mesmo, plural, caracterizado por uma série de  tensões entre o público e o privado, a liberdade e a igualdade e, principalmente, para nossas  análises,  entre  a  identidade  e  a  diferença,  sendo  que  esta  última,  ao  contrário  de  ser  um  problema,  é  potencialmente  produtiva,  pois  “[...]  é  precisamente  a  existência  dessa  permanente tensão entre a lógica da identidade e a lógica da diferença que faz da democracia  um  regime  particularmente  adaptado  ao  caráter  indeterminado  e  incerto  da  política  moderna.”15  1 Contextualizando a questão: apontamentos sobre a laicidade na França Diga­se  que,  desde  o  início  de  todas  as  controvérsias,  o  governo  francês  afirmou  e  ressaltou  que  o  objetivo  das  já  citadas  legislações  sobre  o  véu  não  era  impedir  que  a  comunidade  mulçumana  francesa  exercesse  sua  fé,  mas  sim,  reduzir  as  tensões  sociais  existentes  em  razão  da  utilização  pública  de  símbolos  religiosos  por  demais  ostensivos,  ou 

  Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014.   Disponível  em:    e  . Acessos em: 09/07/2014 e 16/07/2014, respectivamente. 13   A  concepção  de  identidade  constitucional,  aqui  empregada,  advém  do  ensaio  de  Michel  Rosenfeld  (2003),  onde  a  “identidade  constitucional”,  constitutivamente  incompleta,  dominada  por  uma  insuperável  abertura  normativa,  revela  ser  “[...]  tão  evasiva  e  problemática  quanto  são  difíceis  de  se  estabelecer  fundamentos  incontroversos para os regimes constitucionais contemporâneos.” (ROSENFELD, 2003, p.17)  14   BIGNOTTO, 2004, p. 68. 15   MOUFFE, 1994, pp. 106­107. 11 12

seja, como o então Presidente Sarkozy salientou, o intuito da lei era “tornar a França um país  mais tolerante e com uma sociedade mais inclusiva”.16 Com efeito, este contexto argumentativo, no qual a bandeira da laicidade foi hasteada  com  toda  força  pelos  defensores  deste  tipo  de  normatividade  restritiva,  surge  na  esteira  das  proposições e das conclusões oriundas da chamada Commission de réflexion sur l’application  du principe de laïcité dans la République, também conhecida como Comissão Stasi, em razão  do  parlamentar  que  a  presidia,  Bernard  Stasi  ­  comissão  instalada  em  2003  e  composta  de  representantes  de  diversos  setores  da  sociedade  civil  francesa,  que  visava  realizar  um  diagnóstico  da  laicidade  como  princípio  universal  e  valor  republicano  no  contexto  francês  ­  concluindo  com  a  concretização  de  uma  série  de  proposições  voltadas  para  “afirmar  uma  laicidade que gerasse união” (affirmer une laïcité ferme qui rassemble).17 Daí  que,  para  a  referida  Commission,  a  laicidade  foi  lida  como  um  dos  pilares  da  unidade  nacional  e  da  garantia  da  liberdade  individual,  traduzida  como  concepção  de  bem  comum,  subtraindo  o  poder  político  das  influências  religiosas,  implicando  neutralidade  do  Estado,  o  qual,  fundado  no  princípio  da  igualdade,  não  deve  privilegiar  qualquer  orientação  espiritual, nem promover ou patrocinar representações ateístas ou agnósticas de mundo.18 Todavia, dizer que o Estado deve ser neutro não era, para a Comissão Stasi, sinônimo  de que o mesmo tinha que ser indiferente diante de problemas de ordem pública que podem  surgir  de  práticas  ofensivas  exercidas  pelos  cidadãos  sob  o  pretexto  de  serem  oriundas  de  gramáticas  religiosas,  nem  significava  que  laico  fosse  exclusivamente  a  afirmação  da  separação entre Estado e Religião, ou seja, no contexto histórico francês, a laicidade ia além  de  ser  um  “garde­frontière”  entre  a  política  e  o  espiritual­religioso,  pois  ao  Estado  caberia  possibilitar a consolidação de valores comuns que fundamentam os vínculos sociais.19 Reconhecendo a moderna diversidade de visões religiosas e não religiosas de mundo  presentes  no  contexto  francês,  assumindo  que  a  história  da  laicidade  jamais  foi  tranquila,  a  Comissão  Stasi  entendeu  que  as  relações  conflituosas,  ao  contrário  de  serem  tidas  como  negativas,  revelaram­se  produtivas,  pois  tornaram  possível  a  contínua  renovação  do  sentido    “Mr.  Sarkozy  said  the  ban  on  head  coverings  was  not  aimed  at  persecuting  Muslims,  but  merely  to  make  France  a  more  tolerant,  inclusive  society.”  Disponível  em:. Acesso em: 05/07/2014. 17   Informações  sobre  a  Comissão  Stasi  disponíveis  em:    e  .  Acesso  em:  08/07/2014. 18   Disponível em: .  Acesso em: 08/07/2014, pp. 06­09. 19   Disponível em: .  Acesso em: 08/07/2014, pp.13­15. 16

do laico, tido este como um valor republicano compartilhado por todos, não tendo sido visto  como uma “construção dogmática” (n’a jamais été une construction dogmatique), mostrando­ se  sensível  às  contingências  históricas,  sendo  que  esta  capacidade  adaptativa  revelou  ser  crucial em vários momentos por ter possibilitado o equilíbrio social, como que encarnando as  esperanças da sociedade francesa.20 Nesta  linha,  ressaltou­se  a  laicidade  como  um  constructo  histórico  oriundo  das  lutas  republicanas  iniciadas  nas  jornadas  revolucionárias,  presente  na  Déclaration  des  Droits  de  l’Homme et du Citoyen de 1789, na normatização civil do clero e em tantos outros momentos  no  decorrer  do  conflitante  processo  histórico  de  afirmação  de  um  projeto  de  república  desvinculado  do  “divino”,  alcançando  seu  ápice  com  a  lei  de  dezembro  de  1905,  a  qual  separa, formalmente, Estado e Igreja, diferenciação esta assumida, enfática e explicitamente,  na vigente Constituição da França, onde se pode ler que a República é laica. À luz dessas considerações, a laicidade acabou por ser interpretada como um reflexo  da identidade nacional, garantidora da unidade francesa, pois dimensão civil do exercício do  poder  imunizada  das  influências  religiosas  dominantes,  tendo  como  objetivo  central  potencializar uma “vida coletiva e a construção de um destino em comum” (vivre ensemble,  construire  um  destin  commun).21  Surge,  então,  uma  “religiosidade  civil”,  onde  se  pode  perceber  que  o  interesse  público  e  os  imperativos  republicanos  de  ordem  estão  sempre  pairando, ainda que nas entrelinhas, sobre a configuração do social, desvelando, como mostra  Tarcísio  Amorim  Carvalho,22  que  o  sentido  da  laicidade  encontra­se  em  disputa  na  tensa  confluência  entre  o  âmbito  normativo  do  que  se  denomina  de  público  e  de  privado,  tensão  esta  que,  no  contexto  francês,  seria  mais  perceptível  em  virtude  de  uma  série  de  singularidades  de  sua  história,  na  qual  o  desejo  de  fazer  prevalecer  a  identidade  nacional,  ainda que divergindo de compromissos constitucionais, apresenta­se como narrativa fundante. Em  termos  outros,  procurando  iluminar  a  passagem  acima,  podemos,  com  Michel  Rosenfeld,  apontar  que  nos  “Estados  Unidos,  a  Constituição  se  consubstancia  na  pedra  de  toque da identidade nacional”, haja vista que [...]  enquanto  uma  nação  constituída  por  sucessivas  ondas  de  imigração,  os  Estados  Unidos  compreendem  uma  ampla  diversidade  de  tradições  nacionais  e  étnicas,  nenhuma  das  quais  é  representativa da comunidade política como um todo. Assim, conquanto seja fácil se visualizar a 

  Disponível em: .  Acesso em: 08/07/2014, p.12. 21   Disponível em: .  Acesso em: 08/07/2014, p.17. 22   CARVALHO, 2013, pp. 99­124. 20

identidade nacional francesa ou germânica sem referência às suas respectivas Constituições,  o mesmo não se aplica aos Estados Unidos. (Destaques Nossos)23 

Vislumbra­se,  assim,  que  o  conceito  de  laicidade  (ou  secularização  na  concepção  anglo­saxã) não revela ser algo pacificado, por mais que os especialistas busquem delimitar os  debates, mas sim, marcado por uma enorme ambiguidade e uma interminável complexidade,  ainda mais quando analisado em contextos dominados por visões plurais de mundo, resultado  de um moderno e complexo processo de racionalização das estruturas sociais, processo este  que  conduziu  a  uma  distinção  funcional  determinante,  principalmente  no  ocidente,  entre  a  dimensão  dita  civil  e  a  religiosa,  fazendo  com  que,  em  nome  de  liberdades  e  igualdades  ampliadas, nem o aparato estatal pudesse determinar a orientação religiosa de seus cidadãos,  nem o poder religioso interferir na moldura das ações e políticas de estado. Como  mostra  o  então  professor  do  Cornell  College,  Larry  Shiner,  existem  inúmeras  abordagens sobre o tema, conformando variados tipos de secularização e laicidade,24 as quais,  historicamente,  enfatizam  a  dessacralização,  a  diferenciação  funcional  e  a  transposição  de  poder e posses da Igreja para o Estado,25 sendo que, durante o período revolucionário francês  de 1789, esta transferência de força normativa do sacro para o mundo dilatou­se para todas as  esferas da vida mundana.26 Nesta  linha,  o  citado  Larry  Shiner,  ao  analisar  uma  das  abordagens  a  respeito  deste  polissêmico  conceito,  anota  que  o  mesmo,  para  alguns  pensadores,  seria  como  que  o  “[…]  historical  process  which  tends  to  contest  the  public  role  of  religion,  […],  and  finally  to  relegate religion to the private sector of human existence”, isto é, quando a  [S]ociety  separates  itself  from  the  religious  understanding  which  has  previously  informed  it  in  order to constitute itself an autonomous reality and consequently to limit religion to the sphere of    ROSENFELD, 2003, pp. 95­96.   Tomamos  aqui  os  conceitos  de  laicidade  e  secularização  como  sinônimos,  ainda  que  sabedores  que  há  toda  uma  discussão  a  este  respeito,  já  que  tal  debate  iria  muito  além  do  espaço  e  do  tempo  que  dispomos.  Pontualmente,  podemos  colocar  que,  para  certos  pensadores,  a  noção  de  laicidade  seria  caracterizada  pelo  processo de separação entre o religioso e o político, onde o primeiro, desprovido do poder público, destaca­se  e separa­se do último, buscando­se fundar e organizar o mundo sem apelar ou fazer referência a recursos e/ou  justificativas  sobrenaturais  ou  transcendentes,  afirmando­se  o  Estado  como  neutro  diante  das  religiões,  enquanto  o  termo  secularização  diria  respeito  ao  fenômeno  da  perda  de  força  vinculante  por  parte  das  instituições religiosas, as quais passaram a não mais conseguir configurar, integralmente, a vida cotidiana à  sua  maneira,  ao  menos  no  ocidente.  Em  apertado  resumo,  poderíamos  colocar  que  “a  secularização  privilegia, então, as mutações socioculturais suscitadas pela dinâmica social, pela evolução dos saberes e  das  técnicas,  pelo  desenvolvimento  da  racionalidade  instrumental.  [...]  O  processo  de  laicização,  por  sua  vez, concerne à regulação política, jurídica e institucional da religião, do credo, da totalidade do simbólico,  com suas transações e seus conflitos explícitos” (BAUBÉROT, 2011ª, p. 287). Destaque­se que Baubérot é  um  dos  pensadores  que  marca  diferenças  conceituais  entre  laicidade  e  secularização.  Sobre  o  tema,  ver:  (BAUBÉROT, 2011a), (RANQUETAT JÚNIOR, 2008) e o já lembrado (SHINER, 1967).  25   SHINER, 1967, p. 219. 26   SHINER, 1967, p. 208. 23 24

private life. The culmination of this kind of secularization would be a religion of a purely inward  character,  influencing  neither  institutions  nor  corporate  action,  and  a  society  in  which  religion  made no appearance outside the sphere of the religious group.”27 

Especificamente  sobre  o  contexto  francês  deste  processo  de  diferenciação  funcional  das  esferas  normativas,  temos  os  escritos  de  Jean  Baubérot,  tido  como  um  dos  maiores  estudiosos  da  questão  da  laicidade  na  França,  tendo  sido,  inclusive,  membro  da  acima  vista  Comissão Stasi, na qual foi, em alguns pontos das conclusões expostas, voz divergente.  Dialogando com o filósofo do século XIX, Ferdinand Buisson, pioneiro no estudo da  laicidade na história francesa, Baubérot destaca que, para o mesmo Ferdinand, “a finalidade  do Estado laico consiste em permitir ‘a liberdade de todos os cultos’, e ‘a igualdade de todos  [os  cidadãos]  diante  da  lei’,  o  exercício  de  direitos  a  partir  de  então  assegurados  independentemente de toda convicção religiosa”.28  Com base em tais argumentos, Baubérot escreve que os  componentes  da  laicidade  são,  então,  para  nos  utilizarmos  de  um  vocabulário  moderno,  a  liberdade  de  consciência  e  prática  coletiva  desta  mesma  liberdade  (liberdade  de  culto);  a  não  dominação  da  religião  sobre  o  Estado  e  a  sociedade,  a  separação  da  religião  e  do  político;  o  princípio da igualdade e da não discriminação por razões religiosas.29 

Estes  elementos,  ainda  que  com  outros  nomes  (secularização,  nos  EUA),  estão  presentes em vários países, sendo que, na visão do mesmo Jean Baubérot, não há que se falar  em  laicidade  absoluta,  pois  a  mesma  é  relativa,  já  que  dependente  dos  diferentes  contextos  históricos e sociais. Por exemplo, na França, os fundamentos concretos da laicidade estariam  assentados na separação entre Igreja e Estado e no espaço de uma escola pública laica, onde  estes mesmos fundamentos encontram­se regulados legalmente.30  Assim,  a  hipótese  levantada  por  Baubérot  é  que  muitos  dos  aspectos  relacionados  tradicionalmente  com  a  laicidade  do  Estado  apresentam­se  com  outra  definição  quando  abordamos os mesmos a partir da ideia de nação, de identidade nacional. Em outras palavras,  Baubérot  realça  uma  posição  que  não  deve  ser  desconsiderada  quando  da  análise  das  legislações atuais que restringem comportamentos religiosos em público, isto é, que no caso  francês,  especificamente,  a  laicidade  está  imbrincada  com  a  própria  construção  histórica  da  identidade  francesa.  Daí  o  mesmo  Baubérot  sugerir  que,  no  presente,  todas  as  questões  que  gravitam  em  torno  da  laicidade  encontram­se  vinculadas  “a  uma  crise,  a  uma  mutação  da      29   30   27 28

SHINER, 1967, p. 212. BAUBÉROT, 2009, p. 27. BAUBÉROT, 2009, p. 28. BAUBÉROT, 2009, p. 28.

identidade  francesa”  (la  laïcité  prend,  dans  ce  pays,  des  caractéristiques  qui  me  semblent  liées à une crise, une mutation de l’identité française).31  Podemos,  aqui,  marcar  uma  distinção  entre  o  processo  da  secularização  norte­ americana, onde o pluralismo já estava presente na sua origem, haja vista a existência de uma  série  de  denominações  protestantes,  onde  a  referência  a  Deus,  na  Declaração  de  Independência de 1776, não foi traduzida como se fosse propriedade exclusiva de um grupo  religioso específico,32 daquele da França, na qual a esfera do transcendente tinha um endereço  certo,  a  Igreja  Católica,  sempre  dominante.  Assim,  no  contexto  francês,  Deus  reentrou  por  meio de ritos de sacralização profana das instituições republicanas pós­Revolução Francesa,  na figura, por exemplo, do Ser Supremo (l’Etre Suprême), refletindo um receio do retorno da  influência católica, a qual se mostrou próxima da aristocracia nos assuntos mundanos.

Ilustrativamente,  com  Jacob  Rogozinski,  podemos  recuperar  esta  dimensão  do  simbólico, quando o mesmo professor relata a destruição, no ano de 1793, por determinação  da chamada Convenção de Saúde Pública, em pleno período do Terror, dos túmulos em Saint­ Denis, onde a realeza francesa era enterrada. Este ato pretendeu ser uma espécie de purgação  e de desincorporação do poder, como se o absoluto saísse desta esfera. Todavia, este absoluto,  agora  em  nova  roupagem,  reentrou  com  força  conformadora,  quando,  por  exemplo,  um  revolucionário  republicano  cortou  uma  parte  da  barba  de  Henrique  IV  para  tê­la  como  uma  relíquia  protetiva.  Lembremos  também  que  a  mesma  Convenção  havia  determinado  que  as  lápides reais fossem levadas ao local onde estava sendo erguido uma espécie de Panteão em  memória do célebre revolucionário Marat.33  Observemos que, neste trajeto, o símbolo da realeza, o “corpo do rei”, é representado  como  “abjeto,  “heterogêneo,  mau  objeto  perigoso  ou  mau  resto  imundo  que  ameaça  a  homogeneidade  do  corpo  da  Nação  e  que  convém  eliminar”,34  ou  seja,  o  outro  indesejável,  estrangeiro, onde, ainda que através de uma “desincorporação parcial [...], o próprio gesto de  expulsar  o  dejeto,  o  grande  corpo  reconstitui  sua  unidade  ameaçada”,35  desvelando  a  necessidade de uma essência que unificasse, que criasse identidade.   BAUBÉROT, 2009, p. 28.   Ousamos,  neste  ponto,  lembrar  que  este  acesso  não  privilegiado  a  Deus  já  era  verificável  nas  tensões  religiosas  da  Inglaterra  do  século  XVI,  surgindo  como  uma  herança  anglo­saxã  de  longo  trajeto  histórico,  pois,  como  anota  Christopher  Hill,  ao  refletir  sobre  a  tolerância  religiosa  naquele  período,  já  podíamos  encontrar  indivíduos  como  William  Dell,  “capelão  do  Exército  de  Novo  Tipo”,  o  qual  “argumentou,  em  1645 e em 1646, que “a unidade é cristã, porém a uniformidade anticristã’’; que magistrado algum poderia  proibir a prédica do Evangelho por leigos inspirados; e que “a beleza do mundo vem da diversidade de suas  formas” (HILL, 1987, p. 111). 33   ROGOZINSKI, 1996, pp. 409­410. 34   ROGOZINSKI, 1996, p. 418. 35   ROGOZINSKI, 1996, p. 418. 31 32

Com o mesmo Rogozinski descobrimos que, durante o julgamento de Luís XVI, com  frequência,  buscou­se  marcar  o  mesmo  monarca  como  um  “corpo  estranho  à  República”,  o  “estrangeiro entre nós”, “mais perigoso, pois caminha ao nosso lado”, como advertiam as alas  jacobinas do processo revolucionário, onde a diferença surge como mecanismo de exclusão,  de  recusa,  onde  a  dessacralização  da  realeza  unifica,  retraduzindo­se  a  identidade  nacional  através  do  expurgo  de  seus  elementos  tidos  como  elementos  nocivos.36  37  É  como  se  o  eu  francês  surgisse  ao  negar  o  outro  indesejável,  que  ameaça  sua  unidade,  sendo  o  “estrangeiro” representado como um contínuo risco à nação, a qual, desvinculada de “[...] sua  união com a pessoa do rei, pode buscar um outro suporte de encarnação”,38 suporte este que se  caracterizaria pela inegável presença da aversão ao “estranho”, ao “estrangeiro”, onde só esta  nação,  republicanamente  sacra,  expressão  de  um  verdadeiro  “Corpus  Mysticum  Reipublicae”39 seria detentora, a partir desta legitimação imanente, do poder soberano “[...] de  designar o Inimigo, de nomear o elemento estranho e hostil”.40 De  acordo  com  tais  considerações,  vemos  que  a  força  simbólica  desta  recusa  ao  estrangeiro, no contexto francês, não deve ser desconsiderada quando da análise do sentido  do laico, ainda mais em tempos de crise econômica e de eventos de poderosa singularidade,  como, por exemplo, os ataques às torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001, pois o  desejo de estabilidade, de unidade e de identidade nacional pode vir a ser fortalecido através  da explicitação de certas diferenças publicamente expostas, diferenças estas que confrontam o  estabelecido,  concorrendo  com  visões  de  mundo  tradicionalmente  predominantes,  profundamente  enraizadas  no  solo  das  nações,  revelando  que  o  ato  de  “ver”,  de  distinguir  negativamente  o  outro,  aquele  que  destoa,  marcado  como  anacrônico,  bárbaro  ou  atrasado,  pode acabar sendo um efetivo mecanismo de criar corpo, ainda mais quando tal instrumento  oculta­se, por exemplo, na defesa de liberdades fundamentais.  Todas essas assertivas nos impelem a recuperar certas falas de figuras proeminentes da  política  francesa,  como  o  já  visto  Nicolas  Sarkozy,  haja  vista  que  o  mesmo,  em  inúmeros  momentos,  ao  expor  suas  concepções  sobre  a  história  da  França,  insistiu  em  uma  laicidade  positiva  (“laïcité  positive”),  aquela  que  valorizaria,  preferencialmente,  as  citadas  “raízes  cristãs” francesas, ou seja, raízes da França enquanto constructo europeu, que moldam a sua    ROGOZINSKI, 1996, pp. 420­425.   “Quando Saint­Just ataca o Inimigo do Povo, de Luís Capeto aos girondinos [...], ele o descreve sempre como  uma ameaça de origem exterior (é a “conjuração do estrangeiro”) que ressurge no interior, nas “entranhas da  República”, para corrompê­la – pois “o estrangeiro corrompe tudo” (ROGOZINSKI, 1996, p. 424). 38   ROGOZINSKI, 1996, p. 415. 39   ROGOZINSKI, 1996, p. 414. 40   ROGOZINSKI, 1996, p. 416. 36 37

“identidade”,  o  que  legitimaria,  por  exemplo,  um  tratamento  diferenciado  à  Igreja  Católica,  pois a mesma representaria um dos pilares fundacionais da unidade da nação.41 Esse  tipo  de  colocação  tem  se  revelado,  em  diversos  níveis,  recorrente  nos  debates  políticos  franceses,  procurando  legitimar  um  componente  “sacralizado”  na  laicidade  republicana francesa, o qual, na visão de seus apologistas, poderia construir bases identitárias  mais  sólidas,  propiciando  uma  superação  da  fragilização  dos  laços  sociais,  fragilização  esta  que  seria  oriunda  de  um  crescente  pluralismo  de  visões  de  mundo,  isto  é,  estaria  ocorrendo  uma instrumentalização, por parte de setores políticos, daquilo que alguns analistas do quadro  social  francês  denominam  de  uma  persistente  e  crescente  “inseguridade  cultural”  (“cultural  insecurity”).42  Para Jean Baubérot, crítico de tais posições, ao apelar­se para supostas raízes cristãs  da França, estar­se­ia, em realidade, seguindo a lógica de uma “religion civile”, tentando­se  reintroduzir uma singular dimensão religiosa na identidade nacional, como se fosse necessário  um aporte transcendental para se edificar vínculos sociais (lien social) mais seguros e menos  conflitantes,43  ou  seja,  os  debates  contemporâneos  sobre  laicidade  na  França  estariam  polarizando­se  entre  identidade,  enquanto  “raízes”,  e  diversidade,  vista  a  partir  da  desconfiança e do medo do outro, do diverso e, principalmente, do estrangeiro imigrante que  está entre “nós”.44 Decorreria  desta  posição  uma  espécie  de  “laicidade  identitária”,  para  nos  valermos,  mais  uma  vez,  de  Baubérot,  o  qual  entende  que  há,  em  falas  como  as  de  Sarkozy,  uma  mensagem implícita para a sociedade francesa, qual seja: que a França viveria melhor sem a  força do Islã, onde a laicidade significaria “mais que o respeito das leis e a tolerância civil,  isto é, uma assimilação a uma identidade patrimonial não conflituosa.”45 O mesmo Jean Baubérot ainda anota que a “reconstitution historique”, levada a efeito  por Sarkozy, para fundamentar sua posição      43   44  

Neste sentido, conferir: (BETZ, 2013, p. 10) e (BAUBÉROT, 2009, 2011b). LEBOURG apud BETZ, 2013, p. 12. BAUBÉROT, 2009, p. 46. Realce­se que, para Jean Baubérot, refletindo a partir de uma sociedade pluralisticamente conformada, onde  temas  sobre  ateísmo,  orientação  sexual  e  eutanásia,  entre  outros,  podem  ser  publicamente  debatidos,  “a  laicidade é a liberdade religiosa, não a repressão das religiões. A neutralidade e a separação são os meios.  O objetivo visado é a liberdade de consciência. A finalidade da laicidade é a não discriminação por motivos  religiosos, mas isto também vale, tanto para os homossexuais, que querem casar, quanto para os cidadãos,  que expressam a vontade de morrer com dignidade. É um combate pela liberdade de consciência dos livres  pensadores  que  querem  morrer  sem  receber  os  santos  sacramentos.  A  não  discriminação  deve  atingir  a  todos.”  Disponível  em:  . Acesso em: 17/07/2014. 45   Disponível  em:  .  Acesso  em: 02/07/2014. 41 42

é  imaginária  e  idílica:  ela  faz  como  se  jamais  tivesse  existido  perseguição  ou  conflito  político­ religioso  com  relação  à  cristandade.  Dito  de  outro  modo,  é  como  se  tudo  pudesse  correr  bem  contanto  que  o  islã  não  esteja  lá,  como  se  houvesse  uma  demanda  para  que  os  mulçumanos  se  integrassem  a  um  certo  patrimônio  imaginário,  pois,  do  contrário,  eles  representariam  um  permanente déficit de laicidade [...].46

Somos inclinados, ainda dialogando com Baubérot, a visualizar uma estratégia de se  empregar  a  laicidade  para  fins  políticos,  o  que  leva  o  referido  pensador  francês  a  chegar  a  escrever  que  estaria  havendo,  atualmente,  uma  “falsificação  da  laicidade”  (“laïcité  falsifiée”),  a  qual,  entre  outras  características,  acaba  por  ser  “reduzida  a  mero  controle  da  religião”(“laïcité  réduite  au  controle  de  la  religion”),  controle  este  que  procuraria  operar  também  no  fomento  de  medidas  restritivas  quanto  à  imigração,  principalmente,  de  cidadãos  que professam a fé mulçumana, conformando uma verdadeira “exploração racista do debate  sobre a laicidade” (“une exploitation raciste du débat sur la Laïcité”).47 Com  efeito,  nos  últimos  tempos,  gravitam  em  torno  da  questão  sobre  laicidade  uma  série  de  argumentos  de  cunho  anti­imigração,  sendo  que,  em  alguns  momentos,  como  demonstra o professor Hans­Georg Betz, a linha de defesa do Estado laico procura construir  uma  imagem  da  fé  islâmica  como  o  maior  risco  para  a  laicidade  e  a  liberdade  individual,  chegando,  por  exemplo,  alguns  políticos  franceses  a  caracterizar  o  Islã  como  uma  religião  distinta das demais, já que a mesma ainda não distinguiria, funcionalmente, Estado e Fé, isto  é, o Islã representaria uma “[...] totalitarian ideology”, which demanded complete submission  and  which,  unlike  Christianity,  refused  to  acknowledge  the  “fundamental  distinction”  between spiritual and worldly order.48  Estas posições instrumentalizadas da laicidade, simbolicamente estruturadas, de forte  apelo a uma suposta identidade nacional francesa, visando recuperar uma unidade substancial  perdida ou posta em perigo pela presença de uma alteridade que desestabiliza representações  da França tidas, até pouco tempo, como inquestionáveis, são ainda mais visíveis quando, a já  lembrada Marine Le Pen, também realçando as raízes cristãs da França, afirma que o “Islam  was a relative new comer in France, where as Christianity had informed French history for  centuries. It was therefore up to Islam to adapt to France and not the other way around”.49  Também  citado  por  Betz,  temos  Arnaud  Guillon,  membro  do  extremista  Bloc  Identitaire, o qual explicita ainda mais esta vertente identitária do laico no contexto francês,      48   49   46 47

Disponível em: . Acesso em: 02/07/2014. BAUBÉROT, 2012. BETZ, 2013, p. 10. BETZ, 2013, p. 10.

ao  colocar  que  a  “laïcité  understood  as  an  identitarian  principle  allows  us  to  preserve  our  liberties  and  to  fight  against  not  only  fundamentalist  Islam  (l’islamisme)  but  also  Islamization.”50  Para  os  defensores  de  tais  posturas  interpretativas,  ainda  que  com  especificidades  e  pontos de divergência, a laicidade emergiria como um instrumento de retomada de algo que  entendemos  poder  denominar  de  eu  francês,  implicando  em  restrição  e  regulação  de  identidades vistas como não francesas, já que não compartilhariam as mesmas raízes, onde o  Islã, ao ser nomeado, surge como o outro preferencial, aquele que, como já dito acima, ao ser  negado, potencializaria uma reconstrução da França e sua identidade­unidade consigo mesma. Em suma, a laicidade receberia contornos fundamentalistas, não aberta ao diverso, em  leitura dissonante da separação entre o Estado e a Religião, como disposta na paradigmática  legislação  de  1905,51  pois  expulsa,  da  arena  pública,  orientações  religiosas  marcadas  como  indesejáveis,  remetendo  as  mesmas  à  dimensão  privada  da  vida  social,  da  qual,  só  excepcionalmente,  poderiam  sair,  onde  o  interesse  público,  traduzido  a  partir  do  desejo  de  unidade da Nação, lhes impingiria o que ousamos chamar de uma invisibilidade redentora. Contudo, esta certa laicidade, fechada e identitária, não é aceita de modo passivo na  sociedade  francesa,  onde  pensadores  como,  por  exemplo,  Paul  Ricoeur  e  Monique  Canto­ Sperber,  criticam  as  legislações  que  restringem  o  véu  islâmico  nas  escolas  públicas,  ressaltando  a  contrariedade  à  dimensão  da  igualdade  e  o  profundo  impacto  denegatório  no  sentido da liberdade das cidadãs atingidas por tais normas. Além  disso,  assumindo  o  pluralismo,  os  mesmos  estudiosos,  após  destacarem  que,  dentro  de  limites  necessários,  “cada  um  é  livre  para  expressar  sua  religião,  não  apenas  em  espaço privado, mas também no comum”, advertiram, ao refletir sobre a potencial expulsão  das mulçumanas das escolas públicas em razão do véu, que: Aumentar  a  exclusão  é  privá­las  do  único  acesso  que  elas  poderiam  ter  a  essa  experiência  de  liberdade.  É  contraditório  desejar  que  as  meninas  encontrem  sozinhas  verdadeiros  recursos  de  autonomia  ao  mesmo  tempo  em  que  se  impõe,  contra  a  sua  vontade,  a  renúncia  à  sua  escolha  religiosa.52 

Esta oposição diante de uma laicidade opressiva pode ser também vista no manifesto,  trabalhado  pelo  já  lembrado  Tarcísio  Amorim  Carvalho,53  denominado  “Pour  une  laïcité    BETZ, 2013, p. 12.   Loi  du  9  décembre  1905  concernant  la  séparation  des  Eglises  et  de  l’Etat.  Disponível  em:  . Acesso em: 10/07/2014. 52   CANTO­SPERBER; RICOUER, 2003, p. A14. 53   CARVALHO, 2013, pp. 106­107. 50 51

ouverte (Por uma laicidade aberta)”, no qual se verifica, ainda que o mesmo seja do ano de  1989, uma postura que já se chocava com pretensões identitárias e contrárias aos imigrantes  islâmicos, que se justificavam em nome do Estado laico, haja vista que no texto do referido  manifesto, há uma clara defesa de uma igualdade e uma liberdade na diferença. O que exigimos deles? Que eles rompam abruptamente com suas famílias, suas origens. Ao passo  que  queremos  transplantar  uma  árvore  cortando  suas  raízes.  Na  realidade,  duas  concepções  de  laicidade  se  confrontam.  A  de  uma  escola  que  teme  acima  de  tudo  as  diferenças:  a  laicidade  da  blusa cinza, que não suportaria nem véus, quipás ou crucifixos. E outra, mais aberta, de uma escola  laica  e  obrigatória  acima  dos  particularismos,  mas  no  respeito  dos  mesmos.  Uma  laicidade  triunfante que proporcionaria a cada um as condições objetivas de uma escolha individual no seu  próprio ritmo.54 

Também  Jean  Baubérot,  em  vários  de  seus  escritos,  posiciona­se  contra  tal  emprego  estratégico  da  laicidade,  vendo  no  mesmo  uma  leitura  simplista  e  discriminatória,  uma  verdadeira falsificação, advertindo que não só a extrema direita, mas também setores mais ao  centro  e  à  esquerda  do  espectro  político,  tornaram  os  debates  e  a  “defesa  da  laicidade  um  meio  de  estigmatizar  os  mulçumanos”  (“la  défense  de  la  laïcité  est  devenueun  moyen  de  stigmatiser  les  musulmans”),  isto  é,  para  o  sociólogo  francês,  a  denominada  “nouvelle  laïcité” não passaria da tentativa política de se criar condições que justifiquem “mais controle  do Estado sobre a religião e maior repressão do que escapa deste controle.”55 O  mesmo  pensador  ainda  discorre  que  esta  “laïcité  répressive”,  que  tem  em  Marine  Le Pen uma de suas personagens centrais, revela ser uma “pseudo­laïcité” que certos grupos  políticos franceses têm procurado impor aos demais cidadãos, como se fosse uma “laicidade  da  religião  civil”,  edificando  uma  estrutura  hierárquica  entre  as  religiões,  “hierarquização  esta,  que  cria  um  clima  de  mal­estar”  na  sociedade,56  ou  seja,  para  o  referido  Baubérot,  “na  boca de uma Marine Le Pen, laicidade quer, claramente, dizer: nenhuma visibilidade para o  Islã. Posição esta que não é sustentável se respeitamos a igualdade entre as religiões.”57 Faça­se,  neste  momento,  um  ligeiro,  mas  necessário  desvio,  para  que  possamos  destacar que esta dimensão instrumental da laicidade francesa apresenta­se em sintonia com o  fenômeno crescente, observado na Europa,58 de aversão ao estrangeiro, ao diferente, aversão    BRUNNERIE­KAUFFMANN et al. apud CARVALHO, 2013, p. 107.   Disponível  em:  . Acesso em: 16/07/2014. 56   Disponível  em:    e  .  Acesso  em: 16/07/2014. 57   Nas próprias palavras de Jean Baubérot : “Dans la bouche d’une Marine Le Pen, laïcité veut clairement dire:  aucune  visibilité  de  l’islam.  Position  qui  n’est  pas  tenable  si  on  respecte  l’égalité  entre  les  religions”.  Disponível  em:   Acesso em: 17/07/2014. 54 55

esta que tem recebido um rosto mulçumano, onde, como escreve Baubérot, “o Islã torna­se a  representação da imigração perigosa”.59 Dito  isto,  torna­se  necessário  reconhecer  que  a  laicidade  encontra­se  em  meio  a  batalhas  políticas  pelo  sentido  da  herança  das  narrativas  históricas  francesas,  entre  o  recuperar,  o  manter  e  o  descartar,  campo  de  batalha  este  onde  tem  predominado  uma  verdadeira  “compulsão  identitária”,60  impondo,  como  um  imperativo  constitucional,  que  os  questionamentos  possam  ser  discursivamente  levantados,  que  os  cidadãos­herdeiros,  não  só  na  França,  não  aceitem,  passivamente,  as  experiências  fundacionais  que  lhes  querem  ser  impostas, pois, como o mesmo filósofo francês Jacques Derrida, uma vez escreveu,  é  preciso  fazer  de  tudo  para  se  apropriar  de  um  passado  que  sabemos  no  fundo  permanecer  inapropriável,  quer  se  trate  aliás  de  memória  filosófica,  da  precedência  de  uma  língua,  de  uma  cultura ou da filiação em geral. Reafirmar, o que significa isso? Não apenas aceitar essa herança,  mas relançá­la de outra maneira e mantê­la viva.61 

Ora, é esta possibilidade, que um Estado Democrático de Direito garante, de retraduzir  certas  narrativas,  de  divergir  do  que  está  posto,  que  permite  que  os  dissensos  sejam  destampados por aqueles cidadãos que se sentem atingidos em seus direitos fundamentais, em  seu pertencimento constitucional, os quais não aceitam a imposição de disposições normativas  que  entendem  desqualificá­los  como  subordinados  ao  “absoluto  das  raízes  ancestrais”  da  França ou que pretendam libertá­los de suas inadmitidas e indesejáveis identidades religiosas. Foi  este  direito  de  divergir  que  impulsionou  uma  jovem  francesa,  que  professa  a  fé  islâmica,  a  levar  o  seu  caso  ao  Tribunal  Europeu  dos  Direitos  Humanos,  questionando  a  validade, diante da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da citada loi nº 2010­1192 du  11 octobre 2010, interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public, questionamento  este que deu origem ao denominado S.A.S. v. France,62 o qual servirá de pano de fundo para  algumas análises que entendemos ainda serem necessárias.

  Tal assertiva pode ser comprovada, por exemplo, pelos resultados nas eleições para o Parlamento Europeu,  em  2014,  onde  houve  um  inquestionável  avanço  de  partidos  com  plataformas  eleitorais  contrárias  aos  imigrantes,  principalmente  os  mulçumanos,  denotando  um  crescimento  de  um  sentimento  islamofóbico,  de  cunho  racista,  segregacionista  e  xenófobo.  Para  os  dados,  ver:  . Acesso em:  01/07/2014. 59   Disponível em: . Acesso em: 16/07/2014. 60   DERRIDA, 2004, p. 34. 61   DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 12. 58

 

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Todas  informações  e  dados  deste  caso  estão  disponíveis  . Acesso em: 02/07/2014.

em: 

2 Um julgamento, uma decisão, mas não o fim das disputas Como  no  caso  que  abre  este  artigo,  em  S.A.S  v.  França,  a  situação  referia­se  às  restrições,  impostas  pela  lei  francesa  de  2010,  ao  uso  do  véu  islâmico.  Também  aqui,  a  requerente,  uma  moça  jovem,  ressaltou  que  usava  os  véus  por  escolha  própria,  de  que  ninguém em sua família fazia qualquer pressão sobre ela. Além disso, salientou que não usava  o niqab sistematicamente e em todas as circunstâncias, mas que gostaria de ter reconhecido o  direito de escolha, isto é, a applicant entendia que a decisão, de usar ou não o véu, deveria ser  sua,  e  não  uma  imposição  externa,  sob  pena  de  retirar­lhe  a  autonomia  e  a  liberdade  individual. Foi este o pano de fundo que levou a mesma cidadã francesa a contestar a lei, da sua  nação, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), pretendendo demonstrar, diante  da Convenção dos Direitos Humanos da Europa, principalmente das disposições normativas  contidas  nos  artigos  8º,  9º,  10º  e  14º,63  que  vários  dos  seus  direitos  fundamentais  estariam  sendo desconsiderados e violados pela França ao promulgar e a aplicar a citada lei restritiva. Por  sua  vez,  o  governo  francês  enfatizou  a  necessidade  do  Estado,  ainda  que  excepcionalmente, intervir na esfera pública para garantir a proteção das liberdades, atuando,  dentro  de  um  quadro  de  debates  constitucionalmente  estabelecido,  para  fazer  respeitar  um  “conjunto  mínimo  de  valores  de  uma  sociedade  aberta  e  democrática”,  o  qual  incluiria  a  “igualdade de gênero, a dignidade humana e o efetivo respeito com os requerimentos básicos  de uma vida em sociedade, de uma vida em comum” (“living together”). 64 Em poucas palavras, os representantes franceses ressaltaram que a legislação de 2010  tinha  sido  resultado  de  audiências  públicas,  da  oitiva  de  vários  segmentos  da  sociedade  que  poderiam  ser  afetados,  sendo,  inclusive,  validada  pelo  Conselho  Constitucional  Francês,  visando proteger o espaço comum de convivência, o que implicou em estabelecer limites às  condutas  individuais  que  poderiam  criar  tensões  entre  os  cidadãos,  chocando­se  com  os  imperativos  da  lembrada  dimensão  de  vida  compartilhada.  Ou  seja,  o  interesse  público  deveria  se  sobrepor  aos  interesses  individuais,  pois  qualquer  medida  legislativa  produz  impactos  sociais  que  não  agradam  a  todos,  mas  isto  faria  parte  do  jogo  democrático,  haja  vista que a lei questionada foi debatida e aprovada nos foros constitucionalmente previstos.    Art. 8º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar), Art.9º (Liberdade de pensamento, de consciência e  de  religião),  10º  (Liberdade  de  expressão)  e  14º  (Proibição  de  discriminação).  Disponível  em:  . Acesso em: 18/07/2014. 64   Para uma visão mais ampla dos debates travados durante o procedimento em S.A.S., conferir a “sustentação  oral”  dos  representantes  das  partes  envolvidas.  Disponível  em:  . Acesso em:  18/07/2014. 63

Em  realidade,  denota­se  que  as  respostas  e  colocações  do  governo  francês  foram  na  linha  das  justificativas  apresentadas  quando  da  apresentação  do  projeto  de  lei  à  Assembleia  Nacional,  fundamentando­se,  por  exemplo,  em  posições  como  as  defendidas  por  Sarkozy  (“the burqa is not a religious sign; it is a sign of subservience, a sign of debasement.”) ou  Jean­François Copé, líder da maioria no ano de 2009, para quem, o “véu islâmico chocava­se  fortemente  contra  a  dignidade  das  mulheres”  (“blow  against  the  dignity  of  women”).  Além  disso,  também  os  motivos  expostos  quando  da  tramitação  do  referido  projeto  de  lei  na  Assemblée Nationale foram recuperados, isto é, a de que a finalidade precípua da lei seria a de  edificar a igualdade de gênero, preservar os princípios maiores do Estado francês e promover  a ordem pública.65 Em  virtude  desta  linha  argumentativa  adotada,  a  qual  procurou  salientar  o  caráter  emancipatório, de socialização e de prevenção diante do aumento da tensão social em virtude  de certas práticas religiosas, o governo francês chegou a indagar, como preliminar de mérito,  o  status  de  vítima  que  a  requerente  tinha  alegado,  pois,  na  visão  oficial,  as  intervenções  restritivas eram não só necessárias ao bom funcionamento da democracia constitucional e da  vida  pública,  como  se  mostraram  proporcionais  aos  fins  visados,  além  de  não  ter  existido  qualquer  dano  direto  que  pudesse  legitimar  tal  qualificação,  ao  contrário,  já  que,  para  o  governo  francês,  era  a  requerente  que  não  se  pautava  por  uma  dose  de  flexibilidade  em  relação às suas condutas públicas. Ora, diante do exposto pelas partes, a Corte Europeia dos Direitos Humanos decidiu,  em julho de 2014, que a legislação francesa não feria as normas convencionais, destacando,  como  central,  que  o  respeito  e  a  defesa  da  dimensão  coletiva  da  vida  legitimava  os  fins  perseguidos  pelo  Estado  francês,  sendo  que  ao  mesmo,  nesta  seara,  foi  reconhecido  uma  ampla  margem  de  manobra  (“a  wide  margin  of  appreciation”)  no  que  tange  aos  caminhos  escolhidos para a implementação de suas políticas públicas.  Deste modo, o Tribunal admitiu, como legítimos, os argumentos de segurança pública  e de proteção dos direitos e liberdades de outros, que tinham sido apresentados pelo governo  francês, enquadrando os mesmos dentro das permissões tipificadas nos acima citados artigos  8º e 9º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, isto é, na interpretação dos membros  da Corte, a “public safety” justificava­se pela necessidade de identificação individual a fim de  prevenir  atos  contrários  à  ordem  e  à  segurança  da  sociedade,  além  de  combater  identidades  falsas,  fraudulentas,  todavia,  a  mesma  Corte  ressaltou  que  a  aplicação  destas  medidas   

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Disponível  em:  . Acesso em: 18/07/2014, p.02 (pontos 6/7).

deveriam  mostrar­se  proporcionais,  e  apenas  quando  houvesse  uma  concreta  ameaça  à  segurança pública.  Quanto  à  “protection  of  the  rights  and  freedoms  of  others”,  também  aceitou­se  as  teses do governo da França, as quais enfatizavam o “respect for the minimum set of values of  an  open  democratic  society”,  onde  o  Estado  possui  um  relevante  papel  de  fomento  e  de  garantia  das  interações  sociais,  interações  estas  que,  com  base  em  consensos  estabelecidos,  podem  exigir,  para  manterem­se  abertas,  que  certas  práticas  e  condutas  individuais  sejam  restringidas como condição de possibilidade das mesmas interações.   Observe­se,  por  fim,  que  a  Corte  Europeia,  sempre  tendo  em  vista  a  proporcionalidade  da  aplicação  das  disposições  normativas  contidas  na  legislação  de  2010,  reconheceu que as mesmas poderiam apresentar­se excessivas, ao menos para aquele grupo de  mulheres que usavam o véu que oculta o rosto. Aliado a isto, o referido Tribunal mostrou uma  séria preocupação com informes que diziam que os debates políticos que precederam a adoção  da lei de 2010 tinham sido marcados por uma dose de islamofobia. Em princípio, esta decisão adotada pelo TEDH revela­se coerente com outras decisões  de admissibilidade em situações similares que exigiram posicionamento do mesmo Tribunal,  onde a defesa da segurança pública, da escola pública laica e de princípios normativos tidos  como  centrais  para  uma  vida  em  comum,  ainda  mais  quando  defrontados  com  casos  excepcionais,  foram  interpretados  como  se  estivessem  dentro  da  margem  de  apreciação  do  poder  público,  o  que  legitimaria,  assim,  interferências  no  âmbito  normativo  de  certas  liberdades fundamentais previstas na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.66 Contudo, um ponto destaca­se na decisão do Tribunal Europeu, que é o que se refere à  sua interpretação do artigo 9 da European Convention of Human Rights, o qual é dividido em  dois  pontos,  onde  o  primeiro  dispõe  que  a  liberdade  de  pensamento,  consciência  e  religião,  entre  outros  direitos,  garante  a  “[...]  liberdade  de  manifestar  a  sua  religião  ou  a  sua  crença,  individual  ou  coletivamente,  em  público  e  em  privado,  por  meio  do  culto,  do  ensino,  de  práticas e da celebração de ritos”, enquanto o ponto dois afirma que estas mesmas liberdades,  ainda  que  excepcionalmente,  podem  ser  legalmente  restringidas  quando  essas  restrições  mostrarem­se “[...] necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção  da  ordem,  da  saúde  e  da  moral  públicas,  ou  à  proteção  dos  direitos  e  das  liberdades  de  outrem”.   Conferir, entre outros: Phull v. France (2005), Dogru v. France (2008) e Aktas v. France (2009). Disponíveis  em:  . Acesso em: 14/07/2014.

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  Ora,  na  posição  construída  pelo  TEDH  no  caso  em  tela,  o  referido  segundo  ponto  apresenta­se com maior força normativa, como se a singularidade do caso concreto fosse um  problema  intransponível  para  a  aplicação  das  liberdades  convencionais,  onde  a  pretensão  individual, fundamentada nas disposições do ponto inicial do artigo 9, tivesse de ceder espaço  para uma suposta “necessidade da sociedade democrática”, como se a norma geral e abstrata  esgotasse a dimensão de concretização do ordenamento jurídico­convencional. Apropriando­ nos de argumentos elaborados por Menelick de Carvalho Netto, podemos colocar, como uma  necessária reflexão, se o TEDH não teria desconsiderado a circunstância fática de que não há  indivíduos gerais e nem a vida é abstrata, pois, se uma norma geral e abstrata é um enorme  ganho  protetivo,  a  mesma  não  nos  alivia  do  árduo  trabalho  de  reconhecermos  que  se  faz  necessário “[...] a concretude e a individualidade dos eventos para a configuração normativa  adequada a reger aquela situação determinada, sempre específica e datada”.67  Dito  isto,  também  nos  indagamos,  recuperando  questionamentos  antes  elencados,  se  este prevalecente “interesse público” não estaria sendo traduzido, ora como interesse estatal,  ora como interesse da maioria, isto é, será que, em um Estado Democrático de Direito como a  França afirma ser, uma legislação em defesa da laicidade pode ser “legitimada” com apelos à  ordem pública, a razões e necessidades de Estado e, principalmente, com fundamento na visão  majoritária predominante?  Ainda que aceitemos que em certas circunstâncias concretas, como, por exemplo, em  um controle de passaporte realizado em um movimentado aeroporto internacional, possa ser  exigido que o véu seja levantado ou mesmo vedado em certas áreas, isto não quer dizer que  devamos ser cegos para a sempre presente possibilidade de instrumentalização de mecanismos  e  instituições  da  democracia  constitucional,  ou  seja,  para  o  risco  de  pretensões  abusivas  ocultarem­se  por  detrás  de  argumentos  e  demandas  de  defesa  do  Estado  Democrático  de  Direito,  haja  vista  que  “arroubos  nacionais  aparentemente  democráticos,  certamente  podem  levar, precisamente, a afirmações extremamente perigosas para a democracia.”68  Este risco é, como já destacamos, ainda maior quando ocorre uma ontologização dos  pontos  de  partida  das  análises,  imperando  uma  lógica  do  tipo  civilizados  contra  bárbaros,  onde  a  civilização,  sinônimo  de  progresso  e  evolução  positiva,  marca  a  fronteira  com  o  inaceitável, com o que não pode (e até mesmo não deve) ser compreendido, sendo que o nós  busca  comprovar  que  o  melhor  que  eles  fazem  é  abdicar  de  suas  identidades  e  introjetar  a  nossa, ou seja, o grave risco de uma provável instrumentalização da laicidade estaria no fato    CARVALHO NETTO, 2003, p. 157.   CARVALHO NETTO, 2001, p. 14.

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de  que  a  tradução  do  sentido  de  laico,  além  de  procurar  transformar  o  pluralismo  em  um  obstáculo, parte de uma posição onde o outro é estereotipado, estigmatizado, transformando o  diferente, o estrangeiro, em um inimigo de uma identidade fechada e autorreferida. Reitera­se, mais uma vez, que muitos dos argumentos mais radicais sobre a laicidade,  como,  por  exemplo,  aquele  que  afirma  que  uma  “ditadura  laica  é  melhor  que  uma  ditadura  islâmica”,69 não são exclusividade da França, bastando que recuperemos a obscura concepção  da Eurábia, tantas vezes lembrada por um dos expoentes da extrema­direita holandesa, Geert  Wilders,  para  quem,  se  nada  for  alterado,  em  termos  de  ações  políticas,  em  um  futuro  não  muito  distante,  a  Europa  será  tomada  pelo  Islã,  onde  existirão  “mais  mesquitas  do  que  igrejas”,  o  que,  na  opinião  do  mesmo  político  holandês,  justificaria  legislações  que  dessem  “dinheiro para os muçulmanos holandeses irem embora”.70  É por isso que entendemos que os impactos que as mensagens71 que instituições como  o  Tribunal  Europeu  dos  Direitos  Humanos  encaminham  para  a  sociedade,  quando  fundamentam suas decisões, não podem ser desconsideradas, sendo necessário vermos  [...]  todo  o  processo  constitucional  em  sua  complexidade,  em  sua  artificialidade,  sendo  fundamental  que  ele  próprio  seja  garantido  como  um  processo  democrático  e,  sobretudo,  que  a  ideia de povo não possa ser uma ideia naturalizada, total ou totalizante, excludente, pois recaímos  outra vez na ditadura sempre que admitimos essa redução e absorção do indivíduo sem diferenças  num todo igualitário.72 

Em  outros  termos,  posicionamo­nos  com  aqueles  que  entendem  que  normas  não  são  apenas  textos,  requerendo,  então,  que  as  experiências  do  contexto  não  sejam  incorporadas  naturalizadamente, isto é, não há, ao menos em uma democracia constitucional como a aqui  exposta, como eliminarmos a tensão entre identidade e diferença, sendo que assumimos que  esta última, ao contrário de ser um problema é, em realidade, potencialmente produtiva, pois   

Disponível  em:  . Acesso em: 18/07/2014.  70   Disponível  em:  .  Acesso em: 10/07/2014. 71   Este  fator  de  como  as  decisões  tomadas  são  interpretadas  pela  sociedade,  mostra­se  de  suma  importância,  pois  tais  decisões  acabam  emitindo  sinais  sobre  o  caminho  que  está  sendo  trilhado  em  relação  a  um  dado  tema de interesse coletivo. Ora, ainda que possa ser tido como uma comparação apressada, não há como não  vermos este quadro quando somos informados que, durante o desenrolar da Copa do Mundo de Futebol de  2014,  o  Prefeito  da  cidade  de  Nice,  França,  com  argumentos  próximos  aos  empregados  para  justificar  a  legislação  sobre  o  véu  (diminuir  potenciais  conflitos  oriundos  de  “comportamentos  intoleráveis  que  afetavam  a  tranquilidade  pública”),  interditou  o  uso  “ostensivo  de  bandeiras  estrangeiras”.  Para  alguns  observadores,  tal  medida  deveu­se  ao  sucesso  do  time  da  Argélia  no  citado  evento  esportivo,  o  qual  tinha  gerado,  durante  as  celebrações  argelinas  em  Nice,  a  exposição  pública  de  um  número  considerável  de  bandeiras  daquele  país  do  norte  da  África.  Disponível  em:  . Acesso em: 19/07/2014. 72   CARVALHO NETTO, 2001, p. 14. 69

entendemos,  com  Chantal  Mouffe,  que  “[...]  é  precisamente  a  existência  dessa  permanente  tensão entre a lógica da identidade e a lógica da diferença que faz a democracia um regime  particularmente adaptado ao caráter indeterminado e incerto da política moderna.”73  E isso, por sua vez, não significa que estejamos a defender alguma posição absolutista  sobre o exercício dos direitos fundamentais, já que seria uma contradição performativa diante  de  muitos  dos  pressupostos  por  nós  aqui  esposados,  principalmente  com  o  sentido  de  uma  identidade  constitucional  complexa,  onde  o  risco  e  a  contingência  são  constitutivos  de  qualquer representação de mundo, onde igualdade e liberdade, público e privado, ao invés de  excluírem­se, complementam­se, pressupondo­se em insuperável tensão.  O que estamos a questionar sobre legislações restritivas de direitos fundamentais e do  pluralismo,  como  as  francesas  abordadas  neste  artigo,  é  o  que  subjaz  nas  sombras  das  mesmas,  isto  é,  o  emprego  estratégico  da  defesa  do  laico  como  forma  de  subordinar  e  de  excluir,  além  de  uma  enorme  pretensão  normativa  de  se  procurar  configurar  e  controlar  a  construção das identidades pessoais, da vida, através de “leis” ou de algum redivivo Comité  de Salut Public ao modo jacobino, quando se acreditava, como ato de crença, na existência de  uma  verdade,  desconhecendo  a  dimensão,  tantas  vezes  por  nós  salientada,  do  risco,  do  imprevisível,  de  produzir­se  o  que  busca­se  combater,  no  caso  francês,  o  reforço  de  identidades religiosas de postura fundamentalista.  Assim,  do  exposto,  podemos  perceber  que  as  disputas  sobre  o  sentido  da  laicidade  estão  longe  de  se  estabilizarem,74  se  é  que  tal  estabilidade  seja  possível,  ainda  mais  em  um  Estado  que  se  diz  democrático  e  constitucionalmente  aberto,  haja  vista  a  inegável  ambiguidade  presente  em  todas  as  discussões  e  debates  apresentados  sinteticamente  acima,  onde  a  laicidade  é  tanto  apresentada  como  radicalmente  fechada,  fonte  de  unificação  da  identidade nacional, quanto aberta, constitucional e pluralista. Conclusão

  MOUFFE, 1994, pp. 106­107.   Um exemplo expressivo destes debates e ambiguidades em torno da laicidade é a postura do sociólogo Alain  Touraine, a qual revela claramente as disputas travadas, haja vista que o referido sociólogo foi, em 1989, um  dos autores do manifesto, acima citado, “Pour une laïcité ouverte”, o qual contrapunha­se a posições tidas  como  mais  duras  e  fechadas  sobre  o  significado  de  laicidade  na  sociedade  francesa.  Todavia,  nos  anos  de  2003 e 2004, passou a defender a legitimidade de se banir os véus islâmicos, chegando, inclusive, a escrever,  ao  refletir  sobre  a  lei  que  proíbe  o  uso  de  véus  nas  escolas  públicas,  que  “somente  quando  a  população  estiver tranquila [...] é que poderemos [a sociedade francesa] fazer valer os direitos do pluralismo cultural e,  no presente caso, os direitos das jovens que reivindicam o reconhecimento de sua fé.” Além disso, destacou  que “as conquistas do conhecimento científico não podem ser anuladas em nome do tradicionalismo ou do  irracionalismo que se estabelece antes pelo terror do que pelo convencimento” (TOURAINE, 2004, p. 11). 

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Todas as questões que foram, ao longo de nosso trajeto, sendo levantadas, podem ser  sintetizadas em uma só indagação: pode­se, dentro de uma democracia constitucional de base  plural, vedar­se a exposição pública de símbolos religiosos, como o véu islâmico que cobre  todo ou quase todo o rosto, tendo como fundamento a defesa da laicidade e como justificativa  o interesse público de diminuir tensões sociais e de preservar a autonomia e a liberdade das  mulheres? Em  nossa  compreensão,  a  resposta  passa,  necessariamente,  pela  contextualização  do  tema,  sem  a  qual  qualquer  análise  se  torna  por  demais  abstrata,  ampliando  as  áreas  não  iluminadas,  aceitando,  como  se  natural  fosse,  certas  concepções  que  gravitam  em  torno  da  laicidade,  isto  é,  para  refletirmos  sobre  o  alcance  normativo  desta  laicidade  na  França  buscamos  apreender,  simultaneamente,  e  ainda  que  de  modo  sintético,  qual  o  sentido  das  relações  público/privado  e  igualdade/liberdade  e  o  seu  consequente  efeito  sobre  o  essencial  direito à divergência, à diferença. Nesta  linha,  os  direitos  individuais  surgem  com  a  mesma  força  normativa  dos  interesses públicos, os quais não são lidos como se possuíssem alguma aplicação preferencial,  desvelando, de modo problematizado, que os indivíduos têm, em seus direitos fundamentais,  verdadeiros trunfos, para nos apropriarmos de Dworkin (1984), frente a pretensões oriundas  do Estado que se afirmam legitimadas com base em algum clamor majoritário ou defesa da  ordem pública, ou seja, uma interpretação dos direitos individuais, como realiza, por exemplo,  Dworkin, ao assumir que qualquer referência ao “viver coletivo/bem comum”, não são, por si  mesmas, justificativas automáticas que legitimem restrições estatais das condutas individuais.  Daí podemos aferir que o emprego da laicidade em seus sentidos mais extremos, como  meio de legitimar restrições aos direitos de certas minorias, é uma das faces do exercício do  poder na contemporaneidade. Em inúmeras casos, é negada a exclusão deste ou daquele grupo  social, alegando­se estar atuando em nome da própria democracia e da integração social. Para  exemplificar, lembramos das situações em que a mídia, justificando­se no direito fundamental  à  informação,  recorrentemente  confere  “especial  atenção  aos  crimes  cometidos  por  minorias”,75  reforçando,  sem  assumir,  estereótipos  naturalizados  do  estrangeiro,  do  outro,  sendo  que  estes  são  apresentados  sempre  em  conjunto  com  epítetos  depreciativos  e  humilhantes.76  Esta postura é ainda mais relevante quando estamos pensando o normativo, já que, se  partimos das situações concretas de aplicação das normas, podemos afirmar, apropriando­nos    DIJK, 2008, p. 163.   DIJK, 2008, pp. 155­196.

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de raciocínios elaborados por Michel Rosenfeld77 ao estudar o cenário norte­americano, que,  no  atual  quadro  francês,  o  sentido  predominante  de  laico  constrói­se,  ainda  que  em  meio  a  fortes  disputas,  como  reflexo  de  uma  identidade  nacional  extremamente  forte,  mas  que  não  pode expor­se explicitamente, sob pena de afrontar os compromissos de liberdade e igualdade  do moderno constitucionalismo.  Devemos,  pois,  estar  atentos  ao  fato  de  que  a  luta  por  laicidade  pode  ocultar  pretensões  abusivas,  ainda  mais  quando  não  levamos  a  sério  o  poder  conformador,  por  exemplo,  de  atos  terroristas  como  os  de  11  de  setembro,  os  quais  podem  nos  conduzir  a  distinguir  entre  direitos  constitucionais  dos  cidadãos,  mais  efetivos,  e  dos  inimigos,  que  podem ser relativizados, para nos apropriarmos de Günther Jakobs,78 demonstrando, de certo  modo, “[...] como a percepção do Ocidente se altera quando o “outro” escapa ao terreno das  diversidades já aceitas.”79  Muito  do  que  aqui  estamos  procurando  ressaltar  pode  ser  sintetizado  pelo  verificado  em um caso, ocorrido na Inglaterra, onde, inspetores educacionais, ao visitarem a escola Park  View,  da  cidade  de  Birmingham,  para  averiguar  a  existência  de  um  suposto  “domínio  islâmico”  na  referida  instituição  de  ensino,  chegaram  a  duas  conclusões  diferentes  com  intervalo de apenas pouco mais de dez dias. Na primeira inspeção, não obstante “brincarem  com o fato de que havia muitos professores barbados”, nada viram que comprovasse qualquer  evidência de um “domínio”.  Todavia, dias após os jornais publicarem, com destaque, que havia uma “conspiração  de aquisição de escolas”, os citados inspetores retornaram e, desta vez, produziram um outro  relatório conclusivo, o qual afirmava que a escola visitada mostrava­se “inadequada”, já que o  “extremismo” não estava contido, podendo atingir as crianças e ofender o multiculturalismo  britânico. O estopim para todas as inspeções teria sido uma carta anônima contendo uma série  de  acusações  (por  exemplo,  orações  forçadas  e  clérigos  extremistas),  missiva  esta  que,  posteriormente, verificou­se ser uma fraude. Mas um fato, comprovado, não pode deixar de  ser  posto:  Park  View,  a  escola  inspecionada,  encontra­se  inserida  em  uma  região  de  forte  presença  mulçumana,  tendo,  a  referida  instituição  de  ensino,  durante  vários  períodos,  sido  marcada como “uma das piores da Grã­Bretanha”, mas, na atualidade, “coloca 8 de cada 10  de  seus  alunos  no  ensino  superior”,  obtendo  excelentes  notas,  sendo,  por  isso,  muito  procurada.

  ROSENFELD, 2003.    JAKOBS, 2003. 79   BIGNOTTO, 2004, p. 62. 77 78

O que mais impressiona nesta situação, e daí sua importância para os nossos estudos, é  a  explicitação  da  rede  mídia,  medo  generalizado  e  estereótipos  naturalizados,  pois,  como  o  diretor  executivo  de  Park  View  destacou,  a  mensagem  enviada  à  sociedade  era  evidente:  “Muçulmanos  conservadores  são  extremistas,  e  suas  escolas  têm  valores  não  britânicos”.  Enquanto o diretor geral, ao colocar a questão de se havia uma “conspiração”, respondeu que  “sim”, a de “reverter o mau desempenho das crianças muçulmanas neste país e permitir que  elas sejam as duas coisas: muçulmanas e britânicas”.80 São estes argumentos e situações que nos fazem concordar com algumas das posições  de um estudioso como Jean Baubérot, já que, para o mesmo pensador, laicidade é a separação  entre  o  aparato  estatal  e  a  esfera  religiosa,  onde  o  imperativo  de  imparcialidade  e  de  neutralidade seriam voltadas ao Estado, garantidor das liberdades e igualdades dos cidadãos  enquanto  indivíduos  religiosos  ou  não,  posição  esta  que  choca­se  com  vertentes  onde  a  neutralidade  laica  é,  principalmente,  exigida  dos  cidadãos,  o  que,  para  Baubérot,  é  uma  instrumentalização e uma falsificação do sentido de laico na história francesa, colocando em  xeque a própria noção de liberdade de consciência. Em razão de tais circunstâncias, Baubérot  escreve  e  defende  que  “já  é  tempo  de  separar  a  laicidade  da  repressão  e  para  reuni­la  novamente à liberdade.”81 Mas  enfatizar  a  dimensão  da  liberdade  e  da  autonomia  dos  cidadãos,  como  estamos  assumindo, não pode ser traduzido como ausência de limites, mas sim, de que estes mesmos  limites  devem  ser  estabelecidos  previamente,  como  necessários  ao  próprio  operar  das  estruturas  e  procedimentos  democráticos,  como  condição  de  possibilidade  destes,  isto  é,  as  legislações francesas que restringem condutas religiosas no espaço público, procurando enviá­ las e mantê­las no privado, apresentam­se muito mais como respostas a medos e estereótipos,  e não como resultado de exigências postas pela própria democracia constitucional. Estes  imperativos  funcionais  seriam  visíveis,  hipoteticamente,  se  uma  agremiação  política,  de  forte  apelo  religioso,  disputasse  as  eleições  defendendo  uma  plataforma  que  afirmasse  que,  se  vencedor  do  pleito,  iria  impedir  as  próprias  práticas  democráticas,  tão  somente utilizando dos mecanismos e de instituições do Estado Democrático de Direito para  fechá­lo. Em tal situação, estaríamos diante de um indubitável exercício abusivo de direitos,  legitimando o aplicar de restrições, mas essas restrições, por serem condição de possibilidade    Todas  as  informações  deste  caso  são  oriundas  da  reportagem  “Writing  and  Allegations:  Muslim  School  at  Center  of  Debate”.  New  York  Times  News  Service,  June,  22,  2014.  Disponível  em:  . Acesso em: 22/07/2014. 81   “Il est plus que temps de séparer laïcité et répression pour l’unir de nouveau à la liberté.” Disponível em:  . Acesso em: 16/07/2014.  80

da  democracia  constitucional,  não  seriam  exclusivamente  direcionadas  a  movimentos  religiosos,  mas  sim,  a  todos  aqueles  “fundamentalismos”,  incluindo  os  “nacionalismos  secularistas”,  não  sendo  estratégias  responsivas  e/ou  midiáticas,  já  que  elas  próprias  revelam­se, quando constitucionalmente adequadas, limitadas e garantidoras de direitos. Por fim, sob pena de nos alongarmos demasiadamente, assumindo nossos limites, não  apenas  em  virtude  do  espaço  que  aqui  dispomos,  mas  principalmente  porque  jamais  pretendemos esgotar o assunto, temos que destacar que procuramos demonstrar que liberdade,  emancipação e autonomia não podem ser impostos, frutos de coerção, que o público, o qual  não  exclui  o  privado,  não  é  propriedade  do  estado  ou  de  alguma  eventual  maioria,  dizendo  respeito,  potencialmente,  a  todos  os  cidadãos,  o  que  inclui  os  direitos  fundamentais  das  minorias, o direito de divergir, onde, legítimas são aquelas normas validadas intersubjetiva e  discursivamente, implicando que problematizemos, por exemplo, se as pretensões levantadas  em  defesa  da  laicidade  são  ou  não  abusivas,  estratégias  de  domínio  e  exclusão  política  e  participativa,  isto  é,  se  estão  ou  não  a  refletir,  “simplesmente”,  a  circunstância  de  que  “na  verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra.”82  À  luz  de  todas  estas  considerações,  talvez  devêssemos  finalizar  com  uma  espécie  de  advertência, aquela elaborada pelo filósofo Karl Jaspers, que anotou, uma vez, que “por certo  [...],  dentro  do  clima  da  liberdade,  o  risco  de  perdição  é  grande  e  possível  a  perdição  total.  Mas, sem liberdade, a perdição é inevitável.”83  Referências  ALLEN, Peter. French mother, 32, set to become first woman to be jailed for wearing banned  Islamic  veil.  Daily  Mail  (On  Line),  December,  13,  2011.  Disponível  em:  . Acesso em: 05/07/2014. BAUBÉROT,  Jean.  “La  laïcité  de  l’UMP,  c’est  une  France  discriminatoire”.  Section  de  Toulon  de  la  LDH,  Juin,  2,  2011.  Disponível  em:  . Acesso em: 16/07/2014. BAUBÉROT,  Jean  (2012).  La  laïcité  falsifiée:  Peut­on  parler  d’une  instrumentalisation  politique  et  identitaire  de  la  laïcité  en  France?  Mars,  2012.  (Conférence)  Disponível  em:  .  Acesso em: 02/07/2014.

  MONTAIGNE apud BIGNOTTO, 2004, p. 75.   JASPERS, 1971, p. 74.

82 83

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