A Lei Maria da Penha e as práticas de construção social da “violência contra a mulher” em um juizado do Rio de Janeiro.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

A LEI MARIA DA PENHA E AS PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DA “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER” EM UM JUIZADO DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Rio de Janeiro Maio de 2010

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A LEI MARIA DA PENHA E AS PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DA “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER” EM UM JUIZADO DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj Co-orientadora: Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes

Rio de Janeiro Maio de 2010

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A LEI MARIA DA PENHA E AS PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DA “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER” EM UM JUIZADO DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes

Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj Co-orientadora: Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Aprovada por:

Presidente, Profª. Dra. Bila Sorj (PPGSA, IFCS)

Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes (PPGSA, IFCS)

Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (PPGAS, MN, UFRJ)

Profª. Dra. Joana Domingues Vargas (NEPP-DH, UFRJ)

Rio de Janeiro Maio de 2010

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Gomes, Carla de Castro A Lei Maria da Penha e as práticas de construção social da “violência contra a mulher” em um juizado do Rio de Janeiro/ Carla de Castro Gomes. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2010. ix, 178f.: il.; 30cm Orientadora: Bila Sorj Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2010. Referências Bibliográficas: f.199-204 1. Gênero. 2. Violência de gênero. 3. Lei Maria da Penha. 4. Justiça Criminal. 5. Construção social do crime. I. Sorj, Bila. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título

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RESUMO

A LEI MARIA DA PENHA E AS PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DA “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER” EM UM JUIZADO DO RIO DE JANEIRO

Carla de Castro Gomes Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj Co-orientadora: Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Esta pesquisa analisa o processo de construção social do crime de “violência contra a mulher”, no marco dos dispositivos da Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006). As práticas rotineiras de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da cidade do Rio de Janeiro, forjadas na interação entre profissionais, mulheres e homens, são analisadas enquanto práticas de produção da “violência contra a mulher”, na medida em que equivalem a operações de atribuição de sentidos aos conflitos da intimidade. O percurso das ações penais na instituição, os relatos escritos e orais dos atores, os distintos procedimentos de diagnóstico e decisão empregados por operadores do direito, psicólogos e assistentes sociais, a (re)avaliação de estratégias de ação por parte das vítimas, acusados e profissionais, e os encaminhamentos e soluções dados aos casos _ numa palavra, a organização social do juizado _ são tomados como práticas nas quais e pelas quais são construídos e negociados os sentidos dos conflitos e da “violência contra a mulher”. Assim, a criminalização da “violência contra a mulher” não se esgota nos enunciados legais da Lei Maria da Penha. É no cotidiano das instituições, em que os eventos singulares são criminados, que este tipo de crime é produzido enquanto tal e que a regulação dos conflitos da intimidade é definida em toda sua complexidade. Palavras-chave: gênero, violência de gênero, Lei Maria da Penha, Justiça Criminal, construção social do crime.

Rio de Janeiro Maio de 2010

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ABSTRACT

LEI MARIA DA PENHA AND THE PRACTICES OF SOCIAL CONSTRUCTION OF “VIOLENCE AGAINST WOMEN” IN A COURT IN RIO DE JANEIRO Carla de Castro Gomes Orientadora: Profª. Dra. Bila Sorj Co-orientadora: Profª. Dra. Aparecida Fonseca Moraes

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). This research investigates the process of social construction of the crime of “violence against women”, as it is portrayed by Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006). The routine practices of the Court of Domestic and Familiar Violence against Women (Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) of Rio de Janeiro, seen from the point of view of the interaction between professionals, men and women, are analyzed as practices that produce “violence against women”, in the sense that they can be understood as operations that attribute meaning for conflicts of intimacy. The course of criminal suits in the institution, the written and oral accounts of actors, the distinct diagnosis and decision procedures used by law professionals, psychologists and social workers, the (re)evaluation of the strategies of action of victims, defendants and professionals, and the follow-ups and solutions given to the cases – in a word, the social organization of the court (juizado) – are considered practices through and by which are constructed and negotiated the meaning of conflicts and of “violence against women”. In this fashion, the criminalization of “violence against women” is not limited by the legal provisions of Lei Maria da Penha. It is in the routine of these institutions, when singular events are incorporated into the general criminal classification, that this type of crime is produced as a crime and that the regulation of conflicts of intimacy is defined in all its complexity. Key-words: gender, gender violence, Lei Maria da Penha, Criminal Justice, social construction of crime.

Rio de Janeiro Maio de 2010

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À Josalma, minha mãe, com amor.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Josalma, aos meus irmãos, Rachel e Julliano, à pequena Yaiá, ao meu amor, Daniel, à tia Duda, aos primos Pietro e Lucas, ao meu padrasto, Barros, à vovó Odete e aos meus eternos pai, Manoel, vovô Josias e vovó Iedda: meus maiores tesouros, razão de todos os meus sonhos.

Às minhas queridas orientadoras Bila e Cida, incentivadoras desde a graduação, pela sensibilidade, amizade e pela competente e atenciosa orientação: eu não poderia estar em melhores mãos.

Aos profissionais do juizado, que me abriram as portas de seu trabalho e de suas idéias. Essa dissertação é de vocês também.

Aos grandes amigos, parceiros da vida e de todas as caminhadas, Ju, Anita, Aline, Marina, Rodrigo, Julia Leal, Júlia Monteiro, Ana Luiza e Maíra.

Às maiores descobertas do mestrado, meus companheiros na empreitada e amigos do peito, Lulu, Mario, Nina e Arbel.

À Julieta e Cris, companheiras do NESEG e outras aventuras.

Aos professores do PPGSA, pela inspiração e ensinamentos, à Claudinha, Denise e Ângela, por cuidarem tão bem de nossa instituição e atividades, e à CAPES, pela bolsa de estudos concedida.

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Sumário

Introdução .................................................................................................................. 10 Capítulo I: Abordagens analíticas ................................................................................ 16 1. Das Delegacias da Mulher à Lei Maria da Penha: violência de gênero e relações de poder ................................................................................................................................................. 16 2. A construção social do crime .............................................................................................. 26 3. A Etnometodologia e o foco nas práticas e narrativas dos atores ....................................... 37 Capítulo II: A Lei Maria da Penha e a nova institucionalidade ...................................... 43 4. A Lei Maria da Penha e a ampliação da definição de violência .......................................... 43 5. Pesquisa de campo e metodologia ....................................................................................... 51 6. O Juizado............................................................................................................................. 58 6.1. O perfil das relações entre vítimas e réus e dos tipos de crime e as suas implicações práticas ................................................................................................................................ 61 6.2. O “circuito” da Lei Maria da Penha: a etapa judicial da “violência contra a mulher” . 69 Capítulo III: as práticas no juizado e a construção social da “violência contra a mulher”80 7. As audiências: a relativização dos papéis de vítima e réu e a padronização de soluções ... 80 8. A defensoria feminina: reavaliação de estratégias, accounts e negociação de identidades 99 9. A equipe técnica: psicólogos e assistentes sociais e suas operações de atribuição de sentidos aos crimes ................................................................................................................ 119 10. O grupo de reflexão para homens agressores: a elaboração do conflito pelo diálogo, “vitimização”, “responsabilização” ....................................................................................... 151 Considerações finais .................................................................................................. 182 Anexo: texto integral da Lei Maria da Penha .............................................................. 188 Bibliografia ............................................................................................................... 199

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Introdução

Desde a década de 1970, a politização da “violência contra a mulher” vem sendo produzida, em escala global e local, nos movimentos e organizações feministas, nas conferências de direitos humanos, nas reuniões mundiais de mulheres, na produção acadêmica feminista e de gênero, nas discussões públicas, na formulação de políticas públicas e na atualização de normas jurídicas. Principal objeto de crítica e combate dos movimentos de mulheres no Brasil, a “violência contra a mulher” ultrapassou o espaço privado e pessoal e ganhou a arena pública e institucional. A Criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), em 1986, marcam um momento decisivo no processo de criminalização deste tipo de violência e consolidam o feminismo brasileiro como um importante ator social. Recentemente, em agosto de 2006, novas mobilizações políticas feministas resultaram na criação da lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que define a “violência doméstica e familiar contra a mulher” como crime e cria juizados específicos para julgar esses casos, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Com a nova lei, os crimes decorrentes deste tipo de violência são retirados do rol de “crimes de menor potencial ofensivo”, o que, significa, entre outras implicações processuais e penais, que podem acarretar a prisão do réu. Além disso, a lei transcende medidas punitivas para dispor também sobre medidas cautelares de proteção à mulher, assistência social e psicológica à mulher e seus familiares, serviços de atendimento ao agressor, programas educacionais voltados à promoção da igualdade de gênero e criação de uma rede integrada de instituições voltadas para o problema, incentivando uma abordagem “multidimensional” e “interssetorial” da “violência contra a mulher”. A Lei Maria da Penha representa um novo momento das políticas de gênero no Brasil. Pela primeira vez a “violência contra a mulher” é tipificada como crime nos códigos jurídicos. Entretanto, apesar da legitimidade legal, a criminalização deste tipo de violência revela-se um grande desafio. Primeiro, porque a violência contra a mulher é produzida no espaço social da intimidade, onde os atores estão ligados entre si por uma ampla cadeia de interações em que relações de conflito, afetividade e dependência

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coexistem e se entrelaçam a todo momento. Os comportamentos e expectativas em jogo nas relações de intimidade comportam ambigüidades e complexidades que problematizam e particularizam a criminação1 de eventos violentos nessa esfera, desde a decisão de denunciá-los nas delegacias até o curso da ação penal na Justiça. Segundo, a criminalização da “violência contra a mulher” é um empreendimento que se pretende um instrumento de crítica da ordem patriarcal de gênero. Inspirada no ideário feminista, pautado por noções como igualdade e justiça de gênero, a Lei Maria da Penha não foi criada, como é o caso de muitas outras leis criminalizadoras, para assegurar a ordem de dominação vigente, mas com o objetivo de desafiá-la. Assim, não seria, a priori, um novo mecanismo de reforço dos controles sociais, senão um instrumento de crítica aos mesmos e de mudança social. Terceiro, por constituir uma forma de normalização da esfera da intimidade pautada por princípios que pretendem contrariar a hierarquia e os papéis de gênero, a construção social do crime de “violência contra a mulher” é um processo que não se esgota nos seus enunciados legais. Intensas disputas políticas marcam a reação social a esse tipo de violência, abrindo um espaço relativamente amplo para negociações, ao longo do fluxo do sistema de justiça criminal, entre diferentes interpretações acerca da natureza do conflito e do tratamento institucional adequado. Desse modo, a violência contra a mulher encontra dificuldades para se enunciar como crime, mesmo quando é oficialmente classificada como tal. É um fenômeno que frequentemente extrapola a tipificação criminal para absorver também significados sociais, psicológicos, mentais, econômicos, que acabam por relativizar os conteúdos criminais. Motivada por essas questões, esta pesquisa tem o objetivo de analisar de que forma a operação da Lei Maria da Penha em um Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Rio de Janeiro vem contribuindo para o processo de construção social do crime de “violência contra a mulher”. Considerando as observações feitas acima, a pesquisa parte da hipótese de que esse processo apresenta especificidades se comparado à criminação de outros tipos de atos. Assim, a principal

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Criminação é um conceito de Michel Misse (2008, p. 14), que significa encaixar um curso de ação local e singular, por sucessivas interpretações, na classificação criminalizadora, mediante o acionamento do Estado. Mais adiante, será discutido detalhadamente.

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pergunta a ser respondida é: de que maneira o fato de os conflitos em questão serem da ordem da intimidade molda a forma como o crime é construído? O presente estudo está atento para a operação real da lei pelos atores envolvidos. Elegi um juizado da cidade do Rio de Janeiro e acompanhei diversas atividades ali desenvolvidas: as audiências; o atendimento dado pela defensoria pública às mulheres que acionaram a Justiça na condição de vítimas; a “escuta” de vítimas e réus e o chamado “Grupo de Reflexão para homens autores de violência”, ambos empreendidos por psicólogos e assistentes sociais. Considerando o contexto dessas atividades, à pesquisa cabe perguntar: como os atores, eventos, relações e famílias são classificados pelos profissionais do Juizado? Que tipos de “violência contra a mulher” vêm merecendo maior atenção nesse órgão? Como os relatos de vítimas e agressores sobre os eventos violentos são interpretados e classificados? Que noção criminalizada da “violência contra a mulher” emerge daí? De que formas os papéis de “vítima” e “agressor” são construídos, negociados e relativizados? As questões serão analisadas em diálogo com dois conjuntos de estudos sociológicos: 1) os estudos de violência de gênero e relações de poder e 2) os estudos sobre construção social do crime. Serão exploradas as possibilidades analíticas que esses estudos podem oferecer à análise da criminação da “violência contra a mulher”, bem como suas limitações. Além disso, a pesquisa de campo no juizado será desenvolvida via uma abordagem etnometodológica. O primeiro conjunto abarca os estudos sobre violência de gênero e relações de poder, dos quais destaco as pesquisas empíricas sobre instituições que lidam com a violência de gênero no Brasil, como ONGs, Delegacias da Mulher, centros de atendimento psicológico e social a “mulheres vítimas”, Justiça Criminal. Sem esgotar aqui a riqueza de perspectivas desses estudos, pode-se afirmar que, de maneira geral, ao se debruçarem sobre as dinâmicas institucionais, eles estão preocupados em analisar a complexidade das relações de gênero inseridas em um determinado “padrão cultural” e as tensões produzidas no encontro entre as mulheres participantes dessas relações, as práticas e representações dos profissionais das instituições e o ideário feminista que inspirou a criação destas. Por diversos caminhos, as pesquisas corroboram a idéia de que a interação entre esses diversos atores gera paradoxos que continuamente testam os limites das políticas públicas e de instituições que visam à igualdade de gênero.

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O segundo conjunto de estudos trata da análise dos processos de construção social do crime. Analisa articulações entre ordem normativa, transgressão e controle social do crime por parte de instituições do Estado, enfatizando o aspecto político e relacional da construção social do crime e os processos de negociação de identidades e rotulação de atores envolvidos em transgressões e conflitos. Por que dialogar com esses estudos? As últimas décadas assistiram a emergência, em muitos países, de novos e variados atores sociais a reivindicar reconhecimento político e social, como os movimentos de mulheres, negros, homossexuais, indígenas, de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, entre outros. As demandas pela criminalização de “opressões específicas” vêm se destacando como um componente político importante dessas mobilizações, o que suscita debates acerca do papel do Poder Judiciário diante das transformações sociais contemporâneas. Esta pesquisa, ao analisar como o Poder Judiciário vem respondendo às demandas feministas no que tange a criminalização da “violência contra a mulher”, espera refletir sobre e contribuir com o arcabouço teórico da “construção social do crime”, ao situá-lo no contexto das demandas e atores sociais contemporâneos. Ao mesmo tempo, a constituição desses novos grupos de atores é inseparável da constituição de novos conjuntos específicos de conhecimento que circulam entre a prática política e a pesquisa acadêmica. No Brasil, a consolidação, nas instituições acadêmicas, do campo dos “estudos de gênero” se deu por meio de um intenso diálogo com o feminismo (Heilborn e Sorj, 1999). São muitas e significativas as contribuições desses estudos para a compreensão de diversos temas relacionados à questão de gênero, em especial o fenômeno da “violência contra a mulher”. A pesquisa faz uso dessas contribuições e, ao mesmo tempo, procura explorar novos caminhos e possibilidades analíticas ao dialogar com outro campo de estudos. Finalmente, a Etnometodologia desenvolve um conjunto teórico-metodológico de conhecimento baseado na investigação dos procedimentos de ação social. Debruçarse sobre os procedimentos de ação ou sobre como os atores agem em seu cotidiano é uma prolífica porta de acesso aos significados que eles atribuem às suas ações e que compartilham com os outros. No contexto desta pesquisa, significa dizer que os relatos orais e escritos dos atores do juizado (acusados, vítimas e, principalmente, profissionais), as suas prestações de contas, técnicas e regras de argumentação, relatórios, avaliações, rotinas de trabalho, todos esses procedimentos de ação, enfim, são

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tratados como “dados” privilegiados de análise, a partir dos quais é possível inferir sobre os processos de tipificação, avaliação, julgamento e solução dos crimes de “violência contra a mulher”, isto é, sobre os sentidos que lhes atribuem os atores sociais do juizado. Para tal, não apenas foram observados momentos de contato entre os profissionais e os homens e mulheres envolvidos nos conflitos, como também a interação dos profissionais entre si e os seus procedimentos de trabalho, antes e depois do contato com os envolvidos. Assim, os indivíduos envolvidos nos conflitos são endereçados na medida em que vivenciam a institucionalidade do juizado e interagem com os profissionais, enquanto estes _ os seus procedimentos de trabalho, as suas interpretações sobre os conflitos, as suas ações voltadas à clientela _ ocupam o principal foco da pesquisa. As práticas que ocorrem no juizado durante audiências e atendimentos na defensoria feminina e na equipe de psicólogos e assistentes sociais foram analisadas via uma abordagem qualitativa, baseada na observação e na etnografia. Ao costurar a descrição dos procedimentos rotineiros de ação desses atores com as análises culturais, políticas e organizacionais produzidas nos dois primeiros campos de estudo, a pesquisa pretende explicitar e analisar o processo de construção social da “violência contra a mulher”, tomado desde o enquadramento institucional do juizado. O primeiro capítulo apresenta a trajetória ao longo da qual a “violência contra a mulher” é construída como uma das principais bandeiras dos movimentos feministas brasileiros. A criação das DEAMs, parte fundamental desse processo, é discutida, bem como alguns estudos que se debruçaram sobre o seu funcionamento. Debate-se sobre as críticas à atuação da Justiça em relação esse tipo de violência, que motivaram a criação da Lei Maria da Penha. Em seguida, essa trajetória é analisada em diálogo com estudos sobre a construção social do crime, com o que se procura explicitar seu caráter político e relacional. Finalmente, recortam-se algumas das bases analíticas da etnometodologia, indicando suas possibilidades para a análise das observações feitas no juizado pesquisado. O capítulo dois trata das inovações trazidas pela Lei Maria da Penha e da sua definição de “violência doméstica e familiar contra a mulher”. Apresenta a entrada e o percurso no campo de pesquisa, bem como a metodologia utilizada, para então iniciar o mergulho na instituição pesquisada, o juizado. Discutem-se as suas características gerais: estrutura organizativa e profissional, o perfil dos envolvidos, o percurso

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institucional das ações penais, o universo de significados que estão em jogo nesse ambiente. O capítulo três descreve e analisa as atividades e interações que acontecem no juizado: as audiências, a defensoria pública feminina, a equipe técnica e o grupo de reflexão para homens agressores. A etnografia dessas quatro instâncias do juizado _ da sua rotina, do encontro entre profissionais e envolvidos, dos procedimentos técnicos operados pelos profissionais, das práticas sociais no juizado, enfim _ é analisada pelo recorte etnometodológico, o que permite explicitar o processo de construção social da “violência contra a mulher” como um tipo particular de crime. Finalmente, a conclusão apresenta uma comparação entre essas instâncias e as maneiras pelas quais nelas são interpretados os conflitos íntimos e construídas noções mais ou menos criminalizadas da “violência contra a mulher”.

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Capítulo I: Abordagens analíticas

Este capítulo apresenta a trajetória ao longo da qual a “violência contra a mulher” é definida como tal, ganha visibilidade na arena pública, torna-se objeto de políticas, para enfim ser formalizada como crime nos códigos jurídicos, com a criação da Lei Maria da Penha. São discutidas algumas pesquisas que analisam e problematizam as dinâmicas das instituições que lidam com o tratamento desse tipo de violência. Algumas questões relativas à criação da Lei Maria da Penha são exploradas através de conceitos e problemas relativos aos estudos sobre construção social do crime. Finalmente, as contribuições da etnometodologia para a teoria da ação social são acionadas para definir um método de investigação das rotinas do juizado.

1. Das Delegacias da Mulher à Lei Maria da Penha: violência de gênero e relações de poder

A visibilidade e especialização das políticas de gênero no Brasil devem ser compreendidas através da articulação de múltiplos contextos, internacionais e nacionais: a emergência de grupos identitários e a demanda por políticas de reconhecimento; a emergência e consolidação dos feminismos como importante ator social, capaz de tornar visível o tema da desigualdade de gênero e de influenciar a agenda política em diversos países e instâncias internacionais em prol dos direitos humanos das mulheres; a redemocratização da sociedade brasileira e a abertura do espaço público aos movimentos sociais, entre eles os movimentos feministas; a “judicialização” da política e das relações sociais. O movimento internacional de constituição de uma agenda pública de combate à violência contra a mulher começa a se organizar, com maior força, em fins da década de setenta. A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), aprovada em 1979 pelas Nações Unidas e ratificada pelo Brasil em 1984, marca este momento com a aprovação de medidas e metas para a erradicação deste tipo de violência. Outras convenções e conferências mundiais sobre temas

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relativos aos direitos humanos das mulheres se sucedem

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e impulsionam, em diversos

países, a promoção de diversas políticas para as mulheres, em diversas áreas da vida social, de acordo com as necessidades e traços culturais dos contextos locais. No Brasil, esses acordos internacionais impulsionaram, em meados da década de 1970, mobilizações pelos direitos das mulheres, enquanto grupos feministas se organizavam, se mobilizavam e ganhavam visibilidade política. Constituíram-se como um movimento social internamente diversificado, composto por diversos “feminismos” em negociação e disputa, mas bem-sucedido em construir certa unidade identitária em torno de alguns consensos _ um “nós” _ que lhes deu capacidade de agência suficiente para repercutir na vida política e social. Sorj (2002) argumenta que, originalmente formulado em contextos sociais marcados pelos valores de individualismo, igualitarismo e democracia, o ideário feminista foi ressignificado pelas feministas brasileiras, que se deparavam com um cenário diferente daquele, caracterizado por profundas desigualdades sociais e pela articulação peculiar, não-dicotômica e não-linear entre valores de hierarquia e igualdade, autoritarismo e democracia, personalismo e individualismo. Segundo a autora, “trata-se, portanto, de reconhecer que o contexto histórico e social brasileiro opera um complexo processo de (re)elaboração do discurso e das ações feministas, apesar de sua aspiração universalizante” (Sorj, Op. Cit., p.101). Assim, o feminismo brasileiro, em consonância com a realidade social em que se insere, sempre esteve muito mais engajado em lutas políticas sociais _ relativas às condições práticas das vidas das mulheres, como a saúde, o trabalho e a violência _ do que com a defesa de seus “direitos individuais”, como em outros países. Como mostram Heilborn e Sorj (1999), os movimentos feministas contaram, desde suas origens, com a atuação e o apoio de mulheres acadêmicas. A institucionalização dos “Estudos de Gênero” tem raízes nesse diálogo com o feminismo. Ainda que, posteriormente, as acadêmicas tenham dissociado sua produção da ação

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Especialmente a II Conferência sobre direitos humanos, realizada em 1993 em Viena e que incorporou a consideração de que “a violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos”; a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em junho de 1994, em Belém do Pará; a Conferência Mundial sobre a mulher realizada em Beijing, na China, em 1995; e a reunião conhecida como Beijing + 5 que integrou uma Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, cinco anos após a Conferência Mundial. Cf., Vianna e Lacerda (2004).

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política, à medida que consolidavam um campo sociológico de pesquisas, as linhas temáticas que caracterizam os estudos de gênero no país até hoje foram largamente definidas no intercâmbio com as questões caras ao nascente feminismo brasileiro. Assim, organizaram-se, principalmente, em torno dos temas trabalho feminino, família e violência de gênero. Este último tema ocupou um lugar estratégico na agenda feminista e acadêmica, porque ao lograr galvanizar a atenção pública para além dos círculos militantes, conferiu visibilidade e legitimidade aos movimentos de mulheres. Ao intensificar o debate e a atuação política sobre gênero e violência, feministas e acadêmicas contribuíram para a construção da “violência contra a mulher” enquanto categoria política e social relevante. Nesse processo, desenvolveu-se uma refinada gramática política e acadêmica composta de termos como “violência conjugal”, “violência doméstica”, “violência familiar”, “violência sexual”, “assédio sexual”, “tráfico sexual de mulheres”, “violência contra meninas e adolescentes”, “prostituição infantil”, “violência étnica contra mulheres não brancas”, (Grossi, 1994). Todos esses termos qualificam subtipos da categoria central “violência de gênero”, definida como uma modalidade específica de violência que está relacionada às maneiras desiguais e hierárquicas pelas quais se organizam as relações entre homens e mulheres. As marcantes atuações feministas no final de década de 1970 e início da de 1980 resultaram na criação do SOS Corpo de Recife (1978) e o SOS Mulher de São Paulo (1980), as primeiras organizações civis de atendimento a “mulheres vítimas de violência”. Com a redemocratização, as mobilizações e demandas feministas começam a ser transpostas para a institucionalidade pública. Em 1985, no governo Sarney, é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão oficial de representação das mulheres, com “a finalidade de promover em âmbito nacional, políticas que visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País” (Brasil, 1985). Conselhos Municipais e Estaduais da Mulher foram gradativamente instituídos em todo o país, paralelamente à formulação de programas governamentais e políticas públicas voltados para as mulheres, como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), de 1984, e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), cuja primeira unidade foi criada em

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São Paulo, em 1986 (Suárez e Bandeira, 2002; Farah, 2004), e hoje já somam cerca de 467 unidades no país 3. As DEAMs foram criadas para mudar o tratamento dispensado pelos policiais às mulheres que vinham denunciar crimes sexuais perpetrados por desconhecidos e agressões cometidas por seus cônjuges. Informados por práticas institucionais que classificavam o tratamento desses eventos como trabalho desprestigioso e irrelevante e por estereótipos de gênero depreciadores das mulheres que tornavam públicas as agressões, os policiais homens freqüentemente duvidavam da condição de vítima da queixosa e não dispunham de treinamento ou metodologia para atender esses tipos de casos. Esse cenário, argumentavam as feministas, contribuía para desencorajar denúncias e para reproduzir o ciclo de preconceitos contra a mulher vítima de violência e de impunidade dos homens agressores. Assim, a concepção original das DEAMs propunha um atendimento humanizado às vítimas, pautado pela valorização da escuta e pelo respeito aos seus direitos. Ao consolidar o combate à “violência contra a mulher” como bandeira mais representativa dos movimentos de mulheres, essas delegacias propiciaram grande expressividade política às organizações feministas, fortaleceram o seu diálogo com o Estado e constituíram-se como a primeira grande política pública de gênero na área da segurança. Foram peça capital na politização da “violência contra a mulher”, que, ao tornar-se objeto de atenção da institucionalidade pública, problematiza a dicotomia público/privado. O ideário feminista que inspirou a criação das DEAMs as concebeu, principalmente, como um instrumento através do qual a “violência contra a mulher” pudesse ser efetivamente tratada como crime. Entretanto, diversos estudos apontam que há uma relação complexa e tensa entre as instituições que lidam com o problema, o feminismo e as mulheres vítimas, o que coloca dificuldades para se tratar a questão dessa forma.

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Esse número inclui Delegacias, Seções e Postos de Atendimento Especializados da Mulher. Informação disponível no site da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), (http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm), acessado em 14 de fevereiro de 2010.

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Analisando o cenário brasileiro, Sorj e Moraes (2004) argumentam que quando os valores igualitários e universalistas do feminismo, tais como autonomia, emancipação e livre-arbítrio das mulheres, chegam aos contextos locais, encontram práticas culturais específicas construídas sobre outras normas e valores morais. Desse encontro, nascem situações que não estavam previstas nos projetos feministas, paradoxos que continuamente testam os limites das políticas públicas e de instituições que visam à igualdade de gênero. Não obstante as grandes conquistas e oportunidades alcançadas pelo feminismo em sua perspectiva globalizada, os valores do universo feminista muitas vezes confrontam expectativas bastante diferenciadas na vida concreta dos indivíduos, especialmente das mulheres e dos profissionais das instituições públicas voltadas à igualdade e justiça de gênero. Elaine Reis Brandão (1998), pesquisando uma DEAM no Rio de Janeiro, analisou as motivações e expectativas que orientam as vítimas de violência conjugal a procurar a instituição. Percebeu que as mulheres “não compartilham a concepção da violência como algo que fira a integridade (física e moral) individual, conforme dispõem os preceitos jurídicos” (Brandão, Op. Cit., p.65) ou os ideais feministas. Elas utilizam a DEAM como “recurso simbólico” que lhes oferece condições para negociar privadamente com seus parceiros agressores o restabelecimento dos padrões rompidos de relações e papéis sociais. A incriminação do parceiro não é uma prioridade. Nesse sentido, a denúncia, bem como a prática sistemática de suspender a queixa, constituem instrumentos de barganha para as mulheres, coerentes “com ideário que compartilham e com as condições sociais em que vivem” (Idem, p.77). Debert e Gregori (2008) argumentam que a expectativa feminista de que as delegacias da mulher desempenhassem, além do papel preventivo e punitivo, um “papel pedagógico, como espaço para o aprendizado e o exercício de virtudes cívicas” é de difícil concretização (Debert e Gregori, Op. Cit, p.169). Para as autoras, o recurso às DEAMs não está necessariamente relacionado à conscientização sobre direitos ou expectativas de relações igualitárias por parte das vítimas. O trabalho de Maria Filomena Gregori (1993) teve grande repercussão ao mostrar que, em uma instituição não-governamental chamada SOS Violência, as mulheres atendidas tinham representações da violência que colocavam em xeque a idéia, naturalizada pelas feministas, da vitimização feminina diante das agressões masculinas. Tornando visível a complexidade das interações que ligam afetivamente

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homens e mulheres, e, assim, tornando efetivamente significante o caráter relacional do gênero, a autora identificou que a mulher não se constitui em um “não-sujeito”, uma “vítima” contraposta a um “algoz”, mas é parte ativa na administração das relações conjugais e dos conflitos. Desconstrói-se, assim, um dos pilares mais expressivos do processo político que conferiu identidade aos sujeitos do feminismo, deu-lhes visibilidade enquanto sujeitos políticos e legitimidade ao feminismo como seu representante, no contexto brasileiro: a categoria da “mulher vítima” 4. Se não há uma experiência universal de ser “mulher”, também não deve haver uma experiência universal de “violência conjugal”. O uso das DEAMs pelas mulheres, portanto, segue lógica diversa do movimento feminista e da própria instituição policial. As demandas trazidas por elas são muito variadas e específicas e freqüentemente extrapolam os limites do que os policiais consideram “fato criminal” e função institucional da polícia. Isso cria tensões entre vítimas e policiais e coloca dilemas éticos a esses profissionais, pois para atendê-las, têm que definir e redefinir continuamente o escopo da “mediação policial” e o que pode ser considerado “público” e “privado”, “crime” e “não-crime”, trabalho “policial” e trabalho “social”. Lia Zanotta Machado (2002) argumenta que os policiais das DEAMs participam de um ethos profissional segundo o qual aos eventos violentos dentro das relações conjugais e familiares são atribuídos significados que os inscrevem, não na categoria de “fatos criminais”, mas na de “fatos sociais”5. O tipo ideal de fato criminal deve conter ao menos três elementos essenciais: uma infração às regras, uma vítima e um infrator. No entanto, para os policiais, os conflitos entre íntimos carecem da objetividade necessária à identificação inequívoca desses elementos. O relacionamento pessoal em que estão mergulhados homens e mulheres íntimos pressupõe um jogo intricado de emoções e interesses que antecede ao evento denunciado, “poluindo o caso” (Machado, Op. Cit., p.10).

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Para uma discussão sobre a construção da categoria “mulheres” como sujeitos do feminismo, ver Judith Butler (2003). 5

Estamos falando de eventos que são majoritariamente tipificados nos registros de ocorrência como “ameaça” e “lesão corporal leve”. Os homicídios estão fora da competência das DEAMs e são investigados por delegacias especializadas nesse tipo de crime.

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Esse contexto de jogo como que subtrai ao evento seu status mesmo de evento _ discreto, unitário, demarcado por uma duração definida de tempo-espaço e por sentidos claros de probabilidade. Assim, segundo os procedimentos racionais de investigação policial, os personagens do conflito não cabem perfeitamente nas formas típicas e distintas de vítima e infrator, tão imbricados estão um no outro. O conflito, que já não é evento, tampouco pode ser “adequadamente” caracterizado como fato criminal, como infração. O fulcro da atividade policial, que consiste em definir “o que realmente aconteceu”, fica deslocado. Os conflitos íntimos não pertenceriam, portanto, ao escopo das funções “propriamente policiais”. Em pesquisa realizada em uma DEAM e uma delegacia comum, Moraes e Gomes (2009) identificam que os policiais atribuem sentidos centrífugos a estes conflitos: estão relacionados ao “alcoolismo”, “pobreza”, “ignorância”, “desestruturação familiar”, “machismo”, “dependência emocional”, “disputas por bens e filhos”, “ciúmes”, “vingança”, “rejeição”, “covardia”, “sentimento de posse”, “honra”, “controle do outro”, “baixa auto-estima”. São problemas para os quais os remédios adequados não podem ser encontrados apenas na esfera do trabalho policial, mas prioritariamente através do trabalho “extra-policial” de mediação, aconselhamento, encaminhamentos a serviços e profissionais de psicologia e assistência social. Numa palavra, segundo a interpretação dos policiais, os atores vivem “problemas sociais” e “pessoais”, e não criminais. O conflito é inserido num contexto que os interpreta como ruptura de modelos de relações. Como assinala Debert (2001, 2006a, 2006b) os atores são vistos como aqueles que falharam em aderir a modelos ideais de cidadania, de moralidade, de família. A delegacia da mulher, criada para garantir direitos, redefine a sua clientela como “cidadãos malogrados”, incapazes de exercer seus direitos. A autora mostra que o atendimento policial nas Delegacias da Mulher opera, então, uma “renovação da família” _ traço que, aliás, vem caracterizando a política pública brasileira como um todo _ o que caracteriza um processo de “reprivatização de questões políticas” (Debert, 2006a, p.18). Percebida como lócus produtor de violência, a família deve ser objeto de controle social, única solução para a cidadania falha: “As instituições se voltam para a família de modo a restabelecer normas e regras tidas como essenciais à convivialidade entre parentes e outras pessoas ligadas por relações afetivas. A tentativa está em precisar quais são os

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direitos e deveres dos pais, dos filhos e de cônjuges, companheiros ou vizinhos, judicializando áreas que não podem ser abandonadas à criatividade social.” (Debert, 2006b, p.43)

Segundo a autora, passa-se da defesa da mulher à defesa da família, sem que, no entanto, se inscrevam no horizonte de ação novos arranjos de família, baseados em relações mais igualitárias, que permitam eliminar a violência de gênero e garantir os direitos de todos os membros. Isso opera uma modificação no significado dessas instituições e da própria “violência contra a mulher”, que fica subsumida à “violência doméstica”, categoria que “aparece como uma expressão englobadora das mazelas da sociedade brasileira” (Debert e Gregori, Op. Cit., p.170). Esses estudos mostram que as DEAMs estão imersas em dilemas que não foram previstos. Se por um lado, essas instituições foram criadas para garantir os direitos das mulheres e ampliar o seu acesso às instituições da Justiça, por outro geram tensões entre feministas, policiais e mulheres que problematizam essas mesmas conquistas. Alguns estudos sobre a atuação da Justiça Criminal quanto aos casos de “violência contra a mulher” também revelam dilemas semelhantes. Carrara, Vianna e Enne (2002) mostraram que, na Justiça do Estado do Rio de Janeiro, promotores e juízes relativizavam a gravidade e o caráter criminoso das agressões e ameaças perpetradas por homens às suas parceiras mulheres, designando-as por expressões que os recolocavam “imediatamente no contexto em que ocorreram”, como “incidente doméstico”, “discussão rotineira” ou “mero desentendimento conjugal” (Carrara et al, Op. Cit., p. 83-84). Estava em jogo a lógica da preservação da família e não dos direitos individuais da mulher, de forma que parecia sempre haver um nível aceitável de violência contra as mulheres. Para esses agentes da Justiça, assim como para os da DEAM, os conflitos conjugais eram próprios da esfera privada de relacionamentos e seriam impróprios à intervenção jurídica. A mais significativa transformação no tratamento da violência doméstica no âmbito da Justiça, antes da Lei Maria da Penha, ocorreu através da aprovação da Lei Federal 9.099, de 1995, que criou os Juizados Especiais Criminais (JECRIMs) para lidar com os casos decorrentes de crimes considerados de “menor potencial ofensivo”, como, por exemplo, ameaça, lesão corporal leve e injúria. A principal inspiração destes Juizados no campo da criminologia foi o de promover o acesso da população à justiça

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sob a ótica da conciliação, através de princípios como economia processual, simplicidade, oralidade, informalidade e celeridade (Amorim et al, 2002). Esta lei incidiu, principalmente, sobre o trabalho das delegacias da mulher, na medida em que o maior número de registros destas se refere a delitos tipificados como ameaça e lesão corporal leve, portanto, casos a serem encaminhados aos JECRIMs. Constatou-se que, nesses juizados, eram maioria os casos oriundos de conflitos e de violências que envolviam, principalmente, homens e mulheres em relações conjugais, e nas quais as mulheres eram, recorrentemente, as vítimas. Nesse sentido, os JECRIMs abriram as portas das instituições judiciais às mulheres vítimas de violência, que, antes da lei 9099, tinham pouco acesso a elas. Wânia Pasinato Izumino (2004), ao examinar a aplicação da lei 9099/95 no fluxo do sistema de justiça-criminal de São Paulo, para os casos de “violência contra a mulher”, argumentou que “a decisão de recorrer à polícia e a capacidade legal de intervenção no processo judicial, conquistada pelas vítimas sob esta legislação, revelam um modo de exercício de poder pelas mulheres” (Pasinato Izumino, Op. Cit., p.3). Entretanto, muitas críticas foram feitas por feministas e pesquisadores ao tratamento dado pela lei 9099/95 e pelos operadores jurídicos dos JECRIMs aos casos de violência contra as mulheres. A principal delas é a de que, na prática, esse tipo de violência foi considerado um crime de menor importância. Os operadores do direito, despreparados para lidar com os casos e considerando-os fardos que impediam o “bom” funcionamento do judiciário, adotaram a prática de arquivamento sistemático dos processos, através do incentivo à desistência ou de “acordos” impositivos que, em geral, se limitavam ao fornecimento de cestas básicas de alimentos por parte dos agressores. Para Beraldo de Oliveira (2006; 2008), os JECRIMs terminaram por “reprivatizar” e “invisibilizar” os casos de “violência doméstica contra a mulher”, na medida em que eram vistos e tratados pelos profissionais como problemas familiares, impertinentes à esfera do direito penal. Mais uma vez, as feministas viram frustrados os planos de se alcançar plena igualdade de gênero e respeito aos direitos das mulheres. Em virtude disso, alguns estudos e organizações feministas passaram a requerer a incorporação de uma “criminologia feminista” para os casos de “violência contra a mulher” (Campos, 2003). As mobilizações contra a atuação dos JECRIMs se intensificaram e levaram à articulação de um “consórcio”, formado por organizações não governamentais feministas, que investiu na elaboração de um novo projeto de lei

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para o tratamento legal desses casos. Essas mobilizações levaram, em agosto de 2006, à aprovação da Lei 11340, que cria uma nova tipificação penal, a “violência doméstica e familiar contra a mulher” 6. Mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, ganhou o nome de uma mulher a quem o marido deixou paraplégica, depois de duas tentativas de homicídio, por arma de fogo e por eletrocução. Ela recorreu à Justiça por quase vinte anos, sem conseguir, no entanto, condenar o agressor. Somente depois de levar sua causa a instâncias internacionais, que pressionaram o Estado Brasileiro a tomar providências, o agressor foi preso, pouco antes da prescrição do crime. É interessante observar como a experiência particular de Maria da Penha foi tomada como “exemplar” da “violência contra a mulher” e foi incorporada ao processo de produção e ao repertório de justificativas da lei. Para Debert e Gregori (Op. Cit., p.166-167), a criação da nova lei evidencia a “aposta política” que alguns setores do feminismo e de outros movimentos sociais “têm feito na revisão jurídica e nas instituições do sistema de justiça criminal como modo privilegiado de combate à violência”. O recurso aos serviços de polícia e, de modo geral, ao sistema judiciário que mobiliza a ação dos movimentos sociais se inscreve num processo mais amplo, próprio das sociedades contemporâneas, que vem sendo chamado “judicialização”, definido, em termos gerais, como a introdução da ordem reguladora do direito em várias esferas da política e das relações sociais, inclusive em campos tradicionalmente tidos como privados (Debert, 2006b, Op. Cit.). Para Riffiotis (2003), no que se refere à judicialização da violência conjugal, se defrontam a lógica da racionalidade e formalidade jurídicas e a lógica dos afetos e valores morais que moldam o cotidiano das famílias. Sob as práticas e valores da “judicialização”, os conflitos interpessoais são enquadrados na polaridade vítimaagressor, o que, para o autor, coloca barreiras à compreensão e à intervenção nos casos que envolvem laços afetivos e familiares. A judicialização, assim, “traduz um duplo movimento: de um lado a ampliação do acesso ao sistema judiciário, e por outro, a desvalorização de outras formas de resolução do conflito” (Riffiotis, Op. Cit., p.5). Através da noção de “insulto moral”, Cardoso de Oliveira (2005) caracteriza e enfatiza o caráter essencialmente simbólico e imaterial das agressões. O insulto sempre implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro. Está inscrito na

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Sobre o processo de produção da lei, ver Romeiro (2007).

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dimensão dos sentimentos; envolve demandas por reconhecimento, respeito, consideração, dignidade, que, de acordo com o autor, não podem ser adequadamente elaboradas pelos procedimentos jurídicos/formais nem podem ser satisfeitas através da simples obediência a uma norma legal. Para Cardoso de Oliveira, a lógica judicial exclui aspectos significativos do conflito vivido pelas partes e não raramente é percebida por elas como impositiva 7. Apesar dessas críticas, a luta pela criação da Lei Maria da Penha, embalada por uma trajetória de quase trinta anos buscando a criminalização da “violência contra a mulher”, investiu na judicialização da intimidade como via privilegiada para garantir os direitos das mulheres e promover a justiça de gênero. A insatisfação com o tratamento jurídico dispensado pelos JECRIMs acabou por revigorar a política de judicialização nos setores feministas responsáveis pela criação da lei, que se empenharam na reforma dos dispositivos jurídicos, buscando tornar a judicialização uma saída potencialmente mais eficiente e justa do que fora sob a legislação anterior. A opção política pela criminalização da “violência contra a mulher” inaugura, assim, uma nova etapa nas políticas de gênero, em que os dilemas da normalização das relações e conflitos íntimos, como veremos, são tecidos em novas tramas.

2. A construção social do crime

As principais correntes do feminismo brasileiro sempre lutaram para que a violência contra a mulher fosse tipificada como crime, passível de penalização e de políticas de prevenção. Argumentavam que os códigos e as práticas jurídicas brasileiras estavam em dissonância com os direitos humanos porque tardavam em formalizar a plena igualdade jurídica e civil entre homens e mulheres. A criação das DEAMs, a partir de 1986, foi o primeiro passo de abertura do sistema de Justiça Criminal às demandas das mulheres, embora não existisse ainda uma

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Ver também o trabalho de Bárbara Baptista (2008), sobre como, no Brasil, os rituais e a cultura judiciários inviabilizam a realização do princípio da oralidade e dificultam o diálogo e a administração consensual dos conflitos; e o trabalho de Laura Nader (1994), em que define o modelo jurídico que se baseia na ideologia da “harmonia coerciva”, e que se opõe ao modelo adversarial, como parte de um sistema hegemônico de controle social.

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tipificação penal específica para o “crime de violência contra a mulher” 8. Os estudos sobre essas delegacias e sobre os JECRIMs mostraram que as práticas e representações, não apenas dos profissionais como também das próprias mulheres, desafiavam o tratamento institucional dos conflitos íntimos e escapavam ao ideário feminista. A Lei Maria da Penha foi resultado de um esforço político conjunto de diversas instituições feministas para superar as dificuldades que impediam que a “violência contra a mulher” fosse efetivamente tratada como crime e, pela via jurídica, formalizaram a sua criminalização. A noção básica da sociologia do desvio de Becker (2008) de que a definição de regras, desvios e desviantes é um fenômeno inerentemente político se aplica inteiramente à discussão sobre a criminalização da “violência contra a mulher”. O autor problematiza as concepções patológica e funcional do desvio e argumenta que as regras a serem formuladas e impostas, bem como os comportamentos e sujeitos que as violam são definidos ao longo de processos de disputas e conflitos. “Grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders.” (Becker, Op. Cit., p.21-22). Assim, o desvio não é um estado de fato, uma qualidade do evento, mas antes uma interpretação gerada no bojo das relações sociais (Becker, Op. Cit.; Misse, 2008). A existência da norma não é suficiente para caracterizar uma infração; é preciso, principalmente, que haja uma reação social explícita que defina a transgressão da norma como desvio. Os movimentos sociais feministas no Brasil, em estreito diálogo com idéias e instituições feministas de diversos países e instâncias internacionais, foram os principais “empreendedores morais” (Becker, Op. Cit.) do processo de criminalização da “violência contra a mulher”. A sua intensa atuação obteve êxito ao lograr politizar o tema, fazendo-o sair da condição de evento para a de fenômeno social e histórico, e transportando-o da esfera privada para o campo da discussão e ação públicas, onde as diversas formas de agressão cometidas contra as mulheres foram ressignificadas como uma forma específica de violência _ a de gênero _ e como uma infração aos seus direitos.

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Antes da Lei Maria da Penha, as denúncias eram classificadas segundo as tipificações já existentes no código penal de “lesão corporal”, “ameaça”, “injúria”, “difamação” etc.

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Nesse processo existe, entretanto, uma inversão básica em relação às regularidades observadas pelos estudos sobre a construção social do crime. Se eles costumam se referir à criação/imposição de regras e rotulações de desvio como um empreendimento geralmente realizado por profissionais e instituições comprometidos com a manutenção da ordem social e das relações de dominação, é importante observar que a criminalização da “violência contra a mulher” pretende ser, ela mesma, um desafio às instituições sociais e jurídicas vigentes. É inspirada por uma agenda política transformadora. A criação de uma nova lei que define a “violência contra as mulheres” como crime visa contrariar as regras formais e informais vigentes, pautadas na dominação tradicional de gênero, em que a violência contra as mulheres é comumente vista como um ato legítimo de controle social sobre as mulheres. Certamente uma lei desse tipo só chega a ser instituída quando os principais interessados na sua criação conquistam determinado grau de poder e visibilidade política, como é o caso dos movimentos feministas. A trajetória ao longo da qual a “violência contra a mulher” passa a ser vista como uma transgressão no Brasil é inseparável da trajetória de institucionalização dos movimentos de mulheres, iniciada na passagem das décadas de 1970-1980. A Lei Maria da Penha (LMP) é mais um passo desta institucionalização, agora no âmbito jurídico. Assim, esta lei é resultado não de uma reação generalizada à dominação de gênero, mas da reação de um grupo social específico, liderado por algumas das principais correntes feministas, que tinha interesse em tornar a “violência contra a mulher” uma infração à regra que criaram. A instituição da LMP ainda carece de uma reação moral geral que a legitime socialmente, conforme veremos. Ela entra em conflito com uma ordem normativa que pode tolerar a violência conjugal como um tipo de violência interpessoal possível. Talvez não seja exagero dizer que, hoje, a LMP desempenha, ela mesma, o papel de um “outsider” a desafiar a ordem vigente. Assim, contrariando, em parte, a tradição dos estudos sobre construção social do crime, é possível que o processo de criminalização da “violência contra a mulher” seja um exemplo de que nem sempre uma nova classificação criminalizadora vem servir aos interesses da manutenção da ordem _ ainda que esse processo comporte tensões, contradições, dilemas. Talvez essa característica se estenda também a outros processos recentes de construção do crime, constituindo uma marca do que vem sendo chamado de “judicialização das relações sociais”, mas essa é uma outra investigação.

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De acordo com o que pude observar no juizado pesquisado, o atendimento social e psicológico dispensado aos atores envolvidos em situações de “violência doméstica e familiar contra a mulher”, desempenha importante papel no tratamento institucional deste tipo de violência. Os psicólogos e assistentes sociais (a chamada “equipe técnica”) participam do processo de tipificação dos crimes em questão, bem como da definição do seu grau de “gravidade” e da solução “adequada”. Não é raro que esses profissionais sejam chamados pelos juízes e defensores a apresentar a sua interpretação dos conflitos íntimos em causa, o seu “parecer” sobre os fatos, influenciando diretamente no desfecho dos casos. 9 Ora, os conhecimentos psicológico e assistencial utilizados na classificação e interpretação dos conflitos mobilizam conceitos e noções que não necessariamente coincidem com os dispositivos da lógica racional-legal, conforme veremos mais adiante. A recorrência a significados de natureza psicológica e assistencial evidencia que o crime de “violência contra a mulher” extrapola, de uma forma particular, a disciplina jurídica; a transgressão não consegue estar contida na lei. Embora a pesquisa esteja interessada na maneira como se dá essa transcendência jurídica nos casos de “violência contra a mulher”, é importante destacar que ela não é uma característica exclusiva do objeto em questão. Misse (2008) indica que a separação entre lei e fato é uma configuração da modernidade, quando a ênfase da acusação recai mais no sujeito do que em sua transgressão: “(...) com a ênfase posta na racionalidade da ação e no autocontrole, as nuances apontam principalmente para um sujeito, fazendo dele e de sua subjetividade o ponto de ancoragem da acusação. Constituem-se diferentes tipos sociais segundo a regularidade esperada de que indivíduos sigam variados cursos de ação reprováveis. (...) busca-se através da razão instrumental identificar no transgressor motivos e explicações que o levaram à transgressão” (Misse, Op. Cit, p.15).

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A participação de psicólogos e assistentes sociais no sistema de segurança e justiça não é uma prerrogativa exclusiva do juizado pesquisado ou das instituições brasileiras. Em outros países, como, por exemplo, os EUA, é possível encontrar farta bibliografia sobre a chamada “justiça terapêutica”. Estudos comparativos sobre a utilização de tecnologias terapêuticas (ou similares) no tratamento de crimes no Brasil e em outros países teriam grande valor para a compreensão das práticas brasileiras de regulação dos conflitos da intimidade, na medida em que permitiriam discernir as características que lhes são próprias daquelas que são comuns a outros esquemas. O método comparativo, entretanto, não é utilizado neste estudo. A “equipe técnica” é analisada apenas dentro do contexto do juizado pesquisado.

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A observação das audiências mostrou, ademais, que a mobilização de conteúdos da psicologia/assistência social não se presta apenas para qualificar o acusado e explicar as causas da sua transgressão, mas passa a englobar também o comportamento da vítima e a relação estabelecida entre ela e o acusado. As causas da transgressão são buscadas na interpretação psicológica e social das peculiaridades do conflito íntimo, com base nos papéis de ambas as partes, vítima e acusado, na produção do conflito. De certa forma, essa prática equivale à relativização da transgressão e à neutralização das posições de vítima e réu. Os conteúdos psicológicos/sociais facilitam isso, porque propiciam dispositivos amplos de negociação da acusação. Na dinâmica institucional, os profissionais da psicologia e assistência social desenvolvem uma nova expertise, um corpo de práticas e conhecimentos especializados que se articulam às práticas e conhecimentos jurídicos, moldando de forma particular a construção social do crime de “violência contra a mulher” _ a interpretação oficial dos eventos, a negociação entre os atores, a sua rotulação, a definição das sanções etc.. À pesquisa cabe, então, perguntar: qual é a lógica empregada pela equipe técnica para classificar/hierarquizar os casos? Como essa lógica e a lógica racional-legal se articulam e se afetam mutuamente? Em que casos a atuação da equipe é mais significativa? Como os diagnósticos dos psicólogos afetam a rotulação de vítimas e acusados, a negociação da acusação, a penalidade dos réus? Qual o efeito, sobre a noção criminalizada de “violência contra a mulher”, da interligação entre práticas jurídicas e psicológicas? O trabalho de Misse (Op.Cit.) fornece ainda outras chaves de compreensão dos processos sociais interconectados que materializam a construção social do crime. De acordo com o autor, a criminalização, ou a definição típico-ideal/jurídica de um curso de ação como crime, é o primeiro desses processos. O segundo, a criminação, consiste em encaixar um evento local e singular na classificação criminalizadora. Essa etapa exprime a reação social à infração, pois depende da interpretação que os atores fazem do evento e de suas expectativas quanto ao seu enfrentamento. Em seguida, a incriminação é a acusação pública e formal do suposto infrator, e finalmente a sujeição criminal é a incriminação prévia e seletiva de um “tipo social” considerado potencialmente infrator de regras (Idem, p.14 e 20). A seguinte passagem ilustra bem essas ideias:

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“... o processo de incriminação é mais complexo que apenas apontar o dedo e denunciar ou prender. Não se incriminam transgressões, mas indivíduos. Entretanto, é preciso, antes, que eu (ou a polícia) interprete o evento como uma transgressão à lei e o crimine, isto é, que o faça passar da condição de transgressão moral ou de conflito para a condição de transgressão à lei e desta para a esfera do dispositivo estatal de criminação, que iniciará o processo de incriminação pela busca do sujeito-autor e seu indiciamento (seu potencial assujeitamento criminal).” (Idem, p.20)

Assim, o autor mostra que o crime é definido, em última instância, na esfera pública, institucional. Se o evento não for dirigido, pelos atores envolvidos, a essa esfera, fica restrito à representação privada. No ambiente familiar, a proximidade social dos atores, a forma de operação e representação das relações de poder e outros fatores podem contribuir para que eventos que sejam crimináveis do ponto de vista legal não sejam publicamente criminados nem seus sujeitos-autores incriminados (Idem, p.21-22). De fato, diversas pesquisas sugerem que é ainda significativa a subnotificação de crimes de violência contra a mulher, embora o número de denúncias públicas venha aumentando consideravelmente nos últimos anos. Para além dos números, os estudos nas Delegacias das Mulheres constataram que a incriminação de homens agressores pelas mulheres queixosas nessas instituições é moldada de forma particular pela natureza privada do conflito, de maneira que usualmente não visa o enfrentamento público do sujeito-autor. A incriminação iniciada pelas mulheres nesses casos visa a possibilidade de, posteriormente, negociar a acusação na esfera privada, de acordo com seus interesses pessoais, que levam em conta suas necessidades e representações materiais, conjugais, afetivas, morais, individuais e familiares, sempre atravessadas por significados de gênero. Isso reforça o fato de que a construção social do crime vai muito além de seu desenho institucional. Ela se dá na interação entre os atores que negociam os significados daquilo que o Estado criminaliza e dos enunciados legais. Um objeto importante na sociologia do desvio é o processo de rotulação dos sujeitos como infratores de regras ou outsiders. De acordo com a leitura de Pedrete (2007): “... a teoria da rotulação elaborada pela escola interacionista enfoca o processo de criminalização do desviante e a conformação de carreiras criminais. Ela propõe uma teoria das etiquetas negativas – formas apriorísticas de classificação de indivíduos que impõem rótulos delitivos. As etiquetas se tornam o principal elemento de identificação do indivíduo; moldam a sua auto-percepção e conduzem ao novo papel; criam expectativas de comportamento na audiência social; influem para a realização do comportamento esperado; produzem desvio secundário a partir do processo

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de tratamento do principal; generalizam-se em etiquetas correlatas e contagiam pessoas próximas; dirigem a atividade social no sentido de uma profecia auto-realizável; e produzem subculturas – grupos de referência que agregam desviantes afins, desenvolvendo uma ideologia que racionaliza e justifica o desvio.” (Pedrete, Op. Cit., p.17)

A reflexão sobre a construção de rótulos como aspecto central da construção do crime/desvio talvez seja útil para analisar um importante ponto do objeto desta pesquisa, motivo de tensões e disputas entre correntes feministas divergentes em relação à Lei Maria da Penha (LMP). Uma das principais críticas à LMP é a de que ela não respeitaria as formas próprias das relações domésticas e familiares ao pré-definir os atores como vítimas e réus, categorias que seriam estranhas e inadequadas ao mundo dos conflitos da intimidade. Segundo essa visão, ao insistir nessas rotulações como parte das propostas de combate à “violência contra a mulher”, a lei estaria, ao contrário, dificultando soluções apropriadas e mesmo criando novos problemas para as famílias (Soares, 2009). Outros autores, entretanto, entendem que a definição jurídica dos papéis de vítima e réu e a possibilidade de pena privativa de liberdade são recursos indispensáveis à luta contra a “violência contra a mulher”, porque efetivamente combateriam a histórica desigualdade entre os gêneros no âmbito social e legal (Machado, 2009). O enquadramento da questão pelas categorias jurídicas de “vítima” e “réu” - isto é, a opção pela criminalização, com todas as conseqüências decorrentes do processo de rotulação aí implicado - é muito controverso. A polarização entre os que são contra e a favor é potencializada pelas inúmeras manifestações públicas de juristas, profissionais e autoridades ligados ao tema, jornalistas, personalidades e cidadãos comuns em diversos meios de comunicação. Como mostrou Becker (Op. Cit.), a reação social a um determinado ato é crucial para defini-lo como transgressor ou não. Um dos aspectos da rotulação em questão é que não há necessariamente uma etiqueta desviante efetiva para os homens que reconhecidamente agrediram ou agridem suas mulheres. A reação social a esse tipo de violência é variável e, por isso, a rotulação do indivíduo como transgressor é incerta. Não se trata, entretanto, de um comportamento “desviante secreto”, que, segundo o modelo de desvio de Becker (Idem, p.31) é aquele que, embora infrator, não é percebido como desviante, porque o agente consegue ocultar a infração e livrar-se da reação social. Antes, a questão é em que medida o ato de violência cometido por um homem

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contra uma mulher com quem tenha relações familiares ou de intimidade é percebido como desviante, mesmo quando é evidente para as pessoas que este ato aconteceu e que existe uma regra (a Lei Maria da Penha ou mesmo o código penal comum) que o proíbe. A reação social para os casos de “violência contra a mulher” tem vários condicionantes: a natureza do ato, a “gravidade” de suas conseqüências, quem o cometeu, suas motivações, quem foi prejudicado, os ordenamentos familiares e de gênero que moldam as identidades dos envolvidos e dão sentidos aos seus atos, as relações de poder aí implicadas. Frequentemente, esses condicionantes adquirem uma configuração de significados que isentam o agressor de receber uma etiqueta transgressora negativa e que podem mesmo servir de justificativa para seu ato violento. Assim, embora a “violência contra a mulher” seja uma infração a uma norma legal, ela não se impõe necessariamente como transgressão social. Os rótulos delitivos associados aos infratores são fluidos e não chegam a constituir, portanto, uma etiqueta estigmatizante se aplique a um coletivo de transgressores, que opere como categoria de identificação social, que defina uma identidade subjetiva desviante compartilhada, que estabeleça expectativas sociais bem definidas ou que implique em uma “carreira desviante”, tal como Becker (Op.Cit.) atribui, por exemplo, aos usuários de maconha, homossexuais, delinqüentes, fetichistas pornográficos. Os homens que agrediram ou agridem suas mulheres não conformam um tipo claro de transgressores, composto por indivíduos que compartilham características comuns, além da característica geral de serem do sexo masculino. Ironicamente, agir de acordo com os padrões possíveis de papéis masculinos, isto é, com valores morais compartilhados, parece ser a única base segura de identificação entre os homens acusados de infringir a regra legal. O “homem que bate em mulher”, quando é reconhecido como tal, o é individualmente, isoladamente. A “violência contra a mulher” é comumente relacionada a fatores como “alcoolismo”, “família desestruturada”, “falta de dinheiro”, “natureza agressiva”, “ciúmes”, “histórico de violência na família de origem” (Moraes e Gomes, Op.Cit.) _ categorias que particularizam o evento e o transgressor, referindo-se às circunstâncias específicas que antecedem e motivam o ato violento, à relação imediata entre os atores e às suas histórias pessoais de vida. Assim, o conceito de sujeição criminal de Misse (Op.Cit.) parece ser estranho ao fenômeno da “violência contra a mulher”. Parece não haver um “tipo social” claramente identificável, considerado potencialmente inclinado a cometer “violência contra a mulher”. A julgar pelos fatores

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causais e motivações que são imputados a esse tipo violência, o “homem que bate em mulher” é uma figura pouco homogênea. Por outro lado, é interessante notar que a etiqueta de vítima é potencialmente estigmatizante. Um exemplo disso é a eficácia pejorativa do rótulo “mulher que apanha do marido”. A existência dessa possibilidade indica que a transgressão em pauta comporta ambigüidades; pode ou não ser imputada ao ato daquele que infringe a regra formal de “não cometer violência” e pode ou não se estender também à pessoa que sofreu o ato violento, indicando que, ao sofrê-lo, ela também pode ter infringido alguma regra moral informal. No caso das mulheres, a publicização de uma agressão cometida pelo próprio cônjuge tenha, talvez, o efeito de tornar visível o seu estatuto moral da dependência, o que pode ser significado como um tipo de infração moral ligada ao fracasso no desempenho esperado de papéis sociais (Debert, 2001, Op.Cit.). A Lei Maria da Penha foi criada para tornar legítimas a vitimização das mulheres agredidas e a transgressão dos homens agressores, antes oficialmente negadas ou relativizadas nas delegacias e órgãos do Judiciário. Entretanto, claro, não há garantias de que a criminalização da “violência contra a mulher” e o enquadramento jurídico dos atores pelas categorias de “vítima” e “réu” sejam capazes de evitar a estigmatização social da vítima ou mesmo garantir a eficácia social da rotulação negativa do réu. No âmbito jurídico, o reconhecimento da transgressão (e o seu potencial efeito sobre o processo de rotulação social) depende sempre da avaliação da autoridade sobre os significados circunstanciais e sociais do conflito íntimo e da negociação entre os atores. A ambiguidade dos estigmas relacionados à “violência contra a mulher”, entre outros fatores, possibilita amplas margens de negociação da acusação e confere elasticidade ao processo de criminação. Talvez seja possível afirmar que não existe ainda uma percepção generalizada sobre o caráter criminal ou mesmo desviante dos conflitos violentos entre casais. Em grande medida, a violência conjugal segue sendo uma possibilidade, frequente e justificável, no horizonte das relações sociais e da cultura, a despeito dos crescentes esforços políticos para torná-la criminosa e moralmente condenável entre todos os setores da sociedade. Os homens, os profissionais das instituições e as próprias mulheres dificilmente percebem as agressões físicas e verbais como crime, desvio, ofensa à moralidade social ou mesmo como violência que fere direitos individuais (Brandão, Op.Cit.). Desde as DEAMs, é considerável número de mulheres que desistem

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da ação penal e, como veremos na experiência do juizado pesquisado, essa tendência parece continuar sob a Lei Maria da Penha. Isso pode ser um reflexo da falta de consenso sobre o enquadramento da violência de gênero através das categorias jurídicas “vítima” e “réu”, isto é, sobre a sua criminalização formal. A controvérsia do tema pode ser ilustrada com o polêmico episódio de violência envolvendo os famosos atores Luana Piovani e Dado Dolabella, em outubro de 2008, quando eram noivos. Em uma boate, o ator agrediu a atriz e sua camareira, que tentou apartar a briga. As duas mulheres registraram ocorrência individualmente, originando dois processos distintos, “violência doméstica e familiar contra a mulher”, no caso de Luana, e “lesão corporal”, no caso da camareira. Luana obteve medida protetiva que limitou a aproximação do ator à distância de 250 metros (medida prevista na Lei Maria da Penha). Dado descumpriu a ordem, ao frequentar, no carnaval, o mesmo camarote em que Luana estava. Exibia uma trena de medição, com que ridicularizava publicamente a determinação de afastamento. Pelo descumprimento, foi preso por um dia e novamente indiciado. O caso (ainda) está sendo julgado no juizado pesquisado. As duas primeiras audiências, relativas à agressão de Luana, correram em segredo de Justiça e duraram muitas horas, diferentemente das audiências a que assisti, que são públicas e geralmente muito rápidas. A repercussão do caso foi grande e muitas foram as opiniões que condenavam mais o encaminhamento do caso à Justiça, a prisão do ator e a reputação de Luana ou de ambos, do que a agressão, mostrando que: 1) a criminalização da “violência contra a mulher” está longe de exprimir um consenso; 2) há dificuldade em conceber o evento isolado Luana × Dado como expressão de um fenômeno social, isto é, como “violência de gênero”; 3) aparentemente, o fato de os atores pertencerem às camadas mais altas da sociedade contribui para a percepção de que é um caso isolado, fora da alçada da Lei Maria da Penha, a qual teria sido criada prioritariamente para “mulheres pobres” e; 4) os lugares de “agressor” e “vítima” podem ser intercambiáveis (Luana e Dado podem assumir ambos os papéis). 10

10

Depois de citar trechos da Lei Maria da Penha em seu blog, o ator José de Abreu opina sobre o caso: “Acabo de ler que o Dado foi denunciado pelo Ministério Público, incurso na Lei Maria da Penha. Tenho lido por aí que o objetivo da lei foi dar cobertura a mulheres que são sistematicamente surradas pelos maridos/companheiros que não tem a quem recorrer e que é discutível sua aplicação para casos de brigas de namorados, na balada, como foi o caso do Dado e da Luana. Festa de estréia, depois de uns champanhes, numa casa noturna classe A

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Algumas audiências e atendimentos que assisti no juizado também mostram que o rótulo de desviante pode ser efetivamente transferido do réu à parte queixosa, a mulher. O relato das partes sobre o conflito conjugal pode ser interpretado pelos profissionais de tal forma que a mulher seja, em graus variados, desacreditada de sua condição de vítima, enquanto o status de infrator do homem é relativamente apagado para dar maior visibilidade a qualidades positivamente valoradas, como a de “bom pai”, “trabalhador” etc.. Aqui, a intercambialidade de rótulos é parte de um processo de sucessivas interpretações, por parte das autoridades jurídicas e demais profissionais, que termina por descriminar um ato juridicamente criminável, ao inseri-lo num contexto de significados que o interpreta como ruptura de padrões de relações e papéis sociais, e não propriamente como crime. Nesses casos, a aplicação da lei contraria os seus enunciados formais. Alguns estudos mostram que o rótulo “mulher vítima” cumpre, sobretudo, o papel político de dar visibilidade e credibilidade às demandas feministas. A chamada “vitimização afirmativa” (Soares, 1999) tem, portanto, uma função instrumental para a política, mas não se limita a isso. É também a expressão da formação de um sujeito coletivo, de um “nós, as mulheres vítimas”, de um compartilhamento de significados e experiências que é indispensável à formação e consolidação de atores sociais. A luta pela justiça de gênero é também uma demanda por reconhecimento, em que a ênfase na denúncia da “violência contra a mulher” e na identidade de “vítima” é central, embora

da capital do Rio de Janeiro é bem diferente de porradas diárias de um troglodita bêbado que bate na mulher num barraco no interior do Piauí - com todo respeito ao estado nordestino. O buraco é mais embaixo. Ou mais em cima. Mas não acho mesmo que foi um caso de cometimento de um "crime", que é o que está acontecendo com o Dado. Ele não merece isso. O caso foi longe demais. Luana, retira essa queixa.” (disponível em: http://bloglog.globo.com/blog/blog.do?act=loadSite&id=215&postId=12551&permalink=true) Em alguns fóruns virtuais, foi grande a manifestação dos que consideraram que o ator “errou”, mas que a prisão foi uma medida desnecessária e injusta. Algumas pessoas julgaram suficiente um “tratamento psicológico”. Outros apoiaram a prisão como punição a outras agressões e confusões em que o ator também esteve envolvido. Foi muito expressiva a opinião de que Luana “também não é flor que se cheire” e que “mereceu” a agressão. Outros sugeriram que ela e Dado seriam “farinha do mesmo saco” e que ambos “só queriam publicidade”. Muitos, ainda, acharam que a prisão só ocorreu porque se tratava de pessoas “ricas” e “famosas” e que um caso semelhante nas classes pobres não receberia a mesma atenção, argumento utilizado para relativizar a relevância da prisão do ator. (Este foi um apanhado rápido das opiniões postadas em três fóruns virtuais, disponíveis em (mdemulher.abril.com.br/.../dado-dolabella-x-luana-piovani-154789_forum.shtml), (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090318112330AA1te3h) e (http://www.sedentario.org/internet/video-da-briga-entre-luana-piovani-e-dado-dolabella-9697).

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não exclusiva. Assim, é preciso explorar não apenas o caráter desviante dos rótulos, mas também seu papel político e simbólico específico. Essas reflexões mostram que a criminalização da “violência contra a mulher” é um processo ainda em construção, cheio de disputas e tensões, que escapa a qualquer linearidade jurídica imaginada. Definir atos de “violência contra a mulher” como infrações é, mais que uma reformulação legal, um empreendimento político e moral intenso, na medida em que esses atos estão imersos na experiência cotidiana dos atores sociais que, dessa forma, lhes atribuem significados diversos e ambíguos, que de maneira alguma se limitam aos demarcadores conceituais jurídicos. Em que medida esses atos são ou não percebidos como transgressões, depende sempre de como eles são vinculados às representações e expectativas sociais dos papéis a serem desempenhados nas relações de gênero, no casamento, na família, nas gerações.

3. A Etnometodologia e o foco nas práticas e narrativas dos atores

É difícil definir o que é etnometodologia. Em uma frase, eu diria que é um método para estudar métodos de ação ou uma teoria da ação social baseada nos procedimentos de ação. Mas isso diz muito pouco. É preferível, em vez de defini-la, apresentar

os

seus

principais

fundamentos.

Simultaneamente,

exploro

suas

possibilidades analíticas para meu objeto de pesquisa, através de novas perguntas, resultantes do ajuste de foco sugerido pelo diálogo com o arcabouço etnometodológico. Heritage (1999), em seu texto-guia sobre a etnometodologia, explica que esta está preocupada em saber como a estrutura normativa da sociedade é percebida, produzida, reproduzida. Para isso, não é suficiente apelar à idéia parsoniana de que existe um sistema comum de valores morais que paira sobre os indivíduos, como algo que lhes é primariamente externo e que lhes submete a vontade, garantindo a ordem social. Pois os indivíduos não são, na expressão de Garfinkel, “judgemental daps” (“de juízo dopado”, “dopados sociais”). Como mostra Schütz (1979) os indivíduos, na sua vida cotidiana, refletem sobre suas ações, analisam as suas circunstâncias, constroem uma memória de situações passadas, antecipam ações futuras, tem interesses definidos, constroem tipificações de acordo com esses interesses, atribuem sentidos subjetivos ao que fazem e ao que os

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outros fazem e compartilham esses sentidos. São, portanto, agentes na produção contínua de um conhecimento comum que orienta as suas ações cotidianas. É para esse conhecimento comum, compartilhado, efetivamente produzido e “vivido” pelos atores, que a investigação da ordem social deve voltar-se, pois ele é a “cola” da sociedade; é nele que os indivíduos se reconhecem uns aos outros como viventes de um mundo comum, ainda que não exatamente o mesmo. Garfinkel (2006) argumenta que a teoria da ação social deve explicitar como esse conhecimento de senso comum é produzido e reproduzido, isto é, através de que procedimentos, métodos, lógicas de ação e inferência. Quando agem, as pessoas respeitam certos procedimentos de ação, definidos socialmente na vida cotidiana como procedimentos

“razoáveis”,

“normais”,

“adequados”

de

ação.

Portanto,

os

procedimentos de ação, o modo como a ação é feita, revela as regras sociais que definem o que é “razoável”, “normal”, “adequado”, revela aquilo que “todo mundo sabe”, revela o conhecimento que “todo mundo tem” sobre as estruturas sociais. É com referência a esse conhecimento comum que os eventos cotidianos são percebidos pelos indivíduos como “normais”, “razoáveis”. Perceber um evento cotidiano como “normal” é percebê-lo “1) (...) como instância de um evento de classe, 2) sua probabilidade de ocorrência, 3) se [é] comparável a eventos passados e futuros, 4) as condições de sua ocorrência, 5) seu lugar em um grupo de relações meio-fim, 6) sua necessidade segundo uma ordem natural (isto é, moral). Os sujeitos [atribuem] esses valores de tipicidade, probabilidade, comparação, textura causal, eficácia técnica e requisito moral ao [usarem] as características institucionalizadas da coletividade como esquema de interpretação” (Garfinkel, op. cit., p.109, tradução livre).

Os procedimentos de ação funcionam como “evidência” desses valores/regras que orientam a percepção e interpretação dos eventos, isto é, são “signos” do conhecimento de senso comum das estruturas sociais. O “como-os-indivíduos-fazem-oque-fazem” revela os sentidos que os sujeitos atribuem ao que fazem, revela sua visão de mundo comum. Assim, os procedimentos de ação são uma via privilegiada de acesso às estruturas sociais. Ao agir, falar, conversar, prestar contas, escrever relatórios, contar estórias, os indivíduos acionam a todo momento as regras e valores comuns que orientam a sua percepção sobre os eventos cotidianos. Cabe ao cientista social explicitar que regras e valores são esses que tornam as coisas visíveis, cognoscíveis, nomeáveis

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para os indivíduos. Cabe ao cientista tornar visíveis os processos de tornar as coisas visíveis. Em termos de “métodos de investigação”, isso significa, em especial, elaborar etnografias densas.11 Ao ajustar o foco das perguntas iniciais em direção aos procedimentos rotineiros dos profissionais do juizado, a pesquisa deve perguntar, quanto à atribuição de sentido aos eventos, como os profissionais do juizado interpretam os comportamentos de homens e mulheres? Que tipologias são construídas, isto é, que tipos de eventos são definidos como “o que realmente aconteceu”, como fatos? Que valores de causalidade e probabilidade são atribuídos aos eventos violentos? Em suas pesquisas empíricas, Garfinkel enfatiza que os processos de justificação das ações são centrais para a construção do conhecimento comum. O indivíduo que age e toma decisões “no conoce ni pude conocer lo que hace antes o mientras hace lo que hace.” (Idem, p.93). Em sua investigação sobre as regras que jurados usam para tomar decisões, argumenta que somente em retrospectiva eles são capazes de determinar o que foi feito, através de justificações ou prestações de contas racionais (Garfinkel, mimeo). Isto é, primeiro os jurados decidem o veredito e só depois, através de uma narrativa justificadora, definem como tomaram a decisão correta, demonstrando que seguiram regras ou procedimentos racionais, adequados de decisão. As ambigüidades do processo de decisão são suprimidas da narrativa justificadora, e, assim, a decisão ganha a coerência necessária para que os jurados não duvidem de que terão apoio social pela decisão tomada. O problema de se as pessoas têm ou não consciência da regras que seguem para agir fica em segundo plano se prestarmos atenção às justificativas que elas dão das suas ações. As justificativas são um procedimento de ação, e como tal, revelam as regras que os sujeitos usam para agir. Trazendo essas sugestões para o universo do juizado, quanto às justificativas dos profissionais para as suas tomadas de decisão, cabe perguntar: que regras os

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Garfinkel mostra que os métodos “científicos” de investigação não diferem muitos dos métodos usados pelos mais diversos atores sociais para tomar decisões cotidianas. Em ambos os casos, recorre-se à processos de tipificação, testes de hipóteses, inferência de relações causais, comparações, definição de soluções adequadas etc., tendo como mapa interpretativo os conhecimentos dos atores sobre os contextos sociais em que estão inseridos. Tanto para o cientista quanto para o ator ordinário, a tomada de decisões deve ser justificada com base em determinadas regras que lhe confiram validade em termos de consistência, objetividade, coerência, lógica. Assim, a “investigação social competente” não é um privilégio de cientistas sociais.

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profissionais apresentam como orientadoras de sua conduta profissional? Que “evidências” apresentam de que tomaram a decisão acertada? Que estruturas narrativas têm os seus relatórios escritos? Qual o papel dos laudos científicos/provas na interpretação dos conflitos para defensores e para psicólogos/assistentes sociais? Gostaria de destacar ainda no trabalho de Garfinkel a questão da gestão contínua do conhecimento comum. Nas interações cotidianas, o indivíduo se esforça por dar sentido às ações do outro, mesmo quando elas lhe parecem inapropriadas ou contraditórias (desde que tenham um grau mínimo de confiança nele). Ou seja, se esforça para atribuir-lhes valor de normalidade (tipicidade, probabilidade, comparação, textura causal, eficácia técnica e requisito moral), para interpretá-los à luz do estoque de conhecimento comum, que, desta forma, é continuamente gerenciado. Além disso, esse gerenciamento é “progressivo”. É “no curso de uma carreira de ações” que as pessoas “descobrem a natureza das situações nas quais elas estão agindo” (Garfinkel, mimeo, Op. Cit., p.7). Ao longo da interação, cada definição de sentido é resultado da definição anterior, ao mesmo tempo que gera novas possibilidades de definir a situação anterior. Isto é, quando atribuo sentido ao que uma pessoa está me dizendo, eu o faço com relação ao que ela me disse antes, mas ao fazê-lo eu também encontro novas formas de interpretar o que ela me disse antes. A cada passo desenvolvemos o entendimento que temos da situação (Garfinkel, 2006, p.105). Imbuídos dessas idéias, alguns cientistas produziram trabalhos interessantes. Scott e Lyman (2008) desenvolveram uma tipologia de accounts. Accounts são justificativas ou desculpas que os sujeitos acionam sempre que suas ações são questionadas como impróprias. Quando há discrepância entre a ação esperada e a ação real, os accounts são empregados “para manter de pé as vigas da sociação rompida, para estabelecer pontes entre o prometido e o executado, para consertar o que está quebrado e para trazer de volta quem está longe” (Scott e Lyman, op.cit., p.140). O que o atores falam sobre o que fazem é, mais uma vez, central para a gestão do conhecimento comum e para a continuidade da interação social. Destaco a relação entre gerenciamento de accounts e negociação de identidades, apontada pelos autores. Dar um account é assumir um papel (ou identidade) estabelecido na interação, que por sua vez, irá condicionar o conteúdo e forma do account. Assim, se um homem é convidado a explicar porque bateu em sua mulher, ele pode dizer que o fez porque ela maltratava os filhos do casal. Aqui, a identidade de pai,

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e não a de marido, é acionada, e o account acionado corresponde ao universo de significados atribuídos ao papel de pai. “Todo account é uma manifestação da negociação tácita de identidades” (Idem, p.163). Assim, quanto ao gerenciamento de sentidos no juizado pesquisado, durante a interação entre profissionais e envolvidos, é preciso atentar para as seguintes perguntas: que situações motivam os profissionais a requisitar accounts a quem? Que accounts são dados pelos envolvidos e qual é a sua receptividade, isto é, grau de eficiência? Que identidades são negociadas aí? Como os eventos passados são elaborados e reelaborados pelos envolvidos durante a interação com os profissionais e como esse processo ajuda os envolvidos a definir sua situação presente, bem como a antecipar ações futuras? Como as narrativas dos envolvidos são (re)interpretadas pelos profissionais, durante e depois do contado com os envolvidos? Como e que tipos de eventos, relatos e comportamentos interferem interpretação das narrativas dos envolvidos por parte dos profissionais? Sudnow (1971) investiga a morte, não como um fenômeno biológico, mas como um evento social. Tomando como contexto um hospital, o autor encontra que a categoria “morte” e seus significados são construídos na interação entre os funcionários do hospital enquanto desempenham as atividades práticas e rotineiras com relação à morte. Os procedimentos cotidianos hospitalares com relação à morte _ “os modos de revisar um cadáver, de admitir ou dar alta a um paciente, as atividades conseguintes de observar um cadáver de uma maneira ou outra, os tipos de considerações surgidas de opiniões do médico examinador e sua equipe, e toda uma série de diversas operações de decisão e administração” (Sudnow, op.cit., p.21, tradução livre) _ são atividades de “produção da morte”, através das quais os atores atribuem ao evento de morrer uma tipificação, uma causa, comparam com eventos anteriores etc., isto é, atribuem sentidos à morte. O autor mostra como, nesse processo, a estrutura social do hospital, as regras de interação entre os profissionais, a estrutura de status e hierarquias profissionais são produzidas e reproduzidas. Finalmente, Beato (1992) toma um inquérito policial de homicídio como objeto de investigação social. No inquérito, em linha gerais, o delegado de polícia argumenta que a morte de uma mulher decorreu de um homicídio e não de um suicídio como alegava seu marido, transformado, então, no principal suspeito do crime. O relato do delegado apresenta os primeiros indícios que “apontaram” para a ocorrência de um

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homicídio: a aparência do ferimento e a trajetória da bala, interpretadas pelos policiais, com base no seu conhecimento comum acerca dos eventos e cenas cotidianas “normais”, como “anormais” para casos típicos de suicídio. A hipótese de homicídio é aventada e, então, todo o inquérito é confeccionado de forma a confirmar esta hipótese: novas “evidências” são qualificadas _ a cena do crime, as marcas de pólvora e sangue, o comportamento “inadequado” do marido, os relatos das testemunhas, as motivações do crime etc. _ e laudos técnicos são utilizados para confirmá-las. A estrutura interna do relato confere racionalidade, lógica e coerência ao processo de investigação, de forma a atender aos padrões esperados de uma investigação policial “correta”. Beato mostra, então, que a própria estrutura da descrição do evento valida a hipótese de homicídio, dando-lhe o status de fato, de verdade. Assim, “os eventos reais não são fatos. É o uso de procedimentos próprios para categorizar eventos que os transformam em fatos” (Smith, 1978, apud Beato, op.cit.). Aproveitando todas essas contribuições da etnometodologia a partir da observação dos procedimentos de ação no juizado, é possível inferir sobre a construção social da noção criminalizada da “violência contra a mulher”: o que todos esses procedimentos “revelam” sobre as representações dos atores sobre relações de gênero, família, casamento e conflito íntimo? Em que grau os conflitos íntimos são considerados crimes, isto é, que tipos de conflitos merecem a classificação “inequívoca” de crime? Que tipos de soluções são indicadas para que tipos de fatos criminais?

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Capítulo II: A Lei Maria da Penha e a nova institucionalidade

Este capítulo discute as inovações trazidas pela Lei Maria da Penha e analisa os significados de “violência contra a mulher” que ela mobiliza e legitima. Descreve as características gerais do juizado pesquisado e discute de que forma o perfil de envolvidos e crimes e as rotinas de produção de sentidos acerca dos conflitos íntimos se relacionam. Também apresenta o caminho institucional que os envolvidos e as ações penais percorrem dentro do fluxo de Justiça.

4. A Lei Maria da Penha e a ampliação da definição de violência

Como vimos, a criação da Lei Maria da Penha está relacionada à trajetória dos movimentos feministas brasileiros, que, desde a década de 1970, vêm contribuindo para a politização da “violência contra a mulher”. Entre a criação das primeiras organizações civis de atendimento a mulheres vítimas de violência, como o SOS Corpo de Recife (1978) e o SOS Mulher de São Paulo (1980), e a institucionalização das demandas feministas para o combate a esse tipo de violência, através das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), a partir de 1986, a “violência contra a mulher” ganhou o espaço público e tornou-se um assunto da agenda política e governamental do país. A atuação dos Juizados Especiais Criminais (JECRIMs), criados em 1995, no julgamento dos casos decorrentes de violência doméstica e conjugal, foi considerada problemática por pesquisadores e feministas. A principal crítica era a de que a prática corrente nesses juizados de conduzir ao arquivamento sistemático dos casos, mediante enfática recomendação de “conciliação” entre as partes, e a (des)penalização dos agressores com o pagamento de cestas básicas não contemplavam as reivindicações feministas por justiça de gênero. Isso motivou novas e intensas mobilizações políticas de organizações de mulheres para modificar o tratamento legal desse tipo de violência na Justiça. Do conjunto dessas articulações resultou a criação, em 2006, da Lei 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha” (LMP). Esta lei define um novo tipo penal, a

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“violência doméstica e familiar contra a mulher”, configurada como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Brasil, 2006) e ocorra: “I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”

A reflexão sobre os processos de produção de categorias penais mostra que essas categorias são, a um só tempo, produtos e condicionantes da construção de saberes e práticas políticas e institucionais. Os usos práticos que os diversos grupos de atores sociais fazem delas revelam as formas pelas quais os eventos violentos são percebidos, tipificados e tratados. Essas categorias são também componentes de um campo de disputas políticas entre variados grupos de atores sociais, porque enquanto representações lingüísticas _ que definem que tipos de eventos podem ser considerados “violência”, que tipos de pessoas cometem e sofrem violência e que tipos de soluções são adequadas a que tipos de violências e a que tipos de pessoas _ são também condicionantes das práticas e projetos políticos. Em outras palavras, as categorias não são apenas produtos, mas também agentes no processo de delimitar um conjunto de eventos, atores e relações “problemáticos” e as práticas “adequadas” de tratamento público. Ao longo das experiências dos Centros de Atendimento à Mulher, das DEAMs e dos JECRIMs, a demanda imediata das mulheres configurou a categoria “violência contra a mulher” como sinônimo de violência conjugal, mais especificamente de ameaças e agressões físicas dos homens contra suas esposas/companheiras. Essa

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compreensão do termo deixava de fora, por exemplo, a violência sexual em relações conjugais, a violência contra mulheres que ocupam outros papéis dentro do espaço doméstico que não o de esposa, ou a violência em ambientes não domésticos, como o assédio sexual no trabalho ou espaço público. Essas outras expressões da violência, embora reivindicadas pelas feministas, nunca de fato foram incorporadas ao significado corrente de “violência contra a mulher” tal como empregado pelas mulheres vítimas e, portanto, tampouco eram consideradas pelos profissionais em suas práticas de atendimento ou na formulação de políticas públicas. A nova tipificação “violência doméstica e familiar contra a mulher” é mais um passo no contínuo processo de construção social da “violência contra a mulher”. É signo de uma alteração na maneira de perceber a violência de gênero, pois incorpora algumas daquelas expressões, embora continue a excluir outras. A nova tipificação, ao circunscrever a violência de gênero à esfera doméstica ou familiar, continua deixando de fora ocorrências envolvendo mulheres no espaço público, como, por exemplo, o assédio sexual (Debert e Beraldo de Oliveira, 2007). Ora, essas ocorrências pressupõem mulheres inseridas num espaço social que as individualiza, isto é, pressupõem a representação da mulher-indivíduo, atuante em papéis fora da casa, e não da mulher atrelada e definida por seus papéis domésticos e familiares. Assim, se por um lado, classificar como crime os eventos violentos ocorridos no espaço doméstico e familiar foi uma vitória das feministas, por outro, essa contextualização reafirma significados tradicionais do feminino e da família, na medida em que a violência de gênero fica circunscrita ao espaço privado. Por outro lado, esta nova definição legal, ao restringir à família e ao ambiente doméstico o lócus da violência, amplia o seu significado para além da violência conjugal. O sujeito que sofre a violência deve necessariamente ser uma mulher, mas o perpetrador pode ser do sexo feminino ou masculino e deve ter ou ter tido alguma relação de afeto, familiar ou co-habitação com a vítima. Assim, estão incluídas, além das violências praticadas pelo homem à sua esposa/companheira, aquelas perpetradas à sua irmã, filha, mãe, avó ou outra familiar mulher e também à empregada doméstica, bem como, os crimes praticados por uma mulher à outra mulher com quem mantenha ou tenha mantido aqueles mesmos vínculos. Assim, também configura crime a violência entre mulheres homossexuais que estabeleçam ou tenham estabelecido relações íntimas.

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Assim, a nova Lei promove uma ampliação legal das relações sociais que comportam “violência contra a mulher”. A Lei Maria da Penha caracteriza ainda cinco tipos de “violência doméstica e familiar contra a mulher”: “I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”

Algumas análises identificaram que um dos principais pontos de tensão entre mulheres e policiais da DEAM reside na tipificação do crime. Frequentemente, as mulheres relatavam que seus parceiros eram muitos ciumentos e controladores,

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quebravam objetos da casa, não as deixavam dormir, eram indiferentes ou agressivos com os filhos, as importunavam quando bêbados, as humilhavam em público etc.. Antes da LMP, tais conflitos eram de difícil tipificação e materialidade, pois não estavam previstos no código penal como crimes e não deixavam marcas físicas nos corpos das mulheres. Eram classificados pelos policiais como “pouco claros”, “confusos” e interpretados como uma “banalização da violência”, na medida em que “qualquer coisa” era passível de denúncia pelas mulheres (Moraes e Gomes, Op. Cit.). Neste caso, a tensão entre as demandas das mulheres e o trabalho policial tem a ver com a idéia, incorporada pelos agentes, difundida nos códigos jurídicos e, em boa parte, também no imaginário social, de que a única “violência contra a mulher” criminalizável é aquela que deixa marcas. Essa é a que alcança maior legitimidade enquanto crime. A Lei Maria da Penha (LMP) modifica isso ao definir como crime as violências “imateriais”, identificadas como “violência moral” e “violência psicológica”. Além disso, no que concerne à violência sexual, habitualmente excluída da noção de “violência contra a mulher” no âmbito conjugal, a Lei enfatiza que constitui crime, inclusive no contexto doméstico e familiar, mesmo entre cônjuges. O mesmo se pode dizer da violência patrimonial, habitualmente associada à esfera pública e agora admitida também para o âmbito privado. Assim, se por um lado, como foi discutido acima, a nova lei mantém o pressuposto que limita a violência contra a mulher ao espaço doméstico e familiar, por outro pode-se dizer que ela amplia a definição de violência contra a mulher na medida em que 1) extrapola a noção de violência conjugal, ao criminalizar as violências que ocorrem fora da relação marido-mulher; 2) criminaliza as violências cometidas por mulheres contra outras mulheres com quem se relacionem; 3) admite a violência sexual e a violência patrimonial no espaço doméstico e familiar; 4) admite agressões imateriais como “violência psicológica” e “moral”. A LMP dispõe também sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, novos órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal para julgar especificamente esses casos. Ficam vedadas as penas de pagamento de cestas básicas ou outras de prestação pecuniárias. Torna-se possível a prisão em flagrante e preventiva do agressor e, nos casos de agressão, a pena pode chegar a três anos de detenção. São detalhadas todas as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial no atendimento à mulher e registro da ocorrência. Poderão ser

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concedidas, a pedido da mulher no ato do registro, “medidas protetivas de urgência”, tais como afastamento do agressor do lar e a suspensão/restrição de seu porte de armas. A LMP não obriga, mas recomenda aos Estados a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher12. Com o objetivo de reforçar a implementação nacional da LMP e dos Juizados, o governo federal lançou em agosto de 2007, por intermédio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que conta com cerca de 400,5 milhões de reais para investir, entre 2008 e 2011, na capacitação de profissionais e agentes públicos na temática de gênero e violência, na construção e reaparelhamento de DEAMs, Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, Defensorias Públicas da Mulher, Casas-Abrigo, Sistema Nacional de Dados e Estatísticas sobre a Violência contra as Mulheres, Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), Centros de Educação e Reabilitação do Agressor e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, entre outras medidas (SPM, 2007). Com a promoção do governo federal e com a recomendação para criação dos Juizados reforçada, entre outras instituições, pelo Conselho Nacional de Justiça, os Juizados começam a ser implantados em várias cidades do país, ainda que de forma desigual. De acordo com a LMP, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde, que fornecerá subsídios ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública e desenvolverá trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a mulher, o agressor e os familiares, com “especial atenção às crianças e aos adolescentes”. São definidas medidas de assistência à mulher, como o cadastramento, por prazo determinado, em programas assistenciais do governo e o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, com manutenção do vínculo trabalhista, se necessário à “preservação de sua integridade física e psicológica”. A inclusão da mulher no cadastro de programas assistenciais públicos pretende reduzir a sua dependência econômica em relação ao cônjuge e oferecer a ela e aos filhos

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Enquanto não estruturados os Juizados, a Lei determina que as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para o processo e julgamento das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, devendo dar-lhes prioridade.

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segurança material mínima, buscando com isso minorar o peso das restrições materiais no horizonte de escolhas das mulheres vítimas de violência, inclusive no que se refere à decisão de denunciar publicamente o parceiro agressor. Ao longo dos 20 anos de funcionamento das DEAMs anteriores à promulgação da LMP, as feministas assistiram, incrédulas e frustradas, à corrente prática das mulheres de “retirar a queixa” contra seus agressores, poucos dias após a denúncia na delegacia, e também ao fato de muitas permanecerem casadas com eles, a despeito da violência sofrida. As pesquisas que se debruçaram sobre essas práticas notaram que elas refletem o entrelaçamento de diversos feixes de significados que compõem a complexa trama das relações afetivas e familiares dessas mulheres. A dependência econômica certamente é um dos elementos dessa trama, a ser sanado através de políticas assistenciais e de colocação no mercado de trabalho, mas não o único. É apenas em parte um fator objetivo, que se por um lado constrange suas possibilidades de escolha, por outro, tem significados culturais importantes que integram suas identidades e representações de gênero e as de seus parceiros. De qualquer forma, a dependência financeira feminina ocupou no discurso feminista o lugar de um dos mais altos obstáculos à incriminação efetiva dos homens agressores. Por isso, os formuladores da Lei Maria da Penha se empenharam em integrar às medidas punitivas, mecanismos de assistência à mulher. Também a “cultura misógina” sempre foi objeto de preocupação de feministas e pesquisadores, que a apontaram como um entrave à efetiva justiça de gênero, pois longa e profundamente enraizada nos atores sociais, notadamente policiais e operadores jurídicos. Por isso, a nova lei se preocupa em detalhar medidas de prevenção da violência através de ações educativas. Algumas das medidas integradas de prevenção são: a promoção de pesquisas e estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher; a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência; a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e outros profissionais quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei também define que todas essas medidas devem articular ações da União, Estados, Municípios e organizações não-governamentais e integrar poder judiciário,

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segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. Como se vê, a LMP não se limita a prescrever medidas punitivas, mas esforça-se por integrá-las a medidas assistenciais e preventivas no combate à violência contra a mulher, incentivando uma abordagem multidimensional e interssetorial do problema. Todas essas inovações e definições trazidas pela LMP ilustram o que foi discutido anteriormente sobre o fato de que essa lei promove concepções da “violência contra a mulher” e das relações íntimas que estão distantes das concepções ordinárias a respeito. A LMP é resultado de um movimento de contestação da hierarquia social de gênero e de sua incrustação nas práticas de poder das instituições de controle social _ uma demanda, pois, pela modificação do padrão de seletividade do controle social, que habitualmente dispensava tratamento desigual a homens e mulheres no sistema de justiça criminal. Assim, a lei interpreta as relações íntimas entre homens e mulheres fundamentalmente como relações de poder, e a “violência contra a mulher” como resultante da forma historicamente desigual pela qual se armam essas relações. De acordo com esta visão, a família e o doméstico são ambientes caracterizados por uma estrutura hierarquizada de papéis e significados, objetos de disputas e conflitos que podem levar a eventos violentos, dirigidos preferencialmente a mulheres. A “violência contra a mulher” assim produzida é, de acordo com a lei, tipificada como crime e, como tal, deve ser combatida, punida e prevenida. Diversos estudos, como os que foram discutidos anteriormente, indicam que essas percepções contrastam com as noções operadas no “mundo da atitude natural”, o “mundo da vida”, para utilizar as expressões de Schütz (1979, Op. Cit.). Uma pesquisa realizada em 2004 pelo Ibope, sob encomenda do Instituto Patrícia Galvão, revela que a grande rejeição à violência contra a mulher _ 82% dos entrevistados respondem que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher” e 91% consideram “muito grave” o fato de mulheres serem agredidas por companheiros e maridos _, contrasta com a percepção de 66% dos entrevistados de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Se a lei considera que a violência contra a mulher é um desrespeito aos seus direitos individuais, os entrevistados acham que “quem mais perde com a violência” são os filhos que presenciam a agressão (63%); em

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seguida, o homem que pratica a violência (14%); e apenas 12% acham que quem mais perde é a mulher que foi vítima (Ibope e Instituto Patrícia Galvão, 2004) 13. Ademais, se considerarmos que esses contrastes podem ser inferidos para os profissionais e operadores jurídicos que lidam com a violência doméstica, então, abre-se espaço para se atentar para a defasagem entre a lei e sua aplicação. A Lei Maria da Penha formaliza a criminalização da violência contra a mulher e dispõe de várias medidas punitivas, assistenciais e preventivas que visam combatê-la. No entanto, é a dinâmica dos Juizados e a operação da Lei por atores reais, com suas representações, demandas e expectativas em disputa e movimento, que modelam o processo de criminação desse tipo de violência. É nas dinâmicas dos Juizados, no encontro de operadores jurídicos, mulheres, homens, psicólogos e assistentes sociais, que a forma e os significados dessa criminação são construídos, para além, muito além dos conteúdos normativos jurídico-legais. É essa interação que eu descrevo e analiso agora.

5. Pesquisa de campo e metodologia

A escolha do juizado para a pesquisa se deu por motivos práticos. À época, era o único juizado em pleno funcionamento e era próximo da minha casa. Funcionava ainda no Fórum Central da Cidade. O cartório ocupava uma sala, e na sala em frente, ocorriam as audiências. As defensorias e a equipe técnica funcionavam em outros andares e salas espalhadas. Inicialmente, havíamos decidido, eu e minhas orientadoras, que eu deveria concentrar minha observação nas salas de audiência. As audiências são, via de regra, públicas, e meu acesso foi facilitado pelo fato de frequentemente haver estudantes de

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Essas e outras pesquisas similares (Ibope e Instituto Patrícia Galvão, 2006; Ibope e Themis, 2008; Ibope e Instituto Avon, 2009) têm limitações. Podem ser questionadas quanto à metodologia utilizada e a maneira como influencia os resultados. São encomendadas por instituições que têm um compromisso político com “as mulheres” e não necessariamente com o fazer ciência social. São utilizadas aqui como ilustração generalizada daquilo que pesquisas acadêmicas, discutidas na primeira sessão, observaram de maneira mais “rigorosa”, segundo os padrões das ciências sociais: que as percepções cotidianas de homens e mulheres acerca da “violência contra a mulher” diferem das que são apresentadas por feministas.

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Direito observando-as para cumprirem os requisitos de seus cursos. Quando, uma vez, em plena audiência, a defensora pública dos réus, percebeu que eu fazia mais anotações do que o esperado para uma estudante de Direito, pediu-me que me retirasse. Tive, então, de me apresentar como mestranda em Sociologia pela UFRJ, o que, inicialmente não me causou problemas. Apresentei-me primeiro à juíza como “pesquisadora de gênero”; ela me deu as boas-vindas, achou “interessante” eu estudar sociologia, disse que as audiências eram “públicas”, que eu podia assisti-las, e colocou-se à disposição para ajudar, esclarecer coisas. Depois, tomei coragem e apresentei-me também à referida defensora pública. Disse-lhe, hesitante, que pesquisava “gênero”, sem saber se isso seria bom ou ruim para o futuro da pesquisa. Os funcionários que estavam presentes riram e me disseram: “encontrou a pessoa certa!”. Sem falar nada, ela foi a uma mesa, pegou uma folha de papel, anotou seu email, me entregou e disse: “eu quero entender gênero”. Disse que a Lei Maria da Penha se refere a crimes relativos a “gênero”, mas que o direito não criou esse conceito; importou-o de outras ciências. Ela disse que chegou a pesquisar na internet o significado do conceito, mas encontrou coisas “muito superficiais”, que faziam menção à “dominação”. Queria, portanto, “entender melhor o que é gênero”. Pediu-me que lhe mandasse, por email, textos sobre o assunto e disse: “depois que você me mandar esses textos, eu te respondo o que você quiser!”. Ao longo da pesquisa, percebi que essa defensora é bastante crítica em relação à lei. Está numa posição delicada dentro do juizado, sendo a única defensora pública dos homens em uma instituição criada para defender as mulheres. Mostrou-se, além disso, combativa em suas opiniões, e estava sempre interessada em discutir com os outros profissionais sobre a lei, sobre o peso dos significados de gênero para os homens, e sobre as posturas femininas diante da lei. No início de 2010, antes que eu pudesse ter conhecido melhor sua rotina de trabalho na defensoria e conversado mais diretamente com ela, saiu do juizado e transferiu-se para outro cargo, em outro lugar do judiciário. Foi substituída por outra defensora mulher. Depois das apresentações, continuei assistindo às audiências, de maneira esparsa, entre maio de 2008 e maio de 2009. Nesse período, o juizado mudou-se de endereço e suas atividades ficaram mais integradas, posto que reunidas no mesmo espaço, e não mais espalhadas pelo labiríntico Fórum Central. Nesse período também conheci mais profissionais e, principalmente, tomei conhecimento das outras atividades

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que aconteciam na instituição, como os atendimentos oferecidos pelas defensoras, psicólogos e assistentes sociais e o grupo de reflexão para homens agressores. Tentava, com dificuldades, definir o que exatamente eu buscava nas audiências. As falas dos profissionais jurídicos, acusados e vítimas traziam muitas indicações a respeito dos significados que atribuíam aos eventos violentos ocorridos na esfera familiar e doméstica e das soluções consideradas mais adequadas aos casos. Entretanto, havia um tipo de rotina ali que dificultava a compreensão de um leigo como eu: uma linguagem que me parecia cifrada, uma opção pela economia de palavras, muitos papéis a serem escritos e assinados. As audiências eram, em geral, muito curtas, e não havia intervalo de tempo entre uma e outra. Algumas vezes, havia várias audiências acontecendo ao mesmo tempo, na mesma sala, com o mesmo juiz. Além disso, pelo tipo de atividade que ocorria ali, hermética a dinâmicas não previstas no rito judiciário, não era possível que os atores falassem “mais que o necessário”, nem tampouco me era viável fazer perguntas de qualquer tipo a quem quer que fosse. À medida que eu ia tomando conhecimento de que havia outras atividades importantes no juizado, que ocorriam antes, durante e depois das audiências, e que influenciavam diretamente nas dinâmicas destas, eu percebia que ater-me somente a elas me fazia perder, talvez, o melhor da festa: homens, mulheres, psicólogos, assistentes sociais e defensores interagindo sem os limites formais impostos pela presença do juiz e pelo ritual judiciário. As audiências também constituíam, é claro, um tipo de interação, mas eram apenas a ponta do iceberg. Abaixo da linha do mar, um oceano inteiro, cheio de vida, que precisava ser explorado. Uma audiência era apenas um ponto no circuito de atividades do juizado, realizadas por diferentes categorias de profissionais, com funções e objetivos diversos. O trabalho de produção da “violência contra a mulher” não se limitava ao rito das audiências, mas acontecia ao longo de uma cadeia produtiva que implicava uma elaborada divisão do trabalho, e que era ela mesma, em sua totalidade, o próprio processo de construção social daquele tipo de violência. Entre as hesitações características de qualquer processo de pesquisa, decidimonos, talvez com um pouco de atraso, por apostar na observação das outras atividades. Comuniquei aos profissionais da equipe técnica meu interesse em acompanhar suas atividades. Dessa vez, foi preciso obter a autorização formal da juíza e dos profissionais, e para isso foi necessário investir numa longa negociação. Redigi um documento em que esclarecia meus objetivos de pesquisa e garantia minhas “boas e exclusivamente

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acadêmicas intenções” e o compromisso de manter o anonimato dos profissionais e envolvidos. Enquanto não obtinha a autorização da equipe técnica, apresentei-me a uma das duas defensoras públicas das mulheres que trabalham no juizado. Ela, sem exigir nada, permitiu-me imediatamente acompanhar seu trabalho, o que fiz de forma intensiva e exclusiva entre outubro e novembro de 2009. Sentava-me a uma cadeira, próxima à mesa da defensora, e observava o atendimento que ela e suas estagiárias dispensavam às mulheres. As profissionais respondiam solicitamente a todas as minhas muitas perguntas e, frequentemente, davam explicações espontâneas. Simultaneamente, os profissionais da equipe técnica me faziam mais perguntas, hesitavam, conversavam entre si e com a juíza, e, felizmente, concordaram em dar-me a autorização. Passei, então, a freqüentar a sua sala de trabalho. Tive a oportunidade de acompanhar vários atendimentos de escuta a homens e mulheres. Nesses atendimentos éramos apenas eu, um profissional, e um envolvido dentro de uma salinha pequena. Também tive acesso a alguns dos relatórios técnicos que os profissionais elaboraram sobre esses atendimentos. Também esses profissionais foram muito pacientes e solícitos comigo, especialmente se se levar em consideração que foi na equipe técnica que investi mais tempo de pesquisa, conforme percebia a riqueza de dados que poderia oferecer à análise e a importância do trabalho aí desenvolvido na construção social do crime de “violência contra a mulher”. Dentro da equipe técnica há um subgrupo de psicólogos e assistentes sociais que cuidam exclusivamente do grupo de reflexão para homens agressores. Uma vez inserida na equipe técnica, foi um caminho natural me interessar pelo grupo de reflexão. Pedi nova autorização aos profissionais responsáveis por essa atividade. Eles conversaram entre si e pediram uma reunião comigo, em que falei sobre a pesquisa e eles, sobre o seu trabalho. Consideraram o inconveniente que poderia representar a presença de uma pesquisadora mulher em uma atividade que deve estimular abertamente a reflexão e o diálogo entre “homens agressores”. Por outro lado, consideraram que eu poderia trazer “críticas” produtivas ao seu trabalho. Como disse um dos psicólogos: “nós também precisamos refletir, não só os homens agressores”. Os profissionais do grupo de reflexão foram muito diretos quanto às dificuldades e incertezas que enfrentam no seu trabalho. Relataram-me que há ainda muito o que pensar e melhorar sobre a concepção dessa atividade relativamente nova que é o grupo

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de reflexão. E não um grupo de reflexão qualquer, mas um dentro de uma instituição da Justiça, para servir aos propósitos de uma lei controversa. Diante disso, estimularam-me fortemente a apresentar-lhes críticas, por mais que eu, receosa de que pudessem negarme o acesso, tivesse-lhes assegurado que não tinha intenções de “avaliar” o seu trabalho, mas “tão somente compreendê-lo”. Quantas surpresas nossos informantes nos apresentam... Enfim, permitiram a minha presença, desde que eu acompanhasse um dos grupos do início ao fim, de modo a evitar que eu tirasse “conclusões apressadas” como caso eu assistisse apenas algumas sessões. O grupo analisado teve início em 23 de novembro de 2009 e foi concluído em março de 2010, às vésperas da data prevista para a defesa da dissertação. Paralelamente, continuei acompanhando, alguns atendimentos de escuta e freqüentando a sala da equipe técnica, ainda que cada vez mais esparsamente à medida que me dedicava mais à escrita. Havia sempre o argumento, por parte de quase todos os profissionais, de que as mulheres não iriam querer falar na minha frente, ou de que os homens agressores poderiam se sentir julgados por mim, de que os conteúdos das conversas eram “íntimos” e “delicados” demais para serem ouvidos por um estranho. Felizmente, nada disso se converteu em empecilho para a pesquisa. Absolutamente nenhum dos envolvidos se opôs à minha presença, ao menos não explicitamente. Alguns, inclusive, a exploravam. Algumas mulheres me deram voluntariamente seus telefones, se colocando à disposição para caso eu quisesse “perguntar qualquer coisa”. Outras me pediam que eu registrasse no meu caderno os seus relatos, dizendo: “pode anotar isso aí” ou “já anotou isso?”. Alguns dos homens do grupo de reflexão avaliaram que minha presença era positiva, pois poderia contribuir para “melhorar a Lei Maria da Penha”. Outros ainda me pediam desculpas quando diziam alguma coisa imprópria para “damas” ouvirem, como palavrões. Olhavam curiosos para minhas anotações, que pela quantidade e velocidade, pareciam mais psicografias. Embora alguns pudessem estar se sentindo incomodados com a minha presença, isso não impediu que eu estivesse ali e que os homens falassem o tempo todo. Em que medida a minha presença influenciou suas falas, nunca poderei saber, mas o que importa é que qualquer fala pode ser vista como portadora de valor analítico em si mesma. Finalmente, acredito que os homens simplesmente se acostumaram à minha presença, ao longo dos quatro meses de duração do grupo. Houve uma sessão em que não pude estar presente. Os psicólogos que coordenam o grupo me disseram depois que,

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nesse dia, os homens certamente haviam falado “muito mais palavrões” do que costumavam dizer diante de mim, mas que o teor de suas falas era “o mesmo de sempre” e que, portanto, era muito provável que a minha presença interferisse “apenas na forma” e não no “conteúdo” dos relatos. Acredito, enfim, que a minha presença, incomodando ou não, tenha sido incorporada às atividades do juizado e ressignificada pelos atores de acordo com o seu estoque de conhecimentos e com a sua compreensão sobre o que é e para que serve “uma pesquisadora”. As dinâmicas próprias do campo, que não podem ser previstas ou controladas de antemão pelo pesquisador, e o tempo, que me parecia sempre e cada vez mais insuficiente quanto mais eu descobria o juizado, me impediram, infelizmente, de acompanhar as rotinas da defensoria masculina e do CREAS (Centro de Referência Especializado em Assistência Social). Com a antiga defensora dos homens tive contato apenas nas audiências ou quando ela aparecia na defensoria feminina ou na sala da equipe técnica. Entretanto, apesar de escasso, foi um contato produtivo, na medida em que ela estava sempre discutindo alguma polêmica. Quanto à defensora nova, visitei-a um par de vezes em sua sala, quando fiz perguntas pontuais sobre os procedimentos e ritos judiciários, o que foi de grande valia para mim. Perguntei também sobre o seu trabalho, mas isso não é o mesmo que acompanhá-lo. Quanto ao CREAS, visitei-o apenas uma vez, por desencargo de consciência, naquele momento da escrita em que se busca cobrir os buracos que ficaram aparentes. Mesmo o cartório e a “brinquedoteca” poderiam ser fontes de dados interessantes. No mais, gostaria de ter acompanhado por mais tempo e com mais calma as audiências, defensoria feminina e a equipe técnica, mas tempo e calma também não parecem ser características próprias de um curso de mestrado. Havia material e curiosidade suficiente para que eu me estendesse por muito tempo mais naquele juizado, mas uma hora é preciso parar. Felizmente, eu acho. Desde o início da pesquisa uma questão foi colocada: eu não poderia, desde uma perspectiva analítica baseada na observação e etnografia, acompanhar os processos ao longo do fluxo na Justiça, isto é, acompanhar ações penais desde o seu nascimento nas delegacias, passando pelo processamento na Justiça Criminal (a passagem pelo Ministério Público, as diferentes fases de audiências, os atendimentos da equipe técnica) e chegando à decisão final do juiz. Chegamos a considerar a possibilidade de

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acompanhar alguns casos do início ao fim, mas logo percebemos que o tempo da justiça era incompatível com o tempo da pesquisa. Levam-se vários meses e até alguns anos para que uma ação seja concluída. Há também muitos casos de desistências. Assim, ao fim da pesquisa, eu correria o risco de ter poucas ações totalmente acompanhadas e não haveria como garantir que essa amostra final fosse representativa do perfil de ações do juizado. Portanto, acompanhar, não o andamento das ações penais, mas os diferentes setores de trabalho do juizado por onde passam as ações penais, foi o caminho mais natural de pesquisa. Compreender as rotinas de trabalho através das quais as ações são classificadas e tratadas não apenas se revelou como a alternativa mais viável em termos práticos como também se mostrou bastante interessante. Ao acompanhar, por exemplo, vários atendimentos a mulheres na defensoria feminina, não teremos acesso às audiências correspondentes, não saberemos se essas mulheres desistirão ou prosseguirão com a ação e desconheceremos as decisões dos juízes: do ponto de vista do fluxo das ações penais na Justiça, o quadro resultante é fragmentado. Entretanto, teremos meios de compreender como as diferentes ações são interpretadas pelas defensoras e pelas mulheres, os motivos pelos quais as mulheres querem desistir ou continuar, as circunstâncias em que essa ou aquela estratégia jurídica é usada, as negociações entre as profissionais e as usuárias, de que maneira os outros setores do juizado estão integrados à rotina da defensoria etc. Nessa abordagem, portanto, eu não acompanhei as ações penais ao longo de suas diferentes etapas; ao contrário, tinha acesso às ações conforme apareciam no lugar em que eu estava. Como resultado, pude ver muitas ações, em diferentes fases do fluxo de justiça. É uma abordagem que procura tirar partido da fragmentação e, a partir dela, reconstruir o funcionamento do juizado. Ao acompanhar as rotinas de vários setores de atividade, acredito que a pesquisa logra compor um quadro geral da instituição, do caminho que homens e mulheres percorrem nela, do trabalho dos profissionais e da maneira como os conflitos íntimos são significados e tratados. A metodologia da pesquisa, portanto, consiste prioritariamente na observação e etnografia das audiências, da defensoria feminina, da equipe técnica e do grupo de reflexão para homens agressores. Essas atividades do juizado oferecem rico material para análise porque nelas se explicitam as demandas, expectativas e representações dos operadores da lei, da equipe técnica, das vítimas e dos acusados, cujas tensões e

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articulações constituem o próprio processo de construção da “violência contra a mulher” enquanto categoria social e fenômeno criminal. Um juizado não é meramente um lugar em que a letra da lei se impõe sobre os atores, mas um momento de disputas e negociações sobre o que vem a ser a “violência contra a mulher”, o que deve ser feito em relação a ela e quem são os atores nela envolvidos. Em nenhum momento durante a pesquisa usei gravador. Tive receio de que pudesse dificultar meu acesso às atividades ou interferir demais nas falas dos atores. Especialmente nos atendimentos, quando éramos apenas três pessoas num cubículo de aproximadamente 4m², e no grupo de reflexão, composto por 10 homens em média, mais dois profissionais, e eu, a única mulher, numa sala um pouco maior, o uso de gravador me pareceu problemático. Em todas as atividades do juizado, a minha presença já era suficientemente intrometida. De modo que eu fazia muitas anotações durante as conversas com os profissionais, as audiências, o grupo de reflexão e os atendimentos aos envolvidos, ou imediatamente depois, tentando reproduzir as falas o mais fielmente possível. Com a prática, aprendi a fazer anotações com bastante agilidade durante as atividades, e desta forma pude transcrever muitas falas literalmente. Entretanto, inevitavelmente, outras tantas palavras se perdiam. Nesses momentos eu substituía os travessões de diálogo por uma narração em terceira pessoa, com a qual eu tentava expressar a idéia geral comunicada pelos atores, me esforçando bastante para não colocar palavras minhas em suas bocas. Todos os diálogos da pesquisa foram produzidos dessa forma.

6. O Juizado

Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), entre agosto de 2006, quando da criação da lei, e 11 de fevereiro de 2010, 35 Juizados Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher foram criados no Brasil e 40 varas foram adaptadas. A distribuição pelas regiões do país é desigual:

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Tabela 1 Número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e varas adaptadas no Brasil, por região

Região

Nº de Juizados

Nº de Varas Adaptadas

Total

Norte

5

10

15

Nordeste

9

1

10

Centro-Oeste

9

8

17

Sudeste

10

18

28

Sul

2

3

5

Total

35

40

75

Fonte: Adaptado de informações da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, disponível em (http://sistema3.planalto.gov.br/spmu/atendimento/atendimento_mnulher.php), acessado em 11 de fevereiro de 2010

De acordo com a SMP, só no Estado do Rio de Janeiro são 6 juizados instalados: um em Duque de Caxias, um em Nova Iguaçu e quatro na capital (Centro, Campo Grande, Leblon e Jacarepaguá). Há mais dois em processo de instalação na capital _ um novamente no Centro e um em Bangu _ que ainda não constam no site da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e, portanto, não foram computados no quadro acima. O juizado pesquisado foi criado em junho de 2007, na cidade do Rio de Janeiro. Funcionou no Fórum Central até outubro de 2008, quando, em virtude da visibilidade política da LMP e do crescimento significativo do número de ações penais relativas a esse tipo de crime, foi transferido para um prédio exclusivo, de quatro andares, em uma rua movimentada da cidade. O juizado pesquisado conta com os seguintes serviços/departamentos integrados: 1) um cartório, que ocupa a maior sala do prédio, tomando todo o primeiro andar e empregando muitos funcionários e estagiários. 2) uma defensoria pública de mulheres “vítimas”, que conta com duas defensoras, uma funcionária e três estagiárias.

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3) uma defensoria pública para acusados, que conta com uma defensora, dois funcionários e cinco estagiários. 4) uma equipe de 17 psicólogos e assistentes sociais, chamada “equipe técnica”, que realiza “estudos” psicológicos e sociais dos casos para informar os processos e coordena os “grupos de reflexão para homens agressores”. 5) uma unidade do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social Simone de Beauvoir), formada por assistentes sociais e psicólogos, que oferecem assistência social e psicológica complementar às mulheres que têm ação no juizado, às suas famílias e também à população em geral14. 6) uma “briquedoteca” bem equipada, onde as mulheres deixam seus filhos sob o cuidado de uma funcionária, enquanto aguardam e participam de atendimento ou audiência. 7) duas salas de audiência, o gabinete dos(as) juízes(as), a sala do Ministério Público, onde ficam os(as) promotores (as), e a secretaria, onde ficam funcionários, estagiários e oficiais de justiça ligados ao gabinete. Há também um policial militar permanentemente de plantão no prédio. Este é considerado pelos profissionais e pessoas ligadas à área um “juizado modelo”. Segundo um funcionário do cartório, é o maior juizado do país e não há outro com estrutura tão grande de serviços e recursos humanos. Uma profissional de outro juizado da cidade do Rio de Janeiro também confirma isso e relata que em seu juizado a própria atuação da equipe técnica ainda não foi plenamente implantada e o grupo de reflexão apenas começa a entrar em funcionamento. Segundo ela, as diferenças qualitativas entre os juizados derivam principalmente das idiossincrasias dos juízes: “a cultura da juíza é a cultura da vara”, diz. Em sua opinião, a juíza responsável pelo juizado pesquisado é “engajada” na promoção da Lei Maria da Penha e na busca de

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O CREAS e a equipe técnica são setores independentes. Embora ambos sejam integrados por psicólogos e assistentes sociais, os profissionais do CREAS cuidam de inserir as mulheres em programas de assistência social, familiar, profissional, educacional, psicológica. Para ser atendido no CREAS não é necessário ter um processo no juizado, embora as mulheres que o têm constituam a sua principal clientela. A equipe técnica por sua vez, realiza atendimentos prioritariamente com o objetivo de fazer “estudos de casos” que deverão suprir com informações técnicas o processo penal. Portanto, a equipe técnica não costuma realizar atendimentos para fins assistenciais ou terapêuticos, mas pode encaminhar mulheres e homens a esses tipos de serviços.

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mecanismos que incrementem a atuação dos profissionais, enquanto a juíza de seu juizado é “muito devagar”. A juíza titular do juizado pesquisado frequentemente participa de palestras, entrevistas e audiências públicas em defesa ou divulgação da lei. No período em que estive pesquisando, ela promoveu ao menos dois grandes eventos sobre o tema, que obtiveram muitos participantes e visibilidade: o “I seminário de sensibilização das polícias militar e civil, corpo de bombeiros e guarda municipal sobre a Lei Maria da Penha” (junho de 2008) e o “FONAVID – Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Efetividade da Lei Maria da Penha” (novembro de 2009). Há sempre dois juízes atuando no juizado pesquisado: a juíza titular, cargo ocupado pela mesma mulher desde a criação do juizado, e um segundo juiz, chamado de “substituto”, cargo que já foi ocupado por várias pessoas e, atualmente, é ocupado também por uma mulher. Quando as juízas entram de férias ou de licença, outros juízes ocupam o seu lugar temporariamente, de modo que, no total, vi cinco juízes diferentes no juizado, inclusive um homem. Isso é relevante porque, embora a juíza titular defina os traços gerais de funcionamento do juizado, cada juiz “imprime a sua marca” às audiências e julgamentos, como veremos.

6.1. O perfil das relações entre vítimas e réus e dos tipos de crime e as suas implicações práticas

Em primeiro lugar, é preciso dizer que é difícil conseguir dados estatísticos sobre os processos do juizado. O juizado conta com um sistema informatizado, mas que contabiliza apenas poucos tipos de procedimentos (por exemplo, número de processos distribuídos no juizado, número de processos remetidos a outros órgãos, número de acordos de suspensão condicional do processo). Para contabilizar os demais procedimentos (por exemplo, retratações e arquivamentos, entre outros), os profissionais têm de adaptar-se a métodos precários: lançam em um documento de texto (formato Word) todos os procedimentos feitos. Há um documento de texto para cada mês. Quando a juíza solicita os números, procedem a uma contagem manual nesses documentos de texto, mês a mês.

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O profissional encarregado de reunir os dados é o secretário da juíza titular e tem, portanto, inúmeras outras atribuições no juizado, entre as quais, a de registrar, por escrito, todas as audiências presididas pela juíza. Sempre muito ocupado, foi muito atencioso comigo e, a meu pedido, interrompeu algumas vezes o seu trabalho prioritário (e mais ainda as suas férias) para fazer a contagem manual e me ajudar a obter alguns dados. Não há, entretanto, uniformidade nos dados obtidos. Por exemplo, foi possível saber o número de medidas protetivas concedidas entre junho de 2007 e junho de 2009, quando a juíza solicitou a contagem em virtude de sua participação em um Fórum, em que pretendia apresentar os dados do juizado. Para os meses subseqüentes, até dezembro de 2010, não há dados consolidados; a única forma de consegui-los é fazendo a contagem manual, o que não foi possível. Já entre janeiro e março de 2010, foi possível acessar os dados de medidas protetivas, mas não, por exemplo, os de arquivamentos. E daí por diante. O juizado, portanto, produz estatísticas, basicamente, para utilização própria. A produção e divulgação dos dados são formatadas para atender a formatos cotidianos de veiculação da informação (jornais, entrevistas, sites, debates públicos) e a comunicações em meios majoritariamente jurídicos (palestras, seminários). Assim, a construção das categorias de contabilização dos processos e de sua passagem no fluxo da justiça segue critérios definidos pelas necessidades e práticas internas do juizado e por formatos amplos de divulgação, que dificilmente atendem às necessidades da pesquisa sociológica. Por exemplo, o número total de processos distribuídos no juizado inclui, não apenas as ações penais, como também os pedidos de medidas protetivas, que são ações cíveis, e inquéritos policiais. Para desagregá-los, apenas mediante contagem manual. Além disso, a contagem dos processos que não tramitam mais no juizado inclui indiscriminadamente processos arquivados, processos extintos por retratação da vítima, processos sentenciados e processos que, por declinação de competência, foram remetidos para outros órgãos da Justiça.

Igualmente (exceto por esse último

procedimento, fornecido pelo sistema informatizado), não é possível desagregar esses diferentes andamentos, senão pelo trabalhoso procedimento de contagem manual. A contagem manual não é impossível de ser feita, mas é praticamente inviável, dado que requerer que o profissional encarregado _ o único no juizado que detém o conhecimento de produção de dados _ deixe de cuidar de suas inúmeras outras atribuições.

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De maneira geral, é possível afirmar que os critérios que regem a contagem de processos no juizado são determinados, principalmente, pela necessidade de explicitar o volume da demanda que chega ao órgão e, portanto, a relevância social da instituição. Assim, por exemplo, não é tão difícil obter o número e os tipos de medidas protetivas concedidas, mas não foi possível obter o número de medidas protetivas indeferidas. É possível saber com maior facilidade o número de processos que tiveram declínio de competência e foram enviados a outros órgãos da justiça, mas apenas a contagem manual pode informar o número de arquivamentos feitos no juizado. Assim, a organização dos dados nessa instituição não está preocupada em qualificar os andamentos dos processos no fluxo, isto é, a maneira pela qual as ações são efetivamente administradas pelos profissionais, enquanto dentro do juizado. A preocupação é mais com o volume de ações e menos com o tratamento que lhes dá a Justiça. Diante disso, houve lacunas que não fui capaz de suprir, no sentido de adequar os números à análise do fluxo de Justiça. Assim, para aqueles aspectos que não foi possível quantificar, seja porque não existem dados ou porque não houve como acessálos ou adequá-los, recorri às percepções dos profissionais acerca do que é “típico” e “atípico” (Sudnow, 1971). Entre junho de 2007, quando da criação do juizado, e o início de março de 2010, o juizado pesquisado recebeu 29.656 processos, dos quais 18.262 (61,5%) ainda tramitavam, lembrando que esses números incluem ações penais e cíveis (medidas protetivas) e inquéritos policiais. Recentemente, a juíza titular calculou uma média de 1000 novos processos distribuídos por mês e 50 pedidos de medidas protetivas por dia, o que motivou a criação de um segundo juizado, atualmente em processo de instalação, com a mesma área de abrangência, para dividir as atribuições. Todos os processos que chegam ao Juizado têm, obviamente, mulheres como vítimas, pois a Lei Maria da Penha protege somente mulheres. Os réus podem ser de ambos os sexos15. Não há estatísticas no juizado sobre o sexo dos réus, mas, segundo o secretário da juíza titular, “mais de 90%” é do sexo masculino.

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“Vítima” e “réu” (ou “autor”) são as nomenclaturas utilizadas nos processos penais e pelos profissionais do juizado. Optei por utilizá-las na pesquisa. Às vezes, em vez de “vítima”, emprego “mulher” e, como a maioria dos casos do juizado tem réus do sexo masculino, às vezes uso “homem”.

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A predominância de réus homens é o que faz com que a defensoria dos réus seja chamada de “defensoria masculina” e o grupo de reflexão seja sempre para homens. Isto é, o funcionamento do juizado é condicionado pela expectativa prévia, baseada na alta probabilidade, de que os réus sejam homens. Os casos em que a ré é mulher são contabilizados como exceções. Assim, eu não tive notícias de uma mulher ré procurando atendimento na defensoria masculina, que deve atender a todos os réus independentemente de seu sexo, ou sendo encaminhada para os grupos de reflexão ou para instituições de tratamento de alcoólatras. Todos os réus devem ter algum tipo de relação com as vítimas, para que se configure o crime de “violência doméstica e familiar contra a mulher”. O juizado também não dispõe de dados que qualifiquem os tipos de relação entre réus e vítimas. Com base nas percepções dos profissionais, é possível dizer que a maioria tem ou teve algum tipo de relação amorosa, isto é, eles são ou foram casados, namorados, companheiros. Há também, em número menor, réus que têm relações de parentesco com a vítima: são seus filhos, pais, irmãos, genros. Assim, as relações implicam inevitavelmente em algum grau de intimidade, e na maioria dos casos há intimidade do tipo amorosa. Por isso, optei por chamar os conflitos que chegam ao juizado de “conflitos da intimidade” ou “íntimos”, de maneira a abarcar todos eles e não apenas os “conjugais”. Tanto o perfil sexual de réus e vítimas como o das relações entre eles implicam que a rotina do juizado seja marcada por negociações de papéis e identidades sociais específicos. Isto é, existem expectativas mútuas, entre homens, mulheres e profissionais, sobre os desempenhos interligados de papéis de gênero, de geração, papéis dentro da família, papéis de vítima e réu e sobre os procedimentos e soluções institucionais considerados adequados a esses papéis. Assim, é “normal”, por exemplo, que mulheres vítimas sejam encaminhadas a serviços terapêuticos de psicologia ou a varas de família enquanto homens réus, em sua maioria ligados às vítimas por relações amorosas, sejam designados ao grupo de reflexão ou sejam recomendados a algum tipo de tratamento

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para alcoolismo ou drogadicção. Pois se espera dos indivíduos que desempenham os papéis de mulher, esposa, mãe e vítima de violência que cuidem de sua saúde psicológica “fragilizada” e garantam a “integridade” da família, especialmente dos filhos. Daqueles que atuam como homens, maridos, pais, provedores e autores de um ato de violência contra suas companheiras espera-se que “reflitam” sobre o “erro” cometido e livrem-se de sua ocasional dependência química/alcoólica para que continuem sendo capazes de desempenhar seus papéis masculinos, sem recorrer à violência, muitas vezes imputada ao “machismo” e ao “vício”. Quando um evento quebra as expectativas pré-definidas quanto ao desempenho desses papéis, é percebido como exceção, como quebra da “normalidade”. É preciso, então, acionar dispositivos restaurativos, como accounts e procedimentos institucionais excepcionais. Assim, por exemplo, quando uma senhora de quase 70 anos de idade acusa o companheiro da vida inteira de agressão e, segundo a assistente social que a atendeu, apresenta “sinais de depressão” e não encontra meios nem apoio familiar para “sair da situação de violência”, todo o juizado se mobiliza. Pois não se espera que uma mulher tão idosa vá incriminar o marido a essa altura da vida e entende-se que romper um casamento de tantos anos é difícil para quem viveu “uma vida de dona-de-casa”, não tem profissão, é idosa e não tem o apoio das filhas. Diante de uma situação tão “complicada”, a idosa é atendida várias vezes pelos psicólogos do CREAS, profissionais vão até a casa da mulher e a assistente social elabora nada menos que três estudos sobre o caso, no qual oferece explicações para os comportamentos da idosa, de seu marido e das filhas: procedimentos raros, excepcionais. São, principalmente, os papéis de gênero e idade que estão em discussão aqui e que condicionam o tipo de atendimento dispensado pelos profissionais. É importante frisar que, como a relação entre réus e vítimas é de intimidade, a negociação de papéis não se dá apenas dentro do juizado, mas também fora dele, entre as partes envolvidas, inclusive com a mediação de familiares e amigos, durante todo o processo penal. Corroborando algumas pesquisas realizadas em DEAMs e em diversas instâncias jurídicas antes da criação da Lei Maria da Penha, o andamento do processo penal e as transformações das relações pessoais são processos interligados e estão relacionados à redefinição de papéis sociais. Assim, os status de agressor e vítima podem ser subjetivamente relativizados pelos atores em suas negociações privadas, de modo que outros papéis, como o de “mãe”, “pai”, “esposo(a)”, “provedor”,

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“dependente” são mobilizados. Como mostram Enne, Vianna e Carrara (2002, p.44), em nome desses papéis, acordos extra-judiciais podem ser realizados _ separação, reconciliação, promessas (de paz, amor, respeito, fidelidade, parar de beber), pagamento de pensões, divisão de bens, acertos sobre a convivência com os filhos _, acarretando mudanças na relação, reavaliações do conflito e/ou ressignificação da ação penal. Os autores também argumentam que é nesse processo de redefinições que deve ser contextualizada a prática freqüente, por parte das mulheres, de desistir da ação penal ou manifestar o desejo de fazê-lo. No juizado pesquisado, a desistência (retratação) da vítima é o destino mais comum dos processos. Estimo que as retratações representem cerca de 52% dos casos concluídos

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. Nesses casos, os acordos e ressignificações

privados que dão sentido à vontade desistir se contrapõem à ação penal, que passa, então, a ser percebida pelas vítimas como indesejável, desnecessária, “impensada” ou mesmo ameaçadora. E, conforme será detalhado abaixo, como às vítimas não é dada a permissão legal de desistir em todo e qualquer caso, mas apenas em alguns, a ação penal pode mesmo tornar-se um grande problema para as mulheres. A desistência das mulheres, bem como suas hesitações, inseguranças, mudanças de avaliações e contradições são, assim, parte constitutiva das dinâmicas da judicialização dos conflitos íntimos. São elementos com os quais os profissionais do juizado lidam em sua rotina de trabalho e que lhes apresentam dificuldades e desafios. Os comportamentos contraditórios das vítimas exigem dos profissionais que coloquem entre parênteses os seus conhecimentos e opiniões pessoais, o que não é fácil. Isto é, ao lidar com as dinâmicas dos conflitos íntimos, também os profissionais são chamados a

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A expressão “casos concluídos” se refere às ações penais que já não tramitam na instituição em virtude dos seguintes procedimentos: arquivamento, extinção por retratação da vítima, suspensão condicional do processo e sentença, que somam cerca de 7075 processos . Foram excluídos desse grupo os julgamentos de medidas protetivas, que são ações cíveis, e os procedimentos administrativos, tais como os cancelamentos da distribuição (quando se distribui em duplicidade o mesmo procedimento) e as numerosas remissões para outros órgãos, pois, embora também possam ser contabilizados como procedimentos que já saíram de tramitação no juizado, não determinam o fluxo da justiça criminal. Além disso, a proporção indicada de retratações, 52% dos casos concluídos, é apenas uma estimativa. Essa proporção foi calculada com base no número de retratações que me foi fornecido, 3681, no qual não estão incluídos os números referentes aos primeiros meses de funcionamento do juizado, para os quais não foi possível fazer a contagem manual. Assim, o número real de retratações é um pouco maior. Esta imprecisão também está presente na contagem de alguns outros procedimentos e será sempre explicitada. É certamente problemática, mas não a ponto de inviabilizar algumas conclusões gerais sobre o fluxo de processos, que apresentarei mais adiante.

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negociar os seus papéis enquanto profissionais, os papéis da instituição e os sentidos que atribuem aos diferentes papéis sociais de sua clientela. Fazem parte desse exercício complexo os sentimentos de insatisfação com o trabalho e com a clientela, algumas vezes expressados por profissionais do juizado, por exemplo, pela percepção de que “não vêem os resultados” de seu trabalho ou de que “não entendem algumas mulheres”. Esses pontos serão explorados nas sessões seguintes. Pode-se dizer, assim, que no âmbito das ações penais relativas a crimes ocorridos no espaço social da intimidade, a noção de “objetividade” _ mais imediata em outros tipos de ações penais em que a relação entre vítima e réu é definida pela distância social _ é intensamente mediada pelas percepções subjetivas dos envolvidos e dos profissionais. Isso não deve ser confundido, no entanto, com “falta de racionalidade”, pois, vítimas e acusados avaliam a cada momento do processo a adequação entre meios e fins em suas ações. Além disso, tanto eles como os profissionais, justificam retrospectivamente as suas decisões como tendo sido tomadas de acordo com critérios “racionais” e “adequados”. Também isto não deve ser confundido, como nos lembram os etnometodólogos, em especial Garfinkel (mimeo, Op. Cit.), com a suposição de que os atores têm pleno controle das condições sob as quais elas agirão. Nem as mulheres, nem os acusados, nem os profissionais detêm total controle do andamento da ação penal, porque ela é passível de questionamentos valorativos por parte de todos os atores. Ou como afirmam Enne et al (Op. Cit., p. 44): “É importante perceber, nesses termos, que a relação entre acusados, vítimas e os agentes da justiça chamados a intervir (delegados, promotores, juízes etc), não pode ser concebida como um modelo estático de mediação. Ou seja, esses „especialistas‟ não devem ser vistos apenas como aqueles que regulam, a partir de suas avaliações e do exercício do poder de que estão investidos, os termos em que a ligação entre vítimas e acusados está estabelecida, nem muito menos devem ser considerados como aplicadores imediatos de um código geral de prescrições e punições. Antes disso, são eles próprios objetos de outros tipos de negociação, cujos termos não estão completamente definidos a priori para os que solicitaram sua intervenção”.

Essas discussões indicam que outra implicação de os conflitos em questão serem da ordem da intimidade é que eles são inseridos num contexto de relações e eventos que os interpreta como ruptura de padrões de relações e papéis sociais, e não necessariamente como crime, o que foi bastante discutido em capítulo anterior, no âmbito das DEAMs e JECRIMs. Também no âmbito do juizado, há uma tensão entre a Lei Maria da Penha, que define a “violência doméstica e familiar contra a mulher”

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como crime, e os significados atribuídos aos conflitos íntimos pelos atores envolvidos e pelos profissionais do juizado. Como veremos, as soluções indicadas ou desejadas para esses conflitos, bem como os procedimentos de atendimento e julgamento, não se limitam à esfera criminal-punitiva, nem ao espaço do Juizado, mas frequentemente se inserem em outras esferas e instituições: psicológicas, terapêuticas, assistenciais, cíveis (separação, guarda de filhos, pensão, visitação), de “reeducação”, de “prevenção”, de mediação, de monitoramento. O próprio texto da lei, como vimos, incorpora essas dimensões, reconhecendo sua a validade social e conferindo-lhes legitimidade legal. Em parte, o tratamento extrapenal dispensado a esses conflitos é justificado como uma forma de compensar os custos da denúncia. Como mostraram as experiências das DEAMs, JECRIMs e centros de atendimentos, ao fazer uma denúncia pública, as mulheres podem ficar em situação de vulnerabilidade econômica e psicológica, o que pode desencorajá-las de denunciar. A lei buscou garantir, portanto, que esses custos fossem minorados, através da oferta de serviços diversos, para garantir a segurança da vítima, bem como a continuidade da ação penal. Mas, mais do que isso, ao prever intervenções “multidisciplinares”, a lei incorpora os significados compartilhados dos conflitos íntimos, que os definem como não-crime, enquanto, ao mesmo tempo, os criminaliza. A lei absorve, portanto, as ambigüidades e as particularidades colocadas na judicialização desses conflitos. A tensão entre “crime” e “não-crime” não apenas motivou a criação da lei, como está inscrita nela. Entre os 29.656 processos distribuídos no juizado, entre junho de 2007 e o início de março de 2010, os crimes de maior incidência são os tipificados como “lesão corporal leve” (45,3%), “ameaça” (27,8%) e “injúria” (4,9%), que juntos respondem por 78% de todos os processos distribuídos. Legalmente, a qualificação da lesão como “leve” ou “grave” é realizada durante a feitura do laudo de corpo delito, pelos peritos do IML, “a quem cabe o diagnóstico, classificação, estabelecimento do nexo causal, verificar se as lesões são vitais ou pósmortais, estabelecer a gravidade das mesmas, fazendo seus enquadramentos no texto legal” (Santos, 2003, p.2). Também legalmente, “lesão corporal leve” é definida como "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” e “lesão corporal grave” como aquela que “incapacita a vítima para as ocupações habituais por mais de trinta dias” (Ibidem).

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Entretanto, os policiais tipificam a gravidade da lesão antes de ter acesso ao laudo, com base em seus conhecimentos sobre que tipos de lesões representam que graus de “significância” ou “intensidade” de ofensa à integridade corporal e à saúde; que tipos de lesões incapacitam as vítimas para que tipos de ocupações habituais e por quanto tempo. De modo que as classificações de peritos e policiais se confirmam mutuamente, talvez porque se baseiem amplamente em conhecimentos de sentido comum, no sentido que Schütz (1979) lhes atribui, acerca do que é considerado “lesão leve” e “lesão grave”, e não tanto em definições estritamente técnicas e legais 17. Infelizmente, o juizado ainda não armazena dados sobre o perfil sócioeconômico de réus e vítimas.

6.2. O “circuito” da Lei Maria da Penha: a etapa judicial da “violência contra a mulher”

Nas delegacias da polícia judiciária, os inquéritos são iniciados. Segundo a Lei Maria da Penha, todos os registros de ocorrência de “violência doméstica e familiar contra a mulher” devem, obrigatoriamente, gerar um inquérito policial. Este deve conter o relato das mulheres sobre o evento ocorrido (o registro de ocorrência), que é então tipificado pelos policiais, segundo o código penal. Os policiais convocam também os acusados, que não são, no entanto, legalmente obrigados a se pronunciarem na delegacia. Não obstante, é comum que eles compareçam e registrem sua versão dos “fatos”. Ocasionalmente, testemunhas também são convocadas a darem o seu relato. Se for um caso de “lesão corporal”, as mulheres devem comparecer ao IML para fazer o exame de corpo delito, cujo laudo será anexado ao inquérito. Boletins de atendimento médico e fotos das marcas físicas da agressão também podem ser incluídos. Se há registros de ocorrência anteriores, são anexados. Com essas peças, o inquérito é

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Tive conhecimento de poucos casos tipificados como “lesão corporal grave” no juizado, como, por exemplo, o de uma mulher que teve um terço do corpo queimado pelo marido. As lesões provocadas, por exemplo, por socos e pontapés, têm sido sistematicamente tipificadas como “lesão corporal leve”.

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remetido ao Ministério Público e ao cartório do juizado, onde é autuado, isto é numerado, organizado e distribuído para as defensorias e para o gabinete. O Ministério Público pode arquivar o caso se considerar que faltam provas que certifiquem a existência de um crime. Depois das retratações, o arquivamento é o fim mais freqüente dos processos, respondendo por cerca de 35% dos casos concluídos

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.

Se o inquérito é considerado “completo”, isto é, se caracteriza a “existência” de um crime, o Ministério Público faz a denúncia. Um oficial de justiça então comunica ao apontado autor do fato que há uma denúncia contra ele e solicita que ele contrate um advogado ou, caso não possa pagar, procure a defensoria pública para réus do juizado. A mulher, por sua vez, recebe uma carta da defensoria pública feminina pedindo que compareça à sua sala no juizado, caso não possa pagar advogado. A defensoria de réus faz a “defesa preliminar” do acusado, procurando indícios que a permitam argumentar “legítima defesa”, “inexistência de crime” ou “equívoco do Ministério Público” 19. Caso exista a possibilidade de argumentar uma dessas coisas e a juíza concorde, o réu pode ser absolvido sumariamente. Caso contrário, a juíza dá prosseguimento à ação e marca as audiências. A defensoria dos réus atua quanto a sua liberdade, defesa e recursos. Junta provas que favoreçam o réu ou que demonstrem “contradição” da vítima; orienta o réu e negocia nas audiências sobre acordos; agiliza as audiências quando o réu está em prisão preventiva ou prisão por flagrante e reclama a soltura; pede a revogação de medidas protetivas quando entende que estas foram “desvirtuadas”; encaminha o réu a tratamentos para alcoolismo e a agências de emprego; encaminha o acusado a núcleos de bairro, onde pode entrar com processos de divórcio, divisão de bens, pagamento de pensão, visitação e guarda de filhos. A defensora também participa pontualmente do

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Mais uma vez, esta é apenas uma estimativa. Como não tive acesso aos números dos primeiros meses de funcionamento do juizado, a proporção real dos arquivamentos é um pouco maior que 35%. 19 Como me explicou a defensora dos homens, a “inexistência de crime” pode ser argumentada quando, por exemplo, o relato da mulher no Registro de Ocorrência faz menção ao sentimento de “medo”, sem , no entanto, apontar como causa dele um ato explícito de ameaça por parte do homem. Um “certo olhar” ou uma “forma agressiva de abrir a porta”, por exemplo, se apontados como única causa do medo, não podem ser legalmente caracterizados como ameaça explícita e, portanto, como crime. Seria um “equívoco do MP” se ele denunciasse um caso de “injúria”, que é um crime de ação penal privada, isto é, um crime cuja ação depende exclusivamente da vontade da vítima, não cabendo denúncia do MP. Entretanto, segundo a defensora, esse tipo de erro “nunca vai acontecer”. Assim, a defesa preliminar do réu é um procedimento formal do processo, uma peça processual.

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grupo de reflexão para homens agressores, explicando-lhes o funcionamento da Lei Maria da Penha, alertando para as conseqüências penais da reincidência e respondendo as suas dúvidas. A defensoria de mulheres redige pedidos de medidas protetivas e de prisão preventiva; junta provas adicionais que corroborem a existência do crime; encaminha às varas de família processos de divórcio, divisão de bens, guarda e visitação de filhos; encaminha mulheres a serviços psicológicos e sociais; orienta às vítimas antes, durante e depois das audiências quanto às possibilidades e conseqüências de acordos com o réu, desistência da ação penal, reincidência da agressão. Veremos mais adiante o funcionamento da defensoria feminina em mais detalhes. Seguindo no circuito, passamos às audiências. Elas seguem ritos diferentes, dependendo da tipificação do crime. Os crimes de “ameaça” são de ação penal pública condicionada, isto é, a ação penal pertence ao MP, mas é necessária a “autorização” da mulher para que a ação prossiga. Assim, nesse tipo de crime, a mulher tem o direito legal de decidir se dá prosseguimento ou se desiste da ação

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. Por isso, existe uma

audiência preliminar, chamada de “audiência de conciliação”, realizada antes da denúncia do MP, em que a mulher tem a oportunidade de dizer se quer ou não prosseguir com a ação. Essa, aliás, é a única chance que ela tem de fazê-lo. Passada esta fase, o MP faz a denúncia e a vítima não poderá mais desistir legalmente. Caso a mulher queira desistir da ação (retratação), ela deve explicar ao juiz as suas razões. Na maioria dos casos de retratação que assisti, as mulheres justificavam a desistência com o fato de terem “feito as pazes” com o acusado. Em geral, o magistrado fazia algumas poucas perguntas, para se certificar de que a vítima não foi coagida a desistir, e advertia o réu para que não repetisse a agressão. Tudo é bastante rápido. A mulher, então, assina um documento e o processo é extinto. Na audiência de conciliação também pode ser feito um acordo entre as partes, em que a vítima desiste da ação “se o réu firmar o compromisso de não importuná-la mais” ou se “concordar em dar entrada no processo de divórcio e divisão de bens” ou

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O mesmo acontece para os crimes de “injúria”, “calúnia” e “difamação” e para a contravenção penal “perturbação da tranqüilidade”, que são todos de ação penal privada, ou seja, a ação pertence à mulher, e não ao MP, e cabe somente a ela entrar com a ação penal e decidir se quer dar-lhe continuidade ou desistir.

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outra condição qualquer. Aqui, é essencial a mediação dos defensores e do juiz. São eles que identificam e sugerem às partes a possibilidade de um acordo desse tipo. Não identifiquei, nas audiências de conciliação que presenciei, uma orientação sistemática dos operadores jurídicos para incentivar a desistência por parte das mulheres, como ocorria nos JECRIMs, segundo diversos estudos. Se a vítima não manifestava por iniciativa própria o desejo de desistir, os juízes, então, perguntavam se haveria possibilidade de desistência, caso o acusado se comprometesse a não procurá-la mais. Se a vítima respondia que não aceitava esse tipo de acordo e que queria prosseguir com a ação, a decisão era acatada pelo juiz, embora alguns casos tenham suscitado questionamentos morais por parte dos operadores jurídicos, como veremos na seção sobre as audiências. Mas, com ou sem questionamentos, a mim me pareceu que o princípio norteador era o acatamento da decisão da mulher, fosse a de desistir ou a de prosseguir. Se a mulher decidia por prosseguir, então uma nova audiência era marcada, chamada de “audiência de instrução e julgamento”. Durante todo o período em que a pesquisa de campo foi realizada, os crimes de “lesão corporal leve” eram considerados, no juizado pesquisado, como de ação penal pública incondicionada, ou seja, a ação não dependia da vontade da mulher, mas exclusivamente do MP. Nesses casos, portanto, não era permitido à mulher desistir do processo

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. Assim, não havia necessidade de audiência de conciliação. Passava-se

diretamente à audiência de instrução e julgamento.

21

Havia uma discussão intensa entre os juristas, e inclusive uma ação tramitando no Superior Tribunal de Justiça sobre se os crimes de lesão corporal leve, referidos à violência contra a mulher, deviam ser considerados de ação penal pública condicionada ou incondicionada. Durante o período em que estive no campo, não havia ainda uma decisão oficial definitiva. A jurisprudência recomendava que fosse incondicionada, mas dependia do juiz segui-la ou não. No juizado pesquisado, via de regra, os juízes seguiam a jurisprudência, embora eu tenha presenciado algumas audiências em que foi permitido à mulher vítima de lesão corporal leve desistir da ação. Nessas audiências os juízes explicaram às vítimas que estavam permitindo a desistência “apenas porque não havia exame de corpo de delito comprovando um crime mais grave”; caso houvesse exame, a desistência “não seria possível”. Alguns profissionais mencionaram que sabiam de casos em que a defensoria masculina desclassificava, com o apoio da vítima, a tipificação penal do crime de “lesão corporal” para “vias de fato”, que permite desistência da mulher. A defensora dos homens me disse que esse mecanismo só era possível mediante concordância da juíza, isto é, não bastava que a mulher quisesse desistir da ação. Resta saber em que tipos de casos a juíza permitia a desclassificação. Em 24 de fevereiro de 2010, o STJ decidiu, por ampla maioria, que para os crimes de lesão corporal leve relativos à violência doméstica e familiar contra a mulher, as ações penais devem ser públicas condicionadas, isto é, a ação depende da vontade da vítima, que, pode escolher, portanto, se quer prosseguir ou desistir. Essa decisão, que deverá trazer notáveis modificações na rotina do juizado, foi considerada uma grande derrota por diversos movimentos feministas. A

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Nessa audiência, é feita a acusação, a defesa e o interrogatório do réu, nessa ordem. Se, por exemplo, alguma testemunha de acusação faltar à audiência, então é necessário marcar outra audiência para que ela seja ouvida, de modo que só depois de ouvidas todas as testemunhas de acusação se pode passar para a próxima fase, a defesa, e assim por diante. Desta forma, é possível que uma audiência de instrução e julgamento tenha mais de uma sessão e demore meses para ser concluída. Cumpridas todas essas etapas, vêm as alegações finais da acusação e da defesa. Teoricamente, elas deveriam ser feitas na mesma audiência de instrução e julgamento, mas, segundo me explicou uma defensora, como “tomam muito tempo” (seriam 20 minutos para cada parte), isso é feito posteriormente pelo MP e defensores/advogados, por escrito. O próximo passo é a decisão do juiz, que pode ou não ser anunciada nessa audiência. É muito comum que o juiz só pronuncie sua decisão depois, através de carta ao réu, seja porque prefere aguardar as alegações finais, seja porque ainda não chegou a uma conclusão. Durante as audiências, o juiz dita ao secretário as declarações de réus e vítimas, conforme vão sendo inquiridos. Isso gera um documento, que contém também as decisões e requerimentos feitos naquela audiência. Réus e vítimas assinam o documento e recebem cópias dele. De acordo com relatos dos profissionais e com a observação da rotina do juizado, quando os processos chegam à fase da sentença, as penas aplicadas têm sido majoritariamente alternativas. As mais comuns são as de prestação de serviço comunitário. Preferencialmente, o serviço prestado deve corresponder às habilidades

organização não-governamental CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), que participou do “consórcio” que elaborou a proposta da Lei Maria da Penha, manifestou “indignação” com a decisão: “A exigência da representação para prosseguimento da ação penal nos casos de violência física contra as mulheres (lesão corporal de natureza leve) nega eficácia e desvirtua os propósitos da nova Lei. Perguntar a uma mulher, que após anos de violência consegue finalmente registrar uma ocorrência policial, se ela “deseja” representar contra seu marido ou companheiro é desconhecer as relações hierárquicas de gênero, o ciclo da violência e os motivos pelos quais as mulheres são obrigadas a “retirar” a queixa: medo de novas agressões, falta de apoio social, dependência econômica, descrédito na justiça. Ao votar pela exigência da representação para dar prosseguimento à ação penal, @s ministr@s do STJ (...) consentiram a violência institucional perpetrada pela tolerância do sistema de justiça criminal a essa violência contra as mulheres, violando seu direito à vida, integridade, intimidade, privacidade e saúde. A resolução do conflito que cabe ao Judiciário voltou a ser um ônus para as mulheres.” (Disponível em: (http://www.cfemea.org.br/noticias/detalhes.asp?IDNoticia=1068), acessado em 9 de março de 2010)

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profissionais do acusado. Assim, por exemplo, em uma audiência que acompanhei, um fisioterapeuta teve de prestar atendimento na sua especialidade em um hospital da rede pública conveniado com a Justiça, por oito horas semanais, durante um mês. Os acordos de “suspensão condicional do processo” têm sido, no entanto, a medida mais freqüente no juizado. Desde a criação do órgão, em junho de 2007, até o início de março de 2010, as suspensões condicionais do processo representavam 10% dos processos concluídos nesse período. Os acordos de suspensão funcionam da seguinte maneira: se o réu não tem antecedentes criminais, se não está sendo processado por outro crime e se o crime é considerado de menor gravidade _ isto é, crimes com penas de até 2 anos de prisão, como os de ameaça e lesão corporal leve, que constituem a maioria dos casos do juizado _ o Ministério Público propõe ao agressor o acordo. Se o réu o aceita, é homologado pelo juiz. O acordo não é uma sentença. Significa, ao contrário, que a ação foi suspensa antes da fase da sentença. É importante enfatizar que esse é um acordo entre o réu e o MP, e não entre réu e vítima. Esta não participa nem decide sobre o acordo 22. O acordo é legalmente definido como um “benefício” ao réu, que em troca da suspensão do processo, se compromete a comparecer mensalmente ao cartório do juizado, durante dois anos, para assinar um documento de presença e informar qualquer mudança de endereço. Nesse período, o réu não pode ausentar-se da cidade sem conhecimento e autorização da Justiça. Nas palavras de um homem que havia sido beneficiado pelo acordo e que estava sendo atendido por um funcionário do cartório, ele vinha “bater o ponto”. Além disso, o acordo também obriga o réu a participar do “grupo de reflexão” ou “grupo informativo”, atividades coordenadas pelos psicólogos e assistentes sociais da equipe técnica do juizado.

22

O mecanismo de suspensão condicional do processo foi instituído pela lei 9099 de 1995, artigo 89, parágrafo 2º, para o tratamento dos crimes de menor potencial ofensivo. A lei Maria da Penha, em seu artigo 41, diz que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar o contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Entretanto, esse artigo foi revogado, e o mecanismo passou a ser permitido também para esses crimes. Segundo o secretário da juíza titular do juizado pesquisado, a magistrada “entende que se aplica tal instituto aos crimes de violência doméstica, desde que presentes os requisitos da lei, mediante proposta do Ministério Público e aceitação do réu”.

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Assim, o acordo constitui uma forma de substituir a pena por tecnologias de monitoramento

do

agressor,

“prevenção”

da

reincidência

e

“reeducação”.

Ocasionalmente, prestações de serviço comunitário também são incluídas. A suspensão do processo não significa a sua extinção. Somente depois dos dois anos, tendo o réu cumprido todas as condições e não tendo reincidido, “é extinta a punibilidade, não se adentrando no mérito, não se falando em condenação ou absolvição”, nas palavras do secretário da juíza. A anotação criminal, então, é retirada do histórico do agressor e o processo, extinto. A proposta de acordo de suspensão do processo feita pelo MP é uma proposta de negociação da pena, e não da verdade jurídica, isto é, da culpa ou do tipo penal

23

.

Entretanto, muitos homens, que alegam ser “inocentes”, interpretam subjetivamente que aceitar o acordo equivale a assumir formalmente a culpa do crime. Por isso, alguns réus recusam o acordo, embora, segundo as minhas observações e os relatos dos profissionais, isso seja raro. Pois, apesar de muitos dos acusados alegarem inocência, são quase sempre aconselhados por seus defensores ou advogados a aceitar o acordo, recomendados enfaticamente por estes como “a melhor solução”, pois garante a imediata suspensão do processo e, depois de dois anos, a extinção e a “ficha limpa”. Assim, o acordo é geralmente aceito, pois efetivamente negocia a pena, mas é percebido como impositivo por muitos réus, que o vivenciam como a assunção formal da culpa, considerada infundada por eles, e, consequentemente, como uma obrigação indevida e indesejável de “bater o ponto” por dois anos e de participar dos grupos de reflexão ou informativo. Se o acordo não pode ser concedido porque o crime é grave (isto é, com pena de mais de 2 anos de prisão, como os de lesão corporal grave e tentativa de homicídio), ou porque o réu tem antecedentes criminais, está sendo processado, já foi beneficiado pelo acordo, mas o descumpriu, ou porque o réu não o aceita, então o caso é sentenciado. Quando uma ação é sentenciada, a anotação criminal não é retirada da ficha de antecedentes criminais do acusado. Esse é um dos motivos pelos quais o acordo de suspensão do processo é preferível às sentenças de prestação de serviços comunitários.

23

Baseado em observações orais do prof. Roberto Kant de Lima, feitas em 16 de abril de 2010, na defesa da tese de doutorado “Como se contam os crimes: um estudo sobre a construção social do crime no Brasil e França”, de Vivian Ferreira Paes.

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Tive poucas oportunidades de ver um caso sentenciado, seja porque assisti a audiências em diferentes fases do processo, ou porque muitas se converteram em acordo de suspensão do processo. Mas, além disso, o número de casos que chega à fase da sentença é muito pequeno, representando cerca de 3% dos processos concluídos (mais uma vez, esta é uma estimativa e a proporção real é um pouco maior). Tive de me informar com os profissionais das defensorias sobre quais eram as sentenças mais comuns. Eles disseram que, se é um caso “menos grave” (contravenções penais, ameaça e lesão corporal leve), as sentenças, em geral, substituem a pena privativa de liberdade pela prestação de serviços comunitários. Se é um caso grave (lesão corporal grave e tentativa de homicídio), a sentença pode chegar à pena privativa de liberdade em regime semi-aberto. Assim, resumindo os dados quantitativos do juizado, sempre ressaltando que os números não são precisos e que permitem apenas estimativas, temos o seguinte quadro sobre o fluxo dos processos no Sistema de Justiça:

Tabela 2 Estimativa das soluções dos processos do juizado no período de junho/2007 ao início de março/2010

Procedimentos

Quantidade

Porcentagem em relação ao total de processos concluídos

Retratações (desistências das vítimas)

3681

52%

Arquivamentos

2458

35%

Acordo de suspensão condicional do processo

708

10%

Sentenças Absolvições e condenações (prestação de serviços comunitários, prisão em regime semi-aberto)

228

3%

Total de processos concluídos (que não tramitam mais no juizado)

7.075

100%

Fonte: juizado pesquisado

Percebemos que existe uma grande filtragem dos processos ao longo do fluxo de justiça, caracterizando, como sugere Vargas (2007, 2008), um “formato de funil”. Para

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os casos de “violência doméstica e familiar contra a mulher”, esse processo de filtragem não se inicia, formalmente, na fase policial, pois, legalmente, todos os registros de ocorrência devem gerar inquéritos, que são distribuídos à Justiça 24. A primeira grande filtragem é operada pela decisão das vítimas de desistir do processo (que, segundo a Lei Maria da Penha, só pode ser feita em juízo). A segunda constitui-se no arquivamento pelo Ministério Público, que argumenta não haver crime evidente ou, como pude observar algumas vezes, leva em consideração o desejo das vítimas de desistir, quando as regras processuais não lhes permitem fazê-lo legalmente (como nos casos de lesão corporal que até bem pouco tempo eram de ação pública condicionada à vontade da vítima). Juntos, retratações e arquivamentos respondem por consideráveis 87% dos procedimentos do juizado. Finalmente, para as ações penais que continuam no fluxo, os acordos de suspensão condicional do processo têm sido a solução preferida (10%), evitando que cheguem à fase da sentença, que representa apenas cerca de 3% dos procedimentos do juizado. O fluxo dos processos de violência contra a mulher na justiça foi abordado aqui de maneira apenas superficial, para dar uma idéia geral e aproximada de como as ações penais são tratadas no juizado. No âmbito desta pesquisa, o Ministério Público é referido somente enquanto participante das audiências, na figura do promotor, como veremos abaixo. Assim, não foram analisadas as práticas de arquivamento dos processos. Mais estudos são necessários para inferir com segurança sobre que variáveis são levadas em conta na decisão de arquivamento e qual o peso de cada uma delas. Quanto às mulheres, podem ser encaminhadas pelos profissionais do juizado à unidade do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) que funciona no mesmo prédio. O CREAS encaminha as mulheres a órgãos governamentais e instituições “parceiras” que integram a rede de atendimento social da cidade e oferecem diversos serviços, como proteção em abrigos, programas assistenciais, como o Bolsa Família, programas de capacitação profissional e inserção no mercado de trabalho, programas de apoio a famílias e crianças que estejam em “situação de risco”,

24

Em trabalho de campo anterior em uma DEAM e uma delegacia comum da cidade do Rio de Janeiro (ver Moraes e Gomes, 2009), foi possível observar que existem práticas de filtragem informais e institucionalizadas nesses órgãos, o que, como mostra Kant de Lima (1995), é um padrão da cultura policial do país.

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assistência psicológica, entre outros. Uma profissional do CREAS me informou que não é comum que ofereçam atendimento aos homens acusados, pois a clientela do CREAS é majoritariamente aquela que é encaminhada pelos profissionais do juizado, e estes “não costumam encaminhar homens”. Os profissionais relatam que a rede de atendimento a mulheres e, principalmente, homens envolvidos em situações de violência é ainda muito precária. São poucos os abrigos que recebem mulheres em situação de risco, e o número de vagas é insuficiente. Muitas vezes não têm condições de receber os filhos das mulheres, o que pode inviabilizar o abrigamento. Faltam também instituições conveniadas de tratamento para alcoólatras ou drogadictos, consideradas pelos profissionais importantes no tratamento e prevenção da “violência contra a mulher”. É importante observar que não é raro que os envolvidos tenham seu primeiro contato com os defensores minutos antes ou mesmo durante a audiência. Muitos homens e mulheres simplesmente desconhecem a existência dessas defensorias públicas ou a importância de procurá-las. Desconhecem ou subestimam, acima de tudo, as implicações da Lei Maria da Penha, os rituais judiciários, os direitos e obrigações legais. Segundo os cálculos informais de um oficial de justiça do juizado, cerca de 30% dos litigantes faltam às audiências, que devem ser, então, remarcadas. Muitas vítimas querem desistir da ação penal, mas ignoram ou minimizam o fato de que precisam afirmá-lo perante o juiz e julgam que é suficiente não comparecer à audiência. Alguns acusados não cumprem os acordos estabelecidos nas audiências ou violam as medidas protetivas, e ignoram ou desafiam as possíveis conseqüências legais disso. Por outro lado, as únicas três defensoras do juizado relatam que a instituição está sobrecarregada de processos e que não dão conta de atender ao enorme volume de homens e mulheres que circulam pelo juizado, que é preciso mais profissionais, equipamentos e espaço físico, que o acesso aos sistemas de informação é precário, que os computadores não estão ligados em rede, que há muito improviso. Muitas vezes têm de fazer atendimentos coletivos e sumários. Revezam-se entre a sala de atendimento e as salas de audiência; quando estão em uma, fazem falta nas outras. Esse não é um quadro muito diferente do que aquele que conhecemos por experiências próprias, notícias em veículos de comunicação, relatos, pesquisas. É um quadro de insuficiência de recursos e organização, excesso de processos, burocracia, desinformação, subestimação das leis. Há estudiosos que analisam as causas sistêmicas

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e sociológicas disso, mas a pesquisa abre mão de se aprofundar nessa discussão. Ainda sim, é importante que essas observações sejam feitas, porque isso também faz parte da rotina do juizado.

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Capítulo III: as práticas no juizado e a construção social da “violência contra a mulher”

Neste capítulo, descrevo e analiso as atividades observadas no juizado. A interação entre envolvidos e profissionais e os procedimentos rotineiros de trabalho desses últimos são tomados como práticas de construção social do crime de “violência contra a mulher”, na medida em que materializam interpretações sobre os conflitos em questão. Cada um dos tipos de atividades do juizado _ as audiências, o atendimento na defensoria feminina, o atendimento na equipe técnica e o grupo de reflexão para homens agressores _ operam práticas de trabalho e corpos de conhecimento próprios. Esse capítulo procura qualificar essas diferentes facetas do trabalho no juizado e a forma como produzem e reproduzem noções ora complementares ora conflitantes da “violência contra a mulher”. Todos os nomes utilizados daqui em diante são fictícios.

7. As audiências: a relativização dos papéis de vítima e réu e a padronização de soluções

Nessa seção, descrevo e analiso algumas das audiências a que tive a oportunidade de assistir. As audiências foram o primeiro tipo de atividade com que tive contato no campo. No juizado pesquisado, são duas as salas de audiência, que funcionam simultaneamente. Cada sala é ocupada por um juiz, um promotor e um secretário. Além desses, há a presença dos defensores públicos ou advogados particulares da vítima e do réu, que é obrigatória por lei. Como as audiências são públicas, eu pude entrar e observar sem maiores problemas. Escolhia uma sala, me sentava nas cadeiras destinadas ao público, e aí ficava até que se acabassem todas as audiências previstas na pauta. Na visita seguinte, procurava alternar de sala, de modo a acompanhar o trabalho de todos os diferentes juízes. Fazia anotações durante as audiências. Como descrito anteriormente, há dois tipos de audiência, a de “conciliação”, para os casos que admitem desistência, e a de “instrução e julgamento”, para os casos

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que não admitem desistência e para as ações penais que passaram pela de audiência de conciliação sem desistência. A primeira coisa que chamou a atenção foi o fato de que as audiências eram, em geral, muito rápidas, especialmente as de conciliação. Há pouca fala, se comparado às dinâmicas da defensoria, da equipe técnica e do grupo de reflexão. Aos homens e mulheres não lhes é dada a oportunidade de se expressarem senão sumariamente: suas falas devem ser apenas respostas às perguntas dos juízes. Quando eles tentam tomar a iniciativa de “explicar o que aconteceu” em maiores detalhes, de mostrar por que estão “certos” ou por que são “inocentes”, é muito comum que os juízes os interrompam, dizendo, por exemplo, “aqui não é lugar para discutir o mérito” ou “para discutir se fez ou se não fez”. A interação entre operadores jurídicos e as partes envolvidas no conflito é, assim, moldada pela forma dos rituais jurídicos, que limita o tempo e o escopo das falas de acordo com os ideais de celeridade e hierarquia (Amorim et al, Op. Cit.; Kant de Lima, 1989; Baptista, Op. Cit.). Descrevo a seguir três audiências. Foram selecionadas dentre as audiências em que não houve desistência por parte da mulher e de modo a ilustrar algumas hipóteses analíticas, apresentadas ao final da seção.

Audiência 1: perturbação da tranquilidade

A audiência é presidida por um juiz. Um homem, de uns 60 anos, é acusado pela companheira, de cerca de 50 anos, de “perturbação da tranqüilidade”, que é uma contravenção penal ou crime de menor potencial lesivo. Estão casados há aproximadamente 10 anos. Segundo o registro de ocorrência, lido pelo juiz em voz alta, ele quebra objetos dentro de casa, xinga, coloca senha no telefone para impedir sua mulher de usá-lo, faz barulho de propósito. O juiz propõe ao homem que aceite o acordo com o Ministério Público: _ Mas eu não fiz nada disso! _ diz o homem, inconformado. _ Eu gosto dela. Ela é que me traiu, dentro da minha própria casa! Eu aprendi que só devo pagar por aquilo que fiz, e não por aquilo que não fiz. _ Mas isso é outra coisa. Se o Sr. quiser discutir isso, nós levamos o processo em frente, mas aí... o Sr. é quem sabe. _ o tom do juiz sugere que levar o processo adiante não é bom. _ O senhor vai aceitar o acordo?

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Diante da hesitação do homem, a mulher é chamada para a sala de audiências: _ Vocês não podem vender a casa e dividir o valor? _ sugere o juiz. _ Não posso, diz a mulher. Com metade do valor não consigo comprar outra casa. Eu tenho filho pequeno, só quero que ele pare com isso; ele tem um temperamento instável. O homem ri, irônico. Continua dizendo que não fez nada, mas o juiz mal o deixa falar e segue pressionando para que ele aceite o acordo. Inconformado, o homem diz que a mulher o havia procurado há dois dias para fazer sexo com ele. O juiz pergunta a ela se isso é verdade. Ela, visivelmente constrangida, nega, com a cabeça. O juiz logo abandona a questão, mas a defensora pública do homem, então, se pronuncia: _ Mas vocês namoraram esse dia, ou não? _ Isso não tem importância... _ minimiza o juiz. _ Eu acho que tem importância sim _ diz a defensora. O homem, então, começa a chorar: _ Você tem coragem de negar?! _ pergunta à mulher. _ Então faz um exame nela, que vocês vão encontrar alguma coisa minha [esperma]. Por que você está fazendo isso? Você é mentirosa! Trinta e poucos anos de serviço, trabalhando muito, dando minha honra, e uma pessoa acaba com tudo. Levou um homem pra dentro da minha casa... Isso não se faz. Por que você está fazendo isso comigo? _ O homem não para mais de falar, descontrolado, chorando muito. O juiz quer dar um fim àquela audiência, que começava a se complicar. Pergunta novamente se ele aceita a transação (acordo): _ O que eu posso fazer? Não tem outro jeito, né... _Tem sim _ diz a defensora _ tudo tem jeito. Eu o aconselho a não aceitar o acordo e a entrar com uma ação para vender a casa. _Então ta, não aceito o acordo. O juiz acolhe a decisão e diz que o processo, então, vai seguir em frente. Outra audiência será marcada. O marido diz que a casa vale 70 mil e que, com metade disso, a mulher pode sim comprar uma casa no mesmo bairro. A mulher acena negativamente com a cabeça e diz que “ele precisa de tratamento”.

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A defensora começa a explicar ao homem que ele deveria “se separar”, que “não vale a pena viver mal com a mulher” etc.. Mas como o homem não para de chorar e não se conforma com a denúncia da mulher, a defensora diz que ele “não está ouvindo mais nada” e manda alguém chamar o psicólogo para acalmá-lo. O juiz determina que os dois serão encaminhados à psicologia e já marca as datas das sessões. Serão sessões separadas. Vendo que sua causa está perdida (pelo menos naquela primeira audiência), a mulher diz que quer fazer uma pergunta: _ E o que eu faço se ele chegar em casa e começar a quebrar tudo? _A Sra. Procura a DEAM e faz o registro de novo _ responde o Juiz. A defensora então diz ao homem que ele também pode procurar uma delegacia se precisar e, como é certo que, caso o faça, encontrará resistência para registrar uma ocorrência contra a mulher, ele pode então procurar o Ministério Público para fazer valer sua denúncia. O psicólogo enfim chega e leva o homem para acalmá-lo. Mas antes, a defensora finaliza a audiência dizendo que o melhor é “encaminhar a separação”.

Nesse caso, a defensora do homem

25

cumpriu importante papel, defendendo-o

contundentemente. A revelação de que a queixosa teria procurado o acusado dois dias antes da audiência para “fazer sexo” provocou uma virada no processo e resultou na não aceitação do acordo pelo homem, o que é raro. Não aceitar o acordo é alegar formalmente inocência. Ao propor ao homem que não aceitasse o acordo, a defensora, assim, apostou juridicamente na sua inocência, com base no relato sobre o evento do sexo. O que houve pode ser interpretado como uma inversão dos papéis de vítima e réu. O fato de que a mulher tenha tomado a iniciativa para ter relações sexuais com aquele a quem acusava, subitamente ganhou o status de um novo crime ou transgressão, agora cometido pela mulher e denunciado por seu marido. Nesse processo, o papel de vítima da mulher é relativamente apagado, não apenas pelo alegado evento do sexo _

25

Essa é a defensora antiga, a que já me referi anteriormente, e que tem uma visão bastante crítica da lei, que está sempre debatendo a lei com os outros profissionais e que me disse que queria “entender gênero”.

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visto como algo que, em si mesmo, anula ou minora a infração do homem _ como pelas acusações de infidelidade, que submetem a questionamentos valorativos o seu papel como esposa. Paralelamente, contrastando com isso, o homem coloca em voga o papel masculino respeitado de “trabalhador honrado”. Some-se a isso o choro e a indignação, que levaram a defensora a considerar que o homem precisava dos cuidados de um psicólogo, e o resultado foi que a denúncia da mulher e a incriminação do parceiro sumiram do horizonte da audiência. Além disso, as soluções propostas nessa audiência foram atendimento psicológico para ambos (decisão oficial do juiz), venda da casa e separação (sugeridas pela defensora). A contravenção penal foi interpretada como problema psicológico, patrimonial e civil, a ser resolvido por outras instâncias do judiciário, como a vara de família e a equipe técnica do juizado, que, através dos atendimentos psicológicos marcados pelo juiz, deve prover o processo com informações sobre o conflito, que serão utilizadas pelo magistrado para apoiar a sua decisão final.

Audiência 2: ameaça

A audiência é presidida pelo mesmo juiz. Irmã acusa irmão de ameaça. A estória é a seguinte: ao todo são seis irmãos, mas alguns são filhos só da mãe (como é o caso da vítima) e outros, só do pai (como é o caso do réu). Os pais não são mais vivos. Os seis irmãos brigam pela casa. Na verdade, são cinco pequenas casas contíguas no mesmo terreno, onde os seis irmãos vivem, além de seus cônjuges e filhos. O pai era, originalmente, o dono das casas e do terreno. A psicóloga do juizado foi chamada à sala para explicar a situação, que resumiu com seguinte frase: “todo o problema é patrimonial”. A irmã diz que o irmão se acha mais dono da casa que ela, porque ele é filho do pai. Ela diz que “a vida lá é um inferno”. Na sua casa, além dela e do irmão acusado, moram a esposa do irmão, os filhos do casal e mais um irmão, que é deficiente. Ela está desempregada e, por isso, não pode contribuir com as despesas. Então, o irmão “cortou” sua luz (retirou a lâmpada do seu quarto), proibiu que ela usasse o gás do fogão, retirou a porta do seu quarto e rouba suas coisas. Para completar, eles têm dívidas. A defensora do homem, a mesma da audiência anterior, pega um papel e se põe a fazer um trabalho matemático: calcula a parte a que cada um tem direito na herança, e

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conclui que, “de fato”, os irmãos que são filhos do pai têm direito a uma parcela maior do que os que são filhos apenas da mãe. Ela ainda calcula, com a ajuda da vítima e do réu, as despesas mensais com luz e gás, e quanto cada um deve pagar: aproximadamente dez reais. Sugere que eles façam um inventário das casas e do terreno, e aconselha: “até que isso fique pronto, vocês precisam se entender”. A psicóloga intervém e diz que eles têm uma “convivência insalubre, conflituosa”, que “ninguém se entende”, que “já foram amigos, mas isso se perdeu”. Ao longo de toda a audiência e dos cálculos, os irmãos se acusam mutuamente, numa guerra sem fim. O desentendimento entre os dois não arrefece diante da tentativa de solucioná-lo informalmente mediante cálculos financeiros. Defensora e juiz, num esforço intenso de mediação, propõem o seguinte acordo, que é aceito pelos irmãos: todos vão dividir as contas; nova audiência é marcada para dali a três meses; considera-se a possibilidade de sessões de psicologia para todos os seis irmãos; o irmão acusado deverá restabelecer a luz e recolocar a porta do quarto imediatamente. E em mais uma demonstração de como a lógica jurídica pode ser operada para resolver conflitos familiares, a irmã faz o seguinte comentário final: “eu quero que ele me dê um recibo de que eu paguei as contas”. Embora essa audiência não seja a última do caso, o que nela é negociado e definido é parte do processo de construção social da “violência contra a mulher”, além de condicionar o desfecho final. Pode-se argumentar, mais uma vez, que o crime denunciado transformou-se num problema patrimonial, cuja solução, apontada pelos cálculos da defensora do homem, está na repartição da herança, na divisão das despesas e na restauração dos bens subtraídos à irmã (a luz e a porta). Também foi interpretado como um problema psicológico (“a amizade perdida”, “a convivência insalubre”), a ser tratado pelos atendimentos da equipe técnica, não apenas para os irmãos envolvidos na ação penal, mas para todos os seis. Isso ilustra, em concordância com as observações de Debert (2006, Op. Cit.), como as percepções dos operadores jurídicos e da psicóloga acerca “violência contra a mulher” a vinculam ou subsumem a um problema familiar, de famílias “desestruturadas” ou “malogradas”. O fato de serem dois irmãos reforça ainda mais a preponderância do laço familiar, em detrimento do enfoque voltado para as relações desiguais entre os gêneros. Assim, a audiência transforma-se num lugar de exercício de

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poder por parte dos profissionais, em que eles definem exatamente os papéis que cada membro da família deve desempenhar, enquanto as condições materiais os obrigarem a permanecer sob o mesmo teto. Definem quanto cada um deve pagar pelas despesas da casa, definem que devem fazer um inventário do patrimônio comum, que a luz e a porta devem ser restabelecidas, que os irmãos devem “se entender”. Essa é uma forma de controle social, que não se limita ao controle jurídico-criminal através das categorias de vítima e réu. Prevalece um tipo de mediação institucional que visa “pacificar” as relações familiares através da normatização dos papéis sociais. A acusação é, assim, negociada, e a infração que originou o processo, relativizada. A atuação da psicóloga, que foi chamada à audiência para dar o seu “parecer” sobre o conflito, é um elemento importante nessa operação de atribuição de sentidos. Na medida em que a psicóloga atribui ao conflito motivações e relações causais que o associam a fatores psicológicos e patrimoniais, tipifica o evento como pertencente a uma categoria de conflitos não criminais, que permitem a negociação da acusação. Sua interpretação do conflito está em consonância com a dos operadores jurídicos, com o que a tipificação é corroborada, reproduzida, validada: é ponto pacífico.

Audiência 3: ameaça e lesão corporal leve

Esta audiência é presidida por uma juíza substituta, que está ali por apenas um mês, cobrindo as férias de uma das juízas permanentes. A juíza lê os autos e constata que o réu já foi preso e solto. Só a vítima está presente na sala. O réu faltou a esta audiência, que é a final. A juíza exasperada, diz: _ Dançou. Se ele prefere ser julgado à revelia... Não quer, não quer. Só matando, com requintes de crueldade, picando em pedacinhos... _ ela não se conforma com a ausência do réu na audiência em que o caso será decidido. O réu e a vítima já viveram juntos, têm dois filhos e agora estavam separados. Há duas testemunhas aguardando do lado de fora. _ O que aconteceu? _ pergunta a juíza à vítima, uma mulher jovem e aparentemente bastante pobre. _ Eu estava chegando em casa, ele estava lá e começou a me bater. Bateu com a minha cabeça no poste, me chutava muito.

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Ela disse que o réu também ameaçou matá-la. A juíza pergunta se eles ainda têm contato e a mulher responde que não e que quem vai pegar os filhos para a visitação é a mãe do réu. _ Ele já tinha te agredido antes? _ Não. Só a agrediu desta vez, por causa da separação. A mulher conta que o tio do acusado apartou a briga. Ela correu e foi chamar a PM. Eram dois policiais, que foram com ela até a sua casa. Quando chegaram, para surpresa de todos, o réu estava lá e deu um tapa no rosto da mulher, na frente dos policiais. _ Por que ele estava tão zangado? _ perguntou a juíza. _ Acho que ele estava chapado. _ De droga? _ De bebida. _ Mas a Sra. fez algo? _ insiste a juíza, tentando identificar no comportamento da vítima algum motivo para a agressão do ex-marido. _ Ele estava com ciúmes? _ Ele estava com ciúmes, porque eu saí de casa. _ A vítima é quase monossilábica, se expressa pouco. Logo identifico um provável motivo para isso: ela rapidamente menciona algo sobre “parar o processo”, por causa do “sustento dos filhos”. A juíza nega essa possibilidade, já que em caso de agressão física, a ação independe de representação. Explica: _ A Sra. não tem nenhuma ingerência sobre o processo. É um crime grave, uma agressão. Se a Sra. me diz “to apaixonada, quero que pare” ou “quero que morra”, não há nada que você possa fazer. O processo vai continuar, para o fato ser apurado. O que a Sra. pode fazer é ir no atendimento à mulher pra Sra. receber algum benefício do governo (ela não trabalha). É melhor a Sra. ir buscar outras vias de sustento dos filhos do que ficar esperando que o processo acabe e ele arrume emprego. O processo de lesão corporal realmente dá problemas pra ele; não vai acabar agora, pelo contrário. A juíza está aguardando a defensora do réu, que está na audiência ao lado. Enquanto isso a mulher novamente menciona a vontade de “tirar o processo”. A juíza, já impaciente, reforça: _ Processo não se tira, não. Também não é bom pros seus filhos. Eles precisam de um exemplo de uma repreensão. Eles podem perder em termos financeiros, mas a longo prazo vai ser bom.

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A juíza chama a defensora pública da mulher (até então ela não estava na sala) para que ela encaminhe a vítima ao programa de benefícios do governo. A vítima lhe conta que o réu não consegue emprego por causa do processo na justiça e, assim, não pode ajudar a pagar o colégio dos filhos. Ela diz que está muito preocupada com a sua situação financeira e a dos filhos. Diante dos patentes constrangimentos financeiros, a “continuidade do processo” parece perder a importância para a mulher. A defensora da vítima explica que o réu tem que ir às audiências: _ Se ele falta, perde a oportunidade de ganhar o benefício (o acordo com o MP). Ele ta achando que você vai tirar a queixa e tudo vai se resolver. Não é assim. A mulher insiste e diz que a mãe do réu disse que “isso ta prejudicando muito ele”. A defensora replica: _ Quem ta se prejudicando é ele, homem que bate em mulher. Você pediu pra apanhar? Então ta havendo uma distorção, né? Ele se prejudica. _ A defensora parece estar tentando “conscientizar” a mulher de que ela é a vítima; de que o homem, e não ela, é responsável pelo ato de violência e deve arcar com as conseqüências disso. A juíza pergunta à mulher se ela tem guarda dos filhos e pensão. A mulher responde que sim, sem parecer entender a pergunta ou, talvez, evitando falar coisas que gerem novos compromissos com a justiça, que começa a lhe causar problemas. A juíza pergunta de novo, tentando ser mais explícita: _ A Sra. tem guarda, pensão e visitação decididos formalmente? Na vara de família, com juiz? A mulher responde que sim, encerrando o assunto. A defensora do homem chega. A juíza explica que, como ele faltou, será julgado à revelia. Pede que a defensora leia o processo, se intere dele. Ela o faz rapidamente, concorda com tudo e começa a contar um caso que vivenciou. Era um homem, defendido por ela, que “se sentiu aviltado” em aceitar a suspensão do processo (acordo). Ela, então, lhe explicou que a suspensão “é um benefício, não uma pena”. O homem respondeu: “o público feminino pensa assim”. Ela, irritada, disse ao homem que a sua opinião não tem a ver com o seu “gênero”, feminino, mas com a sua “formação em direito e como defensora concursada”. A juíza aproveita o assunto do acordo e diz à vítima: _ Explique à mãe dele que se ele tivesse vindo, ele teria conseguido a suspensão, um acordo com o MP. Como ele não veio, perdeu. Na verdade, a Sra. não pode negociar

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(isto é, desistir da representação e encerrar o processo) , mas ele pode (isto é, aceitar o acordo com o MP e ter o processo suspenso). Ele tem duas anotações criminais de quando era adolescente, mas nada quando adulto, então tem direito ao acordo. _ A juíza está sugerindo aqui que o réu não precisava ter temido comparecer à audiência por causa de suas passagens anteriores pela polícia. Está garantindo à mulher que ele não seria preso por causa disso e que, portanto, o réu poderia ter ido ao juizado e aproveitado o benefício do acordo. A juíza chama a primeira testemunha, um dos policiais que foi até à casa da mulher após a agressão. Ele explica o que aconteceu: _ Fui chamado pelo rádio. Cheguei lá e vi a garota toda machucada e com hematomas. Encontrei o réu, que tentou agredi-la novamente. Levei o réu para a delegacia. O segundo policial que socorreu a mulher também é chamado a testemunhar. A defensora do homem pergunta à juíza se é mesmo necessário chamá-lo, já que seu papel no caso foi apenas efetuar a prisão, e já que “já está tudo certinho, provado”. A juíza, sem dar nenhuma explicação à defensora, chama a testemunha. O policial confirma que o réu deu um tapa no rosto da vítima na sua frente. A defensora do homem intervém: _ O outro policial afirmou que o réu tentou agredir. Ele foi contido ou realmente agrediu? _ Agrediu mesmo. Audiência encerrada. A defensora do réu vai telefonar para ele para saber por que não foi à audiência. Pergunto ao secretário e à juíza o que ficou decidido sobre a pena. Eles respondem que o réu vai ser avisado por carta. Explicam que deveria ser condenado a três meses de prisão, “mas como é réu primário e foi uma agressão leve”, a prisão deve ser convertida em suspensão condicional do processo. Explico à juíza sobre minha pesquisa e ela me recomenda “prestar atenção” ao fato de que era muito comum aparecerem ali mulheres “como essa”, que “não entendem direito o que se passa na audiência, os procedimentos, as perguntas” e que “nem se sentem ultrajadas com a agressão do marido”. Para a juíza, embora o ex-marido dessa mulher tenha batido nela várias vezes, inclusive na presença dos policiais, “ela fala disso como se não fosse nada”.

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Nessa audiência, em que apenas a mulher estava presente, não houve, como nas outras, a relativização dos papéis de vítima e réu. Pelo contrário, diante do desejo manifesto da mulher de desistir da ação, os profissionais jurídicos valeram-se de sua autoridade e da lei para reafirmar o papel e o lugar de vítima da mulher, para disciplinála a se ver e a se comportar como vítima. O crime de lesão corporal _ relatado pela mulher e devidamente comprovado pelos testemunhos dos policiais, que não apenas socorreram a vítima, como também presenciaram nova agressão e prenderam o réu em flagrante _ não é posto em dúvida ou apagado. Exceto, talvez, no início, quando a juíza pergunta à mulher o que ela teria feito para deixar o ex-marido “tão zangado”, com o que as causas da transgressão são procuradas no comportamento da vítima, o que é uma forma de relativizar os papéis de vítima e réu e, com isso, o caráter criminal do evento. Entretanto, a partir do momento em que a mulher aponta a “bebida” como causa provável, isso é aceito como plausível, e a possibilidade de ocorrência da agressão não é mais posta em dúvida. Assim, nem o evento é questionado enquanto crime, nem a mulher é desacreditada enquanto vítima. Enquanto tentam convencer a vítima de que ela é uma vítima e que, portanto, não deve procurar privar seu agressor da ação penal, os operadores jurídicos estão, mais uma vez, exercendo uma forma de controle. A juíza argumenta que, em seu papel de mãe, a mulher deve se preocupar menos com a ajuda financeira do ex-marido provedor do que com dar um “exemplo de repreensão” aos filhos. Uma disputa acerca do que é o papel “mais adequado” de mãe está em jogo: enquanto se constrói o papel de vítima, outros papéis e identidades sociais são negociados. A percepção da juíza de que as mulheres, em geral, “não entendem direito o que se passa na audiência” e “nem se sentem ultrajadas com a agressão do marido”, ilustra aquelas velhas tensões, apontadas por pesquisas supracitadas: um Sistema de Justiça que se caracteriza pela distância em relação à sociedade, para a qual os ritos e conteúdos jurídicos são pouco acessíveis, obscuros e desacreditados (Baptista, 2008, Op. Cit.); um Juizado de Mulheres que define a sua clientela como “cidadãos malogrados”, que falharam em exercer seus direitos (Debert, 2001, Op. Cit.). Assim, as mulheres são criticadas por quererem abrir mão do direito “fundamental” de ter seus “direitos”

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defendidos pela Justiça e por não perceberem a agressão como um ato “ultrajante” que fere esses direitos 26. Outro ponto importante da audiência é o acordo de suspensão do processo. Embora a juíza e a defensora tenham enfatizado para a mulher, durante a audiência, que, por ter faltado, o réu tinha perdido o direito ao acordo com o MP, essa foi a solução indicada pela juíza quando eu lhe perguntei qual seria a sua decisão. A história contada pela defensora do réu, sobre o homem que se sentiu “aviltado” com o acordo, ilustra o fato de que muitos homens não encaram o acordo como benefício, mas como penalidade injusta, que seria conveniente apenas às mulheres. Os réus são pressionados a aceitar o acordo, o que lhes pode soar como uma confissão indesejada de culpa. Como muitos homens expressam, como presenciei em diversas instâncias do juizado, que não consideram que tenham motivos para se sentirem culpados ou para serem penalizados, o acordo é muitas vezes percebido como impositivo. A resposta da defensora é um account que visa dar um caráter de racionalidade às suas ações: ao dizer ao homem que o acordo deve ser considerado um benefício, não porque essa é a sua opinião como mulher, mas porque assim o define a

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Presenciei uma audiência, entretanto, em que a mulher foi recriminada justamente por querer manter a ação penal. Ela acusava pela segunda vez o seu ex-marido de ameaça. No primeiro processo, havia desistido da ação penal em troca da garantia de que o homem não voltaria a “perturbá-la”. Nessa audiência, estava em pauta o segundo processo. A mulher, muito irritada, disse que dessa vez iria continuar com a ação, pois o homem havia “descumprido o compromisso firmado” anteriormente de “não procurá-la mais”. Relatou que o acusado mandou seu filho procurá-la em sua casa e “incomodou” seu vizinho, pedindo-lhe que entregasse uma carta a ela. A mulher tira da bolsa a carta; esta é lida pela defensora do réu, que diz: “Mas peraí, essa é a perturbação?”. A defensora relata à juíza que, na carta, o homem “pede perdão” à mulher e diz que “está em tratamento numa clínica para drogadictos”. A mulher insiste que o homem a está perturbando e que quer prosseguir com a ação. A juíza pergunta: “mas a Sra acha que isso é incômodo?”. A mulher responde: “Acho. Incomodou o meu vizinho, mandou o filho à minha casa”. Dessa vez, a defensora da mulher intervém: “Mas ele pede perdão”. “Não interessa!”, diz a mulher, “eu não faço isso com ele. Ele não toma jeito.” Ela cita um trecho da carta, em que o homem diz: “Só Deus sabe se é tarde para o perdão”. E rebate, irredutível: “Só Deus sabe? Eu sei!” A defensora da mulher insiste “Mas isso pode ser uma atividade da internação: pedir perdão”. A mulher está determinada a prosseguir, a audiência é encerrada e a mulher sai da sala com sua defensora. Minutos depois, esta volta à sala, dizendo que conversou com a mulher e que ela consentiu em desistir: “Ela voltou atrás! Disse que vai dar uma segunda chance, desde que fique consignado que ele não a procurará mais”. Esse caso mostra que também a vontade de continuar com a ação pode ser um elemento de tensão e negociação entre profissionais e vítima, se eles atribuem sentidos morais divergentes ao conflito. Assim, a criminação de conflitos da intimidade, da denúncia ao processamento na Justiça, envolve disputas acerca dos significados dos conflitos.

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sua “formação em direito e como defensora concursada”, ela busca justificar o acordo pela lógica racional-legal, neutralizando-o de qualquer conotação política ou baseada no gênero, das “mulheres” contra os “homens”. É interessante notar que os relatos dos operadores jurídicos mostram um contraste entre homens que se sentem “aviltados” pelo acordo e mulheres que não se sentem “ultrajadas” pela violência sofrida. São narrativas que comunicam tensões entre as percepções dos envolvidos, tanto homens como mulheres, e a lógica racional-jurídica pelas quais os operadores da lei justificam suas decisões. Isso não significa que os profissionais jurídicos tomem suas decisões estritamente de acordo com os preceitos legais, mas que, quando se vêem diante de divergências valorativas entre as suas percepções e as dos envolvidos sobre os conflitos ou as soluções adequadas, recorrem a accounts que buscam dar às suas decisões o caráter de “racionais”, “puramente jurídicas” e, portanto, “corretas”. Tomando como bases essas e outras audiências observadas no juizado, dois caminhos analíticos são considerados. O primeiro aponta para a relativização dos papéis de “vítima” e “réu” como um desdobramento sempre possível nas audiências. O segundo diz respeito ao acordo de suspensão do processo, que, considerado a melhor solução para os conflitos íntimos no juizado, revela uma maneira particular de significar a “violência contra a mulher” e, ao mesmo tempo, atende aos requisitos de rotinização dos procedimentos jurídicos do Judiciário como um todo, além de distribuir o tratamento dos casos entre profissionais jurídicos e não jurídicos. Vamos à primeira parte. Através dos significados que os operadores jurídicos atribuem aos conflitos íntimos e da significativa atuação da equipe de psicólogos e assistentes sociais, as causas da transgressão são buscadas na interpretação psicológica e social das peculiaridades do conflito íntimo, com base nos papéis de ambas as partes, vítima e acusado, na produção do conflito. Na medida em que tanto vítima quanto réu são objetos da atenção e da interpretação dos profissionais, abrem-se, na dinâmica das audiências, amplas possibilidades de negociação da acusação, em que os papéis de vítima e réu mostram-se extremamente fluidos. Os relatos e comportamentos dos envolvidos podem ser de tal forma interpretados pelos profissionais do Juizado, que a configuração jurídica inicial da polarização entre vítima e réu é relativizada, invertida ou apagada, o que, de certa forma, equivale à relativização da própria transgressão.

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Essa operação de relativização dos papéis de vítima e réu não ocorre apenas nas audiências, mas também nos outros setores do juizado. Nas audiências, entretanto, está mais visível, pois é quando os relatos dos envolvidos são confrontados em busca da verdade jurídica definitiva. Ocorre que esse confronto, em que as partes buscam estabelecer contrastes entre suas versões do fato e as autoridades precisam tomar decisões, potencializa as disputas de papéis e identidades sociais. Nas audiências, tanto as partes como os operadores, buscam mobilizar “evidências” nas dinâmicas do conflito, que os permitam exaltar ou questionar os papéis sociais desempenhados dentro da relação conjugal e da família. São elementos que “contam a favor” de si ou “contra” o outro, podendo aprofundar a polaridade réu-vítima, reforçando a acusação ou, mais frequentemente, borrar os limites entre um e outro, relativizando a acusação. Disso resulta que, a depender de como os papéis sociais de gênero são valorados e negociados, os eventos violentos, ainda que igualmente classificados como “violência contra a mulher”, podem ser considerados mais ou menos graves, mais ou menos “crimes”. Nas audiências descritas acima, é possível perceber de que maneira as disputas de papéis moldaram o encaminhamento jurídico da acusação. Na primeira audiência, o relato do marido de que sua mulher e acusadora, além de tê-lo traído, o havia procurado para fazer sexo poucos dias antes da audiência, revelou “evidências” de que ela não cumprira nem o papel esperado de esposa, por causa da traição, nem o papel de uma “verdadeira” vítima, posto que se espera que as vítimas desejem estar distantes de seus agressores, e não fazer sexo com eles. Esse duplo desempenho negativo se contrastou com mobilização, pelo homem, da identidade positiva de quem tem dado a sua “honra” ao longo de “trinta e poucos anos de serviço”, do choro e da indignação e, assim, os papéis de vítima e réu foram relativizados, senão mesmo simbolicamente invertidos. E isso aconteceu porque tudo fez sentido para todos os participantes. Mesmo a mulher mostrou-se constrangida e não encontrou maneiras eficientes de se defender. Na audiência dos irmãos, houve uma espécie de apagamento, anulação mútua das categorias de vítima e réu. O crime de ameaça foi identificado pelos profissionais como um problema familiar, patrimonial e psicológico, que envolvia não apenas os dois indivíduos referidos na ação penal como todos os outros irmãos. Nesse contexto, as categorias de crime, vítima e réu perdem a capacidade de mediar a interpretação dos conflitos.

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Na terceira audiência, os depoimentos dos policiais e a causa apontada, a bebida, atuaram como evidências que asseguraram à mulher o papel de vítima. Pode-se especular que se o réu estivesse presente e apresentasse a sua versão, a audiência poderia tomar outros rumos. O importante a ser dito aqui é que a relativização do papel de vítima, nesse caso, partiu da própria mulher, que, ao querer abrir mão da ação penal, e com isso, do status legal de vítima, divergiu não apenas das regras jurídicas que a impediam de desistir, mas das expectativas dos profissionais de que uma vítima “legítima” tem a obrigação moral de incriminar seu agressor. A relativização da acusação não deve ser interpretada, pois, como uma imposição unilateral dos operadores da lei, mas como uma maneira de interpretar os conflitos de acordo com o desempenho dos papéis sociais, o que é potencialmente plausível para todos os participantes da interação. É certo que existe assimetria de poderes no espaço da audiência, como de resto em todos os setores da instituição, mas é importante observar que o exercício do poder sobre o outro é sempre contextualizado e se refere aos conhecimentos compartilhados da vida social, o que, aliás, permite e exige que o exercício do poder, mesmo em um ambiente tradicionalmente autoritário como o judiciário brasileiro, seja adequadamente justificado, por accounts de conteúdo jurídico ou moral. A atribuição de sentido aos conflitos e aos papéis sociais dos atores opera esta relativização da acusação e dos papéis de vítima e réu em várias outras audiências a que assisti, e também ao longo de toda a cadeia de produção da “violência contra a mulher” _ especialmente na defensoria feminina e na equipe técnica, como veremos. Pode-se afirmar, assim, que é um desdobramento sempre possível e característico da criminação e do tratamento institucional dos conflitos de natureza íntima. O segundo caminho analítico é o de que a aplicação da lei esteja operando uma espécie de padronização do tratamento dos crimes de “violência contra a mulher”, na medida em que os crimes tipificados pelo código jurídico como mais graves, como os de lesão corporal, e os menos graves, como os de ameaça, perturbação da tranqüilidade, calúnia, difamação e injúria, têm sido penalizados e tratados de forma muito similar. Na prática, quase todos os casos _ se não há arquivamento e desistência da vítima _ têm o mesmo desfecho no que concerne à solução: os réus são beneficiados pelo acordo de suspensão condicional do processo, mencionado acima. Como vimos na seção quatro, a lei ampliou e tornou mais complexa a definição penal de “violência doméstica e familiar

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contra a mulher”, tipificando diversas modalidades desse crime. A operação da lei no juizado tem fundido os limites subtípicos instituídos pela lei, ao atribuir aos mais diferentes casos uma solução preferencial, o acordo. Como detalhado antes, o acordo garante a suspensão do processo e a retirada da anotação criminal do histórico do acusado, que, em troca, deve “bater o ponto” por dois anos e participar do grupo de reflexão ou informativo, medidas alternativas às penas privativas de liberdade. Se, de acordo com os códigos jurídicos, a sanção penal deve seguir o princípio de ser “proporcional ao crime” (Bitencourt, 2007, p.137), ela é um aspecto da atribuição de sentidos às infrações. Isto é, a determinação da pena pressupõe a qualificação anterior do tipo da infração, e de todos os sentidos sociais atribuídos a esse tipo, entre eles a gravidade do dano e a solução que pode mais adequadamente repará-lo

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. Ao

designar preferencialmente aos crimes de “violência contra a mulher” a solução do acordo de suspensão condicional do processo, os atores sociais do juizado, especialmente os operadores jurídicos, que são os que possuem autoridade legal para individualizar a pena em cada caso concreto, consideram que os remédios adequados são “bater o ponto” (monitoramento do réu) e participação no grupo de reflexão ou informativo (“reeducação” do réu). O acordo também se propõe como um mecanismo de “prevenção” da reincidência, na medida em que a eventual reincidência acarretaria o cancelamento dos benefícios trazidos pela suspensão do processo. Assim, o monitoramento em liberdade, a “reeducação” e a “prevenção”, atribuídos como soluções preferenciais para os crimes de “violência contra a mulher”, revelam que estas infrações estão, em geral, longe dos tipos de infrações definidas como graves, que pedem, proporcionalmente, penas mais severas e não admitem suspensão condicional do processo. Os eventos classificados como “violência contra a mulher” são percebidos como compatíveis com soluções de menor rigor repressivo, que tenham potencial efeito pedagógico e que sejam menos prejudiciais ao acusado. Esses critérios procedem também nos casos em que o acordo de suspensão do processo não pode ser 27

As operações de “atribuição de sentidos à infração” podem ser ilustradas com um trecho do código penal sobre a fixação da pena: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos (...)” (Bitencourt, Op. Cit, p.216). Atender à culpabilidade, aos antecedentes etc. é atribuir sentidos típicos à infração.

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feito e cujas soluções mais comuns no juizado são as sentenças de prestação de serviços comunitários. É possível que essas medidas penais, mais brandas, visem preservar os laços familiares e domésticos que ligam as partes em conflito. A lógica da preservação da família foi abordada em diversos estudos sobre a Justiça, anteriores à Lei Maria da Penha (por exemplo, Carrara et al, Op.Cit.) e foi objeto de muitas críticas de feministas, que a denunciavam como um dos principais impedimentos à punição dos agressores. Contudo, acredito que, embora a lógica continue operando no juizado pesquisado, ela não é mais sinônimo de “impunidade”, pois os réus recebem algum tipo de sanção, compatível com os significados atribuídos ao tipo de violência em questão. Assim, as soluções mais comuns no juizado visam satisfazer a dupla condição de que o réu “sinta” os efeitos da infração e de que as relações afetivas e familiares não sejam rompidas ou prejudicadas em virtude da sanção. Desta forma, as sentenças de prisão, proclamadas pelo juiz em audiência como decisão final, embora previstas na Lei Maria da Penha e no código penal, não são comuns no juizado

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. Relativamente mais comuns são as prisões em flagrante, feitas

pela polícia, antes do início da fase judicial da ação. Entre junho de 2007 a junho de 2009, foram realizadas 297 prisões em flagrante, dentre os casos de competência do juizado. Os acusados flagrados ficam presos na Polinter, aguardando audiência em que o juiz decidirá sobre a soltura ou manutenção do encarceramento. No juizado pesquisado, os casos em que o réu está preso por flagrante são tratados pelos profissionais como casos que merecem atenção e decisões rápidas, no sentido de evitar que o tempo de prisão se alongue demais. Quando há um caso desse, os profissionais se referem a ele dizendo “é caso de réu preso”, “é urgente”, “é prioridade”. Presenciei uma ocasião em que a juíza titular identificou um erro administrativo que atrasou a resolução de um caso, cujo réu estava preso por flagrante. Ela chamou a funcionária responsável

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Tive a oportunidade de presenciar apenas uma sentença de prisão, que, no entanto, não foi motivada pelo crime de lesão corporal pelo qual o réu era acusado, por sua ex-mulher. Ele foi preso porque era estrangeiro e seu passaporte, entregue à juíza antes do início da audiência, estava “grosseiramente rasurado”, o que configura crime. Ao final da audiência, depois de ouvir a vítima, as testemunhas de acusação e o réu, a juíza determinou a prisão do acusado pelas irregularidades do passaporte e outra audiência foi marcada para decidir sobre o crime de lesão corporal.

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do cartório e lhe recomendou que atribuísse à “estagiária mais esperta” a supervisão de casos semelhantes, para evitar novos erros, “pois são casos de réu preso” 29. Isso indica que o encarceramento, de qualquer tipo, não é visto como medida adequada aos tipos de casos que chegam ao juizado. A observação das audiências e os relatos dos profissionais de todos os setores do juizado mostraram, ademais, que a medida de prisão é evitada ou tratada com cautela não apenas pelos operadores da lei, como também pelas vítimas, corroborando o padrão identificado por pesquisas feitas em DEAMs de que elas não desejam o encarceramento de seus agressores. Assim, se o acordo de suspensão do processo é o procedimento “padrão”, isso indica uma determinada maneira de perceber e tipificar a “violência contra a mulher”. A pena cominada abstratamente no código jurídico para o tipo penal geral deve ser individualizada pela autoridade para cada caso concreto _ é o princípio jurídico da “individualização da pena” (Bitencourt, Op. Cit., p.137). Entretanto, a julgar pelo juizado pesquisado, é possível que o corrente processo de especialização das leis e das instituições da Justiça, de que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher resultam, propicie a constituição de padrões de tratamento penal, ainda que os casos individuais sejam distintos entre si. Define-se uma solução à mão, potencialmente aplicável a todos os eventos individuais encaixados na tipificação penal geral. A padronização superpõe-se às particularidades de cada caso e ao princípio da individualização da pena; os significados sociais atribuídos ao tipo penal geral arrebatam a interpretação e o tratamento dos eventos individuais. Assim, o acordo de suspensão do processo, na medida em que constitui um procedimento “padrão” dentro do juizado indica que existe uma maneira relativamente consensual de perceber o tipo geral “violência doméstica e familiar contra a mulher”, a partir da qual os eventos individuais são criminados, interpretados e tratados de forma semelhante. Portanto, por um lado, o acordo pode ser indicativo de uma especificidade da criminação e significação do crime de “violência doméstica e familiar contra a mulher”.

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Em uma matéria do Jornal O Globo, consta que, no juizado pesquisado, um processo demora entre seis meses a um ano para ser concluído, mas se o réu estiver preso, esse prazo cai para até 3 meses. Disponível em (http://oglobo.globo.com/rio/riocomovamos/mat/2009/07/31/mulheres-buscam-justica-contramaus-tratos-757067942.asp), acessado em 10 de abril de 2010.

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Por outro lado, é um recurso que certamente atende às necessidades e à organização social do Sistema de Justiça brasileiro como um todo. O acordo é conveniente à opção pela “celeridade processual”, muito cotejada pelos operadores jurídicos. Em um juizado abarrotado de processos, o dispositivo do acordo é valioso, pois suspende a ação penal e, ao mesmo tempo, não deixa o caso “sem resposta”, na medida em que exige o cumprimento de determinadas condições em troca da suspensão. Sempre haverá, para os interessados, oportunidades de questionar a “qualidade” ou “efetividade” dessa “resposta”, mas é certo que, uma vez suspenso, o processo sai do rol de prioridades dos operadores jurídicos e é transferido para a alçada de trabalho de outros profissionais, que cuidarão de administrar a “assinatura do ponto” e a participação dos acusados nos grupos de reflexão ou informativo. Nesse sentido, o recurso preferencial ao acordo pode ser analisado como um índice da rotinização ou automatização dos procedimentos jurídicos, comum ao Sistema de Justiça como um todo. Assim, o acordo de suspensão do processo opera um duplo processo de padronização no tratamento penal da “violência contra mulher”. Primeiro, no nível interno, dentro do juizado, definindo uma maneira padronizada e própria de perceber e tratar a “violência contra a mulher”, que abarca seus diferentes casos individuais. Segundo, no nível externo, dentro do Sistema de Justiça, na medida em que adequa o tratamento penal da “violência contra a mulher” aos critérios de celeridade e automatização dos procedimentos jurídicos. Com base em alguns estudos (Kant de Lima, 1989; Campos, 2003; Baptista, 2008; Nader, 1994), pode-se especular se a opção pela celeridade, em um Sistema de Justiça tradicionalmente organizado pelo valor de hierarquia e pelo princípio inquisitorial, se traduz em práticas que visam extinguir o conflito, em vez de “administrá-lo”. Tais práticas propiciariam soluções tomadas unilateralmente pela autoridade jurídica, de forma impositiva, e prejudicariam a construção de soluções consensuais, mais “democráticas”, forjadas no diálogo salutar entre as partes, promovido pela autoridade. Nesse sentido, caberia perguntar sobre o significado do acordo de suspensão do processo dentro da Justiça como um todo. Seria esse dispositivo uma prática arbitrária e impositiva, que busca apenas a extinção do conflito, reproduzindo, assim, os padrões tradicionais de organização do judiciário brasileiro? Ou seria indicativo de um movimento positivo de mudança em direção à busca de novos

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padrões de soluções para os conflitos sociais? Qual o impacto das medidas de “reeducação do agressor” embutidas no acordo de suspensão? Eu não saberia respondêlo, e isso seria tema suficiente para uma pesquisa inteira, ou várias, mas considero importante ao menos formular aqui essas perguntas. Nesta pesquisa, me limito apenas a argumentar que o recurso ao acordo, no âmbito do juizado investigado: 1) é indicativo da constituição de um padrão de significação da “violência contra a mulher”, que define soluções próprias e particulariza a sua criminação e interpretação; 2) é uma forma de rotinização dos procedimentos jurídicos que serve também aos propósitos de celeridade e automatização, comuns ao Sistema de Justiça como um todo; e 3) é um dispositivo, de natureza jurídica, que distribui parte da responsabilidade pela interpretação e tratamento dos crimes a outras classes de profissionais, não jurídicas, notadamente os psicólogos e os assistentes sociais. Este último ponto será melhor explicitado nas seções sobre a equipe técnica do juizado e o grupo de reflexão.

8. A defensoria feminina: reavaliação de estratégias, accounts e negociação de identidades

Nessa seção a rotina de trabalho da defensoria feminina do juizado é descrita e analisada. Na interação entre vítimas e profissionais negociam-se formas de interpretação dos conflitos, a partir das quais estratégias de ação são definidas. Esse não é um processo linear e previsível, mas, ao contrário, é definido por constantes reavaliações dos conflitos e das relações sociais em que estão implicados, que por sua vez geram novas negociações entre os profissionais e sua clientela e motivam reajustes nas estratégias de ação. A observação e etnografia do cotidiano da defensoria permitem explicitar esses processos de (re)avaliação e como se articulam aos procedimentos de construção de uma estratégia de defesa “adequada”. A defensoria feminina do juizado é uma “filial” do NUDEM (Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência), cuja sede fica em outro endereço. O NUDEM atende a mulheres de toda a cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro e realiza diversos tipos de serviços jurídicos, como separação judicial, reconhecimento de união estável, guarda de filhos, reconhecimento de paternidade, ação de alimentos,

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arrolamento e partilha de bens para os Juízos de Família, realização de acordos extrajudiciais e judiciais, encaminhamento para outros serviços da rede de atendimento à mulher (abrigamento, orientação ao trabalho, tratamentos médicos, grupos de apoio) etc. O NUDEM (tanto a filial como a sede) é coordenado por duas defensoras que se revezam entre um e outro endereço. A filial instalada no juizado pesquisado cuida especificamente das ações penais que ali estão em andamento. Uma das principais funções da defensoria feminina é a elaboração do pedido de medidas protetivas de urgência. Essas medidas estão previstas no texto da Lei Maria da Penha e consistem em medidas tais como o afastamento do acusado do lar, proibição de aproximação ou contato com a vítima, seus familiares e testemunhas, suspensão ou restrição do seu porte de arma, pagamento de pensão alimentícia. São medidas de urgência e, portanto, temporárias. O pedido de medidas protetivas é feito ainda na delegacia, durante a feitura do Registro de Ocorrência (R.O.). Ou seja, para pedir as medidas, é necessário que um evento violento tenha sido denunciado na delegacia e tipificado como crime de “violência doméstica e familiar contra a mulher”. É a mulher quem escolhe que medida(s) vai solicitar. A Lei Maria da Penha determina que o pedido deve ser remetido ao juizado competente no prazo máximo de 48 horas, e o juiz tem outras 48 horas para julgá-lo. No curso do processo, o juiz poderá conceder novas medidas ou rever as que foram concedidas, a pedido do Ministério Público ou da vítima. No juizado pesquisado, para ser apreciado pelo (a) juiz(a), o pedido deve ser redigido e encaminhado pela defensoria pública feminina. Assim, não basta fazer o pedido na delegacia; é preciso que ele seja “endossado”, “certificado” pelas defensoras públicas. Assim que o pedido chega à defensoria, as profissionais telefonam à vítima para saber sobre a gravidade do caso e se ainda precisam das medidas protetivas que solicitaram na delegacia. Como o número de pedidos diários é muito grande e eles devem ser julgados com extrema rapidez, o telefonema é uma forma de separar os casos mais “graves” e “urgentes” daqueles que “podem esperar”. Se as profissionais da defensoria identificam, no relato da mulher, que o acusado, por meio de novas ameaças ou agressões, põe em risco a vida da vítima, encaminham o pedido ao juiz imediatamente. O pedido gera uma ação cível, independente da ação penal. Ao julgar o pedido, os juízes levam em consideração o processo penal, pois ele fornece o contexto que

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gerou o pedido e, a partir do qual, os magistrados vão julgar o “mérito da questão”. Mas os dois processos não estão formalmente atrelados; o juiz pode, por exemplo, indeferir o pedido e, ainda sim, ação penal prossegue. As medidas têm sido avaliadas por operadores jurídicos e profissionais da área como o ponto mais forte da Lei Maria da Penha, pois geram impacto imediato na vida da vítima. Através do afastamento do acusado do lar e da proibição de aproximação, desmonta-se, temporariamente, o espaço social da violência. Somando-se a isso o pagamento provisório de pensão alimentícia para os filhos, é provável que os custos sociais da ação fiquem menores para as mulheres que obtêm as medidas protetivas. Por outro lado, como veremos, a possibilidade de obtê-las é instrumentalizada pelas mulheres de diversas maneiras, de maneira que a busca por proteção de urgência não é a única motivação do pedido. A popularidade das medidas protetivas é tamanha, que a juíza titular do juizado pesquisado calcula receber uma média de 50 pedidos por dia. Entre junho de 2007 e junho de 2009, foram deferidas 2.171 medidas protetivas no juizado. Destas, os principais tipos de medidas concedidas foram: proibição de aproximação (32%), proibição de contato (28%), concessão da guarda provisória dos filhos à mulher (11,5%) e afastamento do agressor do lar (10%), entre outros. Quanto às ações penais, a defensoria feminina do juizado procede da seguinte forma: primeiro, manda uma carta às vítimas arroladas em cada nova ação penal que dá entrada na instituição, pedindo que compareçam à sua sala caso não possam pagar advogado. Chegando à defensoria, a vítima dá o seu relato, que é ouvido pela defensora ou por uma das estagiárias (há duas, estudantes de Direito). A partir do relato, as profissionais analisam se o pedido de medidas protetivas de urgência deve ou não ser feito, caso não tenha sido solicitado na delegacia. Caso já tenha sido solicitado na delegacia, mas ainda não enviado ao juiz, as profissionais, então, reavaliam a necessidade de fazê-lo e, nos casos “pertinentes”, redigem o pedido, apresentando justificativas. Em muitos casos, os assistentes sociais e psicólogos da equipe técnica são solicitados a fazer uma “escuta” da mulher para avaliar a necessidade de medidas protetivas e o seu grau de urgência. Fazem, então, um relatório que é anexado ao pedido e à ação penal. Muitas mulheres vão à defensoria, no decorrer da ação, para saber “como está o processo”, por que está “demorando”, qual é a data da audiência etc. As profissionais,

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então, consultam o andamento da ação e informam se o Ministério Público já fez a denúncia, se tem uma promoção que opta pelo arquivamento, se pede à equipe técnica um estudo de caso etc. Nessas visitas de consulta, é comum que as mulheres façam novos relatos, em que denunciam que o acusado descumpriu as medidas protetivas deferidas ou fez novas ameaças ou agressões, diante do que as defensoras aconselham que um novo registro de ocorrência seja feito ou, dependendo da gravidade do caso, requerem novas medidas protetivas ou mesmo a prisão preventiva 30. Também é muito comum que as mulheres compareçam à defensoria para comunicar que querem desistir da ação e/ou das medidas protetivas. Nesses casos, elas explicam suas razões à defensora, que pode ou não questioná-las, como veremos. Muitas mulheres têm dúvidas quanto a seguir ou não com a ação, quanto a manter ou não as medidas protetivas e vão pedir informações e conselhos às profissionais, sondar as conseqüências da ação penal para o acusado, medir os custos da ação para si, avaliar a necessidade da continuidade das medidas. É comum que as vítimas avaliem (ou que as defensoras sugiram) a possibilidade de divórcio, divisão de bens, regulamentação da guarda dos filhos e de visitação, o que também pode ser encaminhado pela defensoria. Nesses casos, novas ações são geradas em varas cíveis de família, correndo paralelamente às ações penais do juizado. Os cursos das ações se afetam mutuamente. Por exemplo, se obtêm resultados favoráveis na ação cível, as mulheres podem desistir da ação penal. Ou então podem fazer acordos com os acusados, oferecendo a desistência da ação penal se eles aceitarem sua proposta de divisão de bens, visitação de filhos etc. Pouco antes da audiência, as mulheres são nova e rapidamente ouvidas, reafirmam se querem ou não seguir com a ação, se querem fazer acordos com o acusado, dizem se há novos fatos relevantes a serem mencionados

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. Algumas são

As prisões preventivas não são comuns. Entre junho de 2007 e junho de 2009, 65 prisões preventivas foram decretadas no juizado. 31 As audiências são marcadas de forma a reunir, no mesmo dia, aquelas que têm características comuns. Assim, há dias em que estão marcadas muitas audiências de conciliação, para os casos de ameaça ou outros crimes que permitem desistência. É o que se chama “pautão”. Nesses dias o trabalho na defensoria é intenso, como explica a defensora: “Uma vez, teve 86 (audiências de conciliação) no mesmo dia! Aí eu falo com 30 mulheres, todas ao mesmo tempo, fico louca. Elas dizem se querem seguir e vão na sala da juíza só para assinar. Em contraste, há dias como hoje, em que não há quase ninguém”. O “pautão”, assim como o acordo suspensão condicional do processo, pode ser interpretado como uma forma de agilizar e automatizar os procedimentos jurídicos.

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chamadas porque faltaram à audiência e são, então, incentivadas a comparecerem na próxima. Muitas mulheres vão à defensoria para pedirem medidas protetivas, sem, no entanto, terem feito um registro de ocorrência. Algumas, como veremos, recorrem ao pedido para “tirar os maridos de casa”. As profissionais, então, explicam que o registro é necessário e que as medidas devem ter uma justificativa válida, uma “necessidade” real. Outras buscam apenas informações sobre como proceder para dar entrada no processo de divórcio e outras ações cíveis; são, então, orientadas a juntar vários documentos e apresentá-los no NUDEM-sede. É também comum que advogados particulares, que segundo uma defensora, “não entendem nada de Lei Maria da Penha”, visitem a defensoria para tirar dúvidas sobre como encaminhar pedidos de medidas protetivas e outros procedimentos jurídicos. E, finalmente, segundo as profissionais da defensoria, algumas mulheres vão à defensoria apenas porque sentem necessidade de “conversar”. Ao longo dos atendimentos, as defensoras podem encaminhar mulheres, a pedido delas mesmas ou por sugestão das profissionais, aos serviços de atendimento psicológico e outros oferecidos pelo CREAS do juizado. Como vemos, a circulação de mulheres na defensoria é intensa e suas demandas, variadas. Todas essas atividades tornam necessária a apresentação de diversos tipos de documentos: identificação civil, certidões de casamento e nascimento dos envolvidos, comprovantes de renda e propriedades, boletins de ocorrência. A quantidade de documentos requisitada é tão grande que alguns dos atendimentos por mim observados eram consumidos na simples junção e checagem de papéis. Algumas vítimas carregavam pastas cheias deles. Muitas vezes elas se confundiam: esqueciam-se de apresentar certo documento solicitado, não sabiam se já haviam ou não apresentado tal ou qual documento. Apresentado esse panorama geral, passo à etnografia e análise de alguns atendimentos. Atendimento 1

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Uma mulher muito magra, de aproximadamente 35 anos, entra na sala, caminhando devagar, aparentando estar muito fraca e doente. Senta-se em frente à defensora, Dra Viviane, e lhe informa que se divorciou, voltou ao nome de solteira e fez novo documento de identidade. Entrega-o à defensora para que se atualizem os registros. Fala muito baixo, com voz trêmula. Diz à Dra Viviane que o homem “ligou de novo ontem” e que ela acaba de fazer novo registro de ocorrência (R.O.) e novo pedido de medidas protetivas, e mostra os papéis à defensora, que diz: _ De novo? A Sra tem testemunha? _ Eu tenho prova. O número dele ta gravado na bina do celular. _ Será que dá pra imprimir isso? Ao longo da conversa, entendo que a mulher já havia encaminhado um processo de agressão contra o ex-companheiro e que conseguiu medida protetiva de afastamento. Ela diz que o homem “recorreu da decisão” e que um desembargador já havia feito novo julgamento, cujo resultado ela desconhece. Agora, ao ligar para ela, o homem descumpriu a ordem de afastamento e foi por isso que ela fez novo R.O.. _ Eu to com medo desse homem _ diz a mulher, com um fio de voz e o olhos arregalados. _ Quer pedir a prisão dele? _ pergunta Dra Viviane, pela primeira e única vez durante todo o tempo em que observei a defensoria. _ Quero. _ Tenta imprimir o registro de ligações (bina), vai na operadora. A Sra está fazendo tratamento? _ Eu não saio de casa, estou morrendo de medo dele! _ Ele é muito violento? _ Ele tem uma obsessão por mim. Eu estou com depressão, com pânico. Ele não respeita nada, não respeita a lei. _ Vou pedir para a psicóloga te ouvir agora, para ela fazer um relatório rapidinho. Com base nesse relatório, a gente pede a prisão dele._ E imediatamente a defensora pede à estagiária que vá à equipe técnica para ver se alguém pode atender a mulher com urgência. _ Ele ta se sentindo impune. Eu é que estou presa! _ Quantos processos de agressão tem?

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_ Um. Ele me acusou de... _ não consigo ouvir a palavra. _ Mas eu não fiz isso. Estou respondendo na 16ª, junto com os bandidos. _ Se ele fez isso só para te incriminar, ele pode ser acusado de difamação caluniosa, que é um crime gravíssimo, pode pegar até 8 anos de prisão. A estagiária volta da equipe técnica, relatando que lhe disseram que é preciso fazer uma solicitação por escrito de atendimento. Dra Viviane não gosta muito da exigência e pede que a estagiária faça a solicitação. Momentos depois entra uma assistente social da equipe técnica. Vem checar com Dra Viviane o que ela deseja e conclui que nesse caso é melhor chamar uma psicóloga, também da equipe. Logo entra a psicóloga. Dra Viviane lhe explica que a mulher está “muito abalada”, “sofrendo”, que “não sai de casa nem para se tratar no psicólogo”, que “teve de tomar remédio para conseguir vir aqui hoje”, que “o homem vem descumprindo a ordem, ligando”. Nesse momento, a mulher parece estar em frangalhos, olhando para a psicóloga como quem suplica. A psicóloga pergunta se ela prefere marcar outro dia, em que ela esteja “mais calma”. A mulher choraminga, sempre o fio de voz, “não, agora, por favor, não agüento mais”. A psicóloga sai para pegar os registros do caso. A mulher continua a conversar com Dra Viviane: _ Ele não tem limite, é muito obsessivo, ciumento. Entrega um monte de papéis à defensora. São páginas impressas do Orkut, site de relacionamentos bastante popular no Brasil, em que constam mensagens que o homem vem lhe mandando. Deve haver umas 15 folhas. São “provas” das aproximações do homem, do descumprimento da ordem. Dra Viviane constata, no entanto, que a mulher também mandou mensagens ao homem, respondeu às suas provocações, xingou-o: _ A Sra não pode fazer isso. Não responde, senão você vai dar munição para ele. Ele vai dizer que é você quem o procura, que é você quem o xinga. _ E, ao ler alguma coisa no conteúdo das mensagens, pergunta: _ A Sra já teve internação? _ Não. Nesse momento tenso, a psicóloga volta para buscar a mulher, dizendo que releu o caso e que “já se lembrou”. A estagiária entrega à Dra Viviane a solicitação por escrito de atendimento psicológico. Dra Viviane, que antes se mostrou incomodada com a exigência de solicitação, agora minimiza e diz que mesmo que este seja um atendimento “às pressas”, “é importante ter a solicitação escrita, para que conste na estatística”.

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Enquanto continua a ler as mensagens do Orkut, Dra Viviane me explica o caso: “ela conseguiu as medidas protetivas desde maio, mas que mandou várias páginas de Orkut para ele. Ele diz aqui nas mensagens que ela já se internou no Pinel, mas ela nega, diz que é calúnia. Dá pra perceber que ela não está bem, está muito magra, acabada. Eu já vi ela antes e, pela própria foto do Orkut, dá pra ver como ela já esteve bem melhor.” E me mostra a foto. Dra Viviane me explica, então, que ali há muitos “casos de problemas psiquiátricos” _ “ansiedade”, “depressão”, “pânico”: “não dá para saber se o problema é em decorrência da agressão ou se a pessoa já tinha esse distúrbio. Se já tinha, às vezes a pessoa pode imaginar uma agressão ou perseguição”. E nesses casos, “é muito complicado, tem que mandar para atendimento mais profundo, psicólogo e assistência social, para saber”. Essa é uma observação repetida pela defensora muitas vezes ao longo da pesquisa. Ela conta ainda que a mulher diz que tem “74 páginas de Orkut” com mensagens do homem. Compreende que às vezes “a pessoa fica tão desesperada que acaba respondendo às provocações”, com o que dá chances para o homem dizer que foi ela quem o procurou. Esse atendimento ilustra algumas ambigüidades, com as quais as profissionais da defensoria estão acostumadas a lidar. A denúncia do telefonema, o estado físico da mulher, a voz baixíssima, expressando sofrimento, o relato sobre a incapacidade de sair de casa em virtude do medo intenso, a alusão ao remédio e à necessidade de fazer “tratamento”, tudo isso faz com que o caso seja considerado grave e urgente pela defensora, a ponto de pedir a prisão preventiva do acusado. Mas ao mesmo tempo, os mesmos fatos suscitam questionamentos acerca da probabilidade e gravidade da acusação, pois são interpretados como evidências de que se trata de um “caso de problemas psiquiátricos” da vítima, que pode não ter, assim, condições de discernir uma perseguição fantasiosa de uma real. A mulher perde parcialmente a condição de pessoa capaz e crível. Seus accounts, ao mobilizarem a identidade de pessoa psiquicamente abalada, não são inteiramente eficientes, suscitam dúvidas. A classificação “caso de problemas psiquiátricos” e a alusão à “loucura” são constantemente mobilizadas pelas profissionais da defensoria para interpretar casos e mulheres. Parece haver um continuum classificatório que vai da incapacidade de

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discernimento (“loucura”) à condição momentânea de abalo emocional em virtude da “violência psicológica” praticada pelo acusado, sem prejuízo das faculdades mentais básicas. Nos casos em que identificam que é importante definir as condições psicológicas das mulheres, as defensoras pedem aos psicólogos da equipe técnica que façam a sua avaliação, para que possam, então, ter “certeza” de que há ou não problemas de ordem psíquica, que justifiquem ou não pedidos de medidas protetivas e, nesse caso, de prisão preventiva. Os relatórios técnicos gerados irão integrar o rol de justificativas da necessidade ou da não-necessidade dos procedimentos jurídicos. Os relatórios possuem valor de legitimação, pois são, afinal, produzidos por profissionais que detêm competência reconhecida para identificar como e em que grau os problemas de ordem psíquica intervêm nas narrativas dos envolvidos sobre o que aconteceu e influenciam a criminação dos fatos e a incriminação do apontado autor 32. É importante destacar, no entanto, que a equipe técnica não é acionada pela defensoria apenas em casos cujas vítimas são percebidas como portadoras de “indícios” de distúrbios psicológicos. Apenas quis mostrar como esses indícios são percebidos e que providências são tomadas então. De maneira geral, a defensoria encaminha mulheres à equipe técnica quando precisa de subsídios técnicos para decidir sobre a necessidade do pedido de medidas protetivas e outros procedimentos jurídicos. Voltando ao caso da mulher, as alusões à bina do celular e às mensagens de Orkut juntam-se aos outros fatos e eventos, na construção de um “documento” do crime e do descumprimento das medidas protetivas, para utilizar a expressão de Garfinkel (2006, Op. Cit.). Imprescindíveis para a defesa da vítima, os documentos do crime são “provas” e “indícios” que tornam a sua ocorrência verossímil, crível, transformando-o em fatos (Beato, Op.Cit.). São muitos os tipos de documentos do crime que vi na defensoria: emails, mensagens de celular, testemunhas, boletins médicos, os próprios relatórios psicológicos e sociais produzidos pela equipe técnica, tudo, enfim, que possa ser considerado uma “evidência válida” de que o acusado realmente cometeu o crime ou

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Este tipo de avaliação se aplica não apenas às mulheres, como também aos acusados. Em alguns casos _ como, por exemplo, o de um rapaz para o qual era preciso avaliar se suas atitudes violentas para com a mãe se deviam à incapacidade mental ou ao uso de drogas _ pode-se recorrer a psiquiatras de instituições de saúde.

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de que vem colocando em “risco” a vida ou a saúde da vítima. Isso revela como os procedimentos de defesa devem ser produzidos e justificados, mobilizando argumentos e evidências “adequados”, para que sejam considerados potencialmente aceitáveis pelo(a) juiz(a). O caso também nos diz um pouco sobre que tipo de eventos motivam as mulheres ou a defensora a solicitar as medidas protetivas de urgência e a reforçar a incriminação do réu: novas ameaças, descumprimento das medidas já concedidas, perseguições, acusações públicas por parte do réu. Em outros atendimentos que acompanhei, percebi que também motivam o recrudescimento da ação penal e da incriminação do acusado, eventos como agressões ou ameaças aos filhos, ao novo companheiro da vítima, descumprimento de acordos informais entre as partes, disputas por bens e filhos, entre outros. Atendimento 2

A estagiária Paula atende a uma senhora, de aproximadamente 70 anos. A mulher fez um relato longuíssimo, que não serei capaz de reproduzir inteiramente. Ela contou, impaciente, a história de seu marido, com quem é casada há 37 anos e de quem está separada de corpos há 21. Moram na mesma casa, têm filhas adultas e netos. Segundo ela, o homem “vive bêbado”, “rasgado”, “sujo”, “mija na sala”. Os netos menores de idade moram na casa e “vêem o avô nu”, pois ele não usa “sunga” e “se senta todo aberto no sofá”. Ele já “acabou com a raça das filhas”, agora faz o mesmo com os netos. Quando crianças, as filhas iam para as casas das amigas, mas não as convidavam para ir à sua própria casa. Diziam que “estava em obra”, tinham vergonha do pai. A senhora diz que o marido não tem emprego fixo, não contribui com as contas e que “agora” ela é a responsável pela casa. Hoje trabalha de doméstica, mas houve época em que ela não trabalhava e as coisas eram mais difíceis. Quando chega uma conta para pagar, ele lhe dá “dez reais”, dizendo com displicência: “toma aí, ó”. “Até nisso”, no vocabulário, “ele mudou”, diz a mulher. “Tinha horror à gíria”, mas agora “só fala desse jeito”. Tem um “bom currículo”, já trabalhou em várias empresas grandes, “será que não é capaz de fazer nada?”, reclama a mulher. Há vinte anos ela tenta tirar seu marido de casa, em vão. Já foi em “tudo quanto é lugar” e vai enumerando as instituições públicas criminais e civis por que já passou. Já

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foi a um lugar onde lhe disseram que suas filhas “precisavam de psicólogo” e ela as levou ao psicólogo. Já foi a um lugar onde lhe deram “cesta básica”, pois pensaram que ela “morava em comunidade”, mas “não é comunidade”: _ Já fiz de tudo nesses anos todos, eu tenho vinte pastas cheias de papéis e registros, eu tenho um papel azulzinho igualzinho a esse que você me deu, tudo bonitinho, mas ninguém tira ele da casa. _ Mas a Sra tem que entrar com processo de separação _ diz a estagiária Paula. _ Mas eu já tentei e já desisti. Não é a separação que resolve, é ele sair de lá. Eu já saí, já fui morar em Salvador, já voltei e ele continua lá. O que eu tenho que fazer? Tenho que sair, eu? Eu recebi uma proposta há um ano para ir para Joinville e não fui por causa do meu neto, que eu crio. Será que eu vou ter que sair e deixar ele lá? Eu to cansada já. Só sabe quem vive. A Sra não para de falar um minuto sequer. Aliás, ela fala comigo, olhando para mim, o que é muito constrangedor. Ela escolhe a mim para desabafar toda a sua “Via Crucis”, expressão empregada por ela. Continua a contar os feitos do marido e todos os caminhos que percorreu para tentar tirá-lo de casa, sem sucesso. Diz que ninguém agüenta mais o homem, que ele tem que sair. Paula diz que para conseguir uma medida protetiva de afastamento, é preciso fazer um R.O. na delegacia. A mulher pergunta à Paula: _ Mas com base em que? _ Isso que ele faz é “perturbação” _ identifica Paula. _ Ele me xinga. _ Então, xingar é crime de “injúria”. A Sra tem que fazer R.O. A mulher disse que já fez uma vez, “ou melhor”, que sua filha fez, porque o pai havia batido nela de cinto. Embora houvesse uma “cicatriz mínima” no braço, a filha “teve de ir ao IML fazer o exame”, o que fez a contragosto. Mas mais uma vez, ele não foi tirado de casa. A mulher parece não suportar mais recorrer a instituições públicas atendimento social/policial, que recomenda psicólogos às filhas, dão cesta básica, determinam a feitura de laudos, enchem-na de papéis, mas não resolvem o que ela aponta como a “única solução”: tirar o marido de casa. A mulher e a estagiária mencionam um inventário de um terreno que está em andamento, mas nada foi definido ainda. Paula diz que nada consta no sistema acerca de processos antigos e insiste que a mulher tem que fazer R.O. ou pedido de separação

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recentes. A mulher repete que já fez de tudo, continua contando suas angústias e, por fim, vai desanimando aos poucos, talvez percebendo que também a defensoria não vai resolver seu problema da forma que gostaria. Finalmente, diz que tem que ir embora, que ainda precisa ir à “OAB” e à “vara” resolver coisas. Agradece ironicamente ao atendimento, dizendo que “de qualquer forma, foi um prazer conhecer vocês” e sai, com recomendações de Paula para que pense “mais um pouco” e compareça ao Nudem para resolver as coisas.

Aqui, vemos um pedido de medidas protetivas negado pela defensoria. A estagiária explica que apenas um registro de ocorrência, isto é, a existência e denúncia de um crime, podem justificar o pedido. O desejo de “tirar o marido de casa” não é suficiente. As motivações da senhora são percebidas como inadequadas para justificar o procedimento: revelariam, não um crime ou a existência de risco à sua vida, mas as suas insatisfações com o rompimento de padrões esperados de papéis sociais masculinos. Ela reclama da atuação insatisfatória do companheiro como marido, pai, avô, provedor _ como “homem”, enfim _ o que, em sua visão, justifica que ele seja retirado de casa. Ela invoca ainda a sua passagem por diversas instituições públicas e o produto disso, “vinte pastas cheias de papéis e registros”, “tudo bonitinho”, como elementos que legitimariam a sua demanda. A estagiária aventa a possibilidade de conferir aos eventos relatados, através da produção de um R.O., o status de crimes de “perturbação” e “injúria”, mas percebe o problema mais propriamente como matéria de outro tipo de ação, fora da alçada criminal: “entrar com processo de separação”. Esses dois primeiros atendimentos mostram, por contraste, que o critério básico que define a necessidade ou plausibilidade do pedido de medidas protetivas é a existência de “risco” para a “vida” ou “saúde” da mulher e/ou filhos. Nas palavras da defensora Viviane, “tem que justificar o temor, não pode sair pedindo medida protetiva assim”. Esse critério, presente também em outros atendimentos que acompanhei na defensoria, integra as regras seguidas pelas profissionais da defensoria para a documentação de crimes, tomadas de decisão e justificação retrospectiva das decisões tomadas (Garfinkel, mimeo, Op. Cit.) O pedido de medidas protetivas é, assim, um procedimento que envolve a antecipação e avaliação de riscos e cenários possíveis. A concordância das defensoras em elaborar o pedido depende de evidências e indicadores que tornem o risco plausível,

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como ameaças “contundentes” do acusado e o prejuízo visível à “saúde” física e psíquica da mulher, e a elaboração escrita do pedido deve conter esses elementos de justificação para ser considerada “adequada”. A interação entre as profissionais da defensoria pública e as vítimas é, portanto, um momento decisivo para a concessão das medidas, pois é quando profissionais e mulheres negociam acerca da “necessidade” do pedido e definem que justificativas e estratégias serão mobilizadas. Mais do que isso, os pedidos de medidas protetivas e de prisão preventiva do acusado fazem parte de um conjunto de procedimentos através dos quais se define o que é passível de ser aceito como crime e o que não é. São, pois, aspectos da construção social do crime de “violência contra a mulher”. Descrevo agora alguns atendimentos na defensoria em que as vítimas manifestam a vontade de desistir do processo ou das medidas protetivas, para em seguida analisar como os significados do conflito e da ação penal são reavaliados pelas mulheres e como isso é negociado com as defensoras.

Atendimento 3

Entram na sala uma adolescente de 17 anos e sua mãe. A garota acusou o exnamorado de ameaça. A audiência será daqui a alguns instantes. A menina foi ouvida pela psicóloga da equipe técnica e relatou que não quer que o ex-namorado vá preso. A defensora é informada disso pela psicóloga e teme que a menina queira desistir do processo. Conversa agora com ela e adverte para que ela não o faça. Garante que o exnamorado “não vai ser preso” e que é “importante prosseguir com o caso” para que ele “não se sinta impune e não repita o que fez” com ela ou com outras pessoas. Diz que ele será beneficiado pelo acordo com o MP e explica em que consiste. E insiste mais uma vez: “quando a juíza te perguntar se você quer seguir, você diz que quer, ta?”. _ Eu não vou desistir não. Eu ainda gosto dele; só não quero que vá preso – diz a adolescente. A defensora pergunta à mãe se elas “estão bem”. A mãe diz que elas discordam na “maneira de ver” o problema: _ Ela pensa diferente _ diz a mãe. _ Eu quis ir até onde pude. Minha preocupação é a violência e quero que o caso prossiga.

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_ Sim, a Sra. está fazendo seu papel de mãe; se não fizesse nada, seria omissão _ concorda Dra Viviane. _ Sim, eu tenho que fazer isso. _ É normal que haja conflitos entre vocês; nessa idade a gente a acha que pode com o mundo. Tentem viver bem, respeitando uma à outra, mas os limites são estabelecidos pela mãe. _ Pois é _ emenda a mãe _ ela me disse que o namoro acabou, mas eu não sei...

Atendimento 4

Uma mulher é atendida pela estagiária Amanda. Não ouço nada, as duas falam baixo. Só sei do que se trata quando Amanda relata o caso à Dra Viviane: já houve a primeira audiência, na qual a mulher havia dito que queria continuar com o processo. Agora a mulher diz que quer desistir. Dra Viviane pergunta à mulher: _ Por que a Sra mudou de idéia? Não foi coagida? _ Não_ responde a mulher sem expressar muita convicção. _ Tem certeza? A mulher acena positivamente com a cabeça, mas é ainda mais reticente que antes. Dra Viviane então pede estagiária que a encaminhe para a equipe técnica, para ser ouvida. Pergunto à Dra Viviane porque ela ficou desconfiada. Ela responde que quando as mulheres querem desistir, em geral elas o manifestam “logo na primeira audiência”. Quem decide continuar com o processo, “normalmente vai até o fim”. Algum tempo depois entra a psicóloga Isolda, da equipe técnica, que acaba de ouvir a mulher. Vem dizer à Dra Viviane que achou que há algo “estranho”. Teve a “sensação de que a mulher não quer falar”, que há “algo por trás”, que a mulher não sabe o que fazer, mas que lhe disse, no entanto, que vai manter a ação. Dra Viviane concorda: _ Foi por isso que eu pedi para vocês ouvirem, eu também tive essa impressão. Para mim, Dra Viviane acrescenta, depois que a psicóloga sai: _ É preciso ter o ouvido bem afinado para perceber os detalhes. A mulher volta à defensoria e conversa de novo com a estagiária Amanda, que depois relata tudo à Dra Viviane. Pergunto o que ficou resolvido e ela me diz que a mulher resolveu não desistir e que vai conversar com a assistência social primeiro.

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Conta ainda que a família do acusado “está pressionando” para que ela retire a ação. Ao mesmo tempo, ela tem medo de retirar e o homem voltar a agredir. Dra Viviane explica que isso é comum: “os homens se resguardam enquanto dura o processo, mas depois voltam a agredir”.

Atendimento 5

A mulher processou seu ex-marido por ameaça e conseguiu uma medida protetiva de afastamento. Agora ela quer “retirar” a medida protetiva. Diz que eles não voltaram, mas “ele está quieto”. A principal justificativa que oferece para o cancelamento é a de que a filha deles vai se casar em breve. Eles terão de “ficar juntos no altar”, mas ele está proibido de se aproximar dela a menos de 200m. A mulher disse que a filha noiva conversou com ela, lamentou nunca poder estar com ambos os pais juntos, argumentou que eram “uma família” e pediu-lhe que retirasse o afastamento, considerando também que o pai está “calmo”. O próprio ex-marido veio conversar com a mulher e também pediu que retirasse. Dra Viviane pergunta se a mulher realmente quer fazer isso. Ela responde que sim, porque está “se sentindo muito segura” e garante à defensora que se “ele fizer de novo”, ela estará disposta a processá-lo novamente. Dra Viviane consente e pede que a mulher escreva uma declaração com os seus motivos, mas adverte: “Isso é muito comum. Primeiro eles ficam calmos, durante o processo. Depois fazem de novo”, diante do que, aconselha a mulher a retirar só as medidas protetivas, mantendo a ação penal, estratégia que é aceita pela vítima.

Atendimento 6

A estagiária Amanda atende uma mulher e relata à Dra Viviane que ela quer desistir das medidas protetivas. Dra Viviane passa a cuidar pessoalmente do caso, que já conhecia. A mulher tem dois filhos e foi agredida por seu marido, um policial. Ela agora quer suspender as protetivas, pois “ele melhorou” depois que ela ameaçou processá-lo outra vez, por ter batido demais no filho. Dra Viviane não está convencida de que esta seja uma boa justificativa para cancelar as medidas protetivas:

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_ Tem certeza? A mulher responde afirmativamente, diz que o marido “parou”. Dra Viviane argumenta que ele “pode fazer de novo”; a mulher insiste que “não está fazendo ultimamente”. Dra Viviane prossegue: _ A Sra tem problema de saúde, né? _ Não. _ A Sra não está fazendo tratamento psiquiátrico? _ Sim _ responde a mulher, constrangida, até que não consegue mais conter o choro. Tenta se controlar, respira fundo, recupera a fala. _ É muito difícil falar sobre isso. Eu consigo falar sobre qualquer coisa, mas não cutuca muito fundo nisso, que eu não gosto, não consigo. A mulher apresenta, então, outras justificativas para o cancelamento. Disse que está sendo atendida na assistência social, onde lhe estão tentando arrumar um emprego. Embora não tenham prometido, ela acha que está próxima de consegui-lo. Além disso, ela também vai tentar fazer um concurso para os Correios. _ Mas a Sra tem condições para estudar? _ Sim, sim, eu tenho segundo grau, tenho curso de recepção. _ Não, eu quero dizer: você tem condições psicológicas para estudar, se dedicar? _ É, não tenho muita, mas pode ser que eu consiga esse emprego lá na assistência social. Aí eu vou ter condições de sair e bancar a saída, sabe? Porque eu não quero sair e depois não conseguir sustentar isso e ter que voltar pra ele, dizendo: “é, perdi, voltei”. Lá na assistência social eles dizem pra mim “bota seu filho (mais velho) no Brizolão, em tempo integral, arruma alguém pra olhar o seu filho (mais novo) e vai trabalhar em qualquer coisa”. Mas aí eu vou querer conhecer essa pessoa que vai olhar o meu filho, saber se posso confiar. E também, o meu filho está acostumado a me ter em casa o dia todo cuidando dele e, de repente, eu não vou mais estar. Olha, é fácil dizer pra uma criança de comunidade estudar no Brizolão. Mas o meu filho faz capoeira, informática... _ e enumera várias atividades. _ O padrão de vida vai cair muito, eu não posso viver com 30% do salário do meu marido (pensão). Então, eu tenho que poder bancar a saída, arrumar um emprego, juntar com a pensão e viver com isso. _ Eu entendo. A Sra quer continuar com seu marido em nome do amor ao seu filho. Mas, com isso, você pode acabar prejudicando o seu filho; ele pode ter problemas psicológicos se continuar vivendo nessa situação. E o seu filho pode não compreender

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os seus motivos. Pode concluir, no futuro, que teria preferido ser pobre a viver em situação de violência. Olha, eu vou te contar um caso, que eu fiquei muito impressionada. A mãe apanhou por vinte anos do marido. Ela tinha dois filhos e fazia todas as vontades de um deles. Agora ela é vítima dos filhos. O filho agride ela! Ele não tem limite; acha que pode fazer com ela igualzinho ao que o pai fazia. Agora ela está pedindo medidas protetivas contra o filho! Eu fico até arrepiada! Ela queria, como você, manter o padrão de vida dos filhos... _ Eu sei, mas eu não to acomodada. Eu tenho que esperar esse emprego, para bancar a saída. (...) eu não posso contar com a minha família, eu tenho que sustentar a situação sozinha. E isso não se resolve rápido, demora um pouco. A mulher ainda acrescenta que, depois da agressão, passou um período longe de casa e que o seu filho não quis ficar com ela, quis voltar para casa. Dra Viviane diz que o filho “não pode decidir essa questão”. Pergunta sobre a saúde do filho, sobre seu desempenho escolar. A mulher diz que a psicóloga que atende o filho (talvez a psicóloga da escola) o avalia “bem”. “Só tem a enurese”, diz a mulher, rapidamente, acrescentando que ele vai bem na escola, tira notas excelentes, “média 9,3”. Eu ignorava o que era “enurese”, mas descubri mais tarde pela Dra Viviane que significa fazer xixi na cama de noite. A mulher reforça que a psicóloga avalia bem o filho e que esse diagnóstico não pode ser questionado: “se ela diz isso, não sou eu que vou dizer o contrário, né?”, diz a mulher. _ Tá bom. Mas você entendeu o que eu falei, né? Não demora muito não pra tomar essa decisão. Eu vou falar tudo isso pra juíza, mas ela pode entender que há maus tratos contra a criança e mandar a criança pro conselho tutelar. Pode ser que ela entenda isso. Eu vou explicar tudo pra ela. A mulher parece gelar quando aventa a possibilidade de ser afastada do filho. Parece procurar o que dizer para desfazer essa possibilidade terrível, esse caminho inesperado que se abriu no horizonte a partir de sua própria fala. Dra Viviane, talvez percebendo o impacto que causou, tenta minimizar o perigo: _ Mas ele não maltrata a criança sempre não, né? _ Não, eu nunca deixei ele maltratar _ balbucia a mulher, quase sem voz.

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_ Então ta bem, vamos ver. Mas pensa no que eu disse, não demora não, ta? _ Diz a Dra Viviane, que passa a redigir o pedido de revogação das medidas protetivas e pede para a mulher escrever uma declaração expondo os seus motivos 33. Mais tarde, a Dra Viviane me diz que entende a situação da mãe, que quer manter o padrão de vida para o filho, mas que isso “prejudica o menino”: “ele tem oito anos e está fazendo xixi na cama”. Pergunto o que o marido fez à mulher, que tinha mencionado um nariz quebrado. _ Ele arrebentou ela todinha! Nós conseguimos medida protetiva, prestação de alimentos, ela ficou um mês fora de casa e quis voltar. O filho de oito anos decidiu que não queria ficar com ela, que queria voltar. Uma criança de oito anos decidiu. Ela preferiu voltar. O padrão de vida sempre cai quando se separa. As mulheres não entendem isso. Esses quatro últimos atendimentos ilustram outros tipos de eventos privados que podem motivar a reavaliação da ação penal e das medidas protetivas, no sentido de atenuar ou anular a incriminação do réu: o acusado está “quieto”, “parou” de agredir; a família “pressiona” pela desistência; há o medo de que o acusado seja preso; há dúvidas e hesitações; há o medo de que a insistência na ação possa gerar novas agressões; ocorrem eventos, como o casamento de uma filha, que se sobrepõem aos conflitos, estimulam a restauração de laços familiares profundos e motivam o cancelamento das restrições legais; há custos de ordem econômica implicados na denúncia e que são sopesados pelas mulheres na definição de suas estratégias de ação 34.

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Dra Viviane explica ainda que, nos casos em que as mulheres querem desistir, o procedimento de escrever uma declaração é também uma forma de proteger às próprias defensoras. Ela relata que, às vezes, as mulheres “fazem as pazes” com os homens, “esquecem como foi difícil” e depois “voltam” à defensoria com problemas de novo. Conta que, uma vez, a outra defensora estava representando uma mulher na audiência, contando à juíza toda a história que a mulher lhe havia relatado e esta “negou tudo à juíza”, porque “já tinha feito as pazes com o homem”, e disse: “não sei de onde a defensora tirou isso!”. Por isso, Dra Viviane pede para que as mulheres assinem tudo o que dizem, e “todas as páginas”, não apenas a última. 34

Segundo a Dra Viviane, “também tem muito caso de dependência química de homens. Muitos filhos são viciados. Agridem as mães, elas denunciam e eles vão para a cadeia. Para uma mãe chegar nesse ponto... Depois elas pedem para eles saírem da cadeia e começa tudo de novo. Agora, então, com a onda do crack, tem muito.”

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Além disso, a intenção de desistência pode ser questionada pela defensora, em maior ou menor grau, dependendo do caso. Segundo me relatou a Dra Viviane, “quando as mulheres querem parar o processo, porque se transformou num incômodo ou por pressão do homem, elas inventam outra história”. A desistência é, portanto, uma ação disruptiva de expectativas sociais, um comportamento imprevisto. Um account torna-se, então, necessário e é sempre requisitado às mulheres pelas profissionais. E gerenciar accounts sempre implica, como fica claro nos atendimentos descritos e como afirmam Scott e Lyman (2008, Op. Cit.), a negociação de identidades, a assunção de um papel. As mulheres justificam suas decisões mobilizando, especialmente, seus papéis de “mães”. É para desempenharem adequadamente seu papel de mães que querem desistir, afirmam as vítimas. A identidade de mãe torna plausível que as mulheres modifiquem suas decisões em nome das necessidades dos filhos, para evitar que eles _ e não elas _ sofram as privações e rupturas que uma ação penal ou medida protetiva de afastamento podem acarretar. Em outros atendimentos que acompanhei, o papel de mãe é mobilizado, ao contrário, para justificar a “gravidade” da situação e reforçar acusação. Em uma ocasião, uma mulher foi à defensoria para saber o andamento de seu processo, em que acusava o irmão e o pai por lesão corporal. Eles haviam sido presos e agora estavam novamente em liberdade. Estava nervosa; temia novas agressões, o que justificou da seguinte forma: “o trauma que isso causou no meu filho foi o mais importante. Não é nem por mim, é pelo meu filho.” Seja para desistir ou para reforçar a incriminação do agressor, as mulheres avaliam que as justificativas mais eficientes e plausíveis são aquelas que se referem à integridade de seus filhos, com o que atrelam a sua identidade pessoal ao papel de mãe. Os accounts e as respectivas identidades mobilizadas podem ser, no entanto, contestados pela defensora, como mostra especialmente o último atendimento. Porém, é interessante notar que, nesse caso, a plausibilidade da identidade de mãe não foi contestada pela profissional, mas o seu conteúdo. A defensora aconselhou que a mulher mantivesse as medidas protetivas, utilizando como argumento também o seu desempenho como mãe, que deve, segundo a profissional, ser definido de outra maneira. Para a defensora, a mulher desempenharia melhor seu papel de mãe se privilegiasse, não o seu “padrão de vida” e o dos filhos, mas a retirada imediata das crianças do ambiente violento, evitando assim “problemas psicológicos” que possam, futuramente,

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transformar os filhos em homens violentos como o pai. Ela embasa sua argumentação no que considera serem indícios de que os filhos estão sendo “prejudicados” pela situação de violência e pelas escolhas da mãe: um filho que, aos “oito anos”, não se comporta como o esperado, pois ainda “faz xixi na cama” e tem autoridade para influenciar o rumo de decisões que não lhe cabem. Ou seja, a defensora submete a questionamentos valorativos os significados sociais que as mulheres atribuem ao papel de mãe e com os quais justificam sua desistência. O “amor aos filhos” permanece plausível como elemento que justifica a reavaliação dos conflitos e da ação penal pelas mulheres, mas os termos que o definem são objeto de questionamentos e disputas. O mesmo vale para o caso da filha adolescente, que tem dúvidas quanto ao encaminhamento do processo, e sua mãe. Ao insistir em manter a acusação e em reprovar o namoro, a mãe é apoiada pela defensora, que entende que ela “está fazendo o seu papel de mãe”, que é o de não “omissão”, o de evitar que a filha permita a impunidade do acusado, o que poderia abrir caminho para novos episódios de violência. Como nas audiências, os profissionais da defensoria também realizam uma mediação no sentido de definir claramente os papéis sociais de cada membro dentro da família (Debert, 2001, 2006, Ops. Cit.), especialmente os papéis das mulheres quanto aos filhos. No caso da mulher cuja filha vai se casar, também o papel de mãe foi mobilizado, ao lado da percepção de que o homem está “calmo” e da garantia de que novas agressões não serão toleradas. Os questionamentos da defensora, nesse caso, não foram tão contundentes: o account foi eficiente. Accounts eficientes são aqueles que mobilizam papéis e identidades considerados plausíveis e adequados à situação. O caso da mulher que diz que quer desistir, mas não expressa convicção (atendimento 4), é visto pela defensora como algo que merece averiguação pela psicóloga da equipe técnica. Nesse caso, a excepcionalidade é definida pelo fato de a mulher não ter dado account algum, o que foi interpretado pela defensora como indício de “coação”, motivo pelo qual a psicóloga foi acionada. Resumindo, a etnografia das práticas rotineiras da defensoria feminina do juizado explicita o processo de produção de estratégias de ação que moldam os significados da “violência contra a mulher” e são moldadas por eles. Evidencia também as práticas de accounts de mulheres e profissionais: métodos e procedimentos, técnicas de argumentação e escrita, mobilização e negociação de identidades e papéis sociais,

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por meio do que se espera conferir às tomadas de decisões plausibilidade suficiente para que sejam consideradas adequadamente justificadas. Corroborando os trabalhos etnometodológicos anteriormente citados, especialmente o de Garfinkel (mimeo, Op. Cit.), sobre processos de tomadas de decisão, os accounts produzidos na defensoria atuam como justificações competentes que conferem racionalidade a tomadas de decisão que carecem de linearidade, porque sujeitos às dinâmicas e ambiguidades da vida íntima e a questionamentos valorativos de mulheres e profissionais. Ou, como apontaram Enne et al (Op. Cit.): nem as vítimas nem os profissionais detêm o controle do curso da ação penal, mas participam todos de processos de negociação, cujos termos estão em aberto.

9. A equipe técnica: psicólogos e assistentes sociais e suas operações de atribuição de sentidos aos crimes

Nessa seção, é abordada a rotina de trabalho da equipe técnica do juizado, composta de psicólogos e assistentes sociais. São analisados os relatos desses profissionais e os atendimentos que dispensam a mulheres e homens implicados nas ações penais, com o objetivo de elaborar “estudos”, que servirão para informar os processos. A maneira pela qual os atendimentos são feitos, a interação entre profissional e clientela e, depois, os “relatórios sociais” e “psicológicos” que são gerados e enviados aos profissionais jurídicos, revelam um corpo de conhecimentos, compartilhado por todos os atores, sobre papéis de gênero, família, casamento, conflitos conjugais e familiares, crime. É com base nesses “conhecimentos de sentido comum”, para usar a expressão de Schütz (1979, Op. Cit.), que os fatos criminados são interpretados. Os atendimentos da equipe técnica são eventos em que profissionais e envolvidos disputam acerca de diferentes interpretações possíveis sobre “o que realmente aconteceu”. O grau de compatibilidade entre as versões dos envolvidos e a interpretação deles pelos profissionais é o elemento crítico que define o conteúdo dos relatórios e influencia diretamente no desfecho dos casos, isto é, na construção da verdade jurídica sobre quem fez o que a quem. O elemento crítico de compatibilidade é produzido antes, durante e depois do atendimento, quando os profissionais atribuem aos relatos dos

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envolvidos valores de tipicidade, comparação, probabilidade, causalidade, eficácia técnica e requisito moral, decidindo sobre a normalidade ou anormalidade do evento relatado (Garfinkel, 2006, Op. Cit.). O relatório apresenta o resultado dessa operação retrospectiva de atribuição de sentidos aos eventos publicizados, com base na qual os profissionais tomam suas decisões quanto ao caso. As decisões devem ser justificadas com base em regras racionais de procedimento para que sejam consideradas “empiricamente adequadas”. Assim, esta sessão busca compreender, no contexto dos atendimentos da equipe técnica, o que os relatos e accounts de homens e mulheres e as operações de interpretação e justificação por parte dos profissionais podem “revelar” sobre suas representações sociais da “violência contra a mulher”. Passo agora a descrever o funcionamento da equipe técnica. Composta por 16 profissionais, a equipe é acionada de três formas: 1) pela defensoria feminina, para avaliar desistências e informar sobre a necessidade de pedidos de medidas protetivas, prisões preventivas e outros procedimentos jurídicos. Como vimos, se o relato da mulher na defensoria denuncia perseguições e ameaças do acusado, que cerceiem da sua paz e liberdade e possam estar prejudicando sua saúde física (“taquicardia”, “pressão alta”, “gastrite”) e psicológica (“pânico”, “depressão”), então a defensora pode avaliar que há necessidade de pedir medidas protetivas ou mesmo a prisão preventiva do acusado, e aciona a equipe técnica. A defensoria também pode recorrer à equipe se a mulher quer desistir da ação, mas apresenta justificativas que suscitem questionamentos valorativos por parte da defensora. Em todos esses casos, a defensora pede a um profissional da equipe técnica _ há sempre dois de plantão para atender a essas “demandas” que surgem no decorrer do dia _ que faça uma “escuta” à mulher e, com base nisso, elabore uma avaliação sobre a sua “situação psicológica e social”, indicando se há “riscos” plausíveis à sua vida ou saúde, se identifica a necessidade de encaminhamento a serviços de atendimento psicológico e social, se recomenda que o juiz conceda as medidas protetivas e quais. O relatório técnico pode ficar pronto no mesmo dia ou depois, dependendo da gravidade do caso e da disponibilidade dos profissionais, que em geral, estão sempre muito

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atarefados com os atendimentos e a produção de vários relatórios

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. O documento é

anexado ao processo e enviado ao juiz. 2) a pedido do juiz e/ou Ministério Público, quando avaliam que há necessidade de “um estudo mais aprofundado do caso” para melhor julgar, decidir sobre o arquivamento do processo, a liberdade de réus presos, a necessidade de conceder ou suspender medidas protetivas ou prisões preventivas. O juiz e o MP podem solicitar estudos sociais e psicológicos por escrito, mas no juizado pesquisado é mais comum que isso seja feito verbalmente, ao fim das audiências preliminares. O profissional de plantão é chamado à sala de audiência e marca, na hora, um atendimento individual para uma das partes ou ambas, dependendo do que for solicitado. A data já é incluída no documento que registra a audiência. O atendimento também pode ser marcado pelos profissionais por telefone, a qualquer momento. O relatório resultante é anexado ao processo. O profissional da equipe pode ser requisitado a comparecer durante as audiências para dar o seu “parecer sobre a situação”, caso já tenha feito o estudo. Também se alguém “chora muito” numa audiência, o psicólogo ou assistente social é quase sempre chamado para “acalmar” a pessoa. 3) quando o réu é beneficiado pelo acordo de suspensão do processo, que determina que ele deve participar do “grupo de reflexão para homens agressores”. É marcada, então, uma “entrevista” entre o homem e os profissionais responsáveis pelos grupos. Na entrevista são operados critérios de classificação através dos quais o profissional decide, com base no relato do homem, de que tipo de grupo ele deverá participar (reflexivo ou informativo). Classifico os grupos de reflexão como uma atividade à parte na equipe técnica; por isso, serão analisados na próxima sessão. A Lei Maria da Penha prevê a existência de uma “equipe de atendimento multidisciplinar”, que deve “fornecer subsídios” aos operadores jurídicos e “desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas” (Brasil, 2006), mas não entra em maiores detalhes sobre em que consistem essas atividades. Os procedimentos acima descritos estão sendo desenvolvidos na prática cotidiana do juizado pesquisado. É um modus operandi, um padrão de atendimento 35

Em março de 2010, tive notícias de que a equipe técnica estava tão sobrecarregada de trabalho, que a juíza titular determinou que a defensoria feminina não poderia mais acioná-la rotineiramente. Só recorreria à equipe nos casos “realmente necessários”, e com a autorização da magistrada.

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moldado pela experiência local, de acordo com as necessidades que surgem na rotina do juizado. No primeiro e segundo casos, a expectativa que os profissionais jurídicos têm em relação à equipe técnica é a de que ela tem competência para, de alguma forma, “captar”, no relato de mulheres e homens, “o que de fato aconteceu” e “está acontecendo”, e definir quais as soluções adequadas. O relatório técnico dos psicólogos e assistentes sociais funciona como um parecer que qualifica, pela interpretação dos relatos das partes, o fato criminal, suas evidências, as particularidades do conflito, os riscos, os remédios. É um documento do qual se espera que ajude os profissionais jurídicos a tomar decisões com respeito à tipificação do caso e às medidas jurídicas cabíveis. No terceiro caso, a expectativa é a de que a equipe técnica tem competência para decidir quais as melhores soluções para que tipos de casos e que tipos de réus. Falaremos mais sobre isso posteriormente. No segundo caso, quando um “estudo mais aprofundado do caso” é encomendado à equipe técnica pelo juiz ou MP, é possível levantar algumas questões interessantes. Em que tipos de casos se avalia a necessidade do “estudo”? No juizado pesquisado, 5.030 processos já foram encaminhados à equipe técnica para estudo, entre junho de 2009 e o inicio de março de 2010. É uma quantidade considerável. Eu acompanhei onze atendimentos encomendados pelo juiz, MP e defensoria feminina. Essa amostra não me permite criar uma tipologia de “casos que merecem estudo”, que seja representativa de todos os casos. Contudo, a amostra e os relatos dos profissionais permitem fazer algumas inferências. Com base neles, é possível afirmar que muitos dos estudos encomendados se referem a casos considerados “estranhos”, como dizem os profissionais. Se não é possível fazer uma tipologia que abarque todos os casos que merecem estudo, talvez seja possível qualificar uma tipologia de “casos estranhos que merecem estudo”. Relato a seguir um exemplo inequívoco de “caso estranho”, para o qual foi encomendado o “estudo”.

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Estudo 1: Estupro

Prólogo

O estudo foi encomendado pela juíza. A avaliação do profissional encarregado, nesse caso uma psicóloga, a Dra Regina, inicia-se pela leitura do inquérito. O inquérito em questão, que eu tive a oportunidade ler, foi tipificado como “estupro”. Dra Regina me relata as suas primeiras impressões, geradas pela leitura do inquérito: _ A mulher acusa o marido de estupro; os filhos de 12 e 26 anos são testemunhas no processo; brigam e voltam repetidas vezes; o exame não acusou violência. A juíza achou estranho e pediu estudo. É complicado porque é um crime grave, de pena alta. No processo há outros dois registros de ameaça, de 2003: a história é antiga... Folheando o processo e referindo-se ao registro de ocorrência, diz: _ A história é estranha: um estupro em que o cara coloca camisinha? Quem faz isso? A mulher diz e depois desdiz, parece histeria mesmo. Ela diz que o filho de 12 anos foi testemunha. _ Testemunha como? Ele viu o estupro, ouviu gritos? _ eu pergunto. _ Ele estava trancado no quarto... _ responde a Dra Regina, parecendo duvidar de tudo. Outra psicóloga da equipe, Dra Luiza, chega nesse momento e Dra Regina lhe conta o que havia acabado de me dizer, reforçando o episódio da camisinha. _ Quem faz isso? (usar camisinha ao estuprar) _ pergunta Dra Regina à colega. _ Só o mais sádico do mundo, mas não deve ser o caso _ responde Dra Luiza. _ E como alguém é obrigada a receber sexo oral, a ser beijada na vagina? _ continua Dra Regina, referindo-se a mais esse evento relatado pela vítima no registro de ocorrência, ter recebido sexo oral. _ Pode acontecer sim, o homem obriga pela palavra, pela ameaça. _ diz Dra Luiza, usando como exemplo um caso sob os seus cuidados, em que a mulher “cede, não consegue”. _ Mas essa aqui é adulta, trabalha... _ discorda Dra Regina, sugerindo que não é passiva, que teria condições para não ceder ao “estupro”.

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_ Essa também _ Dra Luiza refere-se a mulher do seu caso. _ Tem um imóvel, mas ainda assim não consegue sair da situação de violência. Há quantos anos estão juntos? _ pergunta sobre o caso da Dra Regina. _ Há 22 anos juntos, há 3 separados. São migrantes da Paraíba. Há outros registros, já rolava pancada, a filha mais velha confirmou. A mulher diz e desdiz, parece um quadro de histeria... Dra Luiza precisa atender alguém e sai da sala. Dra Regina continua a falar comigo. _ Não digo que ela está mentindo, mas a movimentação é histérica, entende? Ela (a mulher) suaviza o discurso no final, vai suavizando. Só se ele tem muita influência sobre ela... _ contemporiza Dra Regina, fazendo uma concessão ao que Dra Luiza havia sugerido, isto é, pensando em hipóteses e cursos alternativos de ação. A camisinha e o sexo oral foram interpretados por Dra Regina, com base em seu conhecimento das cenas e acontecimentos próprios de casos típicos de estupro, como indícios de que o caso não se adequava à tipificação de estupro. Além disso, Dra Regina me disse que, como a mulher arrolava o filho do casal como testemunha do crime, ela iria ter que fazer a “escuta” do menino, coisa que não gosta de fazer. Explicou-me que é contra crianças serem arroladas como testemunhas, porque isso é uma “responsabilidade muito grande” e “confunde muito a cabeça” delas. Arrolar o filho no processo é interpretado pela psicóloga como conduta inadequada da mulher enquanto mãe. Embora o “mau desempenho” do papel de mãe não tenha relações diretas com a tipificação do caso em questão, é certamente um elemento que “conta contra” a mulher, pois classificar os indivíduos como “réus” ou “vítimas” significa, não apenas atribuir valores às suas ações estritamente relativas ao evento violento, mas também às motivações do evento, o que significa avaliar seus interesses e características pessoais expressos no desempenho de seus diversos papéis sociais. Depois de ler o inquérito, comentou comigo: “a juíza só me dá esses pepinos de presente”.

Munida dessa orientação inicial de que a tipificação de estupro era

improvável para o caso, a psicóloga foi atender o homem. A entrevista com a mulher estava marcada para o dia seguinte. Eu tive a oportunidade assistir a ambos os atendimentos. Descrevo-os agora.

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Atendimento do réu

Francisco apresentou-se na hora marcada à sala da equipe técnica. Era um homem franzino, sorridente, tímido, que vestia roupas simples e muito maiores que ele. Vamos eu, Francisco e Dra Regina à salinha de atendimento. Dra Regina explica ao homem que ele foi acusado de estupro pela Sra Sônia. Pergunta se ele “tem conhecimento disso”, se “está consciente do que isso significa”, ao que ele responde positivamente com a cabeça. Recapitula que o filho participa como testemunha e explica que ela é “contra isso”. Acha que é “complicado” o filho menor testemunhar no processo, pois ele “sabe que se disser uma coisa, pode prejudicar o pai, se disser outra, pode prejudicar a mãe”. Lamenta, no entanto, que ela tenha sido “incapaz de argumentar com a Juíza e com o MP contra isso (a escuta do menino), em favor de uma solução mais branda”. Explica que a juíza então decidiu que ela deveria fazer um “estudo sobre o caso” e que era isso o que estava sendo feito agora. Dra Regina pergunta se ele é porteiro. Ele responde que trabalha em lanchonete, fazendo sanduíches e sucos. _ E a Sra Sônia? _ É empregada doméstica. _ De onde vocês são? _ Eu sou do Ceará, ela da Paraíba. _ Por quanto tempo vocês ficaram casados? _ Mais de 26 anos, mas ela já me fez muita vergonha! _ Por quê? Como vocês se conheceram? Francisco conta que se conheceram em Copacabana. Na época, diz, “ela tinha vários namorados” e contava isso a ele, que decidiu “deixar pra lá”, pois era início de relacionamento, não tinham “nada sério” ainda. _ Mas o Sr sabia que ela tinha outros namorados, né? _ confirma Dra Regina. Sim, ele sabia. Conta que logo nesse início de relacionamento, ela lhe disse um dia que estava grávida dele. A patroa dela chamou-o para conversar e as duas o pressionaram para que ele pagasse um aborto. Francisco pagou, mas depois descobriu que a mulher tinha, na verdade, feito uma “cesariana” para tirar o feto. Concluiu, com a ajuda de uma amiga, que se foi necessária uma cesariana, era porque o feto estava grande demais para ser seu filho. Mas de novo, “deixou pra lá”.

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Em seguida foram morar juntos. Logo ela engravidou de novo, de uma menina, Aline, hoje com 26 anos. _ Essa filha é do Sr. mesmo? _ pergunta Dra Regina. _ Acho que sim, né... _ sorri_ Essa é sim, ela até parece comigo. O homem conta que às vezes a mulher chagava de manhã em casa. Ele lhe perguntava onde estava, ela dizia que estava com as amigas, eles discutiam e, por fim, ela admitia que estava com outro homem. Ele dizia a ela: “por que você faz isso?”. Então, a mulher saía de casa, levava consigo todos os seus pertences e ia morar em outro lugar. Contou que, nessas separações, ele “ia visitar a filha...”, que “gostava” da mulher... e acabavam voltando. Segundo ele, isso ocorreu umas 3 ou 4 vezes ao longo do casamento. Ressalva, entretanto, quando perguntado pela Dra Regina, que nunca bateu na mulher: _ Só xinguei, fiz ela chorar e chorei também. Ela queria que eu aplaudisse? Desse parabéns? _ justifica os xingamentos. Dra Regina consente com a cabeça. Numa dessas separações, a mulher “aparece grávida de novo”. Ela admite para Francisco que o filho não é dele. Nasce o menino, Lucas, e a mulher decide dá-lo a alguém. Francisco diz que “correu” à casa da mulher, que estava morando então no bairro XX, e não a deixou dar a criança: _ É irmão da minha filha, não pode dar _ justifica. E resolve “criar” o menino. Lucas, hoje com 12 anos, não sabe que não é filho dele. Francisco pede que tenhamos “cuidado”, que não contemos isso ao menino. Ele diz que adora o menino, cuida dele e tem a guarda legal da criança. Por alguns anos, enquanto os pais eram casados, o menino estudou em sistema de internato, só ia para casa nos fins de semana. Agora, estuda em horário parcial e mora com o pai. _ E a sua filha mais velha, Aline? Ele conta que a filha, aos 15 anos, “arrumou um namorado”. Francisco “não deixou”. Quando ela tinha 17, já era noite, Francisco “deu falta dela”. Perguntou à mulher e ela disse que a garota tinha ido morar com seu namorado, mas que ele não ficasse “preocupado”, pois era “um bom rapaz”. Ele aceitou. Recentemente, Aline, que tem um filho, se separou do marido, que a acusou de “trabalhar num bordel”. Inicialmente, Francisco não acreditou nisso e acolheu a filha em sua casa. Disse que a deixaria morar lá, com a condição de que apenas “o pai do seu

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filho” entrasse na casa. Ele não permitiria a entrada de “outros homens”. Aline morou com Francisco por um tempo, mas um dia disse a ele que “trabalhava numa boate”. Então ele “viu” que a acusação “era verdade”. Ele a mandou sair de sua casa e, desde então, pai e filha não têm mais contato. Francisco conta que depois que o seu segundo filho nasceu, ele e a mulher reataram. Ele construiu um “quartinho” em sua lage, para “guardar as coisas dela”. Disse que construiu esse quarto como uma “fachada” para os vizinhos, de quem tem “vergonha”. Não queria que soubessem que tinha voltado com a mulher, “depois de tudo”. O quarto daria a impressão de que moravam em casas separadas, mas na verdade, ela morava mesmo era no andar de baixo, com ele. Por fim, há uns 3 anos, brigaram de novo e se separaram. A mulher saiu de casa, levando “tudo”, inclusive lâmpadas e torneiras. Ela vive agora com outro homem: _ Ela me diz que ele é melhor do que eu. Segundo Francisco, não tiveram mais contato desde então. Dra Regina pergunta sobre o fato que originou o registro de ocorrência. Ele contou que a mulher foi à casa dele entregar um celular ao filho. Não é muito preciso quanto ao celular, acha que foi um celular. Anoiteceu e ele disse à mulher que dormisse ali, em sua casa: “dorme aqui, dorme aqui”, repetiu. _ Então, o Sr insistiu para que ela dormisse. _ afirma/pergunta Dra Regina. O homem não responde. Segue dizendo que ele dormiu com o filho na cama, como sempre fazem, e que a mulher dormiu no sofá. E, então, “ela inventou isso”: _ Como eu ia fazer isso na frente do meu filho? _ Se tivesse sido feito, ele veria? _ Sim _ e o homem explica que a casa tem um tal formato que seria impossível que, caso “isso” houvesse acontecido, o filho não visse. Nem ele nem Dra Regina mencionam a palavra estupro ou sexo. Dizem “isso”. _ Senti que foi assim “uma armação”. _ Por que motivo? _ Acho que é pelo barraco. Ela quer que eu venda e divida o dinheiro. Mas eu não vendo. É meu. E quando eu morrer, vai ser do meu filho. _ Ela acha que tem direitos à casa? _ É. _ O Sr não considera que ela tenha direitos?

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_ Não, porque ela saiu de lá porque quis. Levou as coisas. Eu fui buscar ela várias vezes. Ela saiu porque quis. _ Ela ajudou com dinheiro para comprar a casa? _ Não, porque o dinheiro dela... Ela é assim muito vaidosa, sabe? O dinheiro dela é mais pro cabelo, essas coisas _ diz Francisco, sorriso nos lábios. Ele conta ainda que a ex-mulher tem pouco contato com o filho. O garoto “sente falta dela, chora”. _ O Sr estudou, seu Francisco? _ Não. _ É analfabeto? _ Sou. Muito mal escrevo o nome, mas muito mal mesmo _ e ri. _ Tem interesse em estudar? _ Eu estava na escola quando ela fez isso. Aí parei. Não consigo assim... _ as mãos aproximam-se da cabeça, ele não acha a palavra. _ Não consegue ter concentração. _ ajuda Dra Regina. _ É. _ Deve ser difícil viver nesse mundo, que é todo escrito... Dra Regina aconselha enfaticamente que Francisco conte ao filho sobre a sua verdadeira paternidade: _ Ele tem o direito de saber e é melhor saber por você do que por outros. Ele vai se sentir traído se souber por outros. Francisco faz um gesto negativo com a cabeça, diz que tem “medo” de dizer ao filho que não é seu pai, tem medo da “reação” do garoto. Dra Regina insiste e ele diz que não está “preparado”. Sobre a mulher, Dra Regina pergunta: _ O Sr ainda ama ela? Como é isso?... _ Não. Não quero mal a ela, mas ela já me fez sofrer muito. Quero que ela viva em paz e me deixe em paz. Dra Regina passa aos dados sócio-econômicos (existe uma ficha que tem que ser preenchida): mora na favela tal, tem saneamento, tem carteira de trabalho assinada. Ele conta, então, que uma vez perdeu o emprego “por causa dela”. Na época o garoto morava com ela e ele deixou de pagar pensão, porque estava pagando um celular que havia comprado para ela. Disseram-lhe que seria preso se não pagasse a pensão. Ele

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pediu um “vale” ao patrão e pagou a pensão. Disse, de forma obscura, que o patrão “não gostou muito”, que “discutiram lá” e que foi mandado embora. Fez bicos por um tempo, mas agora voltou ao emprego. Dra Regina finaliza o atendimento. Explica que vai ouvir a mulher e o filho também.

Percepções e comentários da profissional sobre o atendimento

Assim que voltamos à sala da equipe técnica e que o homem vai embora, Dra Regina me lança um olhar arregalado, sorri, e diz: _ Dá pra acreditar que esse homem estuprou alguém, com violência? Não tenho a menor convicção de que isso ocorreu! _ Ele contraria todos os estereótipos de homem violento _ digo. _ Pois é! Ele é o corno manso! O próprio corno manso! Não demonstra raiva, agressividade, é passivo. A filha vai morar com o namorado, ele é o último a saber. Tudo aquilo que desafia a masculinidade, a traição, tudo o que os homens odeiam, ele aceita! Me diz que vai ouvir o filho também: _ Acho que (ouvir o garoto) não vai prejudicá-lo mais do que a situação já prejudica _ Dra Regina, mais uma vez, preocupa-se com as “conseqüências psicológicas” que os procedimentos institucionais podem acarretar para o menino. Comenta ainda que a situação é uma “bomba-relógio”, referindo-se ao fato de o menino não saber sobre sua verdadeira paternidade. _ Que motivos ela teria para inventar o estupro? _ pergunto. E Dra Regina confirma a sua hipótese da “histeria”, que agora lhe parece ainda mais plausível, depois do relato de Francisco. Toda a narrativa de Francisco é interpretada de modo a confirmar a orientação inicial de que não se trata de um estupro. A “passividade” de Francisco, a sua caracterização como o típico “corno manso”, o fato de ter se mostrado bom e afetuoso pai para o filho de outro homem, que aceitou como seu, contrastam com a postura de Sônia, as suas supostas traições, o seu alegado interesse econômico na casa e a sua falta de contato com o filho, que a caracterizam como tudo, menos como o estereótipo da mulher “passiva”, característica tipicamente associada às vítimas de estupro. Tudo isso é transformado em evidência de que “o que realmente aconteceu” não foi estupro, mas

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mais provavelmente uma falsa acusação amparada num “quadro de histeria” da mulher. Recorrer ao conceito psicanalítico de “histeria”, além de ser uma forma de questionar a alegação de estupro, é também uma maneira “adequada” de interpretar, justificar e validar a hipótese inicial, conferindo racionalidade e competência ao procedimento adotado pela profissional. No dia seguinte, enquanto aguardamos o atendimento da mulher, Dra Regina comenta comigo: _ Fiquei pensando muito nisso. É um relacionamento de mentiras! O filho, a filiação é uma mentira, tudo é mentira! _ Dra Regina ficou realmente sensibilizada com a história da paternidade. Parece-me que a psicóloga considera a questão da paternidade mais importante ou mais grave que o alegado estupro, já que ela avalia que este é improvável. Dra Isolda, outra psicóloga que se senta em frente à mesa da Dra Regina, fica curiosa ao ouvir o enfático comentário e pergunta “sobre o que é o caso”. Dra Regina explica: _ É um homem franzino, poderia ser um porteiro, sabe? Tolerou várias traições da mulher. Já começou pagando um aborto pra ela. Ela disse que estava grávida dele, mas ele soube que ela fez uma microcirurgia, uma microcesariana. Ele acha que ela o enganou já dessa vez. E repete a história sobre o filho que não é filho, a acusação de estupro... _ Não vi nada na fala dele que indique que ele tenha feito isso. A mulher disse que ele a trancou na casa, ameaçou de morte... _ diz Dra Regina, enfatizando um tom de “exagero” _ Não sei, parece que ele diz a verdade. _ Mas vai saber, né, Regina. Quem tem um trabalho como o nosso... ficar tentando saber a mentira e a verdade, não dá, né, ainda mais em uma conversa _ retruca a Dra Isolda. _ No relatório vocês têm espaço para dizer as suas impressões sobre verdade e mentira? _ pergunto às duas. _ Não é uma investigação _ responde Dra Regina. _ A gente faz um perfil. Os assistentes sociais fazem um perfil social e os psicólogos, um perfil psicológico... Perfil é uma palavra estranha, né. É um retrato, um 3 por 4 da situação psicológica naquele momento. Agora, tem coisas que são muito gritantes. Às vezes as falas são completamente opostas, às vezes se complementam, mostrando que a coisa foi

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construída pelos dois. As pessoas mentem muito pra Justiça, mas não podemos tomar essa postura de julgar se é verdade ou mentira, porque não dá. _ Não dá pra saber se estão mentindo, né. _ eu insisto _ Não _ responde Dra Regina. _ Se pro pessoal da investigação já é difícil, imagina pra nós. Nesse caso, eu to tentando encontrar alguma coisa na fala dele que encaixe com a dela, mas não to conseguindo. Ele sempre tolerou muito o sofrimento. A mulher disse no Registro de Ocorrência que ele a trancou, que puxou o cabelo... _ diz, exprimindo pouca convicção na versão da mulher. Nesse momento, entra uma mulher na sala procurando a Dra Regina, que lhe pergunta: _ A Sra é a Sônia? _ Sim. _ Já vou lhe atender. A mulher sai da sala. Dra Regina ironiza, rindo: _ Essa é a estuprada, a violentada! _ Era a acusadora do Sr Francisco. Dra Regina vai atendê-la e eu vou junto.

Atendimento da vítima

A caminho da sala de atendimento, Sônia comenta que a audiência deveria ter acontecido há alguns dias, mas foi cancelada. Dra Regina explica: _ Tem que passar por mim primeiro. A juíza não está entendendo algumas coisas... _ Ai, Senhor! _ Sônia suspira, impaciente. _ Uma coisa que deveria ser tão simples! _ A mulher parece não se conformar com ter que explicar a história mais uma vez, com o adiamento da audiência. _ Essa coisa simples dá de 8 a 15 anos de cadeia _ ironiza, também impaciente, a Dra Regina, aludindo à gravidade da acusação de estupro. _ É, mas quem procura, acha. A gente conversa, conversa, mas... _ rebate a mulher, sugerindo que o homem fez o que fez, é responsável pelo que fez e agora deve pagar por isso. _ As coisas não são tão simples, nada é simples. _ Dra Regina olha para mim, expressando impaciência com a mulher. Chegamos à salinha.

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_ Casada? _ pergunta Dra Regina. _ Estou com uma pessoa, há um ano e oito meses. Não posso ficar sozinha por causa do Sr Francisco. Ele acha que pode ficar indo na minha casa, mesmo eu não morando mais com ele. Sônia conta que ele a “ameaça” e a “xinga de prostituta, drogada”; fica acusando-a de “fumar maconha”. Ela preocupa-se com a possível repercussão disso no seu trabalho, um consultório médico onde faz faxina. Diz que o filho, Lucas, presenciou as brigas, que essa “não foi a primeira vez”, “foram várias”. “Não achava certo o filho ver”. Por isso, conversou com o conselho tutelar, que examinou o caso e conseguiu com que o menino fosse, aos quatro anos de idade, para o internato do CIEP, chamado de “Lar Social”: _ Ele ficou chateado, achando que eu era uma mãe ruim. Por isso, quando saiu do internato, quis ficar com o pai. _ Mesmo assim (tendo presenciado agressões) quis ficar com o pai? _ testa Dra Regina. _ O pai é liberal, deixa ele fazer tudo. Fica até tarde na rua. Conta que Francisco tem um “ciúme doentio”: _ Me xingava, principalmente quando não tinha relação sexual, porque achava que eu tinha feito com outro. Sempre brigamos muito. _ Como ele aceitou o Lucas? _ Isso aí eu fui inocente. Saí com alguém do trabalho, dançamos, transamos, engravidei. Ele (Francisco) descobriu onde eu morava, chutou a porta e teve relação comigo à força, como sempre. Sempre quando descobre onde eu to morando, quer me bater. Eu disse a ele: “eu to grávida, não é seu”. Eu não queria ter o filho. Ele disse: “eu fico com o menino e prometo que não brigo mais com você”. Ele queria reatar. Ele queria era ganhar tempo, porque eu tinha feito o 2º registro na delegacia. Tentei mais uma vez (reatar com Francisco). Por um tempo, ele não brigou, não xingou. Quando o meu filho nasceu, começou tudo de novo. Ele é calmo, mas quando fica nervoso, se transforma. Os vizinhos nunca desconfiaram. Ele é calado, não tem amigos. Sônia conta que “agüentou um tempo” na casa de Francisco, “por causa do filho” e porque seu “salário era pequeno”. Depois, saiu de casa, e Francisco ficou ainda pior. A última briga foi em 2003. Saiu de casa de novo. _ O Lucas ficou com o pai?

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_ Não, comigo. Só quando saiu do CIEP, ficou com o pai. O pai ficava dizendo a ele “sua mãe não gosta de você, por isso te colocou nesse colégio”. Lucas cresceu “sabendo” que eu não gostava dele. Isso não é verdade. Foi difícil deixar ele com o pai. _ A Sra tem contato com o Seu Francisco? _ Só falo com Francisco por conta do contato com meu filho. Ele sempre me seguia, ameaçava, dizia “vou te matar e quem estiver com você”. Em 2003, segundo Sônia, houve “várias audiências”: _ Ficou decidido que ele não pode me seguir, mesmo que continuássemos nos falando por causa do Lucas. Achei que ia melhorar... Dra Regina pede que ela conte sobre o “dia do fato”. Sônia conta que o filho estava doente e ligou para ela. Ela foi levar-lhe um remédio. Encontrou pai e filho na pracinha, próxima a casa deles. Foram caminhando os três até a casa. _ Eu queria ver meu filho em casa, com calma _ justifica o fato de ter entrado na casa de Francisco. Conta que desde a pracinha, Francisco lhe dizia: _ “Vamos conversar?” _ “Sobre o que?” _ respondeu Sônia. _ “Você já sabe, vamos ficar juntos, eu prometo que não faço mais, eu prometo que não vai acontecer nada com você”. _ “Não dá certo. Você sabe que você é ciumento. Eu to nova, vou arrumar alguém, você também devia arrumar alguém. Eu não quero conversar”. _ “Então pelo menos fica aqui, vamos transar”. _ “Mas eu não quero”. _ “Mas você sabe que eu quero”. _ “Eu sei que você ainda gosta de mim, mas eu não quero”. Sônia diz que esse diálogo se repetiu várias vezes nesse dia, frisando que sempre dizia à Francisco “eu não quero”. Conta que o homem, então, “começou a ficar nervoso”, de “olho vermelho”, começou a “espumar”. Dizia que ela só poderia sair quando transasse com ele. _ Já estava ficando irritante. _ diz Sônia à Dra Regina. Anoiteceu e Francisco ainda insistia: _ Eu chorava de raiva. De 4h às 7h nessa lenga-lenga.

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Nesse momento, eles estavam no quartinho da lage. Ela desceu para o andar de baixo, falou com o filho, que notou o choro e lhe disse: “mãe, ta tudo bem”. Sônia abriu o portão de saída e Francisco atrás dela, falando: “você não vai embora, só quando transar comigo”. _ Ele falava baixinho no meu ouvido, ninguém imagina que ele é assim. Segurou meu braço e disse “você vai quietinha, se fizer alguma coisa, eu te mato”. Foram andando até o ponto de ônibus e ele dizendo “se você quiser ver seus filhos de novo, com vida, vai transar comigo”. _ Ameaçou você e os filhos? _ perguntou Dra Regina. _ Não, só eu. Ele disse “se eu quisesse ver meus filhos, eu estando viva”... _ explica melhor _ Eu falei: “você quer ser preso?”. Ele respondeu: “mesmo que eu vá preso, eu vou sair um dia e vou matar você”. Ele disse que ia mandar os traficantes me matarem, mesmo que, pra isso, desse a casa como pagamento. Sônia disse que, ainda na casa de Francisco, ligou para a filha dizendo: “se me matarem, você já sabe que foi o seu pai”. A filha ligou para seu ex-marido, pedindo que ele conversasse com Francisco. _ O que você queria que a sua filha fizesse nesse momento? _ pergunta Dra Regina. _ Eu queria avisar que se acontecesse alguma coisa... porque ali (na favela), no caso, eles matam mesmo. Eu estava desde 3h da tarde ouvindo que ele ia me matar. _ Por que não ligou para a polícia? _ Não ia dar tempo. Se ele visse, ia ficar nervoso, ia quebrar tudo, quebrar o telefone. _ E os vizinhos não podiam ajudar? _ Ninguém desconfia, ninguém sabe. _ Mas você sim. Por que não gritou? _ Por que ele tava ali. _ Ele tem arma? _ Tem faca. _ Ele estava com a faca? _ Não. Ele disse que o traficante ia me matar. _ Ele tem contato com traficantes? _ Não, mas o irmão dele joga futebol com os traficantes. Não sei se a Sra entende, morei sempre em comunidade, eles matam mesmo.

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_ Não estou entendendo o que nele te inspira tanto medo. Afinal, foram 27 anos juntos... _ Eu ia para a escola, já cheguei roxa na escola, eu chorava, a professora conversava comigo, me indicou lugares para ir, comecei a acordar pra vida. Ele sempre me forçou a fazer sexo, xingava, batia. _ Sempre sexo forçado? _ Sim, sempre. Eu tinha que fazer menstruada, querendo ou não. Sempre apanhei para fazer. Ele fazia sozinho, era como se eu estivesse morta no canto. _ Dessa vez, como foi? Ele usou violência? _Dra Regina referia-se ao evento que foi objeto da denúncia. _ Sim. Eu nem coloquei nos autos, mas ele fez de novo depois. Porque ele sempre diz “vou te seguir até o inferno”. _ E pôs-se a relatar essa outra agressão, que não foi denunciada na delegacia. _ Ele apareceu no meu colégio, não sei como, porque eu não disse pra ninguém onde eu estudava. Ele disse “quero saber onde você mora”. Eu disse: “me esquece, você já está com o processo”. Disse isso com o coração na mão. E ele ali, do meu lado. Eu fingia que ele não tava ali. Ele pegou o mesmo ônibus que eu. Eu ia na delegacia de novo pra que? Pra me chamarem de idiota? Peguei outro ônibus pra ver se ele desistia de me seguir. Ele dizia: “eu quero saber onde você mora, eu quero fazer amor de novo, não quero só uma vez”. Sônia, portanto, não respondeu à pergunta sobre o evento denunciado. Ela está narrando agora outro fato, posterior ao que foi registrado. Ela conta que durante a perseguição, resolveu ir à casa da prima (lembro-me agora que Francisco havia mencionado essa prima em seu atendimento, dizendo “quando ela e essa prima dela se juntam...”). Ela foi à casa da prima e Francisco junto. Ela disse “vou dormir aqui”, e ele “você não vai”. A prima disse: “não quero escândalo aqui; o que posso fazer é ligar pra Aline (a filha mais velha de Sônia); ela vem e te leva em casa. Francisco disse: “ela não é mais minha filha se está te ajudando; são duas prostitutas, tal mãe, tal filha”. Sônia resolveu ir embora da casa da prima. _ Ir pra delegacia de novo? _ repete._ Ele me seguiu. Tudo de novo: “quero fazer amor, não adianta chamar vizinho, nem polícia”. Ele não tem medo da Justiça. Chegaram à casa de Sônia. Em seguida chega a filha, Aline. Francisco diz: “o que você está fazendo aqui? Você não é minha filha! Vai embora pra sua casa!”.

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_ E isso pra nossa filha! A 1h da manhã, ela foi pra casa dela. Ela estava gravando tudo com o celular, eu nem sabia. Eu falei pra ele “já que você ta aqui, então dorme”. O que eu ia fazer? Até falei com a juíza: “delegacia pra que? Não deu em nada!”. Ele rasgou minha roupa, introduziu o pênis, me chupou, me mordeu todinha, minha genitália ficou inchada, não consegui nem levantar. _ Você não foi na delegacia? _ Não pude nem levantar, estava toda inchada! _ Fez exame (de corpo delito)? _ Só da primeira vez. Na segunda vez, não fui, fiquei com vergonha. Por que não fizeram alguma coisa logo na primeira vez? _ A questão é que tem que provar. O seu relato de violência contrasta com o exame._ O exame de corpo de delito não acusava sinais de violência sexual. _ Eu também entendo assim, mas a Justiça não entende. _ É, mas tem que provar, senão, é a sua palavra contra a dele. Ontem eu ouvi ele. Ele contou uma versão parecida, mas ele nega a violência. A Sra conta uma história que tem toda cara de ser verdade, mas sem provas. _ Mas eu ia ter que fazer tudo de novo? _ Sônia não se conforma em repetir os procedimentos legais. _ É. A cada fato tem que fazer um registro novo. _ A Sra vê que eu não to mentindo... _ Eu não tenho motivos pra acreditar mais nele do que em você. _ Eu não quero que ele vá preso só pra eu bater no peito e dizer “ele foi preso”. Ele é pai dos meus filhos. Quero que ele se trate ou que seja impedido mesmo de chegar perto de mim. A Aline lembra dos xingamentos. Eu achava que ela não lembrava, mas ela lembra. Uma vez, quando ela tinha um ano, ele me deixou plantada na rua, sem dinheiro para ir embora, só porque eu dei bom dia a um homem conhecido. Uma vez ele colocou fogo ao lado do fogão. Ele quer sexo toda hora. Quando não tem, se transforma. _ Ele bebe? _ Lembro que Dra Regina fez a mesma pergunta a Francisco, que respondeu que não bebe nem fuma. _ Não bebe nem fuma. É viciado em sexo. Sônia diz que só vê o filho uma ou duas vezes por ano, “para não ter contato com Francisco”. E continua:

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_ Ele inventou que eu sou drogada. Quem vai querer me empregar se ouvir isso? Isso pode ter repercussão no consultório médico. Ele inventou isso no Conselho Tutelar. O Lucas acha que o pai é um santo e a mãe é uma cobra. Por isso é que ele ficou com o pai. E ainda tem o Almeida, né, coitado. Almeida é o marido atual de Sônia. Ele tem 60 anos. Sônia acha que quando ele morrer, Francisco vai voltar a procurá-la imediatamente. Conta que Almeida já conversou com Francisco, intimidou-o, disse “fica no seu canto”. Francisco, então, parou, pois, pois segundo Sônia, “entendeu a língua do Almeida”: “essa língua ele entende”, diz. “Mas e quando Almeida morrer?”, preocupa-se. Sônia acrescenta ainda que Francisco “acha tudo normal”, “sem problema” algum. _ O Lucas viu a agressão sexual? _ Não, ele estava na casa de baixo. Só viu eu chorando. Depois ele (Lucas) me disse: “meu pai falou aquilo de mentira, ele não tem coragem de te matar”. Não sei se foi o pai que mandou ele dizer isso. Repetiu que vê pouco o filho, que ele “vive solto”, de madrugada, na rua, na Lan House, perto da boca de fumo. _ Como ele está na escola? _ Eu não tenho acesso à escola dele. Estou proibida de ir à comunidade. Lucas é um estranho pra mim. Rezo a Deus pelo meu filho, pra ele não se meter com drogas. Quero colocar ele em algum projeto social... _ O que você gostaria que acontecesse com Francisco? Tem raiva dele? _ Acho que ele tem fazer tratamento psiquiátrico. Não tenho raiva. Eu também preciso de tratamento pra me acalmar, mas ele também. Uma vez encontrei com ele, fiquei com medo, comecei a tremer. _ Mas se ele quisesse te matar... ele já teve tempo pra isso. _ Mas não me matou porque eu fiz o que ele queria. Sônia conta que está terminado o ensino médio e que quer ser enfermeira. Dra Regina vai finalizando o atendimento: _ Eu vou ligar pros seus filhos. Não sou eu que vou julgar o caso. Sônia aproveita seus últimos momentos: _ Ele já puxou faca pro patrão, foi despedido por isso. Ele não tem vida social. Só pensa em sexo, trabalho, comer, dormir. Fica o dia inteiro vendo filme pornô. Ele

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precisa de tratamento. Não pode achar que pode fazer isso quando bem entender; precisa de tratamento. _ Acho que ele não vai fazer mais nada não. Ele já ta com um processo. _ Já é o terceiro, né. Agüentar tudo isso e não enlouquecer, só Deus. Acredito em Deus, Ele ta vendo tudo. E o atendimento acaba.

Percepções e comentários da profissional sobre o atendimento

Logo em seguida, Dra Regina comenta comigo: _ E agora? As duas histórias podem ser verdade. É muito complicado, há possibilidade de cometer injustiça, prender um inocente, deixar livres os culpados... _ Embora expresse dúvida, Dra Regina parece já ter se decidido: Francisco é provavelmente inocente da acusação de estupro; seria injusto prendê-lo.

***

As duas versões do fato apresentadas pelas partes são contrastantes e apresentam fatos pouco “claros”, perguntas sem respostas. Embora a psicóloga admita que “as duas histórias podem ser verdade”, ela parece acreditar que o curso mais provável de ação é o descrito por Francisco, tendo como base inicial de inferência as “evidências” do registro de ocorrência (ele usou camisinha, ela teve a vagina beijada), que não condizem com o curso típico de ação de um estupro “normal”, mas encaixam-se melhor na cena típica de sexo consentido. A partir desse padrão alternativo, sexo consentido, todo o relato de Francisco foi interpretado de forma a corroborar o padrão. Assim, Francisco é definido como “corno manso”, “inofensível”, “um porteiro”, enquanto a mulher como “dona de sua vida, não submissa, decidida”. Essa percepção revela que ambos fogem às expectativas de gênero tipicamente associadas aos papéis de agressor e vítima. Se tomado isoladamente, o relato da mulher constitui um curso de ação possível, mas, se inserido no contexto todo, aparece como improvável para a profissional. Os relatos de Sônia e Francisco foram interpretados dentro de um conjunto de proposições cujo sentido foi determinado anteriormente, através das evidências iniciais do inquérito. O relato da mulher é, assim,

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duplamente contextualizado, primeiro pelo Registro de Ocorrência, depois pelo relato de Francisco, definindo uma sequência interpretativa que se desenvolve ao longo do processo de tomada de decisão da psicóloga. Embora a profissional não defina o seu trabalho como uma “investigação” que vise descobrir o que é “verdade” e o que é “mentira”, os seus relatos e procedimentos para com o caso demonstram essa preocupação, têm uma estrutura narrativa, contam uma “estória” persuasiva, com personagens, testes de hipóteses e de cursos alternativos de ação. Inferir sobre a “verdade” e a “mentira” dos relatos de homens e mulheres é uma das operações que constituem o processo de tomada de decisão dos profissionais. “Verdade” e “mentira” emergem da atribuição daqueles valores de tipicidade, comparação, probabilidade, causalidade, eficácia técnica e requisito moral. Ao operar esses valores, o trabalho da equipe técnica constitui-se, pois, num “método de investigação social razoável” (Garfinkel, Ops. Cit.), um método próprio, através do qual os profissionais transformam aparências concretas (eventos, narrativas, papéis sociais) em fatos plenos de sentido, baseando-se nos conhecimentos típicos que possuem das estruturas sociais. Um pouco depois desse atendimento, comecei a me retirar do campo e me dedicar à escrita e análise. Passei a ir ao juizado apenas para o grupo de reflexão. Numa dessas vezes, depois de assistir a uma sessão do grupo, fui à sala da equipe técnica, para não perder o contato com os profissionais e com o seu trabalho. Perguntei à Dra Regina o que tinha sido do caso de Francisco e Sônia. Para minha surpresa, o relato da psicóloga revelou uma reviravolta na sua interpretação do caso: ela havia mudado completamente de opinião. Disse que ouviu mais uma vez Francisco e Sônia. Ouviu também a filha Aline e o filho Lucas. Como lamentei estar afastada da equipe técnica e não ter assistido a esses atendimentos! A psicóloga disse-me que o relato da filha “confirmava a história da mãe” sobre as agressões e perseguições de Francisco, presenciadas por ela durante toda a sua infância. O filho disse que “não viu nada”. Dra Regina, então, reavaliou que a versão de Sônia era “a mais próxima do que realmente deve ter acontecido”. A psicóloga disse que com a fala da filha, “ficou claro” para ela que Francisco tinha mesmo “essa coisa de perseguir Sônia”, que, por esse motivo, “cedia a Francisco”. Cedia para “se livrar da perseguição”, o que configuraria, nas palavras da psicóloga, uma “espécie de „estupro consentido‟, o que não deixa de ser uma agressão”. O relato da filha foi fundamental

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para a mudança nas avaliações da profissional. Dentro do conjunto dos relatos, o da filha parece ocupar um lugar que expressa, com propriedade, a memória da família. A filha adulta constitui-se como uma observadora privilegiada da vida e conflitos familiares. O depoimento da filha motivou novas interpretações, não apenas sobre o crime denunciado, como também acerca do papel de pai de Francisco. Agora, a psicóloga me diz: _ Ele praticamente roubou o filho da mãe, como uma forma de, aí é hipótese minha, como uma forma de controlá-la mesmo. A psicóloga relatou que a filha disse que Francisco “é um pai muito rígido com ela e muito mais liberal e próximo com o irmão caçula”. O papel de pai, tal como desempenhado por Francisco, é interpretado agora como evidência da perseguição e desejo de controle do acusado. Por tudo isso, Dra Regina “se convenceu” de que a história da mulher era mais verossímil, ainda que comporte “exageros”. Segundo a psicóloga, “sempre há exageros das duas partes: o homem exagera para menos e a mulher exagera para mais. Sempre há esse contraste”. Percebo que os “exageros” devem ser colocados entre parêntesis na interpretação dos profissionais. Há uma espécie de operação-limpeza, que exclui ou minimiza aquilo que é considerado acessório ou irrelevante _ exageros, ambigüidades e certas contradições _ de modo a conferir racionalidade e coerência à decisão dos profissionais e, principalmente, às suas justificativas da decisão. Tive acesso ao relatório confeccionado pela profissional. Extenso, com quatro páginas, não poderei reproduzi-lo aqui na íntegra. Em geral, os relatórios da equipe técnica se dividem em duas partes: uma descritiva, que normalmente ocupa a maior parte do documento e que consiste em um resumo dos relatos das partes ouvidas; e uma conclusiva, em que os profissionais apresentam suas percepções, diagnósticos e, se necessário, indicam encaminhamentos das partes a serviços sociais e de psicologia. Apresento aqui, editando apenas os nomes dos personagens, a parte conclusiva do relatório da psicóloga sobre o caso de Francisco e Sônia:

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“Estudo Psicológico” “Conclusão A escuta dos envolvidos mostrou uma família dilacerada e dividida em conseqüência da violência nas relações entre os genitores. Francisco e Sônia apresentaram versões diferenciadas do fato noticiado: ele negando as agressões à ex-companheira, posicionando-se como uma vítima, ao passo que Sônia reafirmou uma vitimização física, psicológica e sexual ao longo do tempo de uma união, sustentada, ao que parece, por apegos e carências emocionais e aspectos culturais de gênero. A fala de Sônia encontrou respaldo na narrativa de Aline sobre suas vivências infantis com os pais. Aline mostrou-se angustiada com a condição de testemunha e se sente oprimida, mas conforta-se por estar se posicionando “ao lado da verdade” (sic). Parece triste por causa da rejeição e da raiva que o pai passou a nutrir por ela. Francisco, embora não se responsabilize por nenhum comportamento violento, deixou transparecer que era muito apaixonado por Sônia e que sempre a aceitava depois das brigas, mesmo sentindo-se humilhado com a situação. Ainda hoje não conseguiu refazer sua vida afetiva – segundo disse, teve namoradas, mas nada “sério” (sic) – levando uma vida social entre a casa e o trabalho. Lucas pareceu contido emocionalmente e bastante identificado com o pai. Demonstrou não ter muita confiança no afeto da mãe. Parece que viveu o período da escola como um abandono e culpa Sônia por isso, mas não tem a mesma crítica com relação ao pai, que, afinal, também permitiu (ou se omitiu) que ele fosse matriculado como interno. Toda a situação parece trazer graves prejuízos para a saúde psicológica e o desenvolvimento do adolescente, que expressou o desejo de ver os pais acabarem com as “brigas” (sic) que o prejudicam. Sônia aparentou estar se reestruturando emocionalmente e parece possuir recursos internos para não ser mais envolvida em situações de violência. Mostrou-se angustiada com a demora na solução do processo e com o afastamento do filho, mas, quanto a Lucas, tem mantido uma postura de conformidade com a situação atual. Em sua entrevista manifestou-se desejosa de estreitar os laços afetivos com o filho e gostaria de ter garantido o direito de conviver com ele.”

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A conclusão da profissional expõe suas percepções e diagnósticos sobre o caso. “Perfis psicológicos”, para utilizar a expressão utilizada pela própria psicóloga, são traçados para todos os membros da família, pai, mãe, filho e filha. Os perfis são relacionais: se entrelaçam, se afetam mutuamente, para finalmente compor um quadro familiar que, através da narrativa da profissional, adquire coerência interna. Os perfis psicológicos são construídos também em correlação com o caráter violento atribuído ao relacionamento entre acusado e vítima, de forma que os perfis dão sentido e conferem plausibilidade à violência e vice-versa. Hipóteses são definidas: a relação entre Francisco e Sônia é interpretada, por meio de conceitos psicológicos e sociológicos, como uma relação “sustentada por apegos e carências emocionais e aspectos culturais de gênero”. Relações de causalidade são inferidas: tal relação é marcada pela violência, que gera prejuízos individuais a todos os membros e “dilacera” a coletividade família, dividindo-a em dois pólos afetivos opostos, pai-filho e mãe-filha. Com relação à probabilidade do evento violento, a balança pende para o pólo discursivo mãe-filha, embora a profissional não o afirme explicitamente. Elementos dos relatos das partes são, simultaneamente, costurados na construção dos perfis psicológicos e selecionados como evidências ou indícios que favorecem a versão da vítima. Assim, as versões de Francisco e Sônia são definidas como “diferenciadas”, mas logo em seguida, a psicóloga enfatiza que a narrativa da mulher “encontrou respaldo” no relato da filha “sobre suas vivências infantis”. A postura relatada da filha, que se mostra ao mesmo tempo “angustiada” com o papel de testemunha e segura “por estar se posicionando ao „lado da verdade‟”, é plausível enquanto comportamento típico de uma filha, que está consciente do peso de suas declarações em relação aos destinos de seus pais. Essa consciência inspira confiança em seu testemunho, que aparenta, assim, priorizar o equilíbrio da “verdade” à parcialidade emocional. Francisco, que “era muito apaixonado por Sônia”, “ainda não refez sua vida afetiva”; o filho Lucas, considerado especialmente prejudicado pela situação, imputa à mãe uma “culpa” que a psicóloga atribui a ambos os pais; Sônia se “reestrutura emocionalmente”; finalmente, assegura o seu amor pelo filho, com o que restaura sua adequação ao papel esperado de mãe _ todos esses são elementos que compõem os perfis psicológicos das partes e conferem plausibilidade à versão de Sônia. Os “perfis psicológicos” são as molduras narrativas que estruturam a atribuição de significados aos

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eventos violentos. Constituem as ferramentas, os conceitos, os fios condutores, os parâmetros de investigação, as lentes através das quais os psicólogos do juizado interpretam, amarram os fragmentos de realidade que lhe chegam e constroem um quadro coerente, adequado, razoável. Durante a pesquisa, tive a oportunidade assistir a diversos outros atendimentos, observar os profissionais interagindo entre si, discutindo sobre seu trabalho e trocando informações e impressões sobre os casos de que cuidavam. Entretanto, devo abrir mão de descrever esses momentos com o mesmo grau de detalhamento com que apresentei o caso de Sônia e Francisco. Passo a discutir alguns outros pontos que considero importantes para melhor caracterizar o trabalho da equipe técnica. O caso de Sônia e Francisco já permite vislumbrar uma questão que é constitutiva da rotina da equipe e dos dilemas com os quais os profissionais se defrontam. Em seu trabalho de interpretação das relações e conflitos em que estão imersos os atores, os profissionais são solicitados a colocar entre parênteses o seu estoque de conhecimento à mão sobre o mundo social. Como mostra Garfinkel para os jurados (mimeo, Op. Cit.), também os profissionais da equipe técnica (e do juizado em geral), são demandados a suspender seu ponto de vista “em favor de uma posição intercambiável com todas as demais posições encontradas na estrutura social como um todo” (Garfinkel, Op. Cit., p. 3-4). Mas, ao mesmo tempo, de acordo com as regras de tomada de decisões cotidianas, não é requerido do profissional “que, para o exercício adequado da dúvida, ele aja como se ele não soubesse nada (...), que não faça uso do Que Qualquer Membro Competente da Sociedade Sabe Qualquer Um Sabe” (idem, p.3). Assim, os profissionais se movimentam entre duas bases de decisão que se tensionam. Sem embargo, são capazes de fazê-lo de maneira competente, isto é, de adequar suas bases de decisão às circunstâncias que se lhes apresentam, de modo a tomar decisões e justificá-las como adequadas e corretas, sem duvidar de que podem esperar ter suporte social por aquilo que terão decidido (idem, p.8). Pois suas regras de decisão e justificação são compartilhadas com os outros profissionais e baseiam-se em conhecimentos típicos, de sentido comum. Entretanto, tal competência para decidir, que nasce precisamente da navegação fluente entre aquilo-que-ele-e-todo-mundo-sabe e as idiossincrasias daquilo-que-ooutro-sabe-e-vive, é um manancial de dilemas. Se, em sua competência, o profissional

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pode esperar ter suporte social para as suas decisões, isso não impede que viva dilemas éticos e pessoais quanto ao seu papel profissional e os possíveis significados de seu trabalho para a sua clientela. Vários profissionais da equipe técnica expressaram esses dilemas. E o fizeram mais do em qualquer outro setor do juizado, talvez porque a natureza do trabalho da equipe é de mediação intensa, de procurar ajustes e soluções para as relações sociais e para os indivíduos que não se limitam à fixação de uma pena ou à definição de procedimentos jurídicos objetivos, mas que investem em aconselhamentos, convencimento, disputas e resultam em interpretações que serão consideradas no desfecho final. Uma assistente social da equipe, Dra Alice, com quem tive longas e frutíferas conversas, relatou-me de maneira bastante clara os seus dilemas. Contou-me que antes de trabalhar no juizado, atuou na área da Infância e Juventude, especialmente nas atividades que envolvem adoção de crianças. Embora considere que essa área tenha “vários problemas”, como por exemplo, “preconceito de cor e exigências excessivas por parte dos candidatos à adoção”, Dra Alice avalia que atuar nesse campo é mais gratificante que no de violência contra a mulher, por que ali, no juizado, “demora a ver resultados”. Pergunto-lhe se essa percepção tem a ver com a demora das audiências e ela responde que não. Explica seus motivos, dando como exemplo um caso de que está cuidando há alguns meses e que já mencionei em outra seção. É o caso de uma senhora de 65 anos, que, segundo Dra Alice, tem muitas “ambivalências”. A profissional relata que essa senhora “sofre violência, mas não trabalha” e que “o problema dela é a dependência econômica”. Dra Alice conta que já fez “três estudos desse caso”, que a senhora tinha muitas dúvidas quanto ao que fazer e que “não tinha o apoio das filhas”, uma das quais sofre de “síndrome do pânico”. No dia anterior ao dia em que Dra Alice me relatava isso, a senhora havia dito que “ia se matar”. Dra Alice, então, lhe disse: “podemos resolver isso hoje, pedir medida protetiva, tirar ele de casa, pedir pensão provisória, mas a senhora precisa se decidir, pois nós não vamos acionar a juíza à toa”. A senhora, então, “topou”. Antes que a Dra Alice pudesse completar sua explanação sobre a relação entre esse caso e o fato de que não “vê resultados”, entram na sala outras duas profissionais da equipe, dizendo que a referida senhora havia telefonado mais cedo, “desesperada”, porque “o oficial de justiça estava tirando o marido dela de casa e ela não queria isso, e a filha estava tendo crise de pânico”. Dra Alice, então, me diz: “viu, é por isso que eu

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digo que aqui os resultados demoram. As mulheres têm dúvida. Isso faz parte do processo, do meu trabalho”. E, resignada, diz: “tenho que ajudar essas mulheres, preparar o ombro”. Dra Alice me explicou, então, que toda uma operação foi montada para que o homem saísse de casa. Ela havia conseguido, em articulação com os profissionais jurídicos, um acordo para que o processo fosse suspenso por dois meses. Enquanto isso, o marido iria morar na casa da filha e seria acompanhado pela profissional, “pois também é um idoso”. Na data marcada para a saída do marido, e que era precisamente o dia em que a profissional me relatava esse caso, ficou combinado que a senhora deveria sair de casa e ir para o juizado, para que “ela não estivesse lá quando o oficial de justiça chegasse”. Depois, um carro do juizado a levaria de volta para casa. Todos esses são procedimentos de exceção. Mas nada disso aconteceu. Um psicólogo da equipe, que estava na sala neste momento, relata a sua percepção do caso. Para ele, a senhora “está sem identidade: já não é mãe, pois os filhos já são adultos, e agora não será mais mulher, se o homem sair de casa”. E completa: “a Justiça a deixou sem identidade”, acrescentando que esta é só uma constatação e que não está necessariamente “discordando disso”. Dra Alice concorda com as observações do colega e diz que “isso é normal e que a equipe vai ajudar (a senhora) a superar isso”. Decide que vai encaminhar a mulher à defensoria: “agora é com a defensoria!”, diz. A psicóloga que atendeu ao telefonema da senhora mais cedo diz que já lhe havia recomendado então que fosse à defensoria. Dra Alice pergunta a si mesma, em voz alta: “será que eu ligo para a defensoria?”. O psicólogo que havia falado da questão da “identidade” aconselha: “deixa ela ligar, a gente não é babá”. Dra Alice concorda e decide não tomar nenhuma atitude naquele momento. “Não ver resultados” é uma percepção aparentemente comum nesse campo

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Decorre principalmente das discrepâncias entre as soluções que os profissionais sugerem _ com base em sua interpretação dos casos, em seus estoques de conhecimento, em seus pontos de vista _ e as respostas que a clientela mobiliza, e que se amparam

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Em uma pesquisa feita em uma DEAM (Moraes e Gomes, Op.Cit.), os policiais utilizaram a expressão “enxugar gelo” para definir essa percepção.

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sobre outras bases de decisão. Os profissionais, então, convivem diariamente com situações que os levam a se questionar sobre o valor de seu trabalho naquela instituição. Alguns deles, com o tempo, podem concluir que nada há de gratificante em trabalhar ali. Um dos profissionais, por exemplo, me disse que “não se sente realizado” e tampouco acredita que algum profissional possa verdadeiramente sentir-se realizado ali. Diz que seu trabalho o deixa absolutamente “exausto”. Para ilustrar a sensação, me relata que recentemente havia atendido a um homem que deu uma facada na esposa. O homem fez o seguinte comentário: “se eu tivesse matado ela, tudo bem, mas eu só dei uma facada”. O profissional, inconformado, me diz: “pelo amor de Deus, né! Um cara que não acha que dar facada é crime é dose!”. Ouvir esse tipo de comentário cotidianamente o deixa desanimado. Outros profissionais, entretanto, criam saídas pessoais. A própria Dra Alice, por exemplo. Apesar de afirmar “não ver resultados”, percebo que ela se sente desafiada pelo trabalho. Está sempre perguntando por bibliografia que possa ajudá-la a embasar suas opiniões profissionais. Pediu-me uma vez que lhe indicasse algum texto sobre “alcoolismo”, pois quer “desconstruir essa justificativa do álcool” para a violência. Também está sempre interessada em palestras e busca um curso de extensão na área de “direitos humanos” ou “sociologia do direito”. Reflete sobre as diferentes técnicas de mediação de conflito (a “arbitragem”, a “conciliação” e a “mediação”) e sobre a “polêmica” que causariam junto às “feministas”, caso fossem aplicadas à “violência doméstica”. Lida, enfim, com o seu trabalho, como fonte contínua de reflexão e de construção de conhecimento. Dra Alice fez uma observação interessante sobre a natureza de seu trabalho. Por um lado, diz, é um “trabalho alienado”, pois “não se vê resultados”, “não se acompanha os casos”. Por outro lado, é um “trabalho criativo”, pois “o relatório não é só para ajudar a juíza”, mas uma atividade em que ela, Dra Alice, “pensa sobre o caso, faz uma interpretação”; uma atividade que, portanto, não a caracteriza como “uma escrivã”, que somente “repete o que a pessoa diz”. Observa, entretanto, que “muitos profissionais não se reconhecem” como realizadores de “trabalho criativo”; são “profissionais de fôrma”. Compensar o “trabalho alienado” com o “trabalho criativo”, intelectual, é a maneira pela qual a profissional busca lidar com os dilemas colocados pela clientela. De maneira geral, os relatos de vários profissionais da equipe técnica revelam que o fato de estarem alocados em uma instituição da Justiça é por eles percebido como

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algo que problematiza seu trabalho, na medida em que lhe impõe restrições e modificações. Como disse uma psicóloga, Dra Isolda, “Os juízes querem que a gente diga quem está com a verdade, mas a equipe técnica não busca a verdade. Aqui é um lugar de escuta. As pessoas me dizem: “é a primeira vez que estou sendo ouvido”. Eles já vêm marcados como vítima e autor, mas a gente não pode trabalhar com esses lugares. A minha linha particular de trabalho é que a mulher deve ser responsabilizada, para sacudi-la um pouco desse lugar de vítima. Ela não deve ser vista como pobre coitada. Isso não é culpabilizar, é responsabilizar. Há mulheres, relação após relação, apanhando. Eu acho que devo perguntar a ela: como isso aconteceu? Como a vida tomou esse rumo e não outro? Mesmo os homens, é um trabalho interno pessoal de tentar desvincular o homem do lugar de autor, agressor. Não nos interessa a verdade ou a mentira. Não podemos trabalhar com categoria nenhuma.”

Dra Regina, também psicóloga, ouviu esse relato e deu sua opinião: “Eu acho que a questão da verdade está presente sim, a gente faz um julgamento, mas esse não é o foco, não é o que vai pro papel. (Ser psicólogo no juizado) é diferente de ser psicólogo na área da Saúde, buscando uma cura, ou na escola: aqui não é cura, não é terapia, acho que inventamos um jeito novo. Às vezes, nem as categorias da Psicologia se aplicam”.

As tensões com o mundo jurídico também podem ser ilustradas pela percepção dos profissionais da equipe técnica sobre o papel dos laudos técnicos de exame de corpo de delito. Os laudos do IML, aos quais os profissionais jurídicos atribuem valor de legitimidade na construção da verdade jurídica, têm valor sempre relativo para os psicólogos e assistentes sociais. Seu caráter “científico” não forja necessariamente um consenso entre os profissionais jurídicos e os da equipe técnica sobre a existência material do crime. Dependendo da interpretação que os profissionais fazem do caso, o laudo ganha ou perde valor de verdade. Os psicólogos e assistentes sociais consideram os laudos como evidência inequívoca, quando concordam com a tipificação do fato (ou com sua improbabilidade) que os laudos corroboram. Outras vezes, consideram os laudos técnicos “insuficientes”,

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caso não confirmem evidência do crime que os profissionais acreditam ter ocorrido. Por exemplo, houve um caso de abuso sexual de crianças (que, para minha surpresa, também chegam ao juizado), cujo laudo deu “negativo” para marcas de violência. A psicóloga que ouviu o acusado, Dra Regina, acredita que o crime ocorreu e disse que “os abusadores de crianças são profissionais em não deixar marcas”; cometem o “crime perfeito, sem provas”. Além disso, explica, “a Justiça quer provas, provas, provas”, mas a violência deixa marcas “invisíveis”, “psicológicas”, que são “desconsideradas pela Justiça” e que não podem ser explicitadas nos laudos, mas apenas pelo “olhar” experiente do psicólogo. Assim, essas marcas invisíveis são consideradas pelos profissionais da equipe como evidências válidas de um crime, mas aos “olhos da lei” carecem de objetividade e racionalidade e podem ser subestimados ou negados. Diante de todos esses relatos, pode-se afirmar que as atividades jurídicas e penais do juizado pautam-se por regras de interpretação e decisão que nem sempre são compatíveis com as regras que orientam as atividades de diagnóstico, mediação e solução realizadas por psicólogos e assistentes sociais. A verdade jurídica, perseguida pelos operadores do direito, e para cuja construção os psicólogos e assistentes sociais são solicitados a colaborar, é avaliada por esses profissionais como algo que lhes é, em alguma medida, estranho. As categorias de “vítima” e “réu”, que estruturam a construção da verdade jurídica, são quase sempre definidas pelos profissionais da equipe técnica como inadequadas ao seu tipo de trabalho. Ao mesmo tempo, das tensões entre o arcabouço de conhecimentos e práticas da psicologia/assistência social, do direito e dos envolvidos, nasce uma nova expertise, um “jeito novo” de fazer psicologia e serviço social, adaptado às experiências cotidianas do juizado. Finalmente, assim como nos outros setores do juizado, também está presente no trabalho da equipe técnica uma dimensão de práticas de reajuste ou controle dos papéis sociais de homens e mulheres. Os atendimentos são espaços em que os profissionais identificam quebras de expectativas e insuficiências psicológicas e sociais por parte dos envolvidos. Diante disso, reconhecem como parte do seu trabalho fornecer informações, fazer questionamentos e provocações aos indivíduos, esperando que isso possa ajudá-los a restabelecer o equilíbrio perdido. Mais uma vez, são disputas acerca de papéis sociais que estão em jogo. A noção de “responsabilização”, citada pela Dra Isolda na transcrição acima _ e muito utilizada também, como veremos, pelos profissionais que coordenam o grupo de

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reflexão para homens _ é uma das maneiras pelas quais essas disputas se concretizam. Para ilustrar essa noção de “responsabilização”, cito sucintamente um atendimento que a Dra Isolda fez a uma mulher, a pedido da defensoria feminina, que justificou de ser um caso “muito grave”, que exigia medidas protetivas de urgência. Segundo a defensora, o companheiro da mulher, separado dela há pouco tempo, vinha lhe mandando “vísceras de cachorro e fígado de boi”, como forma de “ameaça”. O caso “tinha até saído no jornal”. Dra Isolda ouve a mulher e eu acompanho o atendimento. A mulher conta, pontuada pelas perguntas da psicóloga, que o homem é agressivo, muito ciumento, toma remédios, já foi internado no “hospital de maluco” Pedro II; que ele já a agrediu várias vezes, mas ela sempre retomava a relação por que “gostava dele”; que ele já foi preso e que ela o ajudou a sair da prisão por “pena”. Depois de contar tudo isso e de detalhar as ameaças com animais mortos, segue-se esse diálogo: _ Mesmo assim, nada disso fez você dizer “não quero”. _ diz a Dra Isolda. _ Mesmo assim. Eu caí na conversa. Ele diz que me ama. Ele pede: “me ama?” _ É por amor? _ É. _ Por amor pode tudo, Ana? _ pergunta a psicóloga. _ Não... _ responde, envergonhada, a mulher. _ Eu ajudei ele a sair logo da cadeia. Eu me arrependia quando a gente brigava. _ Ele não tem limite, Ana. Você precisa ouvir isso que você me diz. É muito grave. _ É, eu sei. A gente fica insistindo... Ele cortou a luz da minha casa hoje de manhã. _ Você não tem medo de ir para casa? _ Tenho. _ Existe a possibilidade de abrigamento. Você iria? _ Não precisa, eu vou pra casa da minha mãe, as crianças estão com ela. _ Não fica sozinha em casa, viu? A casa está escura... Você foi no CIAM (Centro Integrado de Atendimento à Mulher, que oferece apoio psicológico)? _ Fui. Hoje eu fui na DEAM, que me mandou pro CIAM, que me mandou pro NUDEM (Núcleo de Defesa da Mulher, a que pertence a defensoria feminina do juizado), que me mandou pra cá. _ Vai no CIAM, entender por que não consegue sair dessa relação, por que é tão difícil, se em nome do amor vale tudo.

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Quando acabou o atendimento, Dra Isolda comentou comigo que “as mulheres não percebem os sinais de que estão correndo risco” e que, diante da gravidade do caso, tinha achado essa mulher “muito tranquila, muito desafetada”: “só quando eu falei que ela estava em risco, é que ela disse que ia pra casa da mãe”, diz. Em seu “relatório psicológico”, enviado à juíza, a profissional relata essa impressão de desafetamento da mulher e avalia, ainda, que “trata-se de um relacionamento marcado pelo ciclo de uma violência perversa, onde este se desenvolve através de etapas e de maneira repetitiva: a fase do tensionamento das agressões e a fase das desculpas”. Finalmente, aconselha que “seja deferida medida protetiva em favor da vítima, já que parece tratar-se de gravíssima situação de violência conjugal, inclusive com claro risco de vida para a mesma.” Dizer às mulheres que elas precisam sair da relação e do ciclo de violência, que não “vale tudo em nome do amor”, que existe subestimação de riscos _ isto é o que a profissional quer dizer com “responsabilizar” _ ou, como em outros atendimentos que presenciei, que elas devem prezar pela integridade dos filhos, que os homens devem controlar a agressividade, deixar a bebida, são práticas sempre presentes no trabalho dos profissionais. Negociam-se pontos de vistas, interpretações do conflito, significados das relações. Nesse sentido, as atividades da equipe técnica constituem-se como espaços privilegiados de fala dentro da Justiça, que abrem aos envolvidos a possibilidade de exercitar a elaboração subjetiva dos conflitos. Esta pode ser uma inovação na Justiça Brasileira, que não é, tradicionalmente, um lugar de fala. As audiências no juizado permanecem seguindo o script formal do Judiciário, privilegiando a celeridade em detrimento da oralidade. Mas o espaço de fala, diálogo e elaboração _ de construção de uma “ética discursiva” (Amorim et al, Op. Cit.) _ pode estar sendo franqueado na Justiça via os atendimentos psicológicos e sociais da equipe técnica. Através do relatório produzido por esses profissionais, os conteúdos interpretados da fala chegam ao conhecimento do juiz e Ministério Público. Ainda que por escrito e indiretamente, abre-se um novo canal de comunicação entre a Justiça e os cidadãos, que tem os psicólogos e assistentes sociais como intermediários. Assim, se um juiz leva em consideração as percepções desses profissionais acerca do conflito a ser julgado, isso pode ser interpretado, talvez, como uma forma de compartilhar a construção da verdade jurídica, que se torna, por isso mesmo, uma atividade mais

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complexa, na medida em que deve levar em conta diferentes, e por vezes conflitantes bases de inferência e interpretação. Ao mesmo tempo, é também uma forma de corroborar a definição dos crimes de violência contra a mulher como uma espécie particular de crime que necessita menos de respostas penais e mais de respostas assistenciais e psicológicas, através das quais as relações no interior da família podem ser reajustadas e controladas.

10. O grupo de reflexão para homens agressores: a elaboração do conflito pelo diálogo, “vitimização”, “responsabilização”

Nesta seção, busca-se qualificar o funcionamento dos “grupos de reflexão para homens agressores”, atividade desenvolvida por um grupo de profissionais da equipe técnica. Entre a criação do juizado, em junho de 2007, e fevereiro de 2010, foram realizados 33 grupos de reflexão, dos quais participaram 453 homens. Eu tive a oportunidade de acompanhar um desses grupos, do início ao fim. Como dito anteriormente, a participação dos homens no grupo de reflexão é parte do acordo de suspensão do processo. Eles precisam participar do grupo como condição para serem isentos do processo penal e terem a ficha de antecedentes criminais limpa. A organização e desenvolvimento dos grupos ficam a cargo de seis profissionais da equipe técnica, psicólogos e assistentes sociais, que constituem um subsetor dentro da equipe. Ordinariamente, eles não realizam aqueles tipos de atendimento descritos na seção anterior, com a finalidade de informar os processos com “estudos”; cuidam apenas dos assuntos referentes aos grupos e aos homens. Quando fica decidido na audiência que o homem será beneficiado pelo acordo de suspensão, uma “entrevista” é marcada entre ele e um dos profissionais responsáveis pelos grupos. A entrevista é necessária, porque são muitos os homens que são designados a participar do grupo e não há condições de atender a todos, pois há poucos profissionais e é uma atividade que demanda muito tempo, quatro meses. Há sempre muitos homens na fila de espera por uma vaga nos grupos. A estratégia adotada pela equipe foi oferecer aos homens uma atividade alternativa, chamada “grupo informativo”, que consiste em um único encontro com os profissionais. A entrevista é

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realizada, portanto, para selecionar, de acordo com critérios definidos pelos profissionais, com base em seu estoque de conhecimento comum, os homens que “precisam” ir para o “grupo de reflexão” (os “complicados”, como classificam os profissionais) e os que “podem” ir apenas ao “grupo informativo” de sessão única (os “tranquilinhos”). O grupo de reflexão é composto de oito sessões, no formato de dinâmicas de grupo, diálogos e debates, com duas horas de duração cada, a cada quinze dias, num total de quatro meses. Cada grupo comporta entre 10 e 15 homens. O grupo informativo reúne a mesma quantidade média de homens em uma sessão única de duas horas e tem, em geral, o formato de “palestra”. Melhor dizendo, no grupo informativo, os homens também têm a oportunidade de falar, e isso é desejável pelos profissionais, mas o tempo é curto para que todos possam falar e deve ser usado também para discutir alguns assuntos propostos pelos profissionais. Com o objetivo de ilustrar o funcionamento dos grupos, descrevo a seguir uma entrevista de avaliação, e, depois, tento condensar os principais aspectos do grupo reflexivo acompanhado.

Entrevista

Na hora marcada, Dra Mônica, assistente social, recebe Ricardo para a entrevista, diante da qual será avaliado se ele deve participar do grupo de reflexão ou do grupo informativo. Ricardo veste terno e gravata. É advogado, tem 47 anos e está divorciado da excompanheira, Claudia, que o acusou de ameaça e com quem tem dois filhos. Depois de fornecer seus dados de identificação, Ricardo pergunta: _ Eu vou poder falar? _ Claro. Pra mim não importa o processo, o que é verdade ou não. Eu quero ouvir o que você tem a me dizer. _ diz a Dra Mônica. _ Esse episódio está superado. A gente tem mais três ações na Justiça. Eu to com uma ação de alimentos, pra ela participar nas despesas de acordo com o que ela ganha. A gente se fala normalmente. Eu tenho cinco filhos, dois deles com a Claudia. Quero botar uma pedra no passado, porque as crianças sofrem.

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Dra Mônica pergunta como ele e Claudia se conheceram. Ricardo conta que quando conheceu Claudia, “ela era muito carente” e foi logo morar com ele. Cinco meses depois, ela engravidou: _ Eu tinha 35 anos, estava maduro, achei que ia dar certo. Mas a Claudia, descobri que a mãe dela era alcoólatra e sumiu por dez anos. O pai dela sempre foi ausente. Por isso, ela era desequilibrada, carente. Ela tem uma imagem negativa do homem, porque não tem referência de homem. To falando isso porque eu faço análise e minha mãe é psicóloga. _ Então você já pensou muitas vezes sobre isso... _ Muito. Pra entender o por que. Ricardo conta que “se dedicou muito ao casamento”. Apoiou que Claudia retomasse a faculdade de educação física e quando ela quis montar um restaurante, ele “bancou o restaurante”, mas ela “estava sempre devendo”. Apesar de seu apoio, durante o casamento, Claudia “sempre reclamava”, “nunca era suficiente”. _ Isso cansa, depois de onze anos _ diz. _ Havia discussões, brigas? _ pergunta Dra Mônica. _ Não. Houve mais um afastamento. Ricardo conta que uma vez chegaram a se separar e depois reataram, o que “foi um erro”, pois “ela tem essa coisa de violência”, já que “sofreu muita violência”. Claudia não falava com a filha de Ricardo, fruto de seu primeiro casamento, e, um dia, “chegou a avançar para bater” na jovem. Isso foi “a gota d‟água” para Ricardo, que se separou definitivamente de Claudia. Saiu de casa e, ainda assim, “continuou a ajudar no sustento”, “pagando o condomínio e ajudando nas despesas”. Além disso, mandou avaliar o terreno que tinham, para que se fizesse a divisão. _ Fui muito correto com ela. Mas Claudia “logo arrumou um namorado” e o levou para o apartamento onde morou com Ricardo. _ Eu não gostei de ela levar o cara pra minha casa. Ele era estagiário na academia onde eu malhava. Isso é um constrangimento. Alguém me falou na academia: “ele tá pegando” (Claudia). Isso Machuca. Foram 11 anos, a gente ainda tava muito ligado. Um dia, Claudia procurou Ricardo, “nervosa”, deu-lhe um beijo e disse “quero voltar”. Ricardo recuou: “Não, peraí, se a gente voltar, vamos ter os mesmos problemas”. Então, Claudia levou de novo o namorado para o apartamento.

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_ Fiquei puto dentro das calças! Me desculpe a expressão... Dei um esporro nela. Falei: “ta maluca?!”. Mas não ameacei de morte, sabe, como ela disse. Ricardo conta que o novo namorado de Claudia, “enorme, 105 quilos só de músculo”, também entrou com uma ação contra ele, embora Ricardo lhe tenha dito: “não tenho nada contra você”. Ricardo, por sua vez, entrou com uma ação de alimentos, para que Claudia contribua com as despesas dos filhos, que ficam todas “em cima dele”. Claudia “ficou puta” e entrou com pedido de guarda dos filhos. Ricardo, então, também entrou com pedido de guarda: _ Mas eu pensei bem e vi que isso não vai levar a lugar nenhum. _ Mas você disse que se dão bem. Como? _ Dra Mônica pergunta. _ Agora sim. Ela está um pouco melhor. Diz que o namorado de Claudia, dez anos mais novo que ela, é “imaturo”, “não contribui com nada”, “só pensa em músculos e esquece o resto”, e, por isso, “acaba tomando partido dela”, que pintou-lhe “uma imagem ruim” de Ricardo. Este teme que o namorado transfira o ódio que desenvolveu por ele aos seus filhos. Finalmente, Ricardo admite, por iniciativa própria, “que no início, tinha ciúmes” do novo namorado, “claro”. Diz também que há desentendimentos com Claudia acerca da divisão de bens, pagamento de contas, dinheiro. Conta que, como parte desses acordos, “comprou um apartamento” para Claudia morar. Quando ela se mudou, levou do apartamento antigo todos os móveis, o que “não estava no acordo”. _ Ela fez várias coisas que eu considerei errado _ resume. _ Houve violência? E nos seus outros casamentos? _ insiste Dra Mônica. _ Nunca. Eu faço luta, mas não sou um pitbull, sou tranqüilo. Eu tenho material para remoer por dez anos, mas não quero isso, não quero ficar vivendo assim. A análise me ajudou muito a me conhecer e a saber onde eu errei, no sentido de permitir... A relação teve muitas coisas boas, eu fui muito apaixonado, mas eu poderia ter percebido os sinais dos problemas lá no inicio. Eu era o levantador de pipa, mostrava pra ela: “por que você está fazendo isso? Está sabotando a nossa relação.” Eu queria muito que desse certo. Agora, se eu vejo os sinais, eu saio. Ricardo avalia que Claudia se coloca sempre no “papel de vítima”. Segundo ele, o próprio filho do casal, de 9 anos de idade, percebe isso: _ Ele fez um poema que dizia assim: “minha mãe é carente / meu pai resistente / minha avó inteligente / meu avô...”. Ela é carente mesmo, passa mesmo essa imagem.

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Nunca tem dinheiro pra nada, vive dizendo “mamãe não pode”. Fica até irreal. Não disponibiliza nada pros filhos. Tudo é: “vê com seu pai”. Eu não vou me negar, claro. Ela tava ganhando 5 mil, não falou nada e botou silicone no peito. Ela é: “primeiro eu, depois eu, eu, eu”. _ Eu vou colocar você no grupo informativo _ decide a Dra Mônica. _ Pelo que você falou, que se dá bem com seus filhos... _ Eu vou ser sincero, não me encaixo nesse perfil de marido violento não. _ É essa a leitura que você faz de você? _ É. Fui casado outras vezes, nunca teve isso... E a entrevista acaba. Dra Mônica entrega a Ricardo um papel de convocação para o grupo informativo, informando a data em que vai ocorrer.

Percepções e comentários da profissional sobre a entrevista Quando saímos da sala, Dra Mônica me diz que acha que Ricardo “se encaixa melhor no grupo informativo”, pois “está separado e já tem coisas resolvidas na cabeça, embora ainda tenha umas coisas machistas”, como por exemplo, a questão com “o namorado da mulher”. Dra Mônica me explica ainda que, para o grupo reflexivo, dá-se prioridade aos que ainda estão casados ou têm conflitos com os filhos. E me pergunta: _ Você está assistindo ao grupo reflexivo? _ Estou. _ Então você deve ter visto que o perfil é bem diferente. São homens que tem o machismo mais arraigado. Esse (Ricardo) é tranquilinho... Ao chegarmos à sala da equipe técnica, outro psicólogo pergunta à Dra Mônica: _ E aí? GI (grupo informativo) ou GR (reflexivo)? _ GI. _ responde Dra Mônica. _ Então é tranquilinho. _ deduz o psicólogo. _ Tranquilinho. ***

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A única entrevista de avaliação de homens que assisti foi a de Ricardo. Com base nela, nos relatos de Dra Mônica e dos outros profissionais, e na observação do grupo de reflexão e informativo, é possível fazer algumas inferências sobre os critérios ou métodos de decisão dos profissionais acerca de que tipo de grupo é mais adequado a que tipos de homens e eventos violentos. A capacidade de refletir sobre suas características pessoais e a auto-consciência do acusado quanto à sua participação no conflito são alguns dos principais critérios observados pelos profissionais. Não é necessário que o homem se declare culpado, mas se ao menos demonstra reconhecer, ainda que “parcialmente”, a sua contribuição pessoal na produção do conflito, é um indício de que pode identificar em si as características pessoais que alimentam os atritos e, talvez, ser capaz de se autocontrolar para evitar futuras reincidências. Ou seja, se o profissional identifica, no relato do homem, a existência de uma “consciência de si” que comunique algum grau de “responsabilização” pela violência ocorrida, isto favorece a participação no grupo informativo, de apenas uma sessão. A “responsabilização” é interpretada como algo que pode fornecer ao homem “recursos internos” mínimos para reconhecer o erro e evitá-lo no futuro. A não admissão da participação no conflito sob nenhuma hipótese e/ou a alocação da culpa exclusivamente à mulher são indicativos, ao contrário, da necessidade de “reflexão” no grupo reflexivo. Ricardo foi capaz de mobilizar, com êxito, accounts e identidades que comunicassem algum grau de responsabilização pelo conflito vivido com Claudia. Suas várias alusões à “análise”, à consciência de que se “permitiu” viver um relacionamento que, desde o início, dava “sinais” negativos, a sua auto-apresentação como bom pai e provedor, a admissão dos ciúmes do novo namorado de Claudia, a reflexão sobre as limitações psicológicas da mulher, situadas em sua história afetiva com o pai ausente e a mãe alcoólatra, são elementos que conferem ao homem a aparência suficientemente convincente de que “pensa muito” sobre suas escolhas e suas relações e de que exercita, em alguma medida, sua capacidade auto-crítica. Embora defina o seu papel no conflito como apenas reativo à conduta “errada” da ex-mulher de levar o namorado para sua casa, a sua narrativa oferece elementos que justificam sua atitude como legítima e o livram de ser considerado um “machista” incorrigível. Relatos considerados muito “machistas”, ou seja, que demonstrem que o homem tem dificuldades de admitir e respeitar a “individualidade” da mulher, são, para os

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profissionais, indicativos de que ele precisa “refletir” mais longamente, bem como a combatividade ou agressividade na maneira de falar ou, ao contrário, o completo “alheamento” ou indiferença. Também são indicativos da necessidade do “grupo de reflexão” relatos que demonstrem que o homem ainda tem raiva da mulher ou não conseguiu elaborar o conflito de maneira “positiva”, isto é, extraindo “aprendizados” construtivos para sua própria vida, expressos por falas como “aprendi que não vale à pena”, “quero ser feliz”, “hoje sou uma pessoa muito melhor”, falas que ouvi algumas vezes nos grupos de homens e que são positivamente avaliadas pelos profissionais. Assim, ir para o grupo reflexivo ou para o informativo, depende, em grande medida, da capacidade ou incapacidade do entrevistado de mobilizar accounts, identidades e papéis em uma narrativa coerente e convincente que mobilize uma imagem de si que corresponda às expectativas dos profissionais acerca do que é um homem que se “responsabiliza” minimamente por suas atitudes. A partir de agora, trato do grupo de reflexão. O grupo reflexivo que acompanhei teve início em 23 de novembro de 2009 e terminou em 8 de março de 2010. Foi coordenado pelos psicólogos Dr. Marcio e Dr. Gustavo. Observei sete das oito sessões, que ocorriam a cada quinze dias. Seria inviável descrever aqui, em detalhes, todas as sessões. Apresento mais detidamente apenas a primeira delas. Quanto às demais, extraio delas aquilo que considero serem seus principais aspectos, procurando ilustrá-los com as falas dos participantes e profissionais. Além disso, ao final de cada sessão, os profissionais me relatavam algumas de suas impressões sobre falas, homens e sobre o seu próprio trabalho. Alguns desses comentários serão também citados. Na primeira sessão, estavam presentes dez homens. Cinco faltaram. Três deles nunca apareceram no decorrer do grupo. Nas outras sessões, manteve-se a média de dez presentes, com um ou dois faltantes. As faltas devem ser justificadas e precisam ser repostas, através da participação em sessões de outros grupos (há sempre dois ou três grupos ocorrendo simultaneamente no juizado), de modo que todos os homens participem obrigatoriamente de oito sessões.

Primeira sessão do Grupo de reflexão

A primeira coisa que os profissionais propuseram aos homens, sentados em roda, é que se apresentassem, falassem sobre “o que houve” e citassem uma “característica que

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os definisse”. Oito dos dez homens contaram sobre os conflitos que tiveram com suas esposas; um “brigou” com a irmã; e outro optou pelo silêncio. A maioria dos homens tinha relacionamentos longos com as mulheres que os acusaram. Cinco deles separaramse das mulheres e outros três permanecem casados com as mesmas. Rodrigo se envolveu em “vias de fato” com a ex-namorada, com quem estava há seis anos. “O amor já tinha acabado” quando isso ocorreu. Sente-se “arrependido”, pois “traiu seus princípios”, agiu com “covardia”. Hoje, ele e a ex-namorada são amigos. Depois do ocorrido, ele, que é motorista de ônibus, mas atualmente está desempregado, “não discute mais”. Define suas “características” assim: “sou calmo, tranqüilo”. Jorge, também motorista de ônibus, diz que “foi educado para respeitar”. A agressão à companheira de 22 anos é definida como “um desacerto”. Depois do que ocorreu, tornou-se “uma pessoa mais comunicativa, mais amiga” e “pensa mais antes de agir”. Está em processo de divórcio. Suas características: “fazer amizade; não discrimino ninguém”. Roberto, advogado, ficou 24 anos casado com sua companheira. Quando “resolveu se separar” dela, ela “surtou” e “quis agredi-lo”. Para se defender, ele a “segurou pelo braço e cabelo”. Ela disse “na delegacia” que ele lhe deu um “soco”, mas o exame de corpo de delito “não comprova” isto. Constam no laudo “só as marcas de seus dedos nos braços” da mulher. Roberto conta que não queria aceitar o acordo de suspensão do processo, “queria provar sua inocência”, mas seus advogados insistiram para que ele aceitasse o acordo. Avalia que “está cumprindo um castigo”. Considera que “sempre foi calmo” e que a ex-mulher “usou a Lei Maria da Penha contra ele”. Ele a está processando na Justiça Civil. Gerson, motorista de ônibus, está há seis anos casado e tem dois filhos. Hospedou em casa uma sobrinha que precisava de ajuda. Por causa disso, seu “casamento começou a desmoronar”. Houve “brigas”, ele e a esposa “se agrediram”, ela lhe “passou a unha” e, “num momento de fúria”, ele a “pegou pelo pescoço”. Veio ao grupo “para tentar melhorar”. Considera que “já vem melhorando”. Diz que seu trabalho é “muito estressante”. Ele e a mulher continuam juntos, resolveram “se dar uma chance”. Sua característica é “uma virtude”: “protejo o lar, sou muito lar”. Flávio “brigou” com a irmã. Seu pai “não aceitou a atitude” da filha de denunciar o próprio irmão; acha que poderiam ter resolvido tudo “em casa”. Afinal, foi uma “briga boba”, “por causa da máquina de lavar”. Agora, há “um clima chato em casa”. Ele e a

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irmã “não se falam”. Flávio “tenta conversar com ela, mas ela sai” e só vai à casa dos pais quando ele não está. Sua característica “é negativa”, algo que está “tentando mudar”: é “impulsivo”. Já fez “terapia” por causa disso. Felipe passou 17 anos casado. Há dois, discutiu com a mulher. Ele “trabalha de noite” e, por isso, “chegava em casa de manhã”. A esposa “não compreendia” isso, achava que ele a “traía”. “Toda vez que chegava em casa, havia discussão”. “Um dia”, Felipe “explodiu”. Agora, estão “se entendendo”: “ela do lado de lá”, ele “do lado de cá”. Estão separados. Tem filhos com ela e paga corretamente a pensão. Característica: “sou um cara do lar, caseiro, gosto de sair com minha garota”. Fabio tinha “muita discussão dentro de casa”. Sua ex-mulher era “incompreensiva”, como são, aliás, “todas as mulheres”. Tinha “filho passando necessidade” e a mulher ficava discutindo. Hoje, estão separados. Ele casou-se novamente. Característica: “às vezes estressado, às vezes extrovertido”. Renato diz que sua mulher “tem excesso de ciúmes”. Ele “trabalha muito”, “sustenta a casa”, “paga pensão aos filhos”. É dono de um estabelecimento comercial e, por isso, também “tem responsabilidades com os empregados”. Apesar disso, sua mulher vive dizendo que ele o trai, que “está com alguma puta”. “Uma hora”, diz, a gente “perde a cabeça”, pois “somos seres humanos”. Renato diz que “quer sair” e a mulher “não deixa”, o “tranca dentro de casa”. Um dia, porque “uma mulher ligou para seu celular”, a esposa ficou com ciúmes e eles entraram em “vias de fato”. Admite que “houve erros de ambas as partes”, “mas”, justifica-se, “a gente não é cachorro”, não é “barata”. Considera a Lei Maria da Penha injusta com muitos, como por exemplo, com Roberto, o advogado, que “não fez nada”. “A mulher não pode acusar e nós ficarmos aqui”: a mulher “tem que provar”, diz. Ficou seis meses separado da esposa, mas reataram. Hoje, acontece “tudo de novo”. Um dia, diz Renato, ele “vai fazer o que ela quer”, isto é, “pegar uma puta”, para que “ela reclame com razão”. Avalia que “as mulheres querem ter o homem como posse”. Acha que se ele “largar a mulher”, ela o “mata”. Para ele, as mulheres têm muitos privilégios: há “leis em favor das mulheres”, elas “recebem pensão” e nunca “precisam pagar pensão”. Mas “se um homem faz uma queixa na delegacia, o delegado ri”. Característica: “bom de coração, mas impaciente com isso”. Teobaldo desentende-se com a mulher porque “ela acha que as crianças têm que ser prisioneiras”. Ele “não concorda” com isso. Um dia a mulher bebeu e bateu no filho, então com cinco anos: “é por isso que eu estou aqui”, diz. A mãe “não deixa o menino

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(hoje com sete anos) brincar na rua”. “Como pai”, Teobaldo, acha que sua mulher “tem que levar uma chamada de alguém”. Considera que “pai tem o direito de sair com a criança”, coisa que sua mulher não permite. Diz que só continua com a mulher “por causa dos filhos”: “quero eles do meu lado”. Sua característica: “sou calmo, tranqüilo, mas ela me xinga”: “ você não é homem, é viado”. “Tenho que escutar isso e não posso fazer nada, porque o juiz deu a proibição que eu não posso encostar a mão nela”, diz. E, finalmente, João, prefere não falar nada. Dr. Marcio pede aos homens que façam comentários sobre o que acabaram de ouvir uns dos outros. Os comentários são, todos, de críticas à lei. Gerson, o que hospedou a sobrinha em casa, diz que “a lei tem falhas”; que “as mulheres usam isso como um meio de coação”, pois “não são bobas e têm um intelecto mais avançado”; que “a lei é feminista”; que “os homens ficam em segundo plano”; que a lei “é um efeito da igualdade”; que “as mulheres também devem participar do grupo de reflexão”. Vários homens concordam, fazendo comentários na mesma direção. Renato, que reclama dos ciúmes excessivos da mulher, é o mais falante de todos. Acrescenta que “o grupo é perda de tempo se a mulher não vier também” e que o “governo está jogando dinheiro fora”. Considera que “não está sendo ajudado, só punido”. Vários homens oferecem apoio a Teobaldo, o que brigou com a mulher por causa dos filhos. Dizem que ele “não fez nada” e aconselham que ele “denuncie” a mulher por maus tratos às crianças. Dr Marcio intervém e observa que os comentários são “interessantes”, que “as críticas são importantes”, mas que “também é importante falar” sobre o fato de que “a violência em casa tem a ver com a maneira como nós, homens, somos criados”. Dr Gustavo acrescenta: _ Diante das críticas à lei, eu penso: como uma lei é criada? A lei surgiu de um movimento feminino. A mulher estava cansada de ser maltratada pelo homem. As mulheres estão mudando, eu não acho que isso seja errado. _ Mas a igualdade é pra todo mundo _ contesta Gerson. Dr Marcio intervém e diz que, de acordo com o que foi dito pelos homens, é possível identificar temas a serem discutidos nas próximas sessões: “lei”, “estresse no trabalho”, “paternidade”, “ciúmes”. Renato retifica que devem discutir a “injustiça da lei”. Dr Marcio pergunta a todos: _ Esse seria um tema?

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_ Sim _ respondem os homens. _ Então essa é a primeira sugestão: a lei. É importante vocês saberem sobre a lei _ E diz que a defensora pública será chamada em uma das sessões para responder às perguntas dos homens sobre a lei. _ Se aqui vocês são responsáveis pelo que aconteceu, não quer dizer que perderam os seus direitos. E Dr Marcio segue enumerando temas de discussão: _ Sugiro “estresse no trabalho”. _ Estresse, trabalho e relação _ completa Gerson. _ A gente chega estressado do trabalho. A mulher bem podia nos perguntar: “como foi seu dia no trabalho?” _ diz Felipe (o que chegava de manhã em casa), provocando risos de todos, que concordam que “as mulheres nunca perguntam isso”. _ Minha mulher atual respeita _ diz Fabio, o que considerou as mulheres “incompreensivas”. _ Ela já sabe que eu estou estressado e vai conversar com as amigas. O único problema dela é o ciúme. Ela tem ciúmes porque antes de eu me separar da outra, já fiquei com ela. Eu sou assim mesmo: não vou ficar chorando, já procuro logo outra mulher. _ e mais risos. _ Então “ciúmes” também pode ser um tema. _ sugere Dr Marcio. _ Traição, fidelidade _ sugere Jorge, o que disse que “foi educado para respeitar”. _ Homem e mulher traem. _ Acho melhor não falar de fidelidade não _ Diz Felipe, arrancando mais risos dos homens. _ É. Traição, não. Ninguém mencionou isso antes. _ concorda Rodrigo, aquele que hoje é amigo da ex-namorada. Jorge é voto vencido. _ Há ciúmes dentro da relação? _ Dr Marcio muda de assunto. _ Casamento gera posse. A mulher não tem que pedir pra sair: tem que comunicar. Ela não é posse. _ diz Rodrigo. _ O ciúme da minha mulher é sem fundamento _ diz Renato. _ Se eu tiver que trair, vou trair. Ela fantasia que eu traio só à noite. Eu digo a ela: a traição pode ser em qualquer horário, e, se eu fizer, você nunca vai saber. _ Já eu faço ela saber _ gaba-se Felipe. _ Eu passei com a atual na frente da minha primeira mulher. Depois fui pra casa e ela chegou cheia de ignorância. _ Mas também, você passou com a outra na frente dela... _ critica Jorge.

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_ Ah, faço mesmo! Ela era abusada! Achava que eu traía, então traí mesmo! _ justifica-se Felipe. _ Então, falar sobre relação é importante _ sugere Dr Marcio. _ Outro tema que a gente não abre mão é masculinidade. _ Isso é o que? Machismo? _ pergunta Renato. _ Também. _ responde Dr Marcio. _ Acho que não vai ajudar em nada, se a mulher não for ouvida _ contesta Rodrigo. _ Machismo, não _ protesta Renato _ porque eu não sou machista, eu não prendo ela, se ela trair, eu não vou saber. Não é uma pauta interessante. Todos se calam. _ Vocês têm alguma pergunta? _ diz Dr Marcio. _ Não _respondem. _ Perder a cabeça tem a ver com estresse e com masculinidade. Renato não concorda, mas é interessante falar disso. _ insiste Dr Marcio. Então, Dr Marcio e Dr Gustavo fazem uma espécie de encenação estratégica. Sentam-se no meio da roda e começam a conversar como se estivessem sozinhos: _ Me senti animado com o grupo, Gustavo _ diz Dr Marcio. _ Eu também _ responde Dr Gustavo _ O grupo fala, ferve! Alguém tenta fazer uma pergunta e Dr Marcio interrompe, dizendo “depois a gente conversa”. Então fica claro que aquela é alguma técnica dos profissionais, que não deve ser interrompida. Dr Marcio continua o diálogo com Dr Gustavo: _ Sim, o grupo fala, tem muitos debates. _ Eles dizem muito que “ela tem que ser escutada”: ela, ela, ela. Mas eles poderiam pensar também: “o que eu posso fazer para melhorar, já que estou aqui?” – provoca Dr Gustavo. _ É. _ concorda Dr Marcio _ Eu me pergunto: o que o grupo espera disso aqui? Tem gente que diz que não vai servir para nada... A encenação acaba. Os profissionais voltam aos seus lugares na roda. Dr Marcio, então, pergunta: _ Algum comentário? _ Vocês estão surpresos por quê? _ pergunta Jorge. _ Os outros grupos não falam? _ No início, não _ Dr Marcio responde. _ O primeiro dia é sempre complicado, distante. _ Acrescenta Dr Gustavo.

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_ Ih, então oito sessões não vão ser suficientes. Tem que ter umas dezesseis. Na quarta sessão já vou estar bem calmo. _ brinca Renato _ Vou chegar em casa, vou subir, vou colocar o fone de ouvido, não vou me estressar... _ Eu ligo o som _ diz Jorge. _ E eu vejo TV _ diz Felipe, sobre sua estratégia para ficar calmo e “não se estressar” em casa com a mulher. Seguem-se conversas sobre futebol: risadas, descontração. A sessão está chegando ao fim. Os profissionais dão instruções sobre as datas das próximas sessões. _ Tenho algumas questões para vocês levarem. _ diz o Dr Marcio _ O que vocês esperam disso? Oito encontros são suficientes pra que? _ Se elas não vierem... _ Teobaldo volta ao que pareceu ser o bordão do grupo, sugerindo que se as mulheres não vierem, os encontros não servem pra nada. _ Daqui a oito, dez anos, elas vão vir também. _ prevê Jorge. _ Aí já vai ter a Lei Mário da Penha _ ironiza Renato, que observa ainda que a minha “pesquisa” pode “ajudar a mudar a lei”. Fica decidido que o “tema” da próxima sessão será “a lei”. Os homens recebem um papel com o regulamento do grupo, que fala sobre as faltas e adverte que o “abandono” do grupo “será comunicado ao processo” e acarretará em “descumprimento de medida judicial”, gerando “conseqüências prejudiciais ao jurisdicionado”. Assinam também, a lista de presença. E a sessão está terminada, mas como ninguém toma a iniciativa de se levantar, Renato observa: _ A gente gostou tanto, que nem quer ir embora!_ e todos riem. Os homens, enfim, se retiram, e apenas João, o que não falou, permanece na sala. Logo descubro por que: ele é analfabeto. Não pode assinar o nome. Espera todos saírem, para, então, manchar o dedo de tinta e deixar sua impressão digital.

Percepções e comentários dos profissionais sobre a sessão

Quando todos vão embora, Dr Marcio e Dr Gustavo conversam comigo e fazem alguns comentários sobre a sessão. Dr Marcio explica que o trabalho dos profissionais deve levar em conta, por um lado, a “complexidade da relação” e, por outro, o “crime”.

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Para movimentar-se entre os dois pólos, é preciso que os profissionais tenham “jogo de cintura”, diz. Os dois profissionais percebem que os relatos dos homens evidenciam o papel masculino de “ser responsável pela casa”. Avaliam que esta é uma cobrança “pesada”, que está na base dos conflitos e, por isso, deve ser discutida. Dr Marcio observa também que o “estresse no trabalho” foi um tema constantemente mencionado pelos homens, que o utilizam como uma forma de “instrumentalizar” o conflito. Alguns homens mencionaram que recorrem a “fones de ouvido”, o que é interpretado pelo profissional como uma maneira de “encapsular” o conflito. O psicólogo explica que o grupo “não é tratamento”. Mais propriamente, seu objetivo é a “responsabilização” dos homens. Considera que o termo é de difícil definição e que os próprios profissionais estão por descobrir e aprimorar o seu significado. Em termos gerais, entende que a “responsabilização” deve “potencializar o efeito da lei de fazer parar a violência”. Para isso, é preciso que os homens “reconheçam que houve crime”. Entretanto, o profissional constata que eles têm dificuldades para assimilar isso: “se eles não reconhecem o crime, não há criminoso”, diz. Dr Gustavo ilustra o comentário com a fala de Roberto, o advogado, que minimizou o crime ao dizer que “só ficaram marcas roxas nos braços da mulher” e que apenas a “segurou” pelos cabelos. Enquanto esses comentários são feitos, entra na sala outro profissional da equipe dos grupos. Ele explica que acredita que os homens sofram um processo de “mudança ao longo dos encontros” e cita como exemplo um homem que, depois de participar de um grupo, manifestou o desejo de participar de outro. Dr Marcio comenta ainda que o trabalho da equipe contrapõe-se à “canetada” do juiz, que, pela imposição da autoridade, diz ao homem que ele “tem que sair de casa”, que “não pode bater”. Diferentemente da “canetada”, os grupos implicam um “processo reflexivo”, muito mais complexo. O psicólogo identifica que existe tensão entre as expectativas da juíza quanto aos grupos e o trabalho da equipe: “a juíza acha que vai mudar tudo, que os homens sairão dos grupos completamente diferentes, mas isso é complicado para nós psicólogos”. Para os profissionais, diz, o grupo reflexivo não é uma “aula” ou “palestra”; o que mais importa é “promover o espaço de diálogo” e fazer o papel de “advogado do diabo”. ***

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Comento rapidamente agora as demais sessões. Na segunda e terceira sessões, os homens discutiram a lei. Dividiram-se em grupos, leram e interpretaram, ponto a ponto, o artigo 7º, que define os cinco tipos de “violência doméstica e familiar contra a mulher” (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral); o 22º, que dispõe sobre as medidas protetivas de urgência; e o 5º, que define esse tipo de violência e qualifica o espaço social e as relações sociais que a comportam. Partindo das interpretações dos homens, os profissionais guiaram as discussões de maneira bastante didática, oferecendo explicações detalhadas sobre os artigos, se certificando de que os homens haviam entendido “bem” os seus conteúdos e dando exemplos de eventos que são considerados crimes pela lei e de medidas que podem ser tomadas pelos juízes. Na discussão, além das críticas à lei _ em tom de reprovação, um homem disse: “agora não posso mais bater” _ e negações do crime _ “aqui ninguém espancou a mulher” ou praticou “terror psicológico” _ houve espaço também para avaliações relativamente positivas da lei e do grupo: “antes, a mulher dava queixa e nada acontecia”; “antes, era cesta básica”; “só a lei, em si, não acaba com a violência, mas alguma coisa tinha que ser feita e o início é válido”; “a lei vai ferrar com a gente, mas a gente tem que fazer alguma coisa para melhorar”; “a lei protege os filhos”. Críticas, negações e concessões se misturam e, frequentemente, um mesmo homem é capaz de admiti-las todas ao mesmo tempo. Os homens fizeram perguntas por escrito à defensora dos réus, que as respondeu pessoalmente algumas sessões depois

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. De maneira geral,

os homens consideraram “esclarecedor” discutir sobre a lei, pois puderam “conhecê-la melhor”, e os profissionais avaliaram as discussões como “positivas”. Alguns homens avaliaram que, diante da lei, e em reconhecimento ao seu poder de coerção e sanção, é mais prudente “não namorar ninguém”

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. Assim, o próprio

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As perguntas, construídas coletivamente, foram assim formuladas: “A Lei Maria da Penha incentiva a mulher a ser agressiva com o homem?”, “Por que a mulher não participa de uma terapia de grupo com outras mulheres para discutirem os motivos que as levaram a ser agredidas?”, “Por que, mesmo com a redação do artigo 41 desta lei, o MP oferece os benefícios da lei 9.099/95?”, “Até quando a ficha criminal do agressor fica “suja” por causa da agressão?”, “A presença da mulher à audiência é obrigatória? Se não, por quê?”. 38

Uma percepção semelhante apareceu também em uma sessão do grupo informativo (de sessão única) que tive a oportunidade de acompanhar. Nessa ocasião um homem disse: “Essa

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relacionamento amoroso é percebido, diante do novo tipo de controle que a lei institui, como inviável. Os profissionais se esforçam para mostrar aos que expressam essa opinião que, em vez de privar-se dos relacionamentos com as mulheres, é possível transformar as relações, de maneira a resolver os conflitos por vias não violentas. Ao longo das sessões, era muito comum que os homens justificassem suas atitudes: “não tive a intenção de bater”, “agi por impulso”, “ela provocou”, “eu tive um motivo”, ao que os profissionais respondiam que “perder a cabeça” é comum, mas “agora também é crime”. Acrescentavam ainda, diante dos relatos dos homens sobre as agressões das mulheres _ “levei três tapas na cara”, “ela me tranca dentro de casa”, “elas colocam o dedo na cara dos homens” _ que eles deviam denunciá-las na polícia e recorrer à lei comum, mas os homens argumentavam que se o fizessem, seriam ridicularizados. Sempre que identificavam uma oportunidade, os profissionais aproveitavam as expressões utilizadas pelos homens para introduzir o assunto “masculinidade”: “será que o impulso masculino é resolver as coisas pela violência?”, “será que tem a ver com a maneira como nós homens somos criados e, por isso, nós nos justificamos, nos permitimos agir por impulso?”. Era muito comum que diante dessas perguntas, os homens ficassem em silêncio; pareciam não entender o que os profissionais queriam sugerir: a relação entre a forma de socialização dos homens (construção da masculinidade) e a violência. Numa dessas ocasiões, um homem, Gerson, comentou que viu na televisão que “os homens têm o instinto de violência desde um ano de idade” e que isso deve ser “controlado” pela “educação” e “carinho”. O mesmo Gerson pergunta em seguida:

_ Tem estudos sobre a lei, se funciona, se o marido volta a bater? _ Não temos respostas, mas acreditamos no trabalho _ responde Dr. Marcio.

lei é desagregadora da família, leva à separação. Minha mulher me processou e, depois disso, não há mais como reatar o casamento. Eu não vejo nenhuma possibilidade de continuar casado com ela depois desse processo, embora até existam motivos pra continuarmos casados. Nós temos filhos... O relacionamento entre homem e mulher vai ficar inviável, fóbico. A lei é heterofóbica”. A lei é, assim, identificada como inviabilizadora de arranjos familiares em que o uso da violência era, outrora, um problema privado, que possibilitava soluções privadas ou não-jurídicas, dispensando a incriminação formal e pública do agressor e a sua rotulação como “réu”.

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_ Eu não poderia voltar a bater. _ considera Gerson. _ Por quê? _ Dr Marcio pergunta. _ Por tudo o que aconteceu na nossa vida. _ Nós temos 20 mil processos. Se me perguntarem: “isso aqui dá certo?”, eu digo “acho que sim”, mas não posso comprovar. Vários homens relataram que a ação penal movida contra eles e a participação no grupo lhes trouxeram problemas no trabalho, em virtude das faltas, ou os impediu de conseguirem empregos, por causa do estigma da anotação criminal (“ficha suja”). Assim, é possível que a aplicação da lei esteja, indiretamente, acarretando restrições materiais na vida dos acusados, o que, para o bem ou para o mal, pode se converter em inesperado efeito preventivo. A fala de um homem aponta nessa direção: “eu levo esporro do patrão toda vez que venho ao grupo; ele fica me dizendo: „se não tivesse batido na mulher... ‟”. Na quarta sessão, o tema de discussão foi “ciúme, relação e individualidade”; os dois primeiros, definidos conjuntamente pelos homens e pelos profissionais, e o terceiro, incluído pelos últimos. Para abordar o tema, os profissionais fizeram duas dinâmicas de grupo. Na primeira, a “brincadeira da hipnose”, os homens formaram duplas. Um integrante da dupla deveria estender a palma da mão à frente do rosto do parceiro e movimentá-la em todas as direções que quisesse. O parceiro deveria manter os olhos fixos na mão do outro e acompanhar os movimentos, como se estivesse hipnotizado. Não era permitido falar. A um sinal dos profissionais, os integrantes da dupla invertiam as posições. Ao fim da dinâmica, os profissionais, então, perguntavam: “como foi estar no papel de guia? E no papel de guiado?”. Os homens responderam que “é mais fácil dominar do que ser dominado” e que, ao dominar, “o outro tem que fazer o que você quiser”. A brincadeira é, então, definida como metáfora da “relação”, e os homens relatam que quem está na posição de controle precisa “se preocupar em não fazer movimentos bruscos” para não prejudicar o outro. Concluem que, “na relação”, é preciso haver “equilíbrio” e “respeito”. Uma variação da dinâmica é feita. Agora, ambos os integrantes da dupla guiam e são guiados ao mesmo tempo. Os movimentos são inevitavelmente mais restritos desta vez. Um homem diz: “ninguém forçou a barra; se os dois fizessem movimentos muito distantes, a gente não ia conseguir fazer o movimento”. Os profissionais observam:

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“então, tem que haver um entendimento?”. Os homens concordam. Como metáfora de uma relação mais “igualitária”, em que “ambos dominam e são dominados”, um homem comenta: “entre marido e mulher fica complicado um dominar o outro; pode ter briga”. A segunda dinâmica é ainda mais “lúdica”, nas palavras dos profissionais. Os homens dividem-se em quatro grupos. Cada um recebe, por escrito, pequenos textos que narram diferentes “situações que geram conflito numa relação”. A partir das situações, os homens precisam escrever um diálogo e encená-lo. “Alguém vai ter que representar a mulher?”, um homem pergunta. “Sim, por que não?”, respondem os profissionais. Ao distribuir os textos, os profissionais orientam os homens: “observem como será, na relação, a questão do ciúme e da individualidade”. A situação que causou mais polêmica foi a que narrava mais ou menos o seguinte: “Você já se prepara para dormir _ está de pijamas e já tomou o seu leitinho _ quando sua mulher aparece na sala pronta para sair de casa, toda arrumada, perfumada, maquiada e com um super decote que mostra aquela tatuagem que você achava que só você podia ver”. Flávio (o que brigou com a irmã) continua a estória assim: _ Você vai aonde? _ pergunta o marido. _ Vou sair com minhas amigas _ responde a mulher. _ Mas precisa usar essas roupas? _ Não precisa ficar com ciúmes, pois vou sair com minhas amigas. _ Você parece uma piriguete com essas roupas! O diálogo criado por Flávio pareceu aos homens bastante verossímil (diferentemente das outras situações, cujas soluções encenadas foram consideradas pelos homens como “irreais”, na medida em que evitavam o conflito). Quase todos os homens disseram que não tolerariam tal situação:

_ Eu não sou ciumento não, mas se fosse minha mulher, nem compraria essa roupa! Ou é mulher ou é puta! _ diz Renato. _ Mas e a questão da individualidade? _ questiona Dr Marcio. _ Fere a minha individualidade, porque se estiver aparecendo a bunda, os homens na rua vão mexer com ela, se não estiver comigo. Uma coisa é respeito, outra é individualidade. _ sentencia Renato.

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_ Então ela pode vestir se estiver com você? _ Não! _ responde Flávio, o criador do diálogo. _ Vão mexer com ela na minha frente! _ Eu tive uma namorada _ conta Rodrigo _ que usava roupa curta. Ela tinha perna grossa, era muito bonita. Eu morria de ciúme. Ela me perguntava: “to bonita?”. Eu dizia: “tá linda, mas eu vou morrer de ciúme; todo mundo vai olhar pra você” _ e acrescenta que se limitava a fazer esse comentário.

Durante as discussões, os homens contavam situações que tinham vivido com suas companheiras, construíam limites entre o “ciúme normal”, que “apimenta a relação”, e o “ciúme que é doença”, relatavam situações em que era ou não possível “se colocar no lugar do outro” e respeitar a sua “individualidade”. Na quinta sessão, o tema discutido foi “masculinidade”, proposto pelos profissionais. Nessa sessão, estão presentes dois novos homens, que participaram de outro grupo e que vieram a este para repor suas faltas. Um deles, Luiz, gera rebuliço no grupo. Ao se apresentar aos homens, diz: “boa tarde a todos, meu nome é Luiz, estamos aqui porque somos todos inocentes”. A defensora dos réus vem ao grupo para responder as perguntas sobre a lei, formuladas pelos homens na terceira sessão. Luiz, que não participou do processo de formulação das perguntas, bate de frente com a defensora, critica a lei e o grupo, empunha de novo a bandeira que os homens já haviam levantado antes e que, agora, foi substituída por outras discussões e temas. Os homens já não estão mais dispostos a repetir as críticas, ao menos não com a mesma intensidade de antes. Luiz desponta, assim, como um integrante contrastante, e de certa forma, destoante dos outros. Assume o papel de “provocador”, como me disseram os profissionais. Isso gera uma conseqüência imprevista: os homens passam a questionar Luiz. Quando os homens aproveitam a presença da defensora para tirar suas dúvidas, Luiz ainda está interessado nas críticas:

_ Estou perdendo tempo aqui. Perdendo tempo, não, porque é um aprendizado. A minha mulher me diz: “você não está aprendendo nada lá não?” _ Mas a relação é certa? _ pergunta a defensora, querendo sugerir que talvez o casamento de Luiz com sua mulher seja o problema, e não a lei.

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_ É. A gente se dá bem, só não gosto do jeito que as coisas vão. O melhor é que ela vá embora. _ Por que não você? _ questiona Renato, que também ainda vive em conflito com a mulher. _ A casa é minha. _ Mais uma vez, não é um problema da lei, é sobre como lidar com conflitos _ argumenta Dr Marcio. A posição que Luiz, um estranho, ocupa no grupo já constituído permite que os homens e mesmo os profissionais façam questionamentos que não eram feitos antes, entre os membros originais do grupo. Surge a questão da divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres. Luiz diz que “se recusa” a fazê-las, já que “trabalha fora”. A defensora rebate que ela “faz os dois” e Dr Gustavo a apóia. Luiz protesta: “você está do lado dela? Parece que nós, homens, agora temos que ser boiolas dentro de casa, fazer tudo o que a mulher mandar”. É o mote para introduzir o assunto do dia, a “masculinidade”. É exibido o filme “Acorda, Raimundo!”. O enredo inverte os papéis tradicionais de gênero. O personagem principal, encarnado por Paulo Betti, tem a aparência física comum dos homens, mas desempenha os papéis femininos tradicionais. Chama-se Raimundo, é sensível, paciente e passa o dia em casa, cuidando dos filhos, cozinhando, costurando, limpando. Eliane Giardini representa a mulher de Raimundo. Veste-se como mulher, chama-se Marta, mas encarna os papéis e estereótipos tradicionalmente atribuídos aos homens: é a provedora da casa, trabalha como mecânica de automóveis, é mal-humorada e pouco carinhosa com o marido. Raimundo pede dinheiro à Marta para comprar comida e ela reclama que ele já gastou todo o dinheiro que ela lhe havia dado no início da semana; Raimundo se esquece de colocar açúcar no café, quebra um copo e Marta se impacienta com ele. Tudo se passa como se toda a sociedade funcionasse assim. Raimundo tem um vizinho (José Mayer) que também é “dono-de-casa”; eles conversam sobre filhos e gestão da casa. O filho de Raimundo brinca de boneca e cuida dos irmãos mais novos. Marta tem uma colega de trabalho, Luisa (Zezé Motta), que critica a onda de “masculinismo”. Enfim, um dia, Raimundo conta à Marta que está “grávido de novo”; Marta fica irritada com gravidez e com o fato de ser “mais um menino”; ela sai de casa batendo a porta e vai beber com as amigas, todas mulheres. No

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bar, elas riem alto e gabam-se de suas proezas sexuais. Quando, tarde da noite, Marta chega em casa, bêbada, Raimundo, que a estava esperando, cobra explicações. Eles discutem e Marta bate em Raimundo. A imagem fica borrada, e quando volta à foco, ouve-se o despertador tocar: foi apenas um sonho de Raimundo, que acorda assustado e aliviado, e diz: “ainda bem que foi só um pesadelo”. A vida volta ao “normal”: Marta prepara o café, Raimundo lhe pergunta, aos berros, onde está o seu sapato, o filho lhe pergunta pela toalha, Marta suspira impaciente, mas resignada. Nos comentários dos homens, evidencia-se, ou melhor, constrói-se, mais uma vez, o contraste entre Luiz e os demais. A combatividade de Luiz parece contribuir para “provocar” nos homens a reação inversa, ou ao menos, para estimular o debate: _ Ainda bem que é um pesadelo! _ comenta Luiz. _ Acho que eu já fui um pouco assim, de querer tudo na mão, gritar _ pondera Rodrigo. _É isso o que essa Lei Maria da Penha quer, que a gente vire capacho de mulher _ insiste Luiz. _ A mulher faz isso por anos. _ pondera Fabio _ Se inverter, o homem não atura nem meia hora. _ Pensem na questão da mulher saindo bonita e o homem saindo bonito _ sugere Dr Marcio, remetendo às dinâmicas da sessão passada, em que a situação hipotética da mulher saindo com roupas decotadas causou polêmica. _ É divisão de que? De tarefa? De poder? Para lidar com a mulher é preciso... _ Ser feminino _ martela Luiz. _ O que é ser homem? _ pergunta Dr Gustavo. _ Para a mulher? _ pergunta Luiz. _ Não só para a mulher; entre homens também _ responde Dr Gustavo. _ É trabalhar, botar comida dentro de casa, cumprir com as obrigações _ responde Luiz. Na sessão seguinte, o debate prossegue. Luiz reafirma que “agora tem que ser viado para lidar com a mulher”. Os profissionais recorrem novamente à técnica de representação utilizada na primeira sessão. Sentam-se no meio da roda e conversam “sozinhos”:

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_ Estamos preocupados com o grupo, né? _ diz Dr Marcio. _ Acho que esse é um grupo _ observa Dr Gustavo _ mas acho que não estamos aprofundando as falas. _ Sobre aquele assunto da roupa da mulher, alguém falou “respeito é uma coisa, individualidade é outra”. _ Houve outras frases também: “tem que ser viado para lidar com a mulher”. O que é isso? O que é ser homem? _ provoca Dr Gustavo _ Sinto que temos que matar um leão por dia para ser homem. Tem que ficar provando toda hora. Eu percebo que faço coisas só preocupado com o que os outros estão pensando. _ O que é responsabilizar-se? _ diz dr Marcio. _ Eu não sei... _ Acho que responsabilização tem tudo a ver com individualidade. É ser responsável pelo que faz, arcar com as conseqüências das escolhas que faz. Alguém falou que a namorada estava bêbada, deitou na cama com ela e não fez nada [essa foi uma fala de Rodrigo]. Isso pra mim é respeito. A mesma pessoa disse para a namorada que ela estava linda, embora fosse morrer de ciúmes. E não fez mais nada. Isso é respeito. Poderia ter batido, ter chamado de piriguete, mas não fez nada disso. Não está preocupado com o que os outros vão pensar. Responsabilização é isso também. É saber que estão respondendo por uma escolha. Todos estão aqui porque fizeram uma escolha e estão respondendo por isso, talvez não como gostariam. Essas questões estavam me incomodando.

A encenação é uma oportunidade que os profissionais criam para dar seus “recados” ao grupo. Seu conteúdo, desta vez, foi o de um “puxão de orelha”, uma advertência. A técnica, contudo, tem a vantagem de evitar os constrangimentos e atritos de uma advertência dirigida, individual. O recado é dado a “todos” e, posteriormente, aberto a comentários, promovendo a “circularidade da informação”, como me explicou o Dr Marcio. Além disso, é a primeira vez que os profissionais falam sobre “responsabilização” aos homens, explicitando suas expectativas com relação ao trabalho desenvolvido no grupo. Diante da advertência, Luiz, à sua maneira, revê sua fala: “eu estava querendo dizer que às vezes é preciso recuar para não bater: sair de casa, beber, ir com outra mulher. Ou seja, dar uma de marica. É preciso ser muito macho para não bater”. Dr

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Marcio diz que gostou dessa última frase e que “ela contrasta com a do marica”. A conversa sobre masculinidade _ “o que é ser homem” _ continua; há outra dinâmica em grupo; Rodrigo observa que “na educação que a gente recebe, o homem pode tudo”. Ao fim desta sessão, Dr Gustavo me diz que percebeu “mudanças” e que fica satisfeito quando isso acontece. Eu lhe pergunto o que ele avalia como “mudança”. Ele responde que é “quando eles se responsabilizam, isto é, quando percebem que são ativos no conflito”. Dr Gustavo gosta das falas “eu errei, eu não devia fazer isso”. Diante das falas de Luiz, “machistas, díspares e humanas”, avalia que o grupo é “uma coisa que dá resultado depois”. Dr Marcio me diz que “gosta quando o dispositivo do grupo funciona, isto é, a troca”. O grupo é para “discutir”, para “todos falarem”: “por isso, tem muitas perguntas sem resposta”, diz. Para ele, o grupo é “um espaço de troca de palavra e liberdade; a gente não tem a questão de monitorar, dar aula”. E acrescenta ainda que “responsabilização é falar dos privilégios dos homens”. Finalmente, na última sessão, houve uma dinâmica de grupo que consistia na leitura de um trecho do livro “O pequeno príncipe”. Algumas passagens do livro foram usadas para promover uma discussão sobre a “relação”, as “estratégias que usamos para enfrentar os conflitos”, as “cobranças que fazemos ao outro”, a “imagem idealizada que fazemos do outro”, o “julgamento que fazemos de nós mesmos”. Os homens também foram solicitados a responder as seguintes perguntas: “como a participação no grupo afetou o seu julgamento sobre os conflitos domésticos?” e “a lei fez um julgamento apropriado do seu caso?”. No debate, alguns homens reafirmaram suas críticas à lei, alguns novamente atribuíram às suas mulheres “ciumentas” a culpa pelos conflitos. Renato contou que a sua mulher, “muito ciumenta”, “doente”, chega a controlar a freqüência com que fazem sexo, examina seu pênis e a quantidade de esperma, e “tudo isso serve para ela concluir” que ele está “fazendo na rua”. Diz que, “por culpa dela”, “às vezes” a trai. Está certo de que nova agressão vai ocorrer. Quando os profissionais e alguns homens lhe perguntam por que não se separa, ele diz que “ela não quer se separar” e que ele “não precisa se separar, pois ela é que tem um problema e precisa se tratar”. Diz ainda que “ela também tem um lado bom e isso também tem que ser visto”. Roberto diz que viveu a mesma situação com a mulher, que “não conseguia se separar” e que “a terapia [particular] e a ação penal” o ajudaram a se separar.

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Em suas avaliações sobre o grupo, todos disseram que “foi positivo”:

_ Enquanto a mulher fica discutindo, eu me controlo; se ela toca em mim, o sangue ferve. Mas se ela chegou naquele ponto, é porque eu também contribuí _ diz Rodrigo. _ Sobre se a lei fez um julgamento apropriado, no meu caso, eu to aqui porque eu fiz mesmo o que foi dito lá, eu empurrei, ela teve escoriações. Então, no meu caso acho que a lei fez um julgamento apropriado sim. No primeiro dia que eu vim aqui, eu pensei: que saco. Depois mudei meu ponto de vista, participei, me senti à vontade para falar. _ É, eu também _ diz Jorge. _ Cheguei aqui jurando que não ia falar nada, que não ia participar, mas depois falei, participei, me senti à vontade. _ Eu acho que a lei só adiantaria se a mulher também participasse de tratamento. _ diz Renato, que é logo interrompido por Dr Marcio, que pede aos homens que “falem apenas da sua experiência no grupo”. _ Aprendi muito, aprendi a ser mais paciente _ considera Fabio. _ Foi com minha irmã, não foi com minha esposa, mas foi bom, agora eu já sei, já aprendi coisas _ diz Flavio. _ O tratamento legal não foi justo no meu caso. O meu caso não foi apreciado _ diz Roberto. _ Mas o grupo foi bom, sempre é bom. Dr Marcio pede a Alessandro, um homem que faltou à primeira sessão e que jamais abriu a boca nas sessões seguintes, que ele também fale: _ O grupo, foi bom, os vídeos, as estórias que foram contadas aqui... _ É, mas você não contou sua estória, né. _ observa Jorge. Alessandro então conta que, em um dia em que estava “estressado”, deu um soco na ex-namorada “por causa de um cachorro quente”; que a mãe da mulher “botou pilha para ela denunciar”; e que o delegado disse a ele: “se ela teve coragem de te denunciar, é porque não gosta de você: se separa dela”.

E assim termina o grupo de reflexão. Os homens cumprimentam uns aos outros, aos profissionais e a mim. Rodrigo se oferece para voltar e “ajudar” em outros grupos. Os profissionais comentam comigo que Renato “tem problemas”, que “não percebe que está implicado em uma relação doente”. Decidem encaminhá-lo ao Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que recebe famílias, inclusive crianças.

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Pergunto aos profissionais como avaliaram o grupo. Dr Marcio volta à questão da “responsabilização”. Pergunto o que é “responsabilização” e se ele acha que ela se efetivou no grupo:

_ Obedecer à lei é responsabilização? _ Dr Marcio me devolve a pergunta. _ É suficiente? Eu acho que o grupo consegue fazer os homens respeitarem a lei. Talvez o efeito do grupo seja só esse. Ou será que é mais? _ Rodrigo é lúcido quanto ao que ocorreu com ele _ avalia Dr Gustavo. _ Admitiu que a lei foi justa. _ Vocês acham que Rodrigo seria um modelo de “responsabilização”? _ eu pergunto. _ Mas isso seria tutelar demais _ protesta Dr Marcio. _ Responsabilização é uma coisa subjetiva; cada um lida com os conflitos de uma maneira. Rodrigo se ofereceu para voltar. Isso é positivo, é mais do que obedecer à lei. Pode ser que o grupo ofereça alguma coisa a mais. _ É claro que nem todos saem daqui se sentindo responsáveis _ diz Dr Gustavo. _ Tem homens que nem...

***

O grupo reflexivo (e também o informativo) é proposto pelos profissionais como um espaço de discussão, pautado pelo diálogo entre “iguais”, isto é, entre pessoas que têm em comum a vivência de eventos violentos com características semelhantes, dos quais participaram na condição formal de “agressores”. O diálogo, semi-estruturado pelos profissionais, deve estimular os homens à reflexão sobre os eventos violentos vivenciados. Ademais, os conteúdos dos filmes, das dinâmicas e das intervenções dos profissionais pretendem também sugerir aos homens que suas experiências violentas particulares têm algum tipo de relação com a configuração social de gênero e a construção de um tipo hegemônico de masculinidade pautado, entre outras coisas, pelo uso da violência. Os profissionais esperam que a interação em grupo se constitua para os homens como um espaço privilegiado de fala, no qual eles se sintam à vontade para compartilhar suas experiências, e nesse processo, possam ressignificar o uso da

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violência contra as mulheres como algo negativo, que pode e deve ser evitado. Em linhas gerais, acredito que essas sejam as principais expectativas dos profissionais. Quanto ao grupo informativo (tive a oportunidade de observar uma sessão), os profissionais avaliam que não permite, pelo tempo exíguo, debates que propiciem uma elaboração mais aprofundada dos conflitos. As suas expectativas quanto aos “resultados” do grupo informativo, por conseguinte, são, por assim dizer, menos exigentes 39. Falar sobre a lei, discutir seus principais pontos, é o principal a ser feito no grupo informativo, e também o mais viável e objetivo, dentro do tempo disponível. Os profissionais consideram importante que os homens “conheçam a lei”, pois isto os coloca a par de que, concordando ou não, a “violência contra a mulher”, em suas diversas modalidades, “é crime agora”. Os profissionais também entendem que, diante das dinâmicas dos conflitos, em que as mulheres são acusadas de também cometer “abusos”, é importante estimular os homens a “procurarem seus direitos” na justiça e, especialmente, na defensoria masculina do juizado. Ou seja, ao discutir a lei no grupo informativo, os homens são encorajados a substituir a resolução violenta dos conflitos por mecanismos jurídicos de defesa e negociação. A judicialização e civilização dos conflitos são, assim, estimuladas como a melhor saída de prevenção da violência (isso também se aplica ao grupo reflexivo). Questões sobre “masculinidade” e “dominação masculina”, consideradas pelos profissionais como essenciais à reflexão, não podem ser adequadamente debatidas no grupo informativo, dado que requerem mais tempo de discussão. É no grupo reflexivo, portanto, que os profissionais investem mais recursos e depositam maiores esperanças de provocar “mudanças” nos homens. Na primeira sessão do grupo reflexivo, os homens não avaliam os conflitos como “crime”, desqualificam a Lei Maria da Penha, consideram-na “injusta” com os homens e argumentam que se a Justiça deve pautar-se pela “igualdade”, então as

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Essa falta de grandes expectativas quanto ao grupo informativo se reflete, por exemplo, no fato de que os profissionais não incluem em suas estatísticas oficiais o número de grupos informativos realizados, mas apenas os dados do grupo reflexivo. Quando perguntei a um profissional quantos grupos informativos haviam sido realizados pela equipe, ele não dispunha do número e justificou-o dizendo que este não é divulgado porque se trata “apenas de palestras” que não definem o trabalho da equipe, pois são atividades que “qualquer um pode fazer”. Os grupos informativos, portanto, parecem não ser considerados o trabalho mais prestigioso e distintivo da equipe.

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mulheres também devem ser submetidas às sanções legais. Para os homens, enquanto o grupo de reflexão for destinado apenas a eles, não poderá contribuir para evitar os conflitos íntimos, nos quais as mulheres têm grande participação. As falas individuais dos homens se influenciam mutuamente. As falas de um agora não determinam, mas condicionam as falas do agora seguinte, ao criar e delimitar um conjunto de possibilidades temáticas por onde os homens transitam: o diálogo emerge enquanto processo, enquanto configuração. Como em uma dança, cada novo passo ou situação executa (satisfaz) e desenvolve (amplia) a situação anterior, de modo que é no curso de uma carreira de falas que se interpelam que os homens progressivamente atribuem sentidos às suas ações (Garfinkel, Ops. Cit.). Esse processo progressivo de atribuição e gerenciamento de sentidos intersubjetivos equivale à própria construção do “grupo” enquanto coletividade. Os indivíduos se reconhecem como grupo na medida em que suas falas os permitem elaborar sentidos comuns acerca dos conflitos, das relações e da própria identidade do grupo. Assim, aquilo que veio a ser uma percepção compartilhada _ o tripé “não há crime” + “a lei é injusta” + “as mulheres também devem ser tocadas pela lei” _ foi progressivamente construído, na medida em que as primeiras falas individuais definiam a questão como um tema a ser debatido e as falas seguintes o consolidavam e desenvolviam. Enquanto essa percepção é coletivamente construída na configuração das falas, o grupo emerge enquanto unidade identitária. Pouco a pouco, os homens percebem-se relativamente coesos, “cúmplices”, unidos em torno da construção e reprodução de um discurso e identidade coletivos, mais ou menos homogêneos, cujo núcleo expressivo gira em torno do que chamarei de “vitimização masculina”, materializado no tripé discursivo acima mencionado 40. Portanto, desde a primeira sessão, um dilema é instaurado: de um lado, as ações dos profissionais fundam-se na noção de “responsabilização” dos homens; de outro, os homens constroem-se como grupo a partir de sua “vitimização”. Os homens atribuem significados aos conflitos íntimos vividos que constantemente se tensionam com as expectativas e propósitos dos profissionais. Em primeiro lugar, muitos dos homens não consideram que suas atitudes nos conflitos configurem “crime” ou “violência”. Alguns

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Ver Marques (2007), para uma análise sobre um “grupo de reflexão para homens autores de violência”, em que se discute, entre outras questões, a construção da vitimização entre os homens participantes.

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consentem apenas que foi um “erro”, e, frequentemente, um erro justificável ou desculpável pelas circunstâncias em que se deram. Por isso, percebem a Lei Maria da Penha como “injusta” e impositiva, assim como o rótulo de “agressor” por ela criado41. Investem bastante tempo de fala na desqualificação da lei, embora também tenham se interessado pelos outros temas de discussão propostos. O rótulo delitivo de “agressor”, acionado pela acusação pública _ ou seja, justamente o elemento sobre o qual repousam os pressupostos formais do grupo, a partir dos quais são definidos seus objetivos e atividades _ é repelido pelos homens e percebido como categoria estranha ao mundo dos conflitos íntimos e familiares. Em geral, os conflitos são percebidos pelos homens como provocados principalmente pelas mulheres. O comportamento delas nos conflitos e a denúncia que elas fizeram figuram para os homens como os principais “problemas” a serem discutidos. Assim, a Lei Maria da Penha, ao proteger exclusivamente a elas e ao admitir apenas uma forma vitimização, a feminina, é percebida pelos homens como uma lei que não leva em conta as dinâmicas “reais” dos conflitos conjugais, em que as mulheres também “agridem”. Diante disso, a participação no grupo, ao menos nas primeiras sessões, lhes aparece como impositiva, indesejável. Assim, entre as expectativas dos profissionais e os usos que os homens fazem do grupo, existe uma distância considerável. A criação de um espaço privilegiado de “diálogo” e “reflexão” dentro da Justiça parece produzir um paradoxo: o exercício de diálogo entre os homens os permite elaborar e comunicar sentidos sobre si próprios, suas relações íntimas, os conflitos vividos, a lei e as mulheres, mas não necessariamente esses sentidos correspondem aos que os profissionais consideram desejáveis. Os homens, ao compartilharem suas experiências, modelam à sua maneira os conteúdos do diálogo, reinventando e problematizando os propósitos que os profissionais atribuem ao grupo. O dilema “responsabilização-vitimização” está presente em todas as sessões. No espaço desse exercício analítico inicial, identifico-o como um dos principais aspectos que caracterizam o funcionamento do grupo de reflexão, embora não o único. 41

Esta percepção negativa sobre a Lei Maria da Penha transcende os ordenamentos de gênero, dentro dos quais os conflitos ordinários entre homens e mulheres não são necessariamente vistos como crimes. Corrobora também o padrão social identificado por Kant de Lima (mimeo, p.262), de que, no Brasil, os modelos jurídicos de controle social tendem a ser percebidos como “constrangimentos externos ao comportamento dos indivíduos”, em virtude de serem produtos de formulações especializadas das “autoridades” e não da negociação coletiva entre indivíduos formalmente iguais.

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Os profissionais conhecem o dilema. Ao longo de suas experiências em vários grupos, acumularam um conhecimento típico sobre os homens que participam dessas atividades e as suas maneiras típicas de atribuir significados aos elementos que habitam o universo dos conflitos íntimos. Por isso, desenvolveram estratégias para que a sessão do grupo seja atrativa para os homens, estimule à fala e propicie, em algum grau, a “reflexão”. O recurso a vídeos “educativos” e dinâmicas de grupo é uma dessas estratégias. Mas, principalmente, os profissionais sabem que uma abordagem de confronto, controladora ou acusatória é inútil, pois inibiria imediatamente o diálogo ou constrangeria o potencial criativo do grupo, transformando-o num ambiente opressor e defensivo. Se o diálogo entre os homens toma rumos que se distanciam dos propósitos “reflexivos” desejados, os profissionais devem ser cautelosos em suas estratégias para tentar redirecionar a atenção dos homens para outro assunto. Um dos artifícios usados pelos profissionais é transformar afirmações em perguntas. As perguntas funcionam, como me disse uma vez o Dr Marcio, como “provocações”. Elas têm múltiplas vantagens: dificilmente ofendem ou contrariam alguém, são fórmulas que convergem a atenção dos participantes e ajudam a abrir uma nova frente de discussões. As perguntas são preferencialmente abertas, de forma a favorecer um escopo amplo de discussão, evitando limitar ou sugerir demais os termos das respostas. De maneira geral, os profissionais evitam insistir demais em um mesmo assunto e controlar demais os conteúdos das conversas, pois não podem e não querem “tutelar” os homens, nas palavras do Dr Marcio. As idéias que os profissionais desejam veicular acerca da “violência” masculina, “machismo”, “igualdade entre os gêneros” etc. não podem, claro, ser incutidas nas cabeças dos homens a despeito deles mesmos. O trabalho dos profissionais é o de tentar oferecer aos homens ferramentas para que possam refletir sobre esses assuntos através de seus próprios termos e com suas próprias pernas. É, pois, um trabalho difícil e desafiador, cujos caminhos e resultados não são passíveis de controle por parte dos profissionais. As estratégias cautelosas dos profissionais são signos da relação delicada e tensa entre eles e os homens. No Brasil, pelo menos desde a criação dos JECRIMs, em 1995, os “grupos de reflexão” e seus similares são oficialmente adotados pelas instituições da Justiça como uma das soluções para os conflitos familiares e conjugais. A Lei Maria da Penha continuou apostando no potencial de “reeducação”, “conscientização” e

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“prevenção” dos grupos de reflexão e o juizado pesquisado adotou-os como solução preferencial dos conflitos. Entretanto, as práticas e relatos produzidos no grupo problematizam as noções de “reeducação”, “conscientização” e “prevenção”. Os próprios profissionais questionam essas noções e estão sempre discutindo, buscando aperfeiçoar o seu trabalho, avaliando os seus limites e possibilidades, refletindo sobre que tipo de eficácia ele pode oferecer. Os profissionais sabem que não há índices objetivos que possam medir a eficácia de seu trabalho quanto à “responsabilização” dos homens, pois a própria noção de “responsabilização”, não obstante oriente as ações da equipe, é percebida pelos profissionais como algo que remete a processos subjetivos e individuais de atribuição de sentidos, de difícil definição e verificação. Os profissionais acreditam, no entanto, que seu trabalho pode funcionar “pelo menos” como um mecanismo de “prevenção” de novos eventos violentos, “potencializando o efeito da lei de fazer parar a violência”. O potencial “preventivo” do grupo de reflexão, mais que um objetivo e uma convicção dos profissionais, é também o cerne de suas prestações de contas aos juízes, como de resto, a todos os que nutrem expectativas com relação à eficácia dos grupos. Pois, não por acaso, o efeito de “prevenção” se presta melhor à mensuração e verificação. Se comparada à idéia de “responsabilização”, a “prevenção” é uma justificativa mais palpável, isto é, pode mais facilmente ser percebida e avaliada pelos outros, pois é passível de ser traduzida em números. Os profissionais relataram que pretendem desenvolver meios de medir o efeito preventivo dos grupos através da quantificação da reincidência entre os homens que participaram dos grupos. O número de reincidências poderá ser adotado como índice seguro _ isto é, adequado, racional _ do efeito preventivo do trabalho desenvolvido nos grupos de reflexão. Assim, embora os profissionais invistam e acreditem no potencial de “responsabilização” de seu trabalho, eles julgam necessário definir e defender o valor dos grupos pela categoria “prevenção”, não apenas porque confiam nela, mas também porque ela carrega o prestígio dos números e da objetividade, essencial às prestações de conta aos outros e a si mesmos. Para os profissionais, a natureza subjetiva da noção de “responsabilização” não é um impedimento à sua efetivação. Pelo contrário, os psicólogos, e também os assistentes sociais, estão familiarizados à “subjetividade”. Ela é a matéria de seu

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trabalho. Atribuem a ela valor de verdade, na construção de suas percepções sobre os eventos. Mas percebem que a construção da verdade em um Juizado de Violência Doméstica Familiar contra a Mulher, embora se paute também pelos conhecimentos da psicologia e serviço social, não abre mão da “materialidade” e “objetividade” como valores essenciais, aos quais os profissionais precisam atender. Finalmente, para além da “responsabilização” ou “prevenção”, os profissionais valorizam muito o “diálogo” e a “troca de experiências” entre os homens que o grupo de reflexão é capaz de estimular. Promover o “diálogo” e a “troca de experiências” é considerado o objetivo mais básico do grupo.

Não é possível, e, segundo os

profissionais, nem desejável, controlar totalmente a direção que os diálogos vão tomar. Não é possível saber em que grau a “responsabilização” vai se efetivar. Mas a promoção do diálogo e da troca é uma certeza _ muito bem-vinda para os profissionais e, a julgar pelas avaliações dos homens sobre o grupo observado, para eles também. Os homens criticam a lei, as mulheres, o julgamento de seus casos, o rótulo de agressor e, por isso mesmo, a necessidade moral de sua participação no grupo. Mas o fazem através do diálogo conjunto. É pelo e no diálogo que também são capazes de refletir sobre “o que é ser homem”, de pensar sobre seus comportamentos, avaliar se “erraram”, e em que medida. No diálogo efetiva-se, enfim, a elaboração intersubjetiva dos conflitos. Independente da questão de se suas reflexões atendem às expectativas dos profissionais, os homens falam, e muito (embora uns mais que outros), e estão expostos às falas uns dos outros. Nesse sentido, o grupo se constitui como o espaço mais privilegiado de fala que encontrei no Juizado.

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Considerações finais

Ao mergulhar nas atividades rotineiras de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, esta pesquisa buscou analisar a Lei Maria da Penha, não do ponto de vista de sua coerência interna e jurídica, mas a partir de sua operação e das visões de mundo que mobiliza acerca dos conflitos da intimidade. As rotinas de procedimentos e interações do juizado materializam práticas de construção social do crime de “violência contra a mulher”. Deste processo de construção participam mulheres e homens envolvidos nos conflitos (e os atores que habitam seu mundo privado: familiares, amigos, conhecidos), juízes, defensores, promotores, advogados, psicólogos e assistentes sociais. A construção da verdade jurídica e das soluções apropriadas é, portanto, um trabalho coletivo de atribuição de sentidos aos conflitos e aos papéis sociais, em um meio socialmente organizado. O juizado é um espaço em que os diferentes atores operam e negociam entre si esses sentidos. Além das interações entre os grupos de profissionais e envolvidos, foi possível, através de uma abordagem etnometodológica de análise dos procedimentos de trabalho, observar mais de perto as relações entre os profissionais, as suas interpretações dos crimes e a sua produção de relatos escritos e orais pelos quais as interpretações são construídas, justificadas e compartilhadas com os outros profissionais, para a construção da verdade jurídica e das soluções. Os quatro setores analisados _ as audiências, a defensoria feminina, a equipe técnica e o grupo de reflexão _ constituem diferentes subculturas dentro da instituição (Sudnow, 1971), que interagem entre si. São caracterizadas por diferentes tipos de interação profissional-envolvidos e diferentes tipos de métodos de ação e inferência. As atividades que compõem as audiências são realizadas, além dos envolvidos, por profissionais majoritariamente da área do Direito: juízes, promotores, defensores e advogados. Em alguns casos, os profissionais da equipe técnica vão às audiências para dar seus pareceres, mas isso não é uma regra. Mais comumente, esses profissionais só aparecem ao fim das audiências, apenas para marcar, a pedido dos juízes ou do MP, as datas dos atendimentos aos envolvidos. Assim, os operadores do direito são aqueles que tipicamente habitam e coordenam as audiências. Além disso, os tipos de atividades aí

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desenvolvidos são, em termos formais, interrogatórios, descoberta da verdade, gerenciamento da ação penal (encaminhamentos, continuidade ou desistência) e definição de soluções. Os tipos de profissionais e atividades que compõem as audiências definem um ambiente próprio, com funções especializadas e modos próprios de pensar, falar, interagir e tomar decisões acerca dos crimes. Comparativamente aos outros setores do juizado, as audiências se pautam por um tipo de interação entre os profissionais e entre estes e os envolvidos, que se caracteriza, via de regra, pela conformação às formalidades do rito jurídico, pela celeridade e por rígidas hierarquias. Isto quer dizer que as falas devem restringir-se à estrutura de interrogatório, ou seja, ao formato de perguntas e respostas, o que é um tipo bastante formal de diálogo. Não é permitido aos envolvidos “dissertar” sobre os fatos e situações vividos; eles devem responder objetivamente às questões dos operadores do direito. Como se trata de conflitos íntimos, que frequentemente despertam diversas emoções, muitos envolvidos têm dificuldades de se adaptar a essas regras de expressão. Querem falar, querem ser ouvidos, querem que lhes seja feita “justiça”. E, quando, para expressar suas percepções e sentimentos, fogem às regras do rito judiciário, a hierarquia é acionada. A autoridade dos operadores da lei, especialmente do juiz, é usada para restaurar os padrões de conversação convencionados. Do ponto de vista dos envolvidos, as audiências não são, portanto, um espaço adequado para a elaboração dos conflitos, nos termos desejados por eles. Os próprios profissionais se atêm a este formato de brevidade e objetividade, mas, no seu caso, por conta da autoridade de que estão investidos, isso significa, relativamente aos envolvidos, maior liberdade de expressão. Nas audiências, são valorizados, para a atribuição de sentidos aos crimes e a construção da verdade, os relatos do registro de ocorrência, os laudos de corpo de delito, boletins de atendimento médico, relatos das partes e de testemunhas e os relatórios da equipe técnica, quando solicitados. Esses são os “documentos” do crime (Garfinkel; Beato, Ops. Cit.). Contêm elementos, que são transformados em “indícios”, a partir dos quais os eventos são interpretados e transformados em fatos. É importante observar que, não apenas a “materialidade” do crime e os riscos futuros são avaliados, como também, e talvez ainda mais, a adequação dos indivíduos aos papéis sociais de gênero esperados. É a avaliação deste tipo de “indícios” que permite, como dito anteriormente, a relativização dos papéis jurídicos de vítima e réu. É o que permite também a atribuição de sentidos aos eventos que comunicam a percepção de que são um tipo particular de

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crime, que ordinariamente não se esgota nas categorias jurídicas de vítima e réu e requer soluções consideradas mais brandas do ponto de vista penal _ preferencialmente o monitoramento, a prevenção e a reeducação em troca da suspensão do processo.42 Na defensoria feminina, as relações defensora-funcionários e defensoramulheres são menos formais e hierarquizadas; o espaço de fala se amplia. As mulheres têm mais tempo e liberdade para relatarem suas versões do fato e expressarem suas emoções. A forma do diálogo é menos rígida e ganha o formato de uma conversação relativamente informal. Sem embargo, a racionalidade jurídica ainda é muito presente nos tipos de atividades desenvolvidos aí: a construção de indícios materiais do crime que favoreçam a vítima e fortaleçam a incriminação do acusado é uma das principais atividades da defensoria e a elaboração do pedido de medidas protetivas. Por se tratarem de atividades de defesa da mulher, a categoria jurídica de vítima é central e menos relativizável aqui do que em qualquer outro setor do juizado. Isso não impede, no entanto, que a defensoria também seja palco de requisições de accounts e negociações de papéis e identidades sociais, que vêm à tona especialmente quando da reavaliação dos conflitos e das estratégias jurídicas. Nos atendimentos da equipe técnica, que visam fornecer aos operadores jurídicos elementos que embasem suas decisões, o espaço de fala e de elaboração dos conflitos se amplia ainda mais. Nas atividades de construção dos “perfis psicológicos” e “sociais” dos envolvidos, de identificação de riscos e de encaminhamentos a serviços extra-jurídicos, os profissionais da equipe operam as categorias de vítima e réu de maneira ambígua. Se, por um lado, as percebem como estranhas ao arcabouço tradicional de conceitos e práticas de suas profissões, por outro, precisam admiti-las em seus procedimentos de tomadas de decisões, ainda que de forma indireta, pois seus relatórios são solicitados a serem um tipo de documento, entre outros, que irão

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Pode-se especular também que a alta taxa de arquivamentos (cerca de 21,5% dos processos concluídos) seja uma conseqüência desta percepção, que devolve os eventos ao âmbito privado por não considerá-los crime ou matéria para o Judiciário. Mas esta é apenas uma especulação. Seriam necessários mais estudos para compreender como os arquivamentos são justificados.

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constituir o processo de construção da verdade jurídica e da interpretação oficial dos eventos. A descoberta da verdade _ “o que realmente aconteceu” _ está presente no horizonte de trabalho dos profissionais, mas pode trazer-lhes desconforto, porque seus procedimentos de descoberta da verdade, como de resto, de atribuição de sentidos aos conflitos, se pautam por métodos que não necessariamente coincidem com os tradicionalmente jurídicos. Os psicólogos e assistentes sociais levam em consideração outros tipos de “indícios” e categorias para interpretar os eventos e indivíduos: psicológicos, psiquiátricos, emocionais, sócio-econômicos. Frequentemente, são elementos “imateriais”, que carecem de prestígio na hierarquia de elementos que compõem a construção do fato criminal. Por outro lado, este não é um juizado “comum”, que trate de delitos “comuns”, criminalizados por uma lei “comum”. Trata-se de uma instituição especializada, criada por uma legislação que, no mundo jurídico, é definida como “especial”, para lidar com um tipo específico de crime, que por suas características sociais particulares, é percebido como diferente dos “comuns”, precisamente porque os significados que lhe são atribuídos frequentemente não se esgotam nas e por vezes não se adequam às categorias jurídico-criminais. As categorias da psicologia e do serviço/assistência social são consideradas por operadores do direito, homens, mulheres e profissionais da equipe como pertinentes ao universo dos crimes que ocorrem no espaço da intimidade. São legitimadas, inclusive, pela Lei Maria da Penha, quando prevê ações, equipes e serviços “multidisciplinares”. Assim, o desconforto dos profissionais da equipe decorre, não da impertinência ou inadequação de seus métodos de investigação e decisão, mas da tensão entre eles e os métodos jurídicos tradicionais. Essa tensão não inviabiliza os métodos de trabalho dos psicólogos e assistentes sociais, mas, antes, requer que se transformem e se adaptem ao mundo jurídico, que por sua vez, também precisa se adaptar a aqueles na construção social de um tipo particular de crime e na busca de soluções que lhe sejam “adequadas”. O desafio e a complexidade da criminalização da “violência contra a mulher” se traduz no fato de que a definição e tratamento desse tipo de crime parece exigir a divisão do trabalho social de construção da verdade jurídica entre dois grupos de profissionais distintos _ os operadores do direito e os psicólogos/assistentes sociais _ que operam tipos de conhecimentos distintos e, por vezes, conflitantes.

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O grupo de reflexão é proposto como parte do acordo de suspensão condicional do processo, solução considerada como a mais adequada à maioria dos crimes que “sobrevivem” ao grande processo de filtragem operado pelas desistências das vítimas e arquivamentos. Embora no grupo de reflexão também esteja em jogo a elaboração sobre “o que realmente aconteceu”, a tipificação legal, os pareceres técnicos e a decisão jurídica não estão formalmente implicados nessa atividade. O fato já foi oficialmente tipificado e as decisões jurídicas já foram tomadas; a participação dos homens no grupo é conseqüência dessa decisão. Os homens e profissionais estão envolvidos em outro tipo de atividades, que é o de falar sobre, entre outras coisas, a tipificação legal e a decisão jurídica. O “diálogo” e “troca de experiência” são a base organizativa do grupo de reflexão e, portanto, são parte da percepção dos profissionais do juizado sobre quais são as soluções mais adequadas

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. Os profissionais do juizado esperam que a participação

dos acusados no grupo de reflexão seja capaz de “potencializar o efeito preventivo” da Lei Maria da Penha, através do exercício do “diálogo” e da “troca de experiências” acerca dos conflitos, das relações íntimas e das experiências relativas à “masculinidade”. Tal exercício é concebido pelos profissionais que coordenam os grupos como uma prática que pode incentivar os homens a questionar suas percepções sobre esses assuntos e construir sentidos alternativos que os permitam “responsabilizarse” pelos conflitos vividos. A “responsabilização”, noção de difícil definição, parece referir-se a uma determinada concepção de subjetividade e indivíduo: um indivíduo que concebe os outros como diferentes e, ao mesmo tempo, iguais; que possui a consciência de que participa das relações sociais na dupla condição de objeto e agente; que possui a consciência de que essa dupla inserção implica exercício compartilhado (negociado) de poder; que possui a consciência de que é co-responsável pelas configurações de poder negociadas. Entretanto, as narrativas dos homens no grupo de reflexão observado apontam para concepções de indivíduo e de subjetividade que potencialmente se afastam daquelas. Além de familiarizados com um modelo hierárquico de relações de 43

O recurso aos grupos não é, evidentemente, uma prerrogativa do juizado pesquisado. Eles têm sido adotados como parte de uma política mais ampla de “combate e prevenção à violência contra a mulher”, segundo a qual não apenas as mulheres, mas também os homens devem ser endereçados pelas políticas públicas (Marques, Op. Cit.)

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gênero, os homens do grupo, em sua maioria, têm dificuldades de conceber as relações de intimidade como relações de poder e de perceber-se como co-agentes na negociação dos termos das relações e, especialmente, na produção dos conflitos, cuja “responsabilidade” é frequentemente atribuída às mulheres. Os profissionais sabem disso e, portanto, avaliam que o seu trabalho não é e nem pode ser o de garantir a “responsabilização”, mas o de oferecer ferramentas _ cujas formas de apropriação não podem ser controladas _ para que os homens possam potencialmente questionar suas percepções sobre “o que aconteceu”. As análises empreendidas neste trabalho mostraram que a construção social do crime de “violência contra a mulher” é modelada nas práticas cotidianas do juizado, nas quais e pelas quais profissionais, homens e mulheres atribuem significados a este tipo de crime. Mostraram também que a regulação dos conflitos da intimidade, na medida em que implica a negociação desses significados, é uma atividade caracterizada pela complexidade.

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Anexo: texto integral da Lei Maria da Penha

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: TÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. § 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput. Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. TÍTULO II DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS

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Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. CAPÍTULO II DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. TÍTULO III DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CAPÍTULO I

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DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal; IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO II DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso. § 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal. § 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:

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I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses. § 3o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual. CAPÍTULO III DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida. Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis. Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência; IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários; V - ouvir o agressor e as testemunhas;

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VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele; VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público. § 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter: I - qualificação da ofendida e do agressor; II - nome e idade dos dependentes; III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. § 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1 o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida. § 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde. TÍTULO IV DOS PROCEDIMENTOS CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária. Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado: I - do seu domicílio ou de sua residência; II - do lugar do fato em que se baseou a demanda; III - do domicílio do agressor. Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

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Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. CAPÍTULO II DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Seção I Disposições Gerais Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas: I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis. Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. § 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado. § 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. § 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público. Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor. Seção II Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor

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Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). Seção III Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

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IV - determinar a separação de corpos. Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo. CAPÍTULO III DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário: I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO IV DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei. Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. TÍTULO V DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR

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Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar. Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias. TÍTULO VI DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput. TÍTULO VII DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do serviço de assistência judiciária. Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; V - centros de educação e de reabilitação para os agressores. Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta Lei.

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Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil. Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando entender que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva. Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres. Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do Ministério da Justiça. Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei. Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios por ela adotados. Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV: “Art. 313. ................................................. ................................................................ IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” (NR) Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 61. .................................................. ................................................................. II - ............................................................ ................................................................. f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; ........................................................... ” (NR) Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 129. ..................................................

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.................................................................. § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. .................................................................. § 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR) Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 152. ................................................... Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.” (NR) Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação. Brasília, 7 de agosto de 2006; 185o da Independência e 118o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Dilma Rousseff Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 8.8.2006

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