A Leitura em Voz Alta como Sonho Desperto

July 8, 2017 | Autor: Sara Leite | Categoria: Leitura, Didatica do português, Ensino Do Português, Ensino Da Literatura
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A leitura em voz alta como sonho desperto* Sara de Almeida Leite Instituto Superior de Educação e Ciências [email protected]

RESUMO

Se ler é sonhar, como se apercebem os bons leitores, quando refletem sobre as suas experiências de leitura mais gratificantes, o acto de ler em voz alta pode ser considerado como um modo de viver esse sonho acordado de um modo ainda mais intenso e poderoso, até porque pode implicar uma componente enriquecedora não só do eu, mas também do outro, se houver testemunhas dessa interpretação. Assim sendo, a leitura expressiva tem potencialidades que devem ser amplamente exploradas não só em contexto escolar, mas também por todos os educadores em sentido lato. Todos os que cuidam de crianças e se preocupam em dar-lhes oportunidades de aprendizagem lúdica, de enriquecimento pessoal e de bem-estar emocional e psicológico devem proporcionar-lhes momentos em que elas possam ouvir e fazer leituras expressivas. "Porquê?" e "como?" são duas perguntas às quais tentamos dar resposta nesta comunicação. PALAVRAS-CHAVE: leitura, expressividade, compreensão.

Um professor americano, Jeff Wilhelm, escreveu um livro sobre o ensino da literatura e formas práticas de levar a que os adolescentes desenvolvessem um maior gosto pela leitura (You Gotta Be the Book). Nele transcreve alguns comentários de jovens a quem pediu que descrevessem o processo de “imersão na leitura” de livros que lhes agradaram. Alguns disseram que, quando se começavam a sentir entusiasmados com o texto, quando “entravam” na história, era como se dessem um mergulho numa piscina e nunca mais lhes apetecesse vir à superfície. Uma aluna observou que era como se tivesse deixado de ler e estivesse antes a sonhar. O sonho é de facto uma experiência semelhante à da leitura, quando há uma relação equilibrada entre as 3 variáveis – texto, contexto e leitor –, ou seja, quando se reúnem as condições ideais para que o leitor “mergulhe” para dentro do texto. Quando o texto é

* Texto de comunicação apresentada no 10.º Encontro AREAL de Educadores de Infância e Professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico, em Lisboa, a 02/03/2013 (Culturgest) e no Porto, a 16/03/2013 (EXPONOR).

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adequado, o leitor está predisposto a ler e tem os conhecimentos necessários para o compreender, e o contexto lhe permite concentrar-se na compreensão do que lê, começa essa espécie de sonho desperto que nos transporta para outros lugares e tempos, que nos permite esquecer o nosso aqui e agora, que nos faz sentir outros, que nos liberta e nos faz depois reencontrarmo-nos; que, nos casos mais felizes, que nos leva a sentir que ficamos enriquecidos, ou até que crescemos. O que valorizamos aqui no sonho não é o significado da sua linguagem simbólica, nem a sua finalidade (quer entendamos o sonho como capacidade premonitória ou manifestação do inconsciente). A razão pela qual comparamos o processo de leitura de um texto ao processo onírico prende-se com a experiência em si: a experiência da absorção na leitura tal como foi descrita pela jovem estudante e que todos nós, mais ou menos vezes, já teremos experimentado. Essa experiência de imersão não acontece sempre que lemos um texto (tantas vezes lemos mal e apressadamente por falta de tempo ou de disponibilidade mental), nem acontece com todos os tipos de texto (quem é que “mergulha” numa ata, num relatório ou numa notícia de jornal?). Mas quando acontece, a experiência do mergulho deixa-nos profunda e intimamente satisfeitos, de tal modo que pôr-lhe fim é como acordar de um sonho maravilhoso, em que estávamos felizes porque éramos capazes de ser, sentir, ver, ou ter aquilo que na vida real não está ao nosso alcance, porque é algo que já perdemos (a infância, por exemplo), algo impossível de alcançar, ou algo que ainda não pudemos experimentar. Quando ler é como sonhar, a experiência que temos é a de ser alguém com outra vida, outras companhias, outras capacidades, mas também, porque não, outras limitações, outros problemas e preocupações. O texto literário convida-nos a interpretar as personagens de uma história que podia ser a nossa, a falar com a voz, ou as vozes, que se ouvem no texto, e que quando lemos passam a falar dentro de nós. O mundo do texto torna-se por momentos o nosso mundo, porque somos nós quem o concretiza. Porém, quando a leitura é feita em silêncio, no íntimo da nossa consciência, o sonho pode sofrer quebras, podemos acordar de vez em quando e olhar pela janela, pensar noutra coisa ao mesmo tempo que lemos, enfim, é mais fácil distrairmo-nos do sonho e voltarmos à realidade – às vezes sem darmos por isso, ou pelo menos sem interrompermos o curso da leitura, mesmo com prejuízo da compreensão. Mas se a leitura for feita em voz alta de forma expressiva, a probabilidade de isso acontecer é mínima, porque o leitor se assume como um intérprete, uma espécie de “superator” a quem cabe representar todos os papéis, mais o narrador. Uma vez que mergulha na 2   

 

representação, que entra no sonho, só pode voltar à superfície, abandonar o palco, ou acordar, quando for hora de fechar o livro. Essa é, portanto, a grande mais-valia da leitura em voz alta enquanto sonho desperto: é um sonho mais vívido, dinâmico e intenso, do qual só se acorda por motivos de força maior – e não por todos os motivos de força menor que tantas vezes, quando lemos “para dentro”, nos fazem chegar ao fim do texto e sentir necessidade de o reler, porque não estávamos com atenção. Evidentemente, para que a leitura em voz alta possa funcionar da maneira como estamos aqui a concebê-la e a valorizá-la, o leitor tem de estar à altura da tarefa, não pode ser um mau “ator” do texto, um intérprete desprendido, que não se envolve, que não sente o papel. Mas, precisamente, se nos mantivermos fiéis à comparação da leitura com o sonho, percebemos como não se pode “sonhar mal”, não se pode ser um mau sonhador: ou se sonha, ou não se sonha. Para voltar à imagem aquática, ou se mergulha, ou não se mergulha. Por isso é que consideramos que a leitura em voz alta, desde que seja expressiva, é o sonho desperto por excelência, ao passo que a leitura silenciosa pode ou não sê-lo, mas é mais frequentemente uma mera aproximação ao sonho, ou um sonho com intermitências. Assim sendo, a leitura em voz alta tem potencialidades que devem ser amplamente exploradas não só em contexto escolar, mas também por todos os educadores em sentido lato. Todos os que cuidam de crianças e se se preocupam em dar-lhes oportunidades de aprendizagem lúdica, de enriquecimento pessoal e de bem-estar emocional e psicológico devem proporcionar-lhes momentos em que elas possam não apenas ouvir leituras expressivas, mas também fazê-las. Primeiro, claro, é necessário que as crianças tenham diversas oportunidades de testemunhar este tipo de leitura. As interpretações a que elas assistirem funcionarão como modelos do que elas poderão vir a realizar, pelo que é crucial que as leituras para as crianças não sejam feitas de forma apressada, desprendida. E a este propósito vale a pena pensar se a rapidez de leitura associada à ideia de eficácia, e promovida enquanto objetivo escolar, não será prejudicial à fruição e à interpretação dos textos, por sua vez tão importante, quando se pretende, a longo prazo, estimular o apetite pela leitura... Se o adulto fizer uma leitura sentida e expressiva, a criança interiorizará a ideia de que ler um texto em voz alta pressupõe a preocupação do leitor em conferir vivacidade ao texto, ou seja, não irá encarar esse ato como uma mera decifração de palavras impressas e alheias, mas como uma interpretação (no sentido musical ou teatral do termo) em que

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o intérprete se assume totalmente como sujeito enunciador do discurso, com todas as modulações de tom e expressões faciais e corporais que isso implica. A teatralidade inerente a uma boa leitura em voz alta tem dois objetivos muito importantes: por um lado, o de evasão, proporcionado pelo fingimento que se pretende tão convincente quanto possível, pelo assumir do papel alheio a si, que torna a leitura numa atividade lúdica e sedutora; por outro lado, tem o objetivo de aproximar mais o leitor do texto, favorecendo a sua compreensão, uma vez que não é possível ler de forma expressiva, teatral, um texto que não se compreendeu bem (ao passo que é possível ler e continuar a ler, em silêncio, um texto que se está a compreender mal). Ao ouvir leituras expressivas, a criança perceberá que interpretar um texto é uma atividade agradável, que dá prazer não só a quem a presencia, mas contribui visivelmente (sublinhemos visivelmente) para o bem-estar de quem lê. Porque quem lê com alma lê com gosto, e esse gosto é evidente e, em princípio, contagiante. Deste modo, despertase no espírito da criança que ainda não é leitora a curiosidade em relação à leitura. O modelo, ou o exemplo, não tem de vir apenas do adulto, o modelo pode ser uma criança mais velha. Por exemplo, numa escola básica com jardim de infância, podem convidar-se os melhores leitores do 1.º Ciclo para ir ler às salas do JI. Assim, as crianças mais novas sentirão mais próxima de si a magia de interpretar uma história, a possibilidade de viver na primeira pessoa as aventuras das suas personagens. Aliás, a experiência de interpretar expressivamente um texto nem sequer está reservada aos que sabem ler. Todos temos noção da facilidade com que as crianças são capazes de memorizar os textos de que gostam especialmente e que têm oportunidade de ouvir com frequência. Então, porque não convidar os pequenos pré-leitores a interpretar passagens de histórias conhecidas, quando já as sabem de cor? Dessa forma, estaremos a valorizar a sua capacidade de assimilação e interpretação do discurso, a estimular as suas capacidades de expressão e a permitir-lhe experimentar, antecipadamente, o que umas pequenas marcas no papel podem fazer por nós. Numa fase posterior, quando já domina o código escrito, a criança deve ter frequentes oportunidades de sentir a satisfação de dar voz audível às histórias impressas, descobrindo o prazer de sair de si, de ser outros seres, de viver outras vidas através de uma experimentação mais ativa dos textos. Isto irá permitir-lhe desenvolver competências linguísticas e comunicativas, mas há outros ganhos porventura menos valorizados. Ouvir a sua própria voz a concretizar um texto da sua preferência, uma história de que ela gosta particularmente, pode contribuir para aumentar a autoestima da 4   

 

criança, a sua autoconfiança, e também a sua sensibilidade para a importância da partilha espiritual, para a existência de uma certa cumplicidade que pode existir entre seres humanos, e que é tão importante em tantas áreas da vida em sociedade. Tendo estas ideias em conta, que sugestões práticas podemos apontar para atividades de leituras em voz alta, independentemente do nível de ensino? Muito do que se possa fazer dependerá, naturalmente, das circunstâncias particulares em que se encontra cada turma, para não dizer cada aluno, no momento que se considera oportuno para uma tarefa de leitura em voz alta. Mas podemos destacar as seguintes: 

Antes de os convidar a ler em voz alta, sensibilizar os alunos para a leitura expressiva em vários momentos e por meio de modelos diversificados: leituras gravadas em áudio e/ou vídeo, visitas de contadores de histórias, leituras feitas pelo professor, por colegas, por encarregados de educação, por outras crianças da escola. Todos estes modelos devem ter em comum o facto de constituírem interpretações expressivas, claras e naturais, que conseguem criar a ilusão de que o discurso não está a ser lido, mas dito em primeira mão, como que pela primeira vez.



Selecionar criteriosamente os textos a ler: pela extensão, que deve ser apropriada ao tempo disponível para a leitura e releitura; pela sua adequação à “zona proximal de desenvolvimento” (na conhecida expressão de Lev Vygotsky) dos leitores que com ele terão de se familiarizar; pelo enredo dinâmico e entusiasmante; pelo interesse e/ou novidade do tema subjacente à história; pela diversidade rítmica e entoacional, desfavorecedora de leituras monocórdicas; e por outras qualidades consideradas de acordo com os leitores e ouvintes a que se destinam os textos em cada caso particular.



Motivar os alunos para que surja deles, pelo menos em parte, a vontade de interpretar os textos em voz alta. Estratégias para essa motivação poderão incluir deixar ao seu critério a escolha dos textos, de acordo com as suas preferências; convidar outras turmas, encarregados de educação, etc. para assistir à leitura; promover concursos para selecionar a melhor leitura, confiando aos próprios alunos a tarefa de votar (um diploma poderá ser o prémio); dividir a turma em grupos para fazerem leituras coletivas, de modo a que os melhores leitores possam apoiar os leitores menos aptos; entre outras.

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Dar tempo suficiente para que o aluno se possa familiarizar com o texto, através de várias releituras anteriores à leitura em voz alta. Todo este trabalho contribuirá para consolidar a compreensão e desenvolver competências ao nível dos vários processos de leitura (v. GIASSON, 2000): resolver dúvidas de vocabulário e pronúncia, dificuldades de compreensão de frases (microprocessos e processos metacognitivos), explorar as relações de sentido entre as várias partes do texto (processos de integração) e interpretar a mensagem implícita (macroprocessos), compreender que tons de voz são adequados a cada frase, reagir emocionalmente ao texto, encontrar a sua forma pessoal de se identificar com o que é dito (processos de elaboração).



Ocasionalmente, utilizar meios de gravação (áudio e/ou vídeo), para que os alunos se possam ouvir e observar a ler expressivamente. Nessas ocasiões, é importante que o educador/professor também se exponha e se sujeite à gravação, mostrando ao aluno como esse processo serve para que cada um possa analisar o seu desempenho e autoaperfeiçoá-lo.



Dar ao aluno a oportunidade de melhorar o seu desempenho na leitura de um texto, sobretudo quando ele próprio chega à conclusão de que é capaz disso. Não há nada mais frustrante do que querer – e saber – fazer melhor e não ter essa oportunidade…

Do que ficou escrito atrás, gostaríamos de salientar como fundamental a ausência de pressa nestas atividades. É preciso não só dar tempo para que os alunos possam preparar devidamente a sua interpretação oral dos textos, para que possam sentir-se confiantes relativamente à sua prestação, mas também para que resulte da experiência um sentimento de completude, de satisfação pelo cumprimento cabal da tarefa. Por constrangimentos de tempo, é claro, cada leitor individual pode passar a voz a outro, e desta forma um texto pode ser lido pela turma toda. Mas parece-nos importante insistir neste ponto: a voz, individual ou coletiva, que se dá ao texto, deve fazer-se ouvir até à última linha, de forma que a interpretação oral faça justiça ao texto por inteiro. Quantas vezes não acordamos na melhor parte do sonho e não desejamos voltar a adormecer, para poder continuar aquela experiência maravilhosa e saber como acabava a história? Pois uma leitura em voz alta deve ser encarada precisamente como um sonho que podemos (e devemos) viver até ao fim, e inclusivamente reviver, sempre que nos apetecer. 6   

 

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