A leitura literária nas memórias de infância de Graciliano Ramos: a narrativa da transformação tomada em perspectiva pessoal em \"Sem fôlego\"

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

A leitura literária nas memórias de infância de Graciliano Ramos - a narrativa da transformação, tomada em perspectiva pessoal

Aluno: Gabriel Machado Rodrigues da Silva Disciplina: Literatura Infantojuvenil em Língua Portuguesa – Módulo II (2013) Professora: Nilma Lacerda

A literatura é um bem essencial e, como tal, deve ser um direito de todos, tão importante quanto outros elementos indispensáveis para a sobrevivência. Essa visão, defendida por Antonio Candido em “O direito à literatura”, parece muito avançada para o mundo atual, e mais ainda para o mundo de Graciliano Ramos, no Nordeste pobre retratado em Infância, já carente de tantos bens que ninguém discute serem essenciais. Um menino exilado num mundo com quase nenhum livro e sem leitores, com uma educação mecânica e punitiva, com violência e desleixo. Em um cenário daqueles, dificilmente a literatura seria encarada como Candido a via: uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade (p. 186).

Sem saber, Graciliano buscava a integridade espiritual, a ordenação interior permitida pela organização das palavras do nada em um todo articulado. Queria ser mais humano, pois, como Candido afirma, “não há homem que possa viver sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de efabulação” (p. 174). Aliás, talvez nem houvesse equilíbrio social sem a literatura, que compreende não só os livros, mas também “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade” (Idem). A possibilidade de ver o mundo de uma forma nunca pensada, de alimentar o imaginário, com certeza contribuiu para a atração a esse universo da literatura. Por meio dela, Graciliano pôde experimentar a con-versão: saiu de uma vida medíocre para uma com sentidos, sensível, emotiva. E essa trajetória começou ainda no nível das palavras soltas que não estavam articuladas. As letras lhe vêm ainda desconectadas na soletração, as palavras que buscam significados, como as pitombas, o grajau, o tributo, o inferno que precisa ganhar sentido. Segundo escreve Cláudio Leitão no posfácio à 46ª edição de Infância, “é a alfabetização em território estranho – o da oralidade – que se inicia”; o menino “quer logo associá-las aos novos ícones” (p. 272). Ele ainda não consegue usar as palavras e ser sujeito, pois é um infante, por definição etimológica, aquele que não fala, e desenvolve aos poucos sua expressão, como se vê no seguinte trecho: “Não percebendo o mistério das letras, achava difícil que elas se combinassem para narrar a infeliz notícia [o fim do mundo]” (p. 76).

Apesar de tudo, Graciliano não deixa de questionar, pois ele não quer simplesmente codificar elementos, mas compreender. Ao contrário de sua mãe, que não é capaz de produzir significados, de construir sentido a partir da leitura repetitiva do longo romance de quatro volumes, dos contos que “pareciam absurdos” e, especialmente, da sua dita “literatura religiosa”: os folhetos de capa amarela, publicados pelos salesianos. Segundo Roland Barthes, esse tipo de texto nem poderia ser considerado literatura, já que esta “permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (p. 9), ou seja, não inserida dentro do discurso de poder da Igreja Católica. Além disso, Candido lembra que sempre é necessária uma forma ordenadora, uma estrutura literária para que a mensagem ideológica tenha eficiência, ao menos em uma mente mais instruída (p. 181). Portanto, não é junto à mãe que Graciliano começará a trilhar seu caminho pelas letras, mas na companhia do pai, que logo salienta ao filho que “as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis” (p. 109). Armas contra a ignorância, a passividade, a manipulação, a favor da cidadania, do crescimento, da inteligência. É como Candido descreve uma das possibilidades da literatura, de ser “um instrumento de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles” (p. 186), de estar fora do poder. Porém, para Graciliano, o aprendizado da leitura logo se afigura uma escravidão, devido à truculência do pai e às frases soltas e moralistas, muitas vezes incompreendidas: “veio-me grande enjoo às adivinhações e aos aforismos” (p. 116). Já os contos de Gonçalo Fernandes Trancoso são entendidos facilmente, apesar de serem “histórias de proveito e exemplo”, ou seja, moralistas. 1 A facilidade, naturalmente, não implica gostar do que se lê. Os “conselhos absurdos” ganham uma proporção maior com as obras do temível Barão de Macaúbas (Abílio César Borges). As histórias se mostram surreais, com diálogos muito empolados envolvendo animais, e Graciliano nada aproveita, ridicularizando a moral tatibitate, enredando-se na linguagem dos doutores. O desencanto com a pretensa literatura se intensifica, em nada contribuindo para o aprendizado da leitura: “pegar-me-ia a Deus, pedir-lhe-ia que me livrasse do Barão de Macaúbas. Nenhum proveito a libertação me daria: os outros organizadores de histórias infantis eram provavelmente como ele” (p. 132). Histórias adultocêntricas, em que o ponto de vista da criança é solenemente

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http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/trancoso.htm. Acesso: 11/08/2013.

ignorado em prol da doutrinação. Seguem-se mais livros do Barão, até mesmo a Edição escolar dos Lusíadas de Camões, e isso quando o menino tinha apenas 7 anos. E o interessante é que o Barão de Macaúbas celebrizou-se pela participação e premiação em congressos nacionais e internacionais de educação, pela inovação nos métodos de leitura, escrita e desenho. Isso porque assim era a visão da época de uma educação infantil. De ponto positivo, ele distribuiu livros, combatia os castigos corporais e questionava o pouco acesso das crianças aos livros de leitura, tendo publicado justamente a série de Livros de leitura, usada por Graciliano. A visão do período é expressa no seguinte trecho, sobre um dos volumes da coleção: O Primeiro Livro de Leitura do „Método Abílio‟ representa um surpreendente salto na pedagogia brasileira. Até então, a aprendizagem de leitura se iniciava com abecedários manuscritos, papeis de cartórios e toscas cartilhas. (Pfromm Neto apud Valdez, 2004)

E o próprio Barão declarou: “os nossos meninos [...] saem das escolas aos 13 e 14 anos de idade no mais lastimoso estado de ignorância, sem o hábito de pensar e sem ligar o mínimo valor ao que leem” (apud Valdez, 2003). Essa é a realidade das escolas por onde passou Graciliano, que só alimentavam o desprazer pela leitura. Como Alfredo Bosi escreve, acerca de outro assunto, mas encaixando-se aqui muito bem com relação aos estudantes: “não havia quem os orientasse, não havia quem fizesse com eles os primeiros desbastes e com eles partilhasse as primeiras opções, o que tão só a escola desinteressada [...] pode e deve fazer” (p. 263). Apenas a professora D. Maria fazia isso, dando atenção e a opção de escolher. De resto, apenas uma letargia que deixava a mente estagnada: “Não há prisão pior que uma escola primária do interior” (p. 206). No sertão, as histórias se repetiam, lidas e relidas diversas vezes, como os quatro volumes da mãe de Graciliano e o romance de Adélia e D. Rufo, memorizado por Mocinha, a meia-irmã meio analfabeta. As histórias também multiplicavam-se nas narrações, nas lendas de bruxas, duendes, gigantes, contadas, por exemplo, por D. Agnelina, que transmitiu ao menino “afeição às mentiras impressas” (p. 212). Quando o sobrenatural já não tem mais efeito, ele declara: “Eu não podia resignar-me. As almas do outro mundo e os lobisomens adquiriam muito valor, faziam-me falta” (p. 191). E são os lobos que deixam Graciliano assombrado. Surpreendido pelo pai, que nunca tomava a iniciativa de se aproximar, ele percorre, amedrontado, o caminho tortuoso da leitura. O pai lhe explica, traduz expressões “em linguagem de cozinha”, resume os fatos, ou seja, constrói sentido, ao contrário da esposa. Graciliano conta a experiência:

“E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito” (p. 207). A chama do prazer se acende no menino, que não consegue tirar da cabeça os personagens, “criaturas de sonho, incompletas e misteriosas” (Idem), mas o pai acaba se afastando de novo e frustrando o filho, porém surge a oportunidade de Graciliano se aventurar pelo caminho sozinho, como sugere sua prima Emília. O garoto começa a perceber que não é uma besta, que não tem fraqueza mental, taxações que eram fruto da falta de incentivo da família, que não aprovava seu modo de agir independente, questionador. Pelo contrário: ele lê melhor do que o colega mais velho e já sabe comparar desempenhos, agora que é praticamente alfabetizado e lê por vontade própria. Naquele momento, é necessário decodificar os sinais já não tão hostis. Tendo entendido pedaços e sido atraído pela história, ele considera aquele o maior romance do mundo, mas depois a certeza se abala com a vivência expandida. Apartado do mundo da cultura letrada, Graciliano afinal se reconhece nas personagens, como os operários mencionados por Bosi em “A escrita e os excluídos”, e percebe que, da mesma forma que nem toda escrita se parece com “aquela conta-de-menos” do patrão de Fabiano em Vidas secas, nem todo livro é um Barão de Macaúbas, uma lista de moralismos e artificialidades. O garoto descobre os poderes da letra de fôrma, a força da letra viva (Bosi, p. 263, 264). Na escola, a via-crúcis de leitura continua, agora com uma terrível seleta clássica. O autor é Samuel Smiles, que se notabilizou por escrever livros que exaltavam as virtudes da “autoajuda”, o moralismo, a sabedoria paternalista, exemplos dos valores da sociedade vitoriana.2 Como sempre, se tratava de conselhos nebulosos, distantes da realidade de Graciliano. Aparece, então, seu próximo encantamento literário, um folheto de capa amarela e papel ordinário, com letras miúdas e linhas bem juntas, de nome O menino da mata e o seu cão Piloto.3 A leitura era penosa, “como quem decifra uma língua desconhecida” (p. 218), mas também o prendia, pois, como o livro dos lobos e as lendas de D. Agnelina, mostrava crianças abandonadas e infelizes que se superavam, parecidas com o próprio Graciliano. Proibido por Emília de continuar a ler (justamente por quem o incentivara a ler por conta própria o outro volume), o menino conhece o poder ideológico contido nas sugestões ou omissões de leitura. É significativa a forma 2

Self-help, um dos livros mais importantes de Samuel Smiles, digitalizado: http://archive.org/stream/selfhelpwithillu00smiliala#page/n9/mode/2up. Acesso: 11/08/2013. 3 Livro disponível em: www.scribd.com/doc/59590999/O-Menino-da-Mata-e-seu-Cao-Piloto. Acesso: 11/08/2013.

como ele encara a situação – “Encontrei depois muitas intolerâncias, mas essa foi para mim extremamente dolorosa” (p. 220) –, mostrando como a leitura já tinha um papel essencial em sua vida. Já não diferenciando personagens de seres reais, ele até se esquecia do “código medonho” que o importunava (p. 221). A partir daí, a necessidade de ler de Graciliano é tão grande que ele procura uma fonte duradoura de livros e acaba encontrando a biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto, mais acessível. Para o garoto, bibliotecas eram um mundo distante, uma mostra da privação de bens espirituais, que deveriam estar ao alcance como um direito. Os “donos do saber”, os detentores de livros, eram vistos como autoridades, superiores, como guardiões de um santuário. A sede de letras o impulsiona a falar com o homem, em “uma inexplicável desaparição da timidez, quase a desaparição de mim mesmo” (p. 231). Começando por José de Alencar, ele passaria por Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne, Ponson du Terrail e vários romances “de carregação”, segundo Jerônimo, por não serem de alta qualidade, mas de entretenimento. A escola passou a ser espaço para aprender mais sobre os lugares onde se passavam as histórias. “E o mapa crescia, povoava-se, riscava-se de estradas por onde rodavam caleças e diligências” (p. 233). Detestando o decoreba e as rotulações, Graciliano fingia não saber as respostas que só sabia de cor e não entendia, sendo, assim, malvisto. Para ele, das aulas só se salvavam os elementos que serviam para a composição de narrativas, e todas as pessoas começavam a ganhar caracteres dos personagens dos folhetins. A leitura transformava totalmente seu mundo e sua visão, seus hábitos e linguagem, incomodando a mãe, o professor e os caixeiros-viajantes. Porém, para Graciliano, só importava Jerônimo Barreto, que lhe “fornecia a provisão de sonhos” (p. 235). Já colaborador de um periódico pomposo, o menino se vê no dilema entre ler os clássicos como Coelho Neto, muitas vezes considerados maçantes, ou livros de baixa qualidade, “bugigangas”. O meio acadêmico o forçava para a “alta literatura”, que ele considerava chinfrim, mas que preferia não contestar por considerar os outros autoridades. Graciliano começa a ler obras do naturalismo – movimento fundado por Émile Zola que tinha “como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão, o desvalido, a prostituta, o discriminado em geral” (Candido, p. 184) –, como Casa de pensão e O Coruja, de Aluísio Azevedo, Cenas da vida amazônica, de José Veríssimo, e a série de 20 livros Les Rougon-Macquart, de Zola, segundo Candido, “uma epopeia do povo oprimido e explorado” (Idem). Por meio desses livros,

Graciliano continua a acompanhar as pessoas abandonadas, os excluídos, assim como em títulos de Victor Hugo. Porém, às vezes sente saudade das personagens de folhetim e volta às “leituras fáceis”, mas sem deixar que os demais soubessem, para não sofrer preconceito: “Disfarçava-os cuidadoso e, fortalecido por eles, submetia-me de novo ao pesadume, ia buscar o artifício e a substância, em geral muito artifício e pouca substância” (p. 249). A literatura já está tão entranhada em Graciliano que, quando lhe aparece a paixão Laura, ele a compara com donzelas finas de folhetim, a bordadeira de paramentos de O sonho (da série Les Rougon-Macquart) e uma santa da Legenda áurea. Uma de suas virtudes destacadas é saber dividir períodos, classificar orações, algo bem peculiar para salientar, mas uma mostra da importância da língua para o já não tão menino. Mais maduro, ele não se censura mais e fica indiferente a O cortiço e sua “safadeza para atrair leitores” (p. 268), rumo às mais complexas novelas russas. Graciliano já estava inexoravelmente deslumbrado com a literatura e capacitado para ler o mundo, ler a vida. Como Cláudio Leitão diz no já citado posfácio de Infância: “ler supõe exposição ao inusitado, ao inesperado, à surpresa e ao sofrimento” (p. 278). E é esse deslumbramento que explica por que escolhi o livro Sem fôlego, de Brian Selznick, para figurar neste trabalho. Eu já conhecia o trabalho desse autor de A invenção de Hugo Cabret, um projeto original que alterna texto e ilustrações belíssimas, em que as imagens não são mera decoração, mas realmente parte da história: se elas são retiradas, perdem-se acontecimentos. A trama é protagonizada por duas crianças, ambas sem pais, uma delas sozinha no mundo, e gira em torno de autômatos e do início do cinema. Na segunda obra, Selznick retoma dois personagens crianças que se sentem abandonados, além de assuntos históricos, como os precursores dos museus e a passagem para o cinema falado. O grande diferencial é a maneira como o escritor/ilustrador consegue incrementar a forma do livro anterior e criar a história de um menino, Benji, apenas por texto, e de uma menina, Rose, só por imagens, para no fim cruzar as duas tramas, mesclando palavras e imagens. E isso me encantou, pois o autor conseguiu ser ainda mais original. Essa foi a primeira experiência, a primeira visão, já que o livro todo foi me maravilhando ao longo da leitura. O deslumbramento já se encontra no próprio título em inglês, Wonderstruck, retomado pela tradução, Sem fôlego: a pessoa perde o ar diante de algo estonteante. E a admiração explorada neste livro é por museus, astronomia, livros e obras de arte em geral, como o maravilhamento de Graciliano pela literatura, pelas palavras, pela língua.

A obra é dividida em três partes: a apresentação dos protagonistas, a fuga de cada um para Nova York e o encontro dos dois. A história de Benji (chamado de Ben) se passa no Lago Gunflint, Minnesota, em junho de 1977, e a de Rose, em Hoboken, Nova Jersey, em outubro de 1927. Nos dois casos, é marcante a ausência de uma figura amorosa materna ou paterna, da mesma forma que na vida de Graciliano, que tinha pais violentos e autoritários. A mãe de Ben morreu e ele não sabe nada do pai. Ainda que ame os tios, não se sente em casa com eles e sonha que o pai virá buscá-lo numa espaçonave. Rose mal vê a mãe atriz e o pai é ríspido. Os dois são separados e a mãe casou com um jovem ator, um escândalo para a época. Encerrada em casa por ser surda, considerada incapaz, ela tem um tutor, de quem não gosta. Além dos protagonistas, outro personagem de destaque tem uma vida familiar problemática: Jamie, que se torna amigo de Ben, tem pais separados, que não são próximos dele. Em todos os casos, a criança não se sente confortável em seu mundo e busca um algo a mais. Também na área familiar, Graciliano e Ben têm em comum a importante relação com a prima. Graciliano achava que Emília não era deste mundo, mas um anjo, que o ajuda a aprender a ler e o incentiva a seguir sozinho pelas histórias. Janet sempre foi gentil com Ben e o encontra escondido no armário da mãe após o funeral, sentando-se ao seu lado para chorar junto a ele. Ambas são um refúgio necessário em meio ao caos da existência. Na primeira página do livro, há um impacto: a ilustração de dois lobos correndo e, a cada página dupla, eles se aproximam mais. Logo me veio à cabeça a história dos lobos que perseguem um casal com filhos, que provocou uma transformação na vida de Graciliano, abrindo as portas para o prazer da leitura. Em Sem fôlego, os animais estão atrás de Ben, povoando seus pesadelos toda noite desde a morte da mãe, sem que ele saiba por quê. Os lobos estão presentes por todo o livro, aparecendo na tampa da caixa que Elaine deixara para o filho, e são parte da chave do enigma de quem é o pai do menino. No fim, o que parecia ameaça se mostra resposta e ajuda, e a imagem inicial retorna, só que em foto, em sua forma real. Outro elemento que logo se destacou foi a paixão de Ben pelo espaço sideral, por “ler” o céu, função dos astrônomos mencionados por Emília, prima de Graciliano, o qual se pergunta: “Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?” Esse foi um grande incentivo para que ele seguisse na

prática por conta própria. E Ben continuou sendo formidável, como Graciliano chamava os astrônomos, estudando tudo sobre o universo e a origem do Lago Gunflint após a queda de um meteorito, pintando o quarto de preto e coalhando-o de estrelas fosforescentes, espiando em seu telescópio. Porém, após a morte da mãe, ele já não acreditava nos dizeres dela – “Se você se perder, basta achar a Estrela Polar” –, desorientado como se sentia. E Graciliano se conformava com sua condição: “Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes” (p. 210). Ainda nesse ramo espacial, Ben guarda da mãe a frase “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós contemplam as estrelas” (p. 22). Ele acha que foi escrita por um astrônomo, mas o autor é Oscar Wilde, em uma fala da peça O leque de Lady Windermere. 4 É uma questão de encarar a vida: todos se encontram na mesma situação, às vezes de desolamento, miséria, mas alguns têm a capacidade de enxergar além, de querer se superar, ser diferente. Esse é o caso de Ben e Graciliano, com sua inteligência fora do comum e a sensação de estar deslocado. Como Rose escreve no papel que deixa sobre o meteorito/estrela cadente: “Eu queria pertencer a algum lugar” (p. 351). Assim como Graciliano, Ben adora livros, influenciado por sua mãe, bibliotecária, mas, ao contrário dele, tem fácil acesso às obras, que transbordam das prateleiras e empilham-se pela casa inteira. Porém, os museus estão fora de alcance, devido à distância e à falta de dinheiro. Além de alimentar sua imaginação e seus conhecimentos pelos livros, Ben ainda gosta de fantasiar e ouvir histórias, transformando o chalezinho de hóspedes em castelo de bruxa ou navio pirata, à semelhança de Graciliano, que, alheio às aulas, associa lugares e pessoas a suas tramas favoritas. Já Ben se desliga do professor e dos colegas pressionando o ouvido bom, assim fica fácil ler os livros sobre espaço sideral que esconde debaixo da carteira. Para Rose, a escola é o lugar onde ela encontra outras pessoas surdas, com quem consegue se identificar e não se sentir excluída, já que os pais eram ouvintes. Mas ela nunca foi boa em falar e ler lábios, por isso detestava o ensino. Fora da sala de aula, na escola, aprendeu a língua de sinais, assim “o mundo se abriu”. Ela podia se comunicar! Nos agradecimentos, o autor diz que viu um documentário em que um jovem testemunha ter encontrado um pertencimento na escola. “Intrigou-me a ideia de alguém buscar a própria cultura fora da família biológica” (p. 630), comenta Selznick. É

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também o caso de Graciliano, que precisa buscar fora os livros, o prosseguimento da leitura, pois os outros não aprovam essa atitude, nem mesmo na escola. A ida de Ben para a cidade me recorda a mudança de Graciliano para Viçosa, o impacto inicial ao se chegar a um lugar desconhecido. “Objetos e palavras inexistentes no sertão originavam incerteza, e a maneira de falar me chocava os ouvidos” (Ramos, p. 177). Já Ben tem a ausência de sons, a primeira vez que depara com uma situação de grande porte após a perda completa da audição: “Ben tentou imaginar aquela trilha sonora de buzinas, gritaria e algazarra, mas para ele tudo acontecia silenciosamente, como um filme mudo de terror” (p. 265). A mesma analogia diferenciada ocorre quando se compara a estadia de Ben no hospital sem ouvir (só em sonhos) e Graciliano na cama de casa sem ver, declarando: “Na escuridão percebi o valor enorme das palavras” (p. 146). O leitor vai alternando entre o não ver (no texto) e o não ouvir (na ilustração), e a jornada de cada um dos protagonistas complementa uma à outra. E assim vai seguindo a busca de Ben sobre sua família, sua história, lembrandome o trecho de Italo Calvino na última conferência de Seis propostas para o próximo milênio, intitulada “Multiplicidade”: Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

E assim se afiguram os museus e os gabinetes de curiosidades (seus precursores), a caixa-museu de Ben, a pasta do arquivo do museu, os objetos da mãe que vão lhe dando pistas... Assim são as memórias de Graciliano, que foi arrumando objetos, fatos, experiências, em um trabalho árduo, já que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional – o real – e uma ordem unidimensional – a linguagem (Barthes, p. 12). No mundo, para Ben, “de certa maneira, qualquer um que colecione coisas na intimidade da própria casa exerce essa função [de curador]. O simples fato de escolher como mostrar suas coisas, de decidir quais quadros pendurar e onde ou em que ordem os livros devem ficar já o coloca na mesma categoria de um curador de museu” (p. 99). Assim, em nossas formas de organizar o mundo, contamos uma história, dizemos um pouco sobre nós mesmos. Ben compara a visita a uma exposição à leitura de um livro e imagina como seria fazer a curadoria de um evento sobre a própria vida. “Como seria

escolher e juntar objetos e histórias que entrariam no próprio gabinete? [...] E agora, pensando em sua caixa-museu, em sua casa, em seus livros [...], compreendeu que já tinha começado a fazer isso. „Talvez‟, disse a si mesmo, „todos nós sejamos gabinetes de curiosidades‟” (p. 574, 575). E o Infância, nesse sentido, é um grande gabinete de curiosidades. Ben deseja que o mundo seja organizado como uma biblioteca, onde tudo é seguro, numerado, catalogado, assim ele conseguiria encontrar o que procura, como o significado de seus sonhos e o pai. Da mesma forma, o mapa do museu, com tudo esquematizado e bem dividido; se o universo fosse assim, ele poderia entendê-lo. Nesse mesmo contexto, Graciliano buscava sentido nos livros, neles se refugiava, pois ali se sentia compreendido e inserido. A construção de uma história e de um refúgio também aparece na vida de Rose, que recorta tudo o que encontra sobre a mãe, montando um álbum, em uma tentativa de ficar próxima da atriz distante e famosa. A história de Rose indica a gradativa exclusão imposta aos surdos, e a maneira que Selznick encontrou para apresentar a questão – dando ao leitor o sentido da visão das imagens, mas não da audição das palavras – é genial, visto que a escrita não era o principal recurso de leitura do mundo por parte de Rose. Essa ideia é mencionada por Cláudio Leitão acerca de Infância, mas aqui também se encaixa: “Antes da habilitação para a leitura da grafia, os olhos leem o mundo” (p. 277). O leitor precisa se acostumar a essa nova linguagem, a acompanhar os acontecimentos apenas por ilustrações, em um ritmo mais lento, como em um aprendizado, já que elas costumam ocupar um papel menor na valoração das tramas. Até o ano de 1927, quando somos apresentados a Rose, ouvintes e surdos podiam aproveitar o cinema juntos. Porém, com o advento do cinema falado, os surdos não podem ter a mesma fruição e ela iria se distanciar da arte da mãe, um meio de conseguir encontrá-la. A própria trama de Rose é como um filme mudo, em que as mensagens escritas funcionam como letreiros. A expressividade das imagens, das expressões faciais e da caligrafia é essencial para a compreensão do desenrolar dos fatos, mas também as palavras vêm ao auxílio, em propagandas, pôsteres, capas de livros, texto didático, placas, papéis, crachá, cartão-postal etc. Rose se conecta a Graciliano pelo fato de ambos serem infantes, terem problemas para se expressar e não terem um ambiente propício para isso. Para ela, é difícil falar, pois é surda de nascença, e se opõe a aprender a língua de sinais, no fundo se opondo à educação ríspida e querendo ficar voltada apenas para si mesma. Rose não

acredita nas palavras do livro, que lhe dizem que a comunicação impede uma mente aprisionada e o isolamento e proporciona um contato mais estreito com o mundo, um círculo maior de amizades, colocando o conhecimento ao alcance. Como Cláudio Leitão fala com relação a Graciliano: “Adquirir a capacidade de ler resulta na descoberta de um oceano” (p. 280). Ben também passa por percalços no aprendizado, ainda mais que acabou de ficar totalmente surdo. Ele recebe a ajuda do amigo Jamie, que lhe compra um livro. Ben tropeça na memorização das letras P, H e F, pois não se assemelham ao símbolo gráfico, assim como Graciliano se enrola com o D e o T. Desanimado, Ben narra: “Não acreditava que algum dia seria capaz de usar os sinais com tanta rapidez, por mais que os estudasse” (p. 504). Contudo, ao fim do livro, ele consegue dizer, com facilidade, “My friend”, cada sinal ampliado em uma ilustração de página dupla (p. 592-607). É interessante notar que, se não fosse pelo texto verbal e pela nota de rodapé, nem todo leitor conseguiria compreender a mensagem, pois se trata tanto de língua de sinais quanto de inglês (já que as imagens foram mantidas como no original). Por fim, Ben e Jamie aparecem na ilustração e Rose conta fatos que apareceram só em imagens, dando uma explicação mais completa, logo havendo uma integração dos dois mundos significativos. Agora tudo está em paz: “Ben agora sabia que fazia parte daquele lugar” (p. 617). E, ao que parece, esse antigo anseio de Rose também está satisfeito. No telhado de um museu, e não em uma sarjeta, os três se sentam, contemplando as estrelas. Para completar, Brian Selznick revela, nos agradecimentos, que seu irmão nasceu surdo de um ouvido, como Ben, mostrando que no livro também há um toque da sua vida. “Foi fascinante conversar com ele sobre isso. Muitas das observações e pensamentos do protagonista a esse respeito vieram dele” (p. 632). Mais um quadro no gabinete de curiosidades que é Sem fôlego. Dessa forma, pelo deslumbramento, pelas aventuras, pela superação das crianças que se sentem sozinhas, fora todas as semelhanças com a vida de Graciliano que permeiam o livro, acredito que ele se identificaria com e apreciaria Sem fôlego. Seria também uma narrativa de transformação.

Bibliografia BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 07 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004. RAMOS, Graciliano. Infância. 46.ed. Rio de Janeiro: Record, 2011. SELZNICK, Brian. A invenção de Hugo Cabret. São Paulo: Edições SM, 2007. ______. Sem fôlego. São Paulo: Edições SM, 2012. VALDEZ, Diane. Livros de leitura: a infância nas linhas e nas imagens (1890-1950). In: 14º COLE - Congresso de Leitura do Brasil; II COHILILE - Congresso da História do Livro e da Leitura no Brasil. Campinas, 22-25 jul. 2003. Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais14/Cohilile/H025.doc. Acesso: 11/08/2013. ______. Livros de leitura seriados para a infância: fontes para a história da educação nacional. Revista Linhas, Florianópolis, v.5, n.2, jul./dez. 2004. p. 221-242. Disponível em: www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1218. Acesso: 11/08/2013.

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