A Lei 10.639-03 e as-os AGENTES DA LEI.pdf

May 27, 2017 | Autor: Amauri Pereira | Categoria: História e Cultura Afro-Brasileira, Lei 10639/2003, Cultura de Consciência Negra
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A Lei 10.639/03 e as-os AGENTES DA LEI (Com gratidão para Azoilda Trindade e Jacques D’ Adesky)

Amauri Mendes Pereira Professor do DTPE-IE-UFRRJ [email protected] “Foi em Diamantina, onde nasceu JK, que a princesa Leopoldina arresolveu se casar. Mas Xica da Silva tinha outro pretendente, e obrigou a princesa a se casar com Tiradentes. (...) Da união deles dois ficou resolvida a questão, e foi proclamada a escravidão... E assim se conta essa história, que é dos dois a maior glória. Dona Leopoldina virou trem, D. Pedro é uma estação também.” Samba do Crioulo Doido Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)

Nos anos 70, Sergio Porto-Stanislaw Ponte Preta, escritor e humorista, fez um enorme sucesso com o “Samba do crioulo doido”, uma piada sobre a (in)capacidade intelectual e a (não)lucidez do compositor de escolas de samba. Assolado por informações vistas como fora de seu horizonte cultural, o compositor não consegue dar conta: e “acontece” um samba enredo sem pé nem cabeça, misturando feitos e personalidades históricas de maneira desconexa e aleatória. O prestígio daquele autor impôs silêncio constrangido a muita gente. Era evidente a racialização, além do mais porque também há compositores brancos no mundo do samba, e o humor negro (ou melhor, branco). Flagrante, por sinal, a insensatez da “piada”: compositor “pirado”? Ao contrário, comum é lembrar facilmente de grandes sambas enredo nas Escolas de Samba, mesmo entre os não vencedores, que não “chegaram à avenida”. Por que foi fácil para aquele intelectual fazer a piada racista? Primeiro porque ele podia fazê-la: sua expressão era assegurada em coluna regular de importante jornal de circulação nacional. Segundo, que no país da democracia racial ele tinha liberdade para isso, pois ninguém é racista: era apenas uma brincadeira... Terceiro, porque ele não conhecia (ou conhecia pouco) o mundo do samba, para saber do cuidado com a criação artística, poética, e o lugar especial que têm naqueles contextos. Existencialidades e sociabilidades nos “meios negros” em quase todas as regiões brasileiras são pouco conhecidas, e quase sempre estereotipadamente. Apesar de espaços comuns a brancos e negros, sempre houve um viés “racial” na segregação social. Enfim, a pretensão aqui é argumentar que a lei 10.639/03 vem para ajudar nesse tipo de situação. Tirando-se a Historia e Cultura Afro-Brasileira do gueto (a culturalização e folclorização) em que foi confinada, impõem-se rearranjos teóricos e éticos de máxima relevância. De saída, é imperativo problematizar a naturalização da “brincadeira racista”: como não perceber que racialização (hoje institucionalizada, pois o bom senso não conseguiu se impor) só é “uma coisa a toa”, uma “brincadeira”, para quem racializa, não para quem é racializado? Outra coisa, ainda aproveitando o exemplo: é notável a contribuição de alguns intelectuais que se dedicaram a conhecer o mundo do samba1: é comum encontrar-se em seus textos, embora nem sempre analisadas, a multiplicidade de dimensões (política, econômica, e outras) dos processos sociais que instituíram, tantas vezes “a ferro e fogo”, as manifestações culturais de matrizes africanas, sua historicidade, sua 1

Exemplos: CABRAL (1974), MOURA (1983), LOPES, (1981 e 1992)

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simbologia, sua estética, como elementos centrais na formulação da identidade nacional brasileira. Ou seja, o mundo negro, que pode ser apresentado através do “guarda chuva conceitual” História e Cultura Afro-Brasileira, que nos perdoe Sergio Porto, autor de obra admirável sob vários aspectos, não cabe em estereótipos: é muito mais! Justiça seja feita: Durante anos o Movimento Negro Brasileiro capitaneando redes mais amplas da luta contra o racismo bradou pela democratização dos currículos educacionais: História da África! História social do povo negro! Respostas: - De um lado os eternos “ingênuos”: “Por que a história do negro, por acaso temos uma história do branco?” Ou “Por que história e cultura afro-brasileira se somos um povo miscigenado?” - De outro, se acumulavam pesquisas particularmente na área da Educação sobre os prejuízos causados pelo preconceito racial à qualidade do ensino e à formação intelectual e da consciência social cidadã dos nossos estudantes, pelas omissões e/ou distorções (quase sempre as duas coisas) reproduzidos em livros, conteúdos e procedimentos pedagógicos. Sempre houve e continua havendo educadores que se escondem-omitem-rejeitam enfrentar o preconceito e a discriminação racial no cotidiano escolar. Assim como sempre houve (e cada vez mais!) os-as que demandavam informações e cursos a respeito desses temas. Além da busca de enriquecimento intelectual, valia e vale a pena mergulhar naquele magma de vivências (“saber” é pouco-só vale se for vivência!) de que se ouve falar! Bom demais encantar aulas com a sensibilidade e profundidade que extravasa em conhecimentos e mitologias, cores, cânticos e sonoridades, danças e movimentos, jeitos e trejeitos, no imaginário recheado de significações inconsúteis! Mas ansiavam, também, por preparo para lidar com situações “constrangedoras”, “conflituosas”, “difíceis”, etc, geradas por “incompreensões” e “brincadeiras”: manifestações de preconceito e discriminação racial no cotidiano escolar. Por que não se falava “disso” na formação de professores? Só excepcionalmente e desafiadoramente um-a ou outro-a professor-a, versado-iniciado-a, tomava a iniciativa e promovia palestras, exposições de vídeos e de manifestações culturais, debates, etc. Agora é Lei! Atenção: não se trata de, mais uma vez, exercitar piedade – fora com a vitimização e a auto-vitimização! A Lei não é para o-a negro-a. A Lei é para todos-as! É crucial, tanto expurgar a auto-estima rebaixada pelo sentimento de inferioridade (que aflige mais a negros-as), quanto a auto-estima inflacionada pelo sentimento de superioridade (habitualmente incorporada por brancos-as). Uma coisa não acontece sem a outra: são gêmeas e terríveis as distorções na formação da consciência social, derivadas de preconceitos e estereótipos raciais, inoculados desde tenras idades, em famílias de todas as cores, despreocupadas/desinteressadas/indiferentes à questão racial. Não existe, portanto, um problema dos negros. É perniciosa a inocência/conveniência do “branco” que se coloca “de fora”: finge que não percebe as vantagens materiais e simbólicas para os mais claros, de cabelos lisos, etc. A Lei oferece à sociedade a oportunidade da se repensar. Esvaziar a idéia comum e imobilizadora, de que “a questão é só de classe social”, e de que são os próprios 2

problemas psicológicos que criam complexos e recalques, que ainda assolam muitas crianças, jovens, homens e mulheres negras: Isso que existe, mas não é causa, e sim conseqüência do racismo. Todo o gosto e “pique” na implementação da Lei precisa estar alerta, também, para o risco de se perpetuar – agora com mais pesquisa e informações – o gueto conceitual e historiográfico que segregou a trajetória da população negra. Como se História e Cultura Afro-Brasileira não fosse História do Brasil. Aqui tudo aconteceu muito mais intensamente do que em qualquer das nações mais extensas criadas no novo mundo: aqui chegou mais ou menos a metade de todos os seres humanos vindos no tráfico Atlântico; aqui começou a escravidão nas Américas e foi o último lugar onde acabou; e só aqui houve escravidão – e luta contra a escravidão – em todo o território nacional. Como pode esse peso demográfico, essa longevidade histórica, essa capilaridade territorial e cultural, ser vista nas interpretações mais influentes sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, como meras contribuições. Toda densidade das ações, enunciações, corpos e almas da gente negra, reduzidos a apêndices, “encaixados” numa História do Brasil caiada, como ironizou José Honório Rodrigues (1964). Numa interpretação isenta de racialismo isso é incabível. Às-aos Agentes da Lei, cabe mostrar como tudo seria diferente se a partir da república a lei tivesse sido pra valer! Ao invés disso foi vitorioso o projeto racial de nação, de Estado nacional e de sociedade. Homens de ação, pensadores e instituições mais ilustres e poderosos eram reféns das doutrinas do “racismo científico”, dominantes na Europa do século XIX: daí a imigração, a colossal política pública do nascente Estado Republicano ter sido racial. Foram trazidos para o Brasil mais imigrantes europeus em pouco mais de 35 anos, do que africanos em 350.2 Como não explicitar a evidência de que as classes dirigentes pretendiam “lavar a mancha negra”, “depurar o mascavo nacional [o sangue negro]”, realizar uma “redução étnica” ou um “genocídio pacífico” – em outras palavras, substituir a população negra como mais forte marca demográfica, social e cultural?3 Não é pouco o trabalho das-dos Agentes da Lei. Sua práxis se inscreve em novo tempo! Pelourinhos, mordaças, correntes, dores sem fim, fechamentos, resistências e reatividades, já tiveram seus usos para a dominação e para as denúncias e lutas contra a dominação. Hoje são outras as ferramentas da dominação e outras serão as de efetiva libertação. Celebrar o presente e a ação transmutando tudo que já há em Cultura de Consciência Negra: superação permanente, deliberada e consistente dos preconceitos, estereótipos, lugares concedidos, favores, concessões, “reconhecimentos” – sem limites raciais aos sentidos de Justiça Social, Cidadania, Democracia. Bibliografia: CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba (O que, que, como, quando e por que). Editora Fontana. RJ. 1974. GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012 2

Decreto-lei n° 528. 28.06.1890. “É inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, exceptuados os indígenas da Ásia e da África.” Constantino Ianni (1966) fala em cerca de 4 milhões, maioria italianos. 3 Trabalhos como os de SEYFERTH e VAINER, citados, mostram a centralidade do racialismo no pensamento social brasileiro, e na política de imigração e colonização, entre os finais do século XIX e meados do século XX.

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GONÇALVES e SILVA, Petronilha Beatriz. Africanidades Brasileiras: Esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista do professor, Porto Alegre - 19 (73) 26-30 Jan/Mar 2003 IANNI, Constantino. Homens sem paz: os bastidores da emigração italiana. Editora Civilização Brasileira.RJ. 1966. LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical – partido-alto, calango chula e outras cantorias. Editora Pallas. RJ. 1992. _________. Samba na realidade: a utopia da ascensão social do sambista. Editora Codecri. RJ. 1981 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Editora FUNARTE. RJ. 1983. PEREIRA, Amauri M. A Lei 10.639/03 e a insustentável leveza do “pós-racismo” na Educação e na sociedade. Em 10 anos da Lei 10.639/03: Memórias e Perspectivas. (Org) Regina de Fátima de Jesus. Mairce da Silva Araújo e Henrique Cunha júnior. Editora UFC-Univ. Federal do Ceará. Fortaleza. 2013 _________________ e SILVA, Joselina da. A Lei e o Gueto. Revista democratizar. v . II, n.1,jan/abr2008.Disponível em http://www.faetec.rj.gov.br/desup/images/democratizar/v2n1/art_democratizar_amauri_joselina.pdf RODRIGUES, José Honório. Brasil e África Outro Horizonte. Civilização Brasileira. RJ. 1964 AUGUSTO DOS SANTOS, Sales. A Lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do movimento negro. In: BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In Raça, Ciência e Sociedade. CHOR MAIO, Marcos e VENTURA SANTOS, Ricardo. FIOCRUZ/CCBB. RJ. 1996 VAINER, Carlos. Estado e raça no Brasil: notas exploratórias. Estudos Afro-Asiáticos n° 18. RJ. 1990

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