A leitura midiática da cidade de São Paulo: cenários de identidade e identificação

October 6, 2017 | Autor: Bruna Bastos | Categoria: Comunicação Social, Ciências Sociais, Geografia
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Trata-se de uma trama policial e a história da batalhadora Ana (Susana Vieira). Com o desenrolar da trama, uma série de assassinatos, aparentemente sem motivo e conexão entre si, passa a ocorrer na história. Intrigada com a sequência de mortes inexplicáveis, a jovem estudante de Direito Irene (Vivianne Pasmanter) tenta descobrir não só a identidade do matador, mas quem será a próxima vítima. Uma lista de horóscopo chinês, recebida pelas vítimas antes do crime, é o que há de comum entre todas as mortes. Paralelo aos assassinatos em série, outros dois crimes ocorrem na trama, planejados ou executados por Isabela (Claudia Ohana). Ao fim da trama, descobre-se que todas as vítimas do assassino em série tinham ligação entre si. As mortes foram queimas de arquivo, em decorrência do assassinato de Gigio di Angelis (Carlos Eduardo Dolabella), morto a tiros em 1968. Fonte: . Acesso em 15/out./2014.
Fonte: . Acesso em 23/out./2014.
Fonte: . Acesso em 20/out./2014.
"São bem conhecidas as propostas e as consequências da ampla reforma conduzida pelo barão Haussmann (o 'artista demolidor', responsável pela reforma urbana de Paris), sob o imperativo de adequar a cidade às profundas transformações induzidas pela nova etapa do crescimento capitalista, cujas necessidades já não eram compatíveis com o acanhado desenho e dimensões da cidade pré-industrial." (MAGNANI, José G. C.. Transformações na cultura urbana das grandes metrópoles. In: MOREIRA, Alberto da S.. (Org.) Sociedade global – cultura e religião, Petrópolis (RJ): Vozes; São Paulo: Univ. São Francisco, 1998.
Animação do norte americano Ryan Woodward. Disponível em: . Último acesso em 20/out./2014.
Conforme site da FIESP. Disponível em: . Acesso em 23/out./2014.
Conforme fala do Prof. Maurício Ribeiro da Silva durante Seminário "Comunicação e Cidade: do imaginário simbólico à imagem Urbana "realizado na Universidade Paulista (UNIP) em 20/10/2014


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A leitura midiática da cidade de São Paulo: cenários de identidade e identificação
Profa. Dra. Marcia Perencin Tondato – PPGCom-ESPM - [email protected]
Bruna Freire Bastos – mestranda PPGCom-ESPM - [email protected]

Resumo: Neste artigo trabalhamos com vinhetas de telenovelas, cenários de telejornais e peças publicitárias que trazem imagens da cidade de São Paulo. O objetivo é analisar a identidade da metrópole construída nestas produções, reconhecidas como veículos de propagação e reforço de um imaginário sobre a mesma. Para análise partimos de conceitos relacionados à construção social da realidade, identidade, pensando na representação dos espaços públicos como constituintes da imagem-identidade da cidade como um todo, mas também lugar de encontro entre o público e o privado, possibilitando a completude dos sujeitos-indivíduos no encontro com o Outro. Partimos do olhar da câmera entendido como o olhar do indivíduo coletivo sobre a cidade (CERTEAU), ora caminhante, ora voyeur, o pathos e o ethos sendo construídos a cada leitura. São Paulo como metrópole, exigindo uma consciência elevada para ser "consumida" como lugar de ser e viver, exigindo uma "atitude blasé", pela complexidade de sua fragmentação. Atitude necessária para perceber e experimentar os objetos (espaços e arquitetura) como destituídos de substância, organizados em um palimpsesto de formas, exprimindo uma estética de diversidade e individualidade.
Palavras-chave: comunicação; cidade; identidade; representações midiáticas.
Abstract: In this article we work with telenovelas overtures, sceneries of TV news programs and advertising pieces that bring images of Sao Paulo city. The intention is to analyze this metropolis identity built in these productions, recognized as vehicles of dissemination and reinforcement of the imaginary about it. For such analysis we start from concepts linked to the social reality construction and identity, thinking about the representation of public spaces as constituent elements of the city image-identity, but also a meeting place between the public and the private, enabling the subject-individuals' completion as far as they meet the Other ones. We understand the camera lens as the glance of the collective individual on the city (CERTEAU), sometimes a walker, sometimes a voyeur, pathos and ethos being built at each reading. Sao Paulo as a metropolis, demanding a high conscience to be "consumed" as a place for being and living, demanding a "blasé attitude" for the complexity of its fragmentation. Such attitude is necessary to realize and try the objects (spaces and architecture) as if they were deprived of substance, organized as a palimpsest, expressing an esthetics of diversity and individuality.
Key words: communication; city; identity; media representations.

A metrópole como lugar de diálogo de identidades
A que nos referimos quando falamos em "leitura midiática ... cenários de identidade e identificação"? Das imagens de uma cidade "símbolo de pujança"? Dos registros das mazelas da periferia ou do trânsito caótico? Da cidade-imaginação que a muitos atrai em busca sabe-se lá do que? As análises aqui apresentadas falam de tudo isso, mas principalmente das representações dos espaços de uma São Paulo que seus habitantes, permanentes ou em trânsito, compartilham como lugar de encontro entre o público e o privado, possibilitando a completude dos indivíduos em sujeitos, no encontro com seus Outros. Mas também do lugar a "que chamamos 'espaço público' como extensão material do que na realidade é ideologia, no sentido marxista clássico, ou seja, onde ocorre o mascaramento ou fetichização das relações socias reais". (DELGADO, 2011, p. 29).
Na identificação dos espaços, partimos do olhar da câmera entendido como o olhar do indivíduo coletivo sobre a cidade (CERTEAU, 1999), ora caminhante, ora voyeur, o pathos e o ethos de cada leitura construídos destes pontos de vista. Como corpus tomamos vinhetas de abertura de telenovelas, cenografia de telejornais e peças publicitárias que trazem imagens da cidade de São Paulo, com o objetivo de analisar a identidade desta metrópole construída nessas produções, reconhecidas como veículos de propagação e reforço de um imaginário sobre a mesma.
Do passeio do flâneur que reunia informações sobre a cidade para depois transferi-las às crônicas literárias e jornalísticas, passamos, em cinquenta anos, ao helicóptero que sobrevoa a cidade e oferece a cada manhã, através da tela do televisor e das vozes do rádio, o panorama de uma megalópole vista em conjunto, sua unidade recomposta por quem vigia e nos informa. (GARCÍA CANCLINI, 2002, p. 41).
A intenção é "pensar São Paulo" para além da superficialidade dos ritmos cotidianos, o que exige não só certo desprendimento que nos permita "consumi-la" como lugar de ser e viver, mas também uma "atitude blasé", pela complexidade da fragmentação, sua característica. Atitude necessária para perceber e experimentar os objetos (espaços e arquitetura) como destituídos de substância, organizados em um palimpsesto de formas, exprimindo uma estética de diversidade e individualidade.
A análise começa com três vinhetas de abertura de telenovelas exibidas no horário nobre (20h-23h), a saber: "A Próxima Vítima" (Silvio de Abreu, 1995), "Belíssima" (Silvio de Abreu, 2006) e "Amor à Vida" (Walcyr Carrasco, 2013).
Mas por que telenovelas? Inegavelmente, sem negar a origem cubana ou sua importância na América Latina como um todo, a telenovela como a conhecemos hoje é um produto midiático brasileiro por excelência, de importância capital não só na relação com o cotidiano da população, mas também, e pela audiência comprovada, como manutenção econômica do modelo comercial da TV brasileira.
As representações e o que evocam
Em "A Próxima Vítima" temos como cenário logradouros caracterizados por intensa circulação de veículos e pessoas, mas também onde se encontram ícones arquitetônicos da cidade de São Paulo, nem sempre (re)conhecidos pelo ritmo frenético da dinâmica em curso. A primeira sequência parte de uma tomada acima do Edifício Copan, marco da expansão urbana e concentração populacional no centro da cidade na década de 1950. Em uma tomada em plano geral, atravessamos a rua, aterrissando em zoom focalizando o rosto de uma jovem, magra, de cabelos lisos, tomando sol na piscina de outro marco de desenvolvimento da cidade, o edifício do Hotel Hilton, primeiro hotel de nível internacional, inaugurado em 1971. Ao lado da jovem, um mordomo uniformizado segura uma bandeja, pronto para servi-la.
Histórica e tradicionalmente o centro da cidade é o lugar onde o poder se especializa. Nas cidades gregas antigas esta centralidade se materializa na Ágora, permitida apenas aos homens, gregos e proprietários, os únicos considerados cidadãos. Nas cidades coloniais hispânico-americanas, o poder se localiza ao redor da praça, onde se localizam a Igreja, os palácios e prédios administrativos. (ROLNIK, 2012). Na abertura da novela esta centralidade se materializa na composição que reúne edificações ícones de uma cidade símbolo da modernidade, por onde circula a elite, representada por uma jovem magra, de cabelos lisos, estereótipo de classe alta, concepções trabalhadas segundo padrões estéticos hegemônicos da beleza ocidental. O conjunto - hotéis de luxo, arquitetura arrojada - configura-se como lugar de poder e distinção. (BOURDIEU, 2008).
Na segunda sequência somos levados ao Parque do Ibirapuera, um dos cartões postais da cidade, caracterizando o espaço verde da metrópole, um dos parques públicos mais tradicionais da cidade. Público, mas por sua localização na confluência de bairros nobres, facilita o acesso ao lazer e atividades culturais aí oferecidas dos que aí moram, constituindo-se um grupo privilegiado do usufruto do espaço, incluindo nisso a paisagem aprazível.
Avançando na vinheta chegamos à Avenida Paulista, estrategicamente localizada no ponto mais alto da cidade. Enquanto na época de sua inauguração, final do século XIX, abrigava os casarões dos barões do café, hoje é um dos principais centros financeiros da cidade, além de um importante ponto turístico, por isso mesmo palco de comemorações e manifestações diversas. Na vinheta o zoom focaliza o rosto de uma jovem mulata saindo da estação do Metrô. Jovem, magra, alta, de traços finos e cabelos lisos, vestindo jeans, personaliza uma representação da mescla de etnias que é a população da cidade, mas ainda caracterizada dentro de padrões de beleza hegemônicos. É a juventude que circula pelos centros "nevrálgicos" paulista, que congregam as oportunidades de crescimento profissional.
Da Avenida Paulista para a Praça Armando Salles de Oliveira, onde encontramos o "Monumento às Bandeiras", obra executada por Victor Brecheret em homenagem aos Bandeirantes pelo desbravamento do Brasil. Um espaço que conecta as avenidas Brasil, Pedro Álvares Cabral e República do Líbano, marcando a intersecção das zonas Centro-sul e Oeste, caracterizadas como regiões nobres da cidade. Nesta cena, o zoom se aproxima do rosto de uma mulher dentro de um carro de luxo, dirigido por um homem de terno e gravata, aparentemente seu motorista. A passageira, de meia idade, loira, maquiada, trajando roupas clássicas e usando joias representa, portanto, as classes mais altas.
Em seguida vamos ao MASP, edifício projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, famoso pelo vão livre de mais de 70 metros que se estende sobre quatro enormes pilares. Para chegar até aí, somos transportados em um "voo" por entre os edifícios, aterrissando junto a um pedestre que atravessa a rua juntamente com uma multidão. Do MASP ao Vale do Anhangabaú na região central, entre os Viadutos do Chá e Rua Santa Efigênia, onde está a Prefeitura de São Paulo, o Teatro Municipal, entre outros grandes edifícios ícones da São Paulo Antiga.
Anhangabaú é o nome do rio que passa sob as atuais avenidas, tendo sido no século XVII local de banho e lavagem de utensílios de uso cotidiano. Um logradouro marcado por atos de violência dos Bandeirantes nas tentativas de escravização dos índios durante o processo de desbravamento das terras paulistas. Espaço urbanizado por volta de 1877, com a desapropriação de terras e canalização do rio, estabelecendo-se o espaço como o lugar de comércio e de atividades culturais variadas. Um marco no processo de modernização da cidade de São Paulo.
Em seguida há um corte para o título da novela, "A Próxima Vítima", seguido do close dos olhos de um homem, logo cobertos pelas lentes espelhadas de óculos escuros que refletem um plano geral dos edifícios da cidade. Encerrando a vinheta, o barulho de um tiro de revolver e a imagem das lentes dos óculos escuros se estilhaçando.
Além das observações sobre as representações da cidade, refletimos sobre o pathos e ethos desta narração imagética. O pathos se relaciona ao drama humano apresentado no roteiro e nos acontecimentos aí retratados. (COMPARATO, 1983). Nesta vinheta logradouros famosos da cidade de São Paulo, com toda a carga simbólica descrita, servem de cenários introdutórios a uma narrativa de suspense. Entre uma sequencia e outra, sobre os rostos dos transeuntes destacados surge a mira de um revolver, após a superposição desfocada dos personagens-atores da trama. Como em um jogo de adivinhação sobre quem será o próximo alvo acompanhado de um efeito de câmera subjetiva que coloca o espectador dentro da cena do ponto de vista de um suposto atirador. Para cada plano geral captado, há uma movimentação em zoom direcionando-nos para o close do rosto da possível vítima, ao mesmo tempo representante da diversidade dos tipos que transitam pela cidade.
Tais sequencias apresentam a trama da novela, seu núcleo narrativo, que tradicionalmente no formato brasileiro vai se decompor em diversos outros núcleos, no que Comparato (1983) denomina multiplot, uma constituição de diversos plots, no caso, todos passíveis de serem contexto de um assassinato, em uma série que aparentemente desconexa, só vai adquirir sentido ao final da novela. O pathos está nas micronarrativas da vida cotidiana na cidade grande que, em última instância, nos insere em um contexto da diversidade e da incerteza, frente o qual nos colocamos diante do perigo, do bem ou do mau, da vítima ou do assassino.
Segundo Comparato (1983), o ethos é a moral, o significado da história, suas implicações morais e políticas. Na vinheta analisada, a narrativa nos remete às questões próprias da modernidade, às questões políticas e morais relacionadas a uma esfera pública que tem os limites com a vida privada cada vez menos definidos. Um espaço público povoado por multidões de solitários, vivendo um "modelo social pautado pela velocidade, [...] setores econômicos estabelecendo relações comerciais, produtivas e financeiras sem necessariamente construírem relações simbólicas e, consequentemente, sem a pressuposição da responsabilidade social". (LONGHI, 2009, p. 23).
A temática alude às histórias de detetive comuns na Europa no final do século XIX e que têm em Edgar Alan Poe um de seus principais expoentes. "O conteúdo social e originário da história de detetive é apagar as pegadas do indivíduo na multidão da cidade grande" (BENJAMIN, 1991) ou como diria Baudelaire "o observador é um príncipe que consegue estar incógnito por toda parte". (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1991). Assim, quando temos o plano geral de diferentes locações na cidade de São Paulo temos um enfoque sobre as multidões que ocupam as cidades, nos remetendo a uma rede de significações a respeito do anonimato, das massas, das automatizações e padronizações dos processos urbanos modernos.
Contudo, quando temos o close dos personagens que compõem a multidão, somos remetidos a uma cadeia de significações relacionadas à intimidade dos indivíduos, às suas vidas pessoais e suas subjetividades. Por estar em subjetiva, a câmera nos coloca na posição de observadores, não mais como telespectadores, mas como indivíduos que fazem parte daquela multidão retratada, portanto, não apenas sujeito observador, mas também sujeito observado. Um efeito de origem hitchcockiana, com objetivo de inserção do espaço cenográfico na narrativa. No caso desta análise, um teaser da trama a ser explorada no decorrer dos capítulos da obra em questão.
O ethos da narrativa nos questiona justamente sobre esta dinâmica urbana que aproxima público e privado, o exterior do interior, longe e perto, rua e casa (BENJAMIN, 1991). Problematiza nossa posição na cidade moderna, nossas identidades e condutas neste espaço urbano. Podemos dizer, então, que a representação de São Paulo nesta abertura é a São Paulo das multidões, dos grandes fluxos, da diversidade. Mas também espaço do conflito entre os automatismos e incertezas destas multidões, subjetividades e individualidades de sujeitos que "lutam por um lugar ao Sol".
Em "Belíssima", novela também assinada por Silvio de Abreu, também temos as ruas de São Paulo como o cenário, mas vistas de dentro de uma vitrine, onde uma modelo se exibe. A primeira cena mostra apenas o vulto da modelo, contra um fundo branco luminoso. À medida que a luminosidade se dissipa é possível distinguir imagens das movimentações no trânsito da cidade de São Paulo, através do vidro, localizado além da modelo, que agora se despe, parecendo não se importar com os transeuntes, que apenas diminuem o passo ao notar sua presença na vitrine para em seguida continuar seu caminho.
Aqui o olhar do telespectador é o olhar da câmera, que focaliza a jovem em primeiro plano, como se estivesse no fundo da vitrine. O vidro, um dos materiais mais usados na arquitetura moderna, separando a modelo da rua nos remete novamente ao modelo urbano, em que público e privado podem até confundirem-se, entretanto, sem se misturarem. Nas cenas, o vidro é ao mesmo tempo barreira e portal, separando privado e público, mas também expondo o indivíduo ao olhar dos transeuntes. (BENJAMIN, 1991).
A cidade aqui representada é uma sucessão de grandes avenidas e vultos de automóveis (imagina-se) em velocidade. Em um fundo diáfano também transitam pedestres, no andar apressado das atividades diárias. Como molduras de um cotidiano fugidio e repetitivo vislumbram-se prédios altos, ordenados, caracterizando uma cidade adensada, símbolo de uma modernidade racional e desenvolvimentista. As imagens das construções são desfocadas, não sendo possível identificar suas especificidades e localizações, ainda que não respondendo ao desenho da cidade ideal dos projetos de Haussmann. (BENJAMIN, 1991).
As imagens transcorrem, como já mencionado, em velocidade, em uma temporalidade diferente dos movimentos realizados pela modelo na vitrine, que são em câmera lenta. Essa diferença de temporalidades gera estranhamento: fora da vitrine o tempo passa rápido, o fluxo de carros é intenso e as pessoas estão apressadas, dentro o ritmo é lento, irreal, destacando o balançar suave dos cabelos da jovem, em movimentos vagarosos e sedutores. Diferenças simbólicas entre a lógica do que é exibido na vitrine, um universo espetacular, ficcional, quase mágico, e a lógica do cotidiano, que se passa no mundo real, prático, que deve ser funcional.
O pathos da abertura está na figura desta mulher que a cada pose se desfaz de uma peça de um elegante traje de noite, expondo-se ao olhar dos passantes. À medida que se despe, faz emergir do preto de seu vestido, luvas e véu, o branco da sua pele, coberta ao final apenas pelo lingerie negro, altiva sobre sapatos de salto alto, elementos que complementam o clima de erotismo e sensualidade. (SILVERSTONE, 2002).
Refletimos sobre este "despir" a partir de Marx e o conceito de fetiche da mercadoria, tratando da aparência sedutora dos produtos na sociedade do consumo em contraposição ao horror das condições de trabalho dos operários encarregados da produção dos mesmos no sistema capitalista. Assim, quando a modelo se despe do vestido, véu e luvas, além de transformá-los em objetos de admiração, espetacularizando a ação corriqueira de "tirar a roupa", expõe seu corpo, apresentando-se como um produto em exibição na vitrine. Ela mesma não se configurando mais como uma modelo de roupas, mas como a modelo de um produto chamado "corpo", exibido a partir de uma perspectiva de erotismo e sensualidade.
O espaço público é uma daquelas noções que exige o cumprimento da realidade que evoca e que de certo modo também invoca uma ficção nominal concebida para induzir a pensar e a atuar de certa maneira e que urge ver-se instituída como realidade objetiva. Um certo aspecto da ideologia dominante – neste caso o desvanecimento das desigualdades e sua dissolução em valores universais de ordem superior – logo adquire, por empregar a imagem o próprio Lukács propunha, una "objetividade fantasmal". (DELGADO, 2011, p. 28).
Após despir-se tendo a cidade em movimento à sua frente, posicionada de costas para o telespectador, já coberta apenas com o lingerie, a plataforma sobre a qual a modelo está gira e o olhar da câmera se aproxima, alternando entre tomadas de primeiro plano e plano médio. A modelo agora não mais se exibe para os transeuntes do outro lado do vidro, mas para o espectador atrás da lente da câmera, numa intenção de cumplicidade com aquele que fielmente acompanha a trama dia após dia.
A narrativa da vinheta finaliza-se com a jovem deitada, pernas para cima meio cruzadas, enquanto a plataforma lentamente para, posicionando-a novamente de frente para a rua, em um movimento que novamente nos remete à sua situação de mercadoria, tal como defende Benjamin (apud MATOS, 2010) quando fala sobre o sex appeal do inorgânico. A esta imagem se funde o título da novela: "Belíssima", num efeito fade out.
Podemos dizer que o ethos da abertura se relaciona ao poder de sedução desta mulher, alta, branca, esbelta, posicionada no centro de uma metrópole a partir de um dos símbolos do comércio moderno, a vitrine. São Paulo nesta abertura é a cidade do espetáculo, do efêmero, das narrativas do consumo, do erotismo sem disfarce, mas inatingível, apenas observável, da aparência e opulência, que pode ser desnudada em um ritual de sedução.
Na abertura de "Amor à Vida", novela assinada por Walcyr Carrasco, temos um casal dançando uma coreografia representando encontros e desencontros de uma paixão, tendo ao fundo ícones arquitetônicos e locais mais conhecidos de São Paulo. O casal desenhado em traços branco e preto e as imagens ao fundo em tons de siena sobre um fundo bege. As imagens mostram a "Oca", espaço de exposições nomeado Pavilhão Lucas Nogueira Garcez, projetado em 1951 por Oscar Niemeyer, localizado no Parque do Ibirapuera.
A seguir, a "Oca" se transforma no centro da cidade, com destaque para o edifício Copan, também assinado por Oscar Niemeyer. Esta imagem se desmancha, dando lugar ao Estádio do Pacaembu, centro esportivo que sedia partidas de futebol da maioria das equipes da cidade. O Pacaembu é sobreposto pelo prédio da FIESP, na Avenida Paulista, "marco da vocação paulista para o desenvolvimento". A imagem seguinte é a Ponte Otávio Frias de Oliveira, ou como ficou mais conhecida, a "Ponte Estaiada". Inaugurada em 2008, já se tornou um dos cartões postais mais famosos da cidade pela especificidade de ser a única no mundo a conectar duas pistas em curva apoiadas no mesmo mastro.
O pathos desta abertura está nos encontros e desencontros do casal apaixonado. Ora como pássaros, ora como seres humanos, se aproximam e se distanciam, beijam-se e se separam em uma coreografia ora dinâmica, ora mais lenta. Já o ethos se relaciona à cidade de São Paulo como o palco dos afetos e desafetos. Na São Paulo desta abertura há uma poética que resgata a afetividade, o orgânico e a harmonia na natureza da cidade.
Mediante o efeito especial da animação é possível narrar as relações entre humano e natureza, técnica e arte, conflito e reconciliação, materializadas nas transformações do casal que ora são pássaros, ora seres humanos. As transições pontuadas pelos prédios e pontes, sinalizando o cenário de tal paixão, dão a entender que o contexto metropolitano e o poder implícito nas obras arquitetônicas também fazem parte da história em curso. A narrativa caracterizada pelos encontros e desencontros e a dinâmica do conflito e da reconciliação, por sua vez, simboliza o movimento de uma cidade que no efêmero e nas transformações constrói suas relações de Equilíbrio e Harmonia.
Respondendo à proposta de uma exploração das representações midiáticas da cidade de São Paulo, analisamos também o vídeo oficial de divulgação do "Evento Lollapalooza Brasil 2013", no qual, semelhante às vinhetas de abertura das teleficções, há uma recorrente apresentação da cidade como espaço de fluxo. Contudo, o pathos do filme do Lollapalooza se traduz na mescla entre imagens reais de São Paulo e personagens de animação que ocupam suas vias públicas, gerando o colorido necessário para fazer emergir uma atmosfera lúdica, onde impera o encantamento, a imaginação e o entretenimento.
A partir do mote "Ocupe SP com música", o vídeo convoca os indivíduos a destoarem da lógica normativa e automática da cidade como engrenagem (BENJAMIN, 1991) para adentrarem uma realidade fantástica, ativada pela música, e, em última instância, pelo evento Lollapalooza. Neste sentido, o evento promove o rompimento da atitude blasé, indiferente e automatizada (SIMMEL, 2005), fazendo irromper novas formas de perceber e habitar a cidade, mensagem que se configura como o ethos do vídeo.
Outra chamada publicitária analisada é o clipe de abertura das transmissões dos jogos da "Copa do Mundo de 2014" no qual temos três segundos de representação da cidade de São Paulo. Neste tempo transcorre a cena de dois jovens jogando bola na calçada de uma grande avenida, que se assemelha à Avenida Paulista. Assim como nas vinhetas de abertura das novelas e no filme do Lollapalooza, edifícios ícones como o MASP, o Banespa, o Conjunto Nacional e a Ponte Estaiada são referências presentes no desenho da cena paulista.
Todavia, neste vídeo, a maioria das pessoas representadas são negras, diferentemente das aberturas das novelas. Apesar de os "protagonistas" serem um branco e outro negro, as pessoas que estão ao redor são quase todas negras, inclusive o menino-personagem central da narração sobre o "país da Copa". Podemos interpretar esta escolha como uma maneira de dar destaque à miscigenação do povo brasileiro, trabalhada a partir de estereótipos internacionais do biotipo brasileiro, sem deixar de lado a caracterização do "humilde" nos "chinelos de dedo" e na aparição em cena como que "saindo" da periferia. Assim, quando representamos uma São Paulo em que brancos e negros jogam futebol na calçada de uma grande avenida, aí calçando tênis, estamos reforçando a ideia de uma cidade amistosa, afetiva e despretensiosa, em detrimento de uma cidade das multidões, das mercadorias, da efemeridade, dos automatismos, como comentado em relação às outras imagens analisadas.
Nesta São Paulo do clipe da Copa não há menção ao blasé. Os jogadores e torcedores são trabalhados qualitativamente, a partir de uma pluralidade de cores e estilos de cabelos, roupas, tipos físicos e expressões faciais, além da vibração positiva de seus estados de espírito. A linguagem caracterizada pela técnica da animação permite a representação das diferenças, desigualdades e da pobreza a partir de uma estética homogênea, que pouco choca e, portanto, favorece imagens altamente estetizantes, mas pouco abertas à negociação de interpretação e imaginação do público. (SILVA, 2014).
Explorando as representações da cidade nos cenários dos telejornais observamos a preponderância do plano geral mostrando amplos espaços ocupados por prédios e grandes avenidas. Aqui, mais uma vez, o destaque é a representação de São Paulo como o espaço da grande circulação, dos fluxos contínuos, mas principalmente lugar de adensamento grandes obras de engenharia.
Para esta análise selecionamos telejornais: o SPTV e o Bom Dia SP (Rede Globo) (Globo), o SBT Manhã (SBT) e o Jornal da Gazeta (TV Gazeta). De modo geral, todos os cenários destes telejornais fazem referência à São Paulo dos arranha céus, das grandes avenidas e pontes, reforçando um imaginário de progresso e modernidade, relacionados ao desenvolvimento técnico. Contudo nos telejornais da Rede Globo a "Ponte Estaiada" é o ícone e no Jornal da Gazeta é a Avenida Paulista, enquanto no "SBT Manhã" a cidade é representada por uma imagem estática de seu skyline, em uma montagem que serve de "moldura" e apoio aos âncoras. (Figuras 1 e 2)

Figura 1: Bom Dia SP e SPTV (Rede Globo).

Figura 2: SBT Manhã (SBT).
Estrategicamente próxima da Marginal Pinheiros e da ponte Estaiada, a Rede Globo aproveita-se desta proximidade para promover o "SPTV" e o "Bom Dia SP", por meio de imagens reais da ponte e arredores (Marginal Pinheiros), numa clara relação de auto referência entre a emissora e o imaginário da cidade, além de uma eventual atribuição de "mais" realidade ao seu noticiário. De mesma forma a TV Gazeta, que desde janeiro de 2014 tem como cenário de seu jornalismo imagens ao vivo da Av. Paulista, onde está localizada.

Considerações finais
O "público" é o lugar do real, ou melhor, da realidade, visto que o real é fugidio enquanto a realidade é construída. (JAGUARIBE, 2007). Público é o espaço onde nos constituímos como pertencentes a uma cidade, um país, conforme o reconhecimento de semelhanças, enquanto no privado elaboramos as diferenças passíveis de nos tornarem distintos "da massa". Ainda que não tenhamos nenhuma representação "olhando de cima", nas peças analisadas é perceptível a leitura totalizadora, tão cara às pinturas medievais ou renascentistas após a invenção da perspectiva que possibilitou o panorama, possibilitando ao homem comum "o olho celeste". (CERTEAU, 199170).
As aberturas das obras teleficcionais podem ser lidas como um "choque do real", na concepção de Jaguaribe (2007, p. 100), ao contrário. Enquanto no jornalismo é utilizada uma estética realista visando a um efeito de desestabilização da neutralidade, provocação do espanto ou aguçamento do sentimento crítico, na vinheta de "A Próxima Vítima", por exemplo, a mira do revólver, nas transições de locações, e o estilhaçamento das lentes dos óculos escuros, ao final, provocam o espectador ao retorno do contexto ficcional. Ou seja, ele é lembrado de que o que está vendo é a abertura da novela e não "apenas" uma sequencia de locações na cidade de São Paulo.
Entretanto, as cenas analisadas não podem ser caracterizadas como espaços de vivencia cotidiana, pois todas representam locações urbanas, do centro da cidade, das principais vias de circulação, com intenso fluxo de gente e de veículos. Transeuntes com destino certo, ou incerto até, mas com certeza "de passagem". Findo o dia, em algum momento entre os tempos que regulam este trânsito, as vias se esvaziam, ou quase, deixando emergir o seu real, a concretude fantasmagórica do espaço público sem público.

Referências
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BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: KOTHE, F. R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991. (Grandes Cientistas Sociais n.50).
BOURDIEU, Pierre. A Distinção – crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: ZOUK, 2008.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 4ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.
COMPARATO, Doc. Roteiro: arte e técnica de escrever para cinema e televisão. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.
DELGADO, Manuel. Espacio público, discurso y lugar. In: _____________. El espacio público como ideología. Madrid: Catarata, 2011, pp. 15-40.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação. Revista Opinião Pública, Campinas, Vol. VIII, nº1, 2002, pp.40-53. Disponível em: . Acesso em 24/out./2014.
LONGHI, Carla Reis. Facetas da esfera pública contemporânea através das representações midiáticas do espaço urbano. In: HELLER, Barbara e LONGHI, Carla Reis (Orgs.). Representações em trânsito: personagens e lugares na cultura midiática. São Paulo: Porto de Ideias, 2009.
MATOS, Olgária C. F. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. O sex appeal do inorgânico. São Paulo: UNESP, 2010.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2012.
SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a Mídia? São Paulo: Loyola, 2002.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Rio de Janeiro: Mana vol.11, n. 2, Rio de Janeiro, Out./2005.
Vídeos:
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Abertura novela "Belíssima". Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pvy4iUbAFTQ. Último acesso em 20/10/2014.
Abertura da novela "Amor à vida". Disponível em http://vimeo.com/66628240. Último acesso em 20/10/2014.
Vídeo divulgação do evento Lollapalooza Brasil 2013. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=86JdkOh4A5o. Último acesso em 21/10/2014.
Vídeo divulgação da Copa 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JP67IM1LX-M. Último acesso em 21/10/2014.


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