A LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL: A FALTA DA CONCEITUAÇÃO DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A DELIMITAÇÃO DO CRIME

June 6, 2017 | Autor: Osmildo Bezerra | Categoria: Direito Penal, Análise de Risco, Direito Penal Econômico, Financial Crime
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A LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL: A FALTA DA CONCEITUAÇÃO DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A DELIMITAÇÃO DO CRIME

Osmildo Bezerra de Almeida Junior1

RESUMO A economia de mercado e globalização trouxe muitos avanços tecnológicos e crescimento econômico às nações, mas tornaram os mercados financeiros interdependentes e suscetíveis a crises que possam acontecer em qualquer lugar do mundo. Com a intenção de tornar os Sistemas Financeiros sólidos e seguros, houve uma tendência mundial de combate aos crimes que colocassem em risco a tão almejada solidez do sistema. No Brasil, não foi diferente. Em 1986, foi promulgada a Lei nº. 7.492, que trata dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. No entanto, ao invés de trazer uma segurança jurídica ao sistema, na verdade, essa lei trouxe tipos penais vagos e amplos, sem conceituação, violando vários princípios constitucionais do Direito Penal. O crime de gestão temerária, por exemplo, viola os princípios da taxatividade e legalidade, pois deixa para o juiz a tarefa de delimitar a conduta criminosa, além de não explicar o que seria uma gestão temerária. Este trabalho tem por objetivo mostrar, sem, contudo, oferecer respostas definitivas, as implicações da mal sucedida técnica legislativa para o combate ao crime e para o sistema de garantias e direito individuais do cidadão, além de tentar delimitar as condutas que poderiam ser repreendidas pelo crime de gestão temerária. Palavras-chave: Lei 7.492/1986. Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro. Crime de Gestão Temerária. Conceito de Gestão Temerária. Risco Operacional.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará UFC, que apresenta o presente trabalho como parte integrante da nota de conclusão do curso de Especialização em Direito Empresarial do convênio FESAC/FAMETRO, tendo como orientadora Patrícia Marla Farias Lima Machado, mestre, advogada e coordenadora das especializações da FESAC/OAB.

1 INTRODUÇÃO A Revolução Industrial trouxe várias mudanças no cenário econômico mundial. O processo produtivo tornou-se de grande escala, gerando uma necessidade de escoamento da produção industrial. Assim, os países industrializados saíram à procura de mercado consumidor para seus produtos. Nascem com isso as primeiras linhas da interdependência dos mercados, ou seja, a internacionalização dos mercados. A era pós-industrial nasceu logo após o final da 2ª Grande Guerra Mundial, com o avanço na comunicação entre as nações, houve a necessidade da expansão da informação e do conhecimento, e a difusão de novas tecnologias. O termo globalização nasce nesse contexto, como uma marca registrada para resumir as características desse período. A globalização é o estágio mais avançado dessa internacionalização dos mercados, em que não são somente as mercadorias que estão em circulação, mas também as pessoas, a informação, o conhecimento e, especialmente, o capital, ou seja, o dinheiro que é aplicado nos mercados financeiros nos mais variados países. Isso tudo gera uma interdependência mais acentuada entre as nações e, principalmente, entre os mercados financeiros, que sofrem impactos consideráveis quando ocorre alguma crise financeira ou de credibilidade. Com isso, o gerenciamento das instituições financeiras deve ser respaldado por critérios preestabelecidos, controlados e fiscalizados por entidades técnicas. A Constituição Federal de 1988 estabelece os princípios gerais da atividade econômica, elencando, como fundamental para a independência desta, os princípios da livre iniciativa, concorrência e exercício de qualquer atividade econômica. Ao mesmo tempo em que a Constituição garante esses princípios, preocupa-se também garantir que o Estado brasileiro é o agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e regulamentação.

O Estado pode exercer o direito de fiscalizar e regulamentar a atividade econômica, utilizando as regras de Direito Administrativo, Direito Econômico, Direito Civil e, em ultima ratio, o Direito penal, ou seja, o direito tutelado somente será resguardado pelo Direito Penal quando não houver mais nenhuma possibilidade por outro ramo do Direito. Com o desenvolvimento da sociedade, as relações interpessoais foram tornando-se cada vez mais complexas e as crises foram acentuando-se, forçando o Direito Penal a mudar seus paradigmas e regulamentar as novas condutas criminosas que estavam surgindo com a modernidade. De acordo com o entendimento de Guilherme Rodrigues Abrão e Marcelo Marcante Flores (2011): Na repressão ao que se pode denominar de novas formas de criminalidade (em contraste com a criminalidade clássica), alguns pontos até então infranqueáveis dentro de um Estado Democrático e Constitucional de Direito começam a ser flexibilizados, tais como a taxatividade da lei penal (violação à reserva legal), a ofensividade (crimes de mera conduta e de perigo abstrato), bem como a fragmentariedade (tipificação de novas condutas que anteriormente não eram objeto de tutela penal). É a partir daí que se revela fundamental explorar, ainda que de forma superficial, aspectos do movimento expansionista do direito penal. Inevitavelmente, a lógica do direito penal secundário, que representa justamente a expansão do direito penal, com a proteção das novas formas de criminalidade, na qual se pode incluir o direito penal econômico, apresenta peculiaridades (como, por exemplo, vitimização difusa, normas penais em branco e tipos penais abertos) em relação ao direito penal clássico, pois tem como objeto bens jurídicos transindividuais e difusos, motivo pelo qual apresenta maior complexidade. De acordo com tais peculiaridades o legislador, quando da criação de certos tipos penais, acaba por flexibilizar categorias dogmáticas jurídico-penais liberais em razão de deficitária técnica legislativa em afronta aos princípios constitucionais.

Portanto, as teorias clássicas deixaram de responder com êxito às perguntas que estavam nascendo juntamente com as novas crises sociais. A dificuldade no combate aos crimes contra o sistema financeiro é uma realidade mundial. Heleno Cláudio Fragoso (1982), em trabalho que trata sobre o Direito Penal Econômico e dos Negócios, apresenta a preocupação das Nações Unidas e do Conselho da Europa em combater com mais efetividade as

práticas dos delitos a Ordem Econômica, reconhecendo também a dificuldade na elaboração de definições para os crimes dessa natureza: Desejamos lembrar que o 6º Congresso das Nações Unidas para prevenção do crime e tratamento do delinquente, realizado em 1980, em Caracas, tinha como um de seus temas a questão que se enunciava: “Crime e abuso e poder: crimes e criminosos fora do alcance da lei”¹. As dificuldades de elaboração de conceitos firmes nesta matéria, porém, subsistem, e podem ser bem ilustradas pela deliberada renúncia à busca de definições, adotada por certas reuniões internacionais, como se observou na conferência promovida pelo Conselho da Europa, em 1976, e pela adoção de critérios puramente formais.

Em resposta a essa nova realidade social e econômica, o Estado brasileiro instituiu em 1986 a Lei 7.492, que regula os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Essa Lei regula, no parágrafo único do artigo 4º, o crime de gestão temerária. Com ímpeto de regulamentar as novas formas de condutas criminosas, o legislador brasileiro criou uma figura típica sem um conceito legal, violando princípios constitucionais que garantem a segurança jurídica ao sistema penal nacional. Fernanda Freixinho (2011) assim estabelece: Tal tipo penal é extremamente aberto de modo que não fica bem delineado o conteúdo da conduta proibida. Não pode o legislador deixar a critério do juiz a definição do que é ou não gestão temerária. Temerária é um elemento normativo do tipo e tais elementos enfraquecem a certeza do tipo penal.

O Direito Penal é regido por princípios constitucionais explícitos e implícitos que garantem a limitação do poder de punir do Estado, garantindo a segurança da liberdade de agir do cidadão. A atividade financeira possui um caráter operacional eminentemente de risco. Os seus gestores atuam de forma cada vez mais criativa, arrojada e, muitas vezes, corajosa para diferenciar-se em um sistema cada vez mais competitivo. A gestão do risco é que proporciona a geração da riqueza. Portanto, é assumindo riscos que o gestor alcançará o objetivo dessas instituições, ou seja, o lucro para seus investidores.

No entanto, a linha entre ser arrojado e irresponsável é muito tênue, cabendo ao poder público e às instituições de controle fiscalizar e instituir regras mínimas de atuação.

2 A FALTA DA CONCEITUAÇÃO DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A DELIMITAÇÃO DO CRIME A seguir, serão apresentadas as implicações da falta de conceituação do crime de gestão temerária, com reflexo para o Sistema Penal de garantias e direitos individuais, além de buscar uma delimitação do referido crime na análise sobre o risco das operações financeiras.

2.1 Da Função do Direito penal

Não é viável, para um sistema penal que se possa intitular constitucional, que haja ainda tipos penais demasiadamente abertos. Esses tipos penais deixam, ao arbítrio do Magistrado, o dever de delimitar concretamente o que seria ou não crime. O papel do Magistrado é de observar o fato típico e, depois, verificar se este fato se encaixa na descrição do tipo penal que já está pré-estabelecido na Lei. O ato de subsunção normativa compara-se a um jogo de quebra-cabeça, no qual o juiz verificará se a peça – ou seja, o fato criminoso – encaixa-se no espaço já pré-estabelecido pelas regras do jogo, ou seja, a lei. A Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional foi elaborada para resguardar um bem jurídico coletivo, isto é, um bem jurídico de um determinado grupo de pessoas. A atividade de investimento em instituições financeiras por si só já é uma atividade que exige certo grau de risco por parte dos investidores; portanto, o sistema financeiro deve-se mostrar o mais seguro, saudável e sólido possível para atrair o capital nacional e, principalmente, o

capital internacional. No estágio de interdependência que os sistemas financeiros, no mundo inteiro, encontram-se, não é viável investir em um país no qual o sistema não demonstre confiança. Destarte,

a

responsabilização

dos

gestores

das

instituições

financeiras tornou-se imprescindível para garantir a estabilidade do Sistema Financeiro – por isso, a necessidade de haver uma padronização e um controle tanto cível quanto penal das decisões tomadas por esses administradores. Mas é de suma importância que essa responsabilização penal não se afaste dos princípios constitucionais do direito penal. O legislador deve ter em mente que o direito penal é uma ferramenta de controle social, todavia deve saber também que essa ferramenta possui regras e princípios para garantir a segurança dos cidadãos contra o arbítrio do Estado. O direito penal possui duas importantes funções sociais. De um lado, impõe

normas

de

observação

obrigatória,

insculpidas

nas

normas

incriminadoras, e impõe punições ao descumprimento dessas mesmas regras, buscando a tão almejada pacificação social. Essas regras e punições visam limitar a ação do cidadão, que deverá abster-se da prática de algumas ações sensíveis ao convívio social. O homem consegue impor limites as suas próprias ações, no entanto dentro do corpo social, as relações interpessoais são complexas e conflituosas. Não depende apenas de uma única pessoa a resolução dos conflitos gerados pela convivência. Deste modo, o Direito, especificamente o Penal, surge como ferramenta de controle social, punindo as ações consideradas nocivas ao bom funcionamento da sociedade. Para o doutrinador Víctor Gabriel Rodríguez: A primeira ideia, que não pode escapar ao estudante, é a de que, por detrás do Direito Penal, repousa a necessidade de controle social. Quando o ser humano dispõe-se a viver em sociedade, deve submeterse a regras de convivência, que podem ser menos ou mais rígidas, conforme a cultura e o momento que atravessa cada sociedade. Mas, em todas elas, existe um conjunto básico de paradigmas de comportamento, que, se desrespeitados, fazem insuportável a vida gregária. (RODRIGUEZ, 2010, p. 1)

Por outro lado, o direito penal também surge como um limitador ao jus puniendi do Estado. Historicamente, pode-se constatar que o Estado tende sempre a extrapolar os limites dos seus poderes, violando os direitos do cidadão que deveriam, conforme a teoria do Contrato Social, ser resguardados pelo Estado. Víctor Gabriel Rodríguez também estabelece que: Se, de um lado, o Estado controla o cidadão, impondo-lhe limites para vida em sociedade – porque sem limites os cidadãos tendem ao abuso –, de outro lado é necessário também limitar seu próprio poder de controle. Caso contrário, ele tende ao absolutismo: cobra impostos vorazmente, policia a vida do cidadão de modo insuportável, sufoca a opinião daqueles que se opõem a seu regime, devasta a intimidade etc. A segunda função do Direito penal, talvez mais importante que a primeira, é relacionada a essa tendência ao abuso. O Direito penal deve impor limites severos à função e à atividade punitivas do poder público. (RODRIGUEZ, 2010, p. 4 - 5)

Com a consciência da existência dessas duas funções do Direito penal, fica manifesta a importância da previsão e clareza das normas penais. A utilização de normas penais em branco e tipos penais abertos e indeterminados somente torna o sistema penal inseguro e imprevisível, gerando uma insegurança jurídica e violação aos direitos e garantias do cidadão. Em uma sociedade democrática de direito, todo cidadão é livre para praticar qualquer ato, desde que esse ato não esteja previsto em norma como ato ilícito, ou seja, em regra, todo ato, seja comissivo ou omissivo, é lícito; a exceção estará prevista e publicizada na lei – corolário do princípio da legalidade em lato sensu. Portanto, para que haja uma segurança jurídica, é salutar que todo tipo penal seja o mais claro possível, evitando que haja dúvidas a respeito da conduta que se está praticando, tanto para os membros da sociedade quanto para quem vai julgar a conduta praticada. Essa preocupação evita que aqueles sejam pegos de surpresa ao serem processados penalmente por algo que acreditavam ser permitido, e que o juiz não extrapole quando for julgar. O gestor das instituições financeiras pratica diversos atos decisivos que, de alguma forma, exprimem riscos, mas não por imprudência, negligência ou imperícia, mas porque a atividade financeira é de extremo risco, em que o

gestor deve atuar de forma arrojada e criativa para obter lucros para os investidores. Nas instituições financeiras, seus gestores trabalham controlando e gerindo os riscos, pois toda a atividade financeira gira em torno da tentativa de minimizar as perdas geradas pelos riscos dos investimentos. Quanto um banco resolve emprestar certa quantia em dinheiro a determinado indivíduo estará realizando uma atividade de risco, pois tal indivíduo poderá ou não adimplir as suas obrigações perante o banco. Mas, antes de emprestá-lo, o banco analisará a situação financeira do contratante e também analisará a conjuntura econômica do país. Ao realizar tal análise, o banco está tentando minimizar os riscos, impondo juros altos ou baixos diretamente proporcionais ao risco assumido por ele. E serão esses juros que irão remunerá-lo pelo risco assumido. Portanto, a função do direito penal é estabelecer quais são as condutas consideradas nocivas ao Sistema Financeiro, que colocam em xeque a credibilidade do sistema, levando em consideração que o risco das operações financeiras faz parte da essência desta atividade econômica. Além disso, vale ressaltar que, fixando claramente as condutas criminosas, garante também a segurança da liberdade dos gestores, pois ficam claras quais as condutas são proibidas. 2.2 As Políticas Criminais

A partir de 1986, com a edição de Lei 7.492 – Lei dos Crimes conta o Sistema Financeiro Nacional –, a atuação dos administradores das instituições financeiras sofreu uma restrição penal, ou seja, essa lei fixou determinadas condutas como sendo prejudicial à estabilidade e ao bom funcionamento do Sistema Financeiro, elevando essas condutas à categoria de crimes financeiros. No entanto, a supracitada Lei fez surgir uma insegurança jurídica ao criar a figura do crime de gestão temerária. O legislador criou a figura típica de gerir temerariamente uma instituição financeira sem especificar o conceito de gestão temerária. Sem esse conceito, o intérprete da norma não possui

parâmetros para a delimitação do tipo penal, pois o legislador tornou-o subjetivo e, com isso, afastou-o dos princípios constitucionais que asseguram a limitação do arbítrio do Estado. Víctor Gabriel Rodríguez discorre de forma brilhante os caminhos escolhidos pelo Estado na implantação da política criminal: Para cumprir seu dever de contenção dos comportamentos inaceitáveis, bem como para impor limites ao poder de punir do Estado, pode se dizer que existam caminhos diversos. É possível escolher um caminho de um Direito penal mais potente, capilarizado e abrangente, com maiores proibições, regras mais detalhadas de conduta – e consequentemente necessidade de um Estado mais policialesco – ou, ao contrário, decidir por um Direito penal que vise a proteger um núcleo reduzido de bens jurídicos. Nessa segunda visão, o Direito penal somente poderia ser acionado quando houvesse lesão ou grave risco de lesão a um bem jurídico relevante. (RODRIGUEZ, 2010, p. 6)

O Estado escolhe a forma como deseja reprimir as condutas criminais, estabelecendo regras e procedimentos mais rigorosos ou reduzindo sua mão invisível ao exercer o direito-dever de punir. Luigi Ferrajoli assim discorre: Denomino a esses dois extremos “direito penal mínimo” e “direito penal máximo”, referindo-me com isso tanto a maiores ou menores vínculos garantistas estruturalmente internos ao sistema quanto à quantidade e qualidade das proibições e das penas nele estabelecidas. Entre os dois extremos, como se viu, existem diversos sistemas intermediários, até o ponto de que se deverá falar mais apropriadamente, a propósito das instituições e dos ordenamentos concretos, de uma tendência ao direito penal mínimo ou de uma tendência ao direito penal máximo. Nos ordenamentos dos modernos Estados de direito, caracterizados pela diferenciação em vários níveis de normas, estas duas tendências opostas convivem entre si, caracterizando a primeira os níveis normativos superiores e, a outra, os níveis normativos inferiores, e dando lugar com sua separação a uma ineficiência tendencial dos primeiros e a uma ilegitimidade tendencial dos segundos. Assim veremos, na quarta parte, como, em contraste com os princípios garantistas do modelo SG estipulados de maneira mais ou menos rigorosa em nossa Constituição, nossas leis ordinárias, e ainda mais nossas práticas judiciais e policiais, admitem de fato figuras de responsabilidade penal sem uma ou sem várias das garantias citadas. (FERRAJOLI, 2010, p. 102)

Existem dois modelos de Direito penal, quando se faz referência ao modelo de política penal aplicado. Há o direito penal mínimo, quando o Estado respeita ao máximo os direitos e garantias individuais dos jurisdicionados, enquanto há o direito penal máximo, quando o Estado respeita o mínimo possível dos direitos e garantias dos indivíduos. No entanto, podem coexistir, em um mesmo Estado, leis que respeitam os direitos e garantias individuais ao máximo e normas que respeitam ao mínimo possível. A partir da Constituição Federal de 1988, houve uma mudança na política penal brasileira. Antes do mencionado diploma, reinava a regra da presunção de culpabilidade, estabelecido pelo Código Penal de 1940. As garantias individuais eram as mínimas possíveis, ficando claro que a regra aplicada era do direito penal máximo. No entanto, a partir de outubro de 1988, o Brasil passou a aplicar as regras do Direito penal mínimo, ou seja, a prevalência das garantias dos direitos individuais do cidadão, em detrimento ao jus puniendi do Estado. Luigi Ferrajoli explica as diferenciações entre os modelos de direito penal da seguinte forma: A certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos ligados às incertezas correlativas refletem interesses e opiniões políticas contrapostas: por um lado, a máxima tutela da certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito e, por outro lado, a máxima tutela das liberdades individuais acerca das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrárias. Podemos dissipar, assim, o equívoco de uma “certeza” ou “verdade” mística que seria perseguida pelo garantismo cognitivista. A certeza, ainda que não absoluta, a que aspira um sistema penal de tipo garantista não é no sentido de que resultem exatamente comprovados e punidos todos os fatos previstos pela lei como delitos, mas que sejam punidos somente aqueles nos quais se tenha comprovado a culpabilidade por sua comissão. Em todo o caso, ambas as “certezas” são subjetivas e relativas, afetando “verdades” igualmente opinativas e prováveis. Sua diferença está apenas nos critérios opostos de sua obtenção. (FERRAJOLI, 2010, p. 103)

Portanto, a forma como os direitos e garantias individuais são respeitados vai depender da forma como o Estado conduz sua política criminal, que pode priorizar a repressão aos crimes ou pode priorizar a salvaguarda dos princípios garantidores dos direitos e garantias individuais. Víctor Gabriel Rodríguez defende que: A Constituição deve, então, ser utilizada como instrumento de interpretação das normas penais como um todo. Ela traz, de fato, enunciados muitos dos princípios que norteiam o direito penal contemporâneo, ainda que tenha ignorados outros. Mas o estudante ou operador do Direito Penal não se pode furtar a, antes de apronfundarse nas normas penais infraconstitucionais, conhecer as normas constitucionais que incidem sobre a matéria. Isso porque, em termos de hierarquia normativa, o eventual confronto entre o enunciado constitucional e a norma federal fará com que está não seja recepcionada pelo ordenamento. (RODRIGUEZ, 2010, pp. 84-85)

Portanto, o intérprete – aplicador das normas penais – deve ter em mente que a política penal, escolhida para vigora no Estado brasileiro, está consubstanciada nos princípios penais elencados na Constituição Federal de 1988. Portanto, antes de aplicar uma lei infraconstitucional, deve-se fazer uma leitura sistematizada de todo o sistema penal, para que seja abolida a interpretação que esteja em desacordo com este.

2.3 As Garantias e os Direitos Individuais

As Garantias e os Direitos Individuais estão previstos implícita ou explicitamente na Constituição de 1988. Esses direitos têm sua dimensão expressa pela liberdade do indivíduo perante o Poder do Estado, que se constata pela leitura dos vários princípios que asseguram os direitos fundamentais da liberdade e segurança dos cidadãos. É inegável o papel de primazia que possui a Constituição de 1988 atualmente, sendo alçada como a norma fundamental de referência de todo o nosso Ordenamento Jurídico. Tal fenômeno reflete-se em todos os Poderes do Estado, servindo de orientação para os aplicadores da lei, aos interpretes da lei

e, principalmente, aos legisladores, pois as normas, que vierem a ser confeccionadas, deverão estar em conformidade com os ditames da Lei Fundamental. No entanto, vale salientar que os Direitos e Garantias do indivíduo não começam e terminam na Constituição, pois conforme doutrina de Víctor Gabriel Rodríguez: Entretanto, é necessário alertar para o fato de que o Direito Penal não se esgota no Direito Constitucional. Ao contrário de o que sugerem muitos autores, o estudo do chamado Direito Penal Constitucional não é bastante para abranger sequer as garantias mais básicas para o cidadão, porque há muitos aspectos da teoria exclusivamente penal que não chegam à Carta Magna. Em outras palavras, são vários os bons efeitos da constitucionalização do Direito, mas não se pode entender que a Constituição seja uma condensação da legislação penal. (RODRIGUEZ, 2010, p. 82-83).

Para fundamentar tal posicionamento, Víctor Gabriel Rodríguez cita a doutrina de L.V. Afonso da Silva, na qual estabelece que: [...] a doutrina francesa, de Favoreu, “identifica a simplificação da ordem jurídica como uma decorrência direta do processo de constitucionalização do direito, pois, entre outras coisas, recoloca a constituição como inegável ‘norma de referência’ do ordenamento jurídico”. (RODRÍGUEZ, 2010, p. 83)

Portanto, o estudo dos Direito e Garantias individuais relacionados com o Direito Penal não se encerram na Constituição Federal. No entanto, é a partir da Constituição que se inicia a análise sobre o estudo dos princípios que regem as liberdades individuais do cidadão, como ferramenta de proteção contra um Estado que sempre tende ao autoritarismo. Conforme ensinamento de Víctor Gabriel Rodríguez: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O inciso constitucional coincide com a redação do art. 1º do CP, portanto, se trata da elevação do princípio penal à Lei Maior. Também há que, no que tange à legalidade, realçar seu vínculo direto com o inciso II do mesmo art. 5º da CF, que dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. (RODRIGUEZ, 2010, p. 86).

Como se pode observar, o princípio da legalidade, que já havia previsão na lei infraconstitucional, foi elevado há um nível constitucional, demonstrando um dos fundamentos da política criminal do Estado brasileiro, qual seja, o fundamento da segurança jurídica, ou seja, que toda conduta proibida deverá estar prevista em lei anteriormente editada. Além disso, prevê também que todo indivíduo terá seu direito de liberdade de agir garantido, pois somente será obrigado a fazer algo ou proibido de fazer alguma ação em virtude de lei previamente publicada. Os princípios constitucionais implícitos da intervenção mínima do Estado na vida privada dos indivíduos e da subsidiariedade são formas de limitação, que a Constituição Federal estabelece, ao direito de punir do Estado. O Direito Penal somente será aplicado no último caso, isto é, quando nenhum outro ramo do Direito for capaz de exercer o controle social das condutas dos indivíduos. Conforme doutrina de Guilherme de Souza Nucci: Significa que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor conflitos existentes em sociedade, os quais, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes. Há outros ramos do Direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores traumas. O direito penal considerado ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator. [...] Enfim, o direito penal deve ser visto como subsidiário aos demais ramos do Direito. Fracassando outras formas de punição e de composição de conflitos, lança-se mão da lei penal para coibir comportamentos desregrados, que possam lesionar bens jurídicos tutelados. (NUCCI, 2011, pp. 86-87).

Duas extensões do princípio constitucional da intervenção mínima do Estado são os princípios da fragmentariedade e da ofensividade, os quais possuem o mesmo fundamento limitador do Poder punitivo do Estado, sendo tratado por Guilherme de Sousa Nucci da seguinte maneira:

Fragmentariedade significa que nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal que, por sua vez, constitui somente parcela do ordenamento jurídico. Fragmento é apenas a parte de um todo, razão pela qual o direito penal deve ser visto, no campo dos atos ilícitos, como fragmentário, ou seja, deve ocupar-se das condutas mais graves, verdadeiramente lesivas à vida em sociedade, passíveis de causar distúrbios de monta à segurança pública e a liberdade individual. Por derradeiro, o princípio da ofensividade (ou lesividade), outro consectário da intervenção mínima, demonstra ser indispensável à criação de tipos penais incriminadores, cujo objetivo seja eficiente e realístico, visando à punição de condutas autenticamente lesivas aos bens jurídicos tutelados. (NUCCI, 2011, p. 88)

Sobre o princípio implícito da taxatividade, assim leciona supracitado doutrinador: Significa que as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser suficientemente claras e bem elaboras, de modo a não deixar dúvida por parte do destinatário da norma. A construção de tipos penais incriminadores dúbios e repletos de termos valorativos pode dar ensejo ao abuso do Estado na invasão da intimidade e da esfera de liberdade dos indivíduos. Aliás, não fossem os tipos taxativos – limitativos, restritivos, precisos – e de nada adiantaria adotar o princípio da legalidade ou da reserva legal. Este é um princípio decorrente, nitidamente, da legalidade. (NUCCI, 2011, pp. 88-89)

O princípio supracitado, provavelmente, seja o mais esclarecedor para fundamentar os argumentos sobre a questão do crime de gestão temerária, pois esse princípio concede ao Direito penal a segurança jurídica que o sistema penal tanto almeja. É esse princípio que exige que as normas penais sejam claras e bem elaboradas, pois é norma penal que vai fixar o conteúdo e a delimitação da conduta criminosa. Portanto, o princípio da taxatividade proíbe a edição das leis penais vagas, sem a devida delimitação do tipo penal. O maior problema desse crime é seu caráter excessivamente normativo, que necessita de uma conceituação para alcançar o seu conteúdo. No entanto, essa conceituação não está estabelecida na lei, malferindo o princípio da taxatividade. Conforme está consubstanciada na doutrina abaixo citada:

Elemento normativo do tipo e legalidade: temerário significa arriscado, perigoso e imprudente. O termo é extremamente vago e aberto. Pensamos ofender o princípio da taxatividade e, por consequência, a legalidade. Exige o art. 5.º, XXXIX, da Constituição, que “não há crime sem lei anterior que o defina...” (grifamos). Ora, a doutrina é praticamente unânime ao apontar, como corolário dessa definição, seja ela bem feita, com detalhes suficientes para ser bem compreendida por todos, vale dizer, os tipos penais incriminadores necessitam ser taxativos. Está bem longe de atingir esse objetivo o crime previsto no art. 4.º, parágrafo único, da Lei 7.492/86. É inconstitucional, portanto. [...] Os tribunais, no entanto, assim não tem considerado. Logo, necessita-se trabalhar com o conceito de temerário, buscando aplicar, sempre que possível, uma interpretação restritiva, concedendo-lhe limitado alcance, sob pena de se chegar ao absurdo de punir administradores de instituição financeiras por atos tolos, que podem ser considerados de péssima gestão – fruto, possivelmente, da falta de vocação para o exercício da função – mas jamais de elevado risco, adrede planejado. (NUCCI, 2008, p.1050)

Como se pode observar, o crime de gestão temerária viola vários dos princípios que são fundamentais ao sistema penal constitucional, gerando insegurança jurídica e ameaçando direito à liberdade dos indivíduos que exercem atividade de gestão financeira.

2.4 Análise Legislativa

Para a Constituição Federal, o Sistema Financeiro constitui-se em uma peça fundamental para o desenvolvimento equilibrado do país e coloca-se como ferramenta para servir os interesses da coletividade. É esse sistema que faz gerar a riqueza da nação, o progresso da sociedade e o crescimento econômico de cada indivíduo que a compõe. Percebendo-se a importância da existência de um Sistema Financeiro sólido e seguro, o legislador promulgou a Lei 7.492 no ano de 1986. Referida lei fixou as figuras típicas dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Para a supracitada lei, em seu art. 1º, a instituição financeira é: (...) a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação,

intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

Prossegue a lei, no mesmo artigo, mas, no parágrafo único, elencando as instituições que são equiparadas à instituição financeira: I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros; II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

O legislador tentou trazer uma definição para o termo instituição financeira, mas foi infeliz na tentativa, pois o conceito trazido é demasiadamente amplo, incluindo até mesmo a pessoa natural no conceito de ente equiparado a instituição financeira, malferindo os princípios do Direito Penal Constitucional. No entanto, Manoel Pedro Pimentel, em citação trazida por Guilherme de Souza Nucci, tenta explicar o motivo que levou o legislador a assumir tal posicionamento: É amplíssimo o conceito, alargado ainda mais com as disposições dos ns. I e II, do parágrafo único deste artigo, que equipara à instituição financeira a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros, bem como a pessoa natural que exerce quaisquer atividades referidas no artigo, ainda que de forma eventual. Sabemos que a amplitude do conceito de instituição financeira se deveu, em grande parte, à casuística acumulada pelo Banco Central, através de sucessivas experiências com as mais diversas entidades que lidavam com recursos de terceiros ou com títulos ou valores mobiliários. A rede de proteção lançada pelo artigo 1º e seu parágrafo único foi traçada com malha fina, para que não escapasse conduta alguma, lesiva ou perigosa, contra o Sistema Financeiro Nacional, razão pela qual o dispositivo legal tornou-se excessivamente amplo. (NUCCI, 2008, p. 1044 apud Manuel Pedro Pimentel, Crimes contra o sistema financeiro nacional, p.29)

Percebe-se, na explicação do supracitado autor, que a preocupação do legislador foi em buscar o maior número de enquadramentos possíveis, para que não houvesse lacunas na lei. No entanto, o legislador utilizou uma técnica

que é reprovada pelo Sistema Penal Constitucional, pois viola a segurança jurídica e abre margem para que possam existir arbitrariedades. No art. 4º, parágrafo único da lei em estudo, os parlamentares insculpiram a figura do crime de gestão temerária. A partir deste momento, se o administrador de uma instituição financeira gerir os negócios de forma temerária, o juiz poderá aplicar-lhe uma pena que pode variar de 2 (dois) a 8 (oito) anos, além da possibilidade da aplicação da pena de multa. Mas, qual a delimitação conceitual do crime de gestão temerária? Para o Dicionário Virtual Priberam, uma ação temerária pode ser: uma ação arrojada, uma ação arriscada, uma ação imprudente, uma ação perigosa, uma ação infundada ou uma ação precipitada. Essas definições são vagas, além de semelhantes à ideia de risco, que é uma característica das atividades financeiras. Toda atividade financeira possui em sua essência algum grau de risco, que a torna passível de lucro ou prejuízo. Quando o legislador escolhe uma conduta para torná-la típica e, para isso, escolhe um tipo penal vago, como o acima analisado, está violando o princípio da taxatividade, além de, consequentemente, violar o princípio da legalidade. São esses princípios que concedem ao Sistema Penal a segurança e a previsibilidade, que o torna viável à garantia do direito a liberdade do cidadão. Um Sistema Financeiro seguro e consistente atrai muitos investidores, nacionais e internacionais. Portanto, há a preocupação, por parte do Estado e das instituições internacionais, em inibir a prática de ações que violem a segurança e a estabilidade que todos almejam. No entanto, tal preocupação não pode ser uma desculpa para que o legislador viole os princípios que garantem a segurança do cidadão perante o Sistema Penal. Cabe ao legislador buscar definições claras que estabeleçam balizes para o intérprete e que concretizem a repressão aos crimes contra esse sistema. Pensando na insegurança jurídica – tanto do Sistema Penal, pois viola os princípios constitucionais da taxatividade e da legalidade, como do Sistema Financeiro, pois deixa uma lacuna na lei que repreende os crimes

contra este sistema –, que o Deputado Federal Camilo Cola do PMDB, do Estado do Espírito Santo, apresentou projeto de lei que almeja apresentar conceitos tanto do crime de gestão fraudulenta como de gestão temerária. Com a proposta da nova redação do art. 4º, parágrafo único, o crime de gestão temerária passaria a ter a seguinte definição: “Se a gestão é temerária, caracterizada pelo risco extremamente elevado e injustificado dos negócios e das operações financeiras”. Como se pode perceber, o crime de gestão temerária deixará, se a proposta de alteração legislativa for aprovada, de ser um crime sem definição, para ser um crime de norma penal em branco, ou seja, haverá necessidade de uma complementação, para que se tenha a compreensão do âmbito de aplicação do preceito primário da norma penal. O termo que necessitará de complementação é a palavra risco, que possui uma noção ligada ao Direito Econômico e à Ciência Econômica.

2.5 Risco

É com a definição trazida por Peter L. Bernstein que se inicia a análise do risco: A palavra “risco” deriva do italiano antigo risicare, que significa “ousar”. Neste sentindo, o risco é uma opção, e não um destino. É das ações que ousamos tomar, que dependem de nosso grau de liberdade de opção, que a história do risco trata. E essa história ajuda a definir o que é um ser humano. (BERNSTEIN, 1997, p.8)

A partir

dessa

citação, podem-se

abstrair

duas

importantes

características do risco: atitude e liberdade. Atitude para agir, e liberdade para escolher as opções que estão disponíveis ao seu alcance. O avanço tecnológico e econômico da humanidade está diretamente ligado ao controle do risco pelo homem, conforme preconiza Peter L. Bernstein:

A ideia revolucionária que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado é o domínio do risco: a noção de que o futuro é mais do que um capricho dos deuses e de que homens e mulheres não são passivos ante a natureza. Até os seres humanos descobrirem como transpor essa fronteira, o futuro era um espelho do passado ou o domínio obscuro de oráculos e adivinhos que detinham o monopólio sobre o conhecimento dos eventos previstos. (BERNSTEIN, 1997, p.1)

E prossegue o mesmo autor: Esse livro conta a história de um grupo de pensadores cuja visão notável revelou como pôr o futuro a serviço do presente. Ao mostrar ao mundo como compreender o risco, medi-lo e avaliar suas consequências, eles converteram o ato de correr riscos em um dos princípios catalisadores que impelem a sociedade ocidental moderna. À semelhança de Prometeu, eles desafiaram os deuses e sondaram as trevas em busca da luz que converteu o futuro, de um inimigo, em uma oportunidade. A transformação nas atitudes em relação à administração do risco desencadeada por suas realizações canalizou a paixão humana pelos jogos e apostas para o crescimento econômico, a melhoria da qualidade de vida e o progresso tecnológico. (BERNSTEIN, 1997, p.1-2)

A vida coloca diante das pessoas vários caminhos a serem seguidos, uns mais longos e menos arriscados, e outros mais curtos e mais arriscados. O sucesso na escolha está na capacidade de minimizar os riscos pela decisão assumida. Portanto, entender e controlar o risco permite que as pessoas encurtem os caminhos e alcancem os objetivos traçados de uma forma mais rápida. A partir dessa compreensão, entendem-se os motivos pelos quais a humanidade alcançou um avanço tecnológico e econômico sem precedentes nas últimas décadas. Todavia, a partir da descoberta da teoria da probabilidade, a humanidade vem progredindo de forma rápida, mas, infelizmente, de forma desigual. Em seu livro, Peter L. Bernstein traz interessante narrativa da forma como se deu a descoberta da teoria da probabilidade: Em 1654, época em que o Renascimento estava em pleno alvorecer, o cavaleiro de Méré, um nobre francês com gosto pelo jogo e pela matemática, desafiou o famoso matemático francês Blaise Pascal a decifrar um enigma. A pergunta era como dividir as apostas de um jogo de azar entre dois jogadores, que foi interrompido quando um deles estava vencendo. O enigma confundira os matemáticos desde sua

formulação, duzentos anos antes, pelo monge Luca Paccioli. Este foi o homem que trouxe a contabilidade das partidas dobradas à atenção dos homens de negócios da época – e ensinou as tabuadas de multiplicação a Leonardo da Vinci. Pascal pediu ajuda a Pierre de Fermat, advogado que também era brilhante matemático. O resultado de sua colaboração foi pura dinamite intelectual. O que poderia parecer uma versão do século XVII do jogo da Busca Trivial levou à descoberta da teoria das probabilidades, o núcleo matemático do conceito de risco. (BERNSTEIN, 1997, p.3)

A partir da descoberta da teoria da probabilidade o homem passou a entender os riscos e a repercussão das decisões tomadas. O futuro poderia ser calculado e expressado em números. As ideias de risco e probabilidade foram inseridas no estudo da Economia e dos mercados financeiros. A busca pelo controle e minimização dos riscos fez com que os países mais ricos formalizassem acordos que fossem capazes de alcançar a tão almejada segurança e estabilidade dos sistemas financeiros. O primeiro acordo a ser formalizada foi Basiléia I, que José Matias Pereira assim estabelece: A incerteza financeira gerada pelo abandono do sistema de Bretton Woods, na década de 70, forçou os bancos centrais dos países que integram o G-10 a criar instrumentos que pudessem assegurar a estabilidade do sistema. Para tornar isso possível buscou-se o fortalecimento dos bancos que deles participavam, bem como a proteção dos depositantes, culminando com um acordo firmado em 1988 (Basiléia I).

Logo em seguida, veio o Acordo Basiléia II, na tentativa de diminuir as pressões sobre os mercados financeiros e os escândalos dos últimos anos. Conforme preconiza José Matias Pereira: [...] o novo acordo de capitais foi estruturado para apoiar-se em três pilares: o primeiro pilar refere-se aos requisitos e exigências de capital dos bancos, que são função dos riscos de créditos assumidos; o segundo pilar trata do processo de exame e supervisão bancária; e, finalmente, o terceiro e último pilar cuida da disciplina do mercado financeiro e exigências de informação. Na prática, essas recomendações buscam impor parâmetros às instituições bancárias, para que sejam mais seletivas na concessão de créditos. Caso

contrário, será exigido delas mais capitais para cobrir os riscos assumidos.

O mesmo autor ainda acrescenta: [...] Além de mudanças para refinar a gestão do risco de crédito, buscou-se introduzir no acordo o conceito de risco operacional, que prevê a alocação de recursos para fraudes, roubos, falhas processuais, que podem estar presentes em qualquer ponta da organização e, por isso, são mais difíceis de se controlar.

No setor bancário existem três tipos de risco: o risco de mercado, o risco de crédito e o risco operacional. O risco de mercado “decorre da possibilidade de acontecerem perdas em função de movimentos desfavoráveis no mercado” (PEREIRA, 2006, p.110), ou seja, o investidor perde dinheiro quando faz aplicações em Bolsas de Valores, quando há oscilações no mercado. Já o risco de crédito é decorrente da falha “em honrar o compromisso assumido de efetuar um pagamento” (PEREIRA, 2006, p.110). Há uma influência muito grande entre o primeiro tipo de risco e o segundo, pois “o risco de mercado poderá influenciar as decisões” dos governantes, empresários e cidadãos, retraindo o mercado e dificultando a oferta e a procura pelo crédito. Finalmente, com relação ao risco operacional, que é “entendido como o risco de perdas resultantes de falhas ou inadequações de processos internos, pessoas, sistemas ou eventos externos (BIS, 2004)” (PEREIRA, 2006, p.110), ou seja, “todas as outras formas a partir das quais é possível que um banco perca dinheiro” (PEREIRA, 2006, p.110). Como se pode perceber, os dois primeiros tipos de risco (risco de mercado e risco de crédito) são considerados riscos exógenos, que “são provocados por atividades externas ou pelo azar” (PEREIRA, 2006, p.105), pois há uma grande influência de decisões políticas, crises econômicas e crise de confiança. Já os riscos operacionais são os considerados riscos endógenos, que são “gerados pela própria atividade” (PEREIRA, 2006, p.105).

Portanto, tendo consciência dessa diferenciação, o Acordo Basiléia II procurou estabelecer diretrizes para controlar o risco operacional e minimizar as perdas oriundas da atividade. Com regras rígidas de procedimentos, almeja-se alcançar uma estabilidade do Sistema Financeiro, que consequentemente repercutirá na sua credibilidade e influenciará os outros dois tipos de risco, o risco de mercado e o risco de crédito. O gestor de uma instituição financeira, portanto, tem o controle sobre os riscos operacionais, ou seja, a gestão sobre os procedimentos internos, sobre as pessoas, e a análise do mercado. Logo, quando o legislador estabelece que o crime de gestão temerária é caracterizado pela assunção, por parte do gestor, de “risco extremamente elevado e injustificado dos negócios e das operações financeiras”, entende-se que está se referindo ao risco operacional, pois está sobre seu controle. Se essa afirmação for considerada verdadeira, ou seja, que gestão temerária está estritamente ligada com a definição de risco operacional, é inegável que a nova definição de crime de gestão temerária é uma norma penal em branco. Portanto, o julgador deverá se utilizar das definições e mecanismos de controle das instituições financeiras e órgãos administrativos de controle dessas instituições para que seja delimitada a conduta criminosa.

3 CONCLUSÃO Diante do exposto, verifica-se que a Lei 7.492/86 foi promulgada seguindo uma tendência mundial de buscar combater os crimes que colocavam em xeque a segurança dos Sistemas Financeiros. É inegável a necessidade de combater esse tipo de criminalidade, pois ter um Sistema Financeiro estável e seguro é crucial para o crescimento econômico de um país. No entanto, essa preocupação não pode ser desculpa para que haja violação aos princípios

constitucionais do Direito Penal, muito menos que haja violação aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Ao criar um tipo penal vago e amplo, o legislador criou uma insegurança jurídica. O crime de gestão temerária não possui delimitação nenhuma, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhum conceito legal para o instituto. Assim, não é criando normas de qualidade duvidosa, ou com processos legislativos sem rigor técnico, que o Estado vai coibir de forma eficaz a criminalidade, mas somente servirá para dar resposta a anseios sociais. Ao tornar o Sistema Financeiro “seguro”, o Estado colocou em risco o direito à liberdade dos gestores das instituições financeiras, que passarão a sofrer o risco de verem suas liberdades violadas por atos que são de essência do próprio Sistema Financeiro. A atividade financeira está diretamente ligada à assunção do risco. Os gestores dessas instituições trabalham no controle e na minimização das perdas geradas pela operacionalização do sistema, além de deparar-se com crises e movimentações econômicas que refletem na credibilidade das instituições, dos países e dos investidores. Portanto, é de fundamental importância que o legislativo chegue a uma delimitação conceitual do crime de gestão temerária, tanto para garantir que os crimes contra o sistema financeiro possam ser coibidos, como para garantir o respeito aos princípios constitucionais do Direito Penal, que trazem segurança e respeito à liberdade do cidadão.

THE LAW ON PUBLIC FINANCE SYSTEM: LACK OF CONCEPT OF “GESTÃO TEMERÁRIA” CRIME AND ITS IMPLICATIONS FOR THE DEFINITION OF THE CRIME

ABSTRACT

Market economy and globalization have brought many technological advances and economic growth to nations, but also made them interdependent and susceptible to crises that could happen anywhere. Trying to make solid and secure financial systems, there has been a global trend to combat crimes that threatened the solidity of the system as desired. In Brazil was not different. In 1986, it was promulgated Law 7,492, which deals with crimes against public finance system. However, instead of bringing a legal security to the system, in fact, this law brought vague and broad criminal types without delimitation, violating several constitutional principles of criminal law. The “gestão temerária” crime violates principles of legality and “taxatividade” because it allows the court to define criminal conduct, and does not explain what would be a “gestão temerária”. This article aims to show, without definitive answers, the implications of unsuccessful legislation to combat crime and technique to guarantee system and individual citizen's right, and tries to define the conduct that would be repressed for the crime of “gestão temerária”. Keywords: Law 7,492. The Law on Public Finance System. “Gestão Temerária” Crime. “Gestão Temerária” Concept. Operational Risk.

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